"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/10/2024

Jurisprudência 2024 (27)

 
Prejudicialidade;
prejudicialidade parcial; suspensão da instância*

 
1. O sumário de RP 16/1/2024 (1751/22.4T8PVZ-C.P1) é o seguinte:

I - Para que a suspensão da instância possa ser decretada, ao abrigo da primeira parte do art.º 272.º, é necessário, em primeiro lugar, que exista uma outra causa/ação pendente e, em segundo lugar, é necessário que exista entre ambas as ações uma relação de dependência ou prejudicialidade.

II - Pode afirmar-se a existência de prejudicialidade quando a decisão de uma causa possa afetar e prejudicar o julgamento de outra, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser.

III - A lei estabelece três requisitos, cumulativos, para verificação da simulação:
- o pacto simulatório entre o declarante e o declaratário;
- a divergência intencional entre o sentido da declaração e os efeitos do negócio jurídico simuladamente celebrado;
- o intuito de enganar terceiros (animus decipiendi).

IV - Com a intenção de enganar terceiros pode ou não cumular-se a de prejudicar outrem (animus nocendi). Quando, além da intenção de enganar, haja a de prejudicar, a simulação diz-se fraudulenta. Se existe só animus decipiendi, a simulação é inocente.
 

2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I  BB intentou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim a presente ação de processo comum contra AA, pedindo:
 
a) Ser o réu condenado a reconhecer que a autora, é dona e legitima proprietária de metade do imóvel supra melhor identificado no artigo 2.º desta petição, bem como a reconhecer que a autora sempre teve a posse do referido imóvel, da qual foi indevidamente esbulhada;
b) Ser o réu condenado a reconhecer a posse definitiva da autora sobre o imóvel referido no artigo 2.º da petição inicial, livre de pessoas e bens e a restituir definitivamente a posse á autora;
c) Ser o réu condenado de abster-se de por si ou por terceiros de praticar quaisquer atos que ponham em causa tal posse;
e) Ser o réu condenado a pagar uma indemnização á autora relativamente aos prejuízos causados pelo esbulho pelo mesmo efetuado, em montante nunca inferior a Euros 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescidos dos juros vencidos desde a citação e dos vincendos até integral pagamento (…)”.
 
Alegou para tanto e em síntese a inscrição registral de aquisição da compropriedade do prédio reivindicado a seu favor, o correspondente contrato de compra e venda de que configura a aquisição derivada do prédio, e o exercício de posse configurando a aquisição originária, por usucapião. Mais alega que o réu substituiu as fechaduras e passou a ocupar tal prédio contra a vontade da autora, causando-lhe diversos danos patrimoniais e não patrimoniais, que especificou.

O réu, pessoal e regularmente citado veio contestar, dizendo e requerendo, além do mais: 
 
1 – Corre termos no Juiz 6 deste mesmo Juízo Central Cível a ação comum 1388/21.5T8PVZ,
2 – apresentada pelo aqui contestante (e sua mãe) contra a ora autora,
3 – em que, a título principal, é peticionado o seguinte:
«1.º - Declarar-se nulo e de nenhum efeito as escrituras públicas supra identificadas em 16 e 17 do presente articulado.
2.º - Ordenar-se o cancelamento no registo predial das inscrições AP... e AP....
3.º Declarar e reconhecer os autores como únicos e exclusivos proprietários e possuidores do prédio identificado em 1 do presente articulado”
4 – sendo o prédio em causa o que também está em discussão nos presentes autos.
5 – Assim pela relevância das questões suscitadas e em discussão, a decisão que vier a ser proferida na mencionada ação comum é suscetível de constituir um elemento decisivo para a decisão dos presentes autos,
6 – porquanto se aqueles pedidos forem julgados procedentes o título formal aqui invocado pela autora deixará de ter qualquer validade e eficácia.
7 – Nesse sentido, considera o contestante que os presentes autos devem ser suspensos
até ao trânsito em julgado da douta decisão que vier a ser proferida na ação comum supra-identificada (…)”.
 
