Litigância de má fé;
"uso manifestamente reprovável" do processo
1. O sumário de RG 6/2/2025 (1341/21.9T8VRL-A.G1) é o seguinte:
I - O instituto da litigância de má-fé visa sancionar e combater a «má conduta processual» das partes aquando do exercício do direito de acção e/ou de defesa, designadamente, toda e qualquer conduta processual que represente uma violação do dever geral de boa fé e/ou do dever de cooperação, sendo que, em simultâneo, se assegura a boa administração da justiça, o respeito pelo Tribunal, e a credibilidade da atividade jurisdicional.II – No art. 542º do C.P.Civil de 2013 tipificam-se os elementos objectivos e os elementos subjectivos que integram a litigância de má-fé: os objectivos são constituídos pelas condutas elencadas das diversas alíneas do nº 2, as quais representam um conjunto de actuações processuais que são contrárias, reprováveis e censuráveis em face dos deveres processuais de boa fé e de cooperação que impendem sobre todos os sujeitos processuais (no fundo, representam o fundamento geral da condenação por litigância de má-fé que emerge da violação de deveres processuais); e os subjectivos são o dolo ou a negligência grave.III - Para a responsabilização de uma parte como litigante da má-fé não basta a verificação de um comportamento processual que preencha a tipicidade prevista numa das alíneas do nº 2 do art. 542º (elementos objectivos), mais se exigindo que esteja comprovado que a parte agiu com dolo ou com negligência grave (elementos subjectivos), sendo certo que a respectiva condenação tem que estar baseada em factos que demonstrem quer o tipo objectivo quer o tipo subjectivo.IV - No que se refere especificamente à conduta prevista na alínea d) do nº 2 do art. 542º, o legislador pretendeu penalizar a instrumentalização do direito processual em diversas vertentes: quer configure uma forma de alcançar um objectivo que é ilegítimo em face do direito substantivo ou do próprio direito processual; quer constitua um meio de impossibilitar a descoberta da verdade; quer represente uma forma de emperrar a máquina judiciária, através da criação de obstáculos ou da promoção de expedientes meramente dilatórios; quer se apresente como um meio de pretender retardar o trânsito em julgado da decisão, prejudicando, deste modo, a contraparte na tutela ou na realização do direito substantivo que através da decisão lhe é reconhecido. Assinale-se que, para haver lugar à condenação de litigância de má-fé, esta conduta de instrumentalização tem que se apresentar como manifestamente reprovável, ou seja, como clara, evidente e notoriamente censurável e ofensiva da boa fé e da cooperação.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Atento o «I - Relatório» que antecede, verifica-se que, em momento anterior ao da prolação da decisão ora impugnada, o Tribunal a quo proferiu despacho (2ª decisão proferida na data de 10/05/2023) no qual consignou, para além do mais, que “A n/ ver, a conduta dos réus indicia que estão a tentar artificialmente terminar com o litígio usando o filho como »testa de ferro«, mediante uma doação por um valor muito inferior ao real, sugerindo assim a existência de uma simulação relativa, prejudicando o erário público e fazendo um uso do processo manifestamente reprovável, com o fim de atingir um objectivo ilegal, o que não pode deixar de ser relevado em sede de litigância de má-fé”, e que “entendemos que devemos condenar os réus numa multa de 6UC, por litigância de má-fé”, terminando o mesmo ordenando que “Notifique as partes para dizerem o que tiverem por conveniente sobre o exposto, concedendo-se 10 dias para o efeito” [...].
"Atento o «I - Relatório» que antecede, verifica-se que, em momento anterior ao da prolação da decisão ora impugnada, o Tribunal a quo proferiu despacho (2ª decisão proferida na data de 10/05/2023) no qual consignou, para além do mais, que “A n/ ver, a conduta dos réus indicia que estão a tentar artificialmente terminar com o litígio usando o filho como »testa de ferro«, mediante uma doação por um valor muito inferior ao real, sugerindo assim a existência de uma simulação relativa, prejudicando o erário público e fazendo um uso do processo manifestamente reprovável, com o fim de atingir um objectivo ilegal, o que não pode deixar de ser relevado em sede de litigância de má-fé”, e que “entendemos que devemos condenar os réus numa multa de 6UC, por litigância de má-fé”, terminando o mesmo ordenando que “Notifique as partes para dizerem o que tiverem por conveniente sobre o exposto, concedendo-se 10 dias para o efeito” [...].
É consabido que a decisão judicial constitui um acto jurídico, aplicando-se-lhe as regras disciplinadoras dos negócios jurídicos, nos termos da analogia determinada pelo art. 295º do C.Civil e, por isso, os preceitos que disciplinam a interpretação da declaração negocial, nos arts. 236º a 238º do mesmo C.Civil, são aplicáveis à interpretação de uma qualquer decisão judicial, importando, desde logo, a imputação do sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto, mas conformando-se esse princípio geral à regra segundo a qual a sentença ou acórdão não pode ter um sentido que não tenha no documento ou escrito que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso [Cfr. Ac. STJ 24/11/2020, Juiz Conselheiro Ricardo Costa, proc. nº22741/12.0YYLSB-A.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.]
Analisando o (parcialmente) transcrito despacho (2ª decisão proferida na data de 10/05/2023) e apesar do segmento «entendemos que devemos condenar», há que ponderar que o Tribunal consignou que «a conduta dos réus indicia» (e não «constitui», «consubstancia», «integra») e termina decisão com um expresso «convite» para as partes (designadamente, os Réus) se pronunciarem sobre «o exposto» (entendimento de que está «indiciada» a prática de litigância de má-fé por parte dos Réus).