Mais alegou, excecionando, o exercício de posse por si e sua mãe sobre o prédio reivindicado, configurando a aquisição originária, por usucapião, e impugnou diversa factualidade e conclusões de direito, concluindo pela improcedência da ação. [...]

III. [...] 1.ª questão - Da alegada suspensão da instância por pendência de causa prejudicial.

"Depois de se ler atentamente as alegações e conclusões recursórias, é manifesto que o apelante se insurge diretamente quanto à decisão que julgou improcedente a exceção da simulação contratual invocada, todavia, e no dizer do mesmo, o seu desagrado é feito “…sem prejuízo de determinar a suspensão dos presentes autos por pendência de causa prejudicial até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida no processo n.º 1388/21.5T8PVZ” e, ao longo das suas alegações e conclusões recursórias insurge-se concretamente contra o facto de a 1.ª instância não se ter decidido pela suspensão da presente instância, alegadamente por pendência de causa prejudicial, o invocado processo n.º 1388/21.5T8PVZ.
 
Ora, como é sabido e resulta do preceituado no n.º 1 do art.º 272.º do C.P.Civil, “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.
 
Em suma, para que a suspensão da instância possa ser decretada, ao abrigo da primeira parte do art.º 272.º, é necessário, em primeiro lugar, que exista uma outra causa/ação pendente e, em segundo lugar, é necessário que exista entre ambas as ações uma relação de dependência ou prejudicialidade.
 
Segundo Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3.º, pág. 268 “uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir ou modificar o fundamento ou a razão da segunda…”, esclarecendo ainda que “sempre que numa ação se ataca um ato ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra ação, aquela é prejudicial em relação a esta”.
 
Entendemos que se pode afirmar a existência de prejudicialidade quando a decisão de uma causa possa afetar e prejudicar o julgamento de outra, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando “…na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito, quando a decisão de uma ação - a dependente - é atacada ou afetada pela decisão ou julgamento emitido noutra”, como se referiu no Ac. do STJ de 29.09.93, ou quando “…numa ação já instaurada se esteja a apreciar uma questão cuja resolução tenha que ser considerada para a decisão da causa em apreço”, cfr. Ac. do STJ de 6.07.2005, ambos in www.dgsi.pt. Ou dito de outra forma, causa prejudicial é aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia. Neste mesmo sentido, escreveram Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, in CPC Anotado, vol. I, pág. 314, que “o nexo de prejudicialidade define-se assim: estão pendentes duas ações e dá-se o caso de a decisão de uma poder afetar o julgamento a proferir noutra; a razão de ser da suspensão, por pendência de causa prejudicial é a economia e a coerência de julgamentos; uma causa é prejudicial à outra quando a decisão da primeira possa destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda”.
 
Vendo o caso concreto dos autos, temos que pende com o n.º 1388/21.5T8PVZ ação de processo comum intentada por AA, aqui réu/apelante) e II contra BB (aqui autora/apelada), onde também é interveniente principal o Banco 1..., SA, aí peticiona-se que:
 
“1.º - Declarar-se nulo e de nenhum efeito as escrituras públicas supra-identificadas em 16 e 17 do presente articulado.
2.º - Ordenar-se o cancelamento no registo predial das inscrições AP... e AP....
3.º Declarar e reconhecer os AA. como únicos e exclusivos proprietários e possuidores do prédio identificado em 1 do presente articulado”.
 
Dúvidas não há essa ação se reporta ao prédio em causa nos presentes autos e que nessa ação pretendem os aí autores que se julguem nulas as escrituras públicas (por simulação) que transmitiram a propriedade desse bem do ora apelante e sua mãe para a ora apelada e posteriormente a transmissão pela ora apelante de ½ indivisa do mesmo para o apelante e, consequentemente se ordene o cancelamento das respetivas inscrições registrais de aquisição decorrentes desses negócios, declarando-se os aí autores como únicos e exclusivos proprietários e possuidores de tal imóvel.
 
Mas, como bem se referiu na decisão que indeferiu a requerida suspensão da presente instância por causa prejudicial, na presente ação a autora/apelada, funda o seu pedido reivindicatório de metade indivisa de tal imóvel não só na inscrição de tal direito a seu favor, cfr. art.º 7.º do CRP, fundada na aquisição derivada – contratos de compra e venda referidos) mas ainda na aquisição originária da propriedade do bem fundada na posse, cfr. art.º art.º 1268.º n.º1 do C.Civil, ou usucapião.
 
Considerando o juízo de prejudicialidade que preside à verificação do pressuposto da suspensão da instância, ou seja, a existência de prejudicialidade que se verifica quando a decisão de uma causa possa afetar e prejudicar o julgamento de outra, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, entendemos que tal não se verifica no caso concreto, pois que a decisão que venha a ser proferida naquela ação, ainda que na sua procedência total, não retira todo o fundamento ou a razão de ser da presente ação.
 
Logo, e sem necessidade de outros considerandos, nenhuma censura nos merece a decisão proferida em 1.ª instância que não decretou a suspensão da presente instância por existência de causa prejudicial."
 
 
*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se acompanha a orientação da RP. 

Em ambas as acções está em causa o mesmo título de aquisição da propriedade, como decorre da seguinte afirmação que consta de um despacho proferido pelo tribunal de 1.ª instância:

"Alega em suma [o réu] que a presente ação tem por objeto a reivindicação de um direito de compropriedade sobre prédio urbano, fundado em inscrição registral que tem por causa um contrato de compra e venda. Naqueloutra ação, o [ag]ora réu, demanda a [ag]ora autora peticionando a declaração de nulidade de tal compra e venda, o cancelamento das inscrições registrais e a reivindicação do direito de propriedade sobre este mesmo prédio a seu favor."
 
Efectivamente:

-- Na primeira acção (proposta pelo agora réu contra a agora autora) é invocada, como causa de pedir, a nulidade da compra e venda que titula a aquisição da propriedade da então ré (agora autora);

-- Na segunda acção (instaurada pela anterior ré contra o anterior autor) é alegado, como um dos títulos de aquisição da propriedade, a aquisição que é titulada por essa compra e venda.

Quer dizer: o problema da invalidade da compra e venda aparece nas duas acções: na primeira como causa de pedir, na segunda como excepção peremptória.

Como é claro, sobre compra e venda só pode recair um único juízo de validade ou de invalidade, pelo que, para evitar qualquer contradição de julgados, essa validade ou invalidade só pode ser apreciada numa das acções pendentes. É isto que justifica que se considere que a primeira acção é prejudicial em relação à segunda acção. O que se vai apreciar na segunda acção como excepção peremptória é o que se tem de apreciar na primeira acção como causa de pedir.

A circunstância de, na presente acção, a autora invocar, além da compra e venda, a usucapião em nada obsta à referida prejudicialidade. O facto de se tratar de uma prejudicialidade parcial não impede a suspensão da instância na segunda acção.

Aliás, a circunstância de, na presente acção, se ter apreciado (e rejeitado) a invalidade da aquisição por compra e venda alegada pelo réu constitui uma demonstração eloquente da referida relação de prejudicialidade entre as duas acções.

b) Ignora-se se, na primeira acção, já foi proferida qualquer decisão sobre essa compra e venda e, em caso afirmativo, se a decisão é concordante com o actual juízo de validade. Certo é que, ao não se suspender a instância na segunda acção, o tribunal da primeira acção não está vinculado ao juízo de validade da compra e venda emitido pela RP, tanto mais que se tratou da apreciação de uma excepção peremptória e essa apreciação só tem valor de caso julgado material nos termos definidos no art. 91.º, n.º 2, CPC.

c) Em suma: estavam preenchidos os requisitos para a RP ter usado o poder discricionário que lhe é atribuído pelo disposto no art. 272.º, n.º 1, CPC.

MTS