Neste contexto, um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, não podia nem pode deixar de interpretar este despacho no sentido de não constituir uma efectiva e concreta condenação dos Réus em litigância de má-fé, configurando antes, apenas e tão só, o cumprimento do disposto do art. 3º/3 do C.P.Civil de 2013, dando lugar à obrigatória discussão contraditória que deve preceder a condenação como litigante de má-fé (efectivamente, antes de a proferir, deve o Tribunal proporcionar o contraditório, ouvindo nomeadamente a parte contra a qual tem a intenção de proferir tal condenação; relembre-se que, conforme decidiu o TC no Ac. nº498/2011, de 26/10/2011, a parte só poder ser condenada como litigante de má-fé, depois de previamente ser ouvida, a fim de se defender da imputação de má-fé).
Esta interpretação é totalmente corroborada pela tramitação processual subsequente: correspondendo ao «convite» expresso naquele despacho de 10/05/2023 (2ª decisão), os Réus apresentaram o requerimento datado de 24/05/2023, através do qual exerceram efectivamente o seu direito de contraditório sobre o entendimento exposto pelo Tribunal a quo no referido despacho no sentido da sua conduta «indiciar» a prática de litigância de má-fé; e foi nesta sequência que o Tribunal a quo prolatou o despacho ora recorrido, através do qual condenou os Réus como litigantes de má-fé numa multa de 4 UCs (e não em 6 UCs como constava daquele anterior despacho de 10/05/2023).
Frise-se que, caso não se interpretasse no referido sentido o despacho de 10/05/2023 (2ª decisão), então o despacho objecto do presente recurso sempre constituíra uma violação do caso julgado (representaria uma segunda condenação dos Réus como litigantes de má-fé com base nos mesmos fundamentos - «na mesma conduta»), o que implicaria que o despacho ora impugnado padecesse de ineficácia jurídica, sendo que estaríamos perante matéria do conhecimento oficioso deste Tribunal ad quem (e conduziria à procedência do recurso, ainda que com base em fundamentação diversa, com a revogação do despacho recorrido).
Mas, como se explicou, o despacho de 10/05/2023 (2ª decisão) não pode ser interpretado como uma efectiva e concreta condenação dos Réus em litigância de má-fé, pelo que tal condenação apenas ocorreu por força do despacho ora impugnado e prolatado em 23/05/2023.
Examinando esta decisão recorrida, constata-se que se fundou no seguinte: “os Réus estão a tentar artificialmente terminar com o processo usando o donatário como »testa de ferro«, mediante uma doação por um valor muito inferior ao real (conforme o valor de alienação sugerido pelos próprios réus na contestação), sugerindo assim a existência de uma simulação relativa, prejudicando o erário público e fazendo um uso do processo manifestamente reprovável, com o fim de atingir um objectivo ilegal (o de atingir o terminus dos autos mediante a declaração de inutilidade superveniente da lide, através da doação da coisa em litígio)”.
No recurso, os Réus invocam, essencialmente, que: «os RR. nunca peticionaram que o Tribunal a quo declarasse a inutilidade superveniente da lide, por já não serem proprietários do prédio ou com qualquer outro fundamento»; «no dia 23 de Março de 2023, os aqui Recorrentes informaram, sem mais, que procederam à doação do prédio a um terceiro, juntando cópia da escritura notarial»; «Instados pelo Tribunal a quo para se pronunciarem, no dia 5 de Maio de 2023, os ora Recorrentes nunca peticionaram ao Tribunal a quo que declarasse a inutilidade da lide e extinguisse o processo»; «quanto à condenação dos Recorrentes como litigantes de má-fé a mesma partiu de um pressuposto errado, quando, sem olhar ao seu contexto, o Tribunal a quo retira da contestação dos RR. uma alegação que estes fizeram para atacar o valor dado à acção pelos AA. comparando o valor ali referido (de 15.000€) ao valor que foi atribuído à doação que, efectivamente, os RR. concretizaram»; «quanto ao valor atribuído à doação, em sede de escritura notarial, a indicação de um valor é obrigatória»; «não se alcança o que levou o Tribunal a quo a concluir que o valor indicado na escritura pública tinha que ser superior»; e «os Recorrentes não podem ser responsabilizados a título de litigância de má-fé, uma vez que o seu comportamento processual, com o respeito devido, não é subsumível em qualquer das previsões normativas contidas no nº 2 do arte 542 do C.P.C.» [cfr. conclusões 7ª a 13ª, 17ª, 20ª, 22ª e 23ª].
Afigura-se-nos que assiste inteira razão aos Réus/Recorrentes. Explicando.
Embora na 1ª decisão que integra o despacho proferido em 10/05/2023 o Tribunal a quo afirme que «os réus vieram peticionar que o Tribunal declarasse a inutilidade superveniente da lide, por já não serem proprietários do prédio» e determine que «a acção deve continuar com os réus primitivos e se indefere o pedido de extinção dos mesmos por inutilidade superveniente da lide, por falta de fundamento legal», certo é que analisando cuidadosamente o teor dos requerimentos datados de 23/03/2023 (com a referência citius «3236409») e de 02/05/2023 (com a referência citius «3272786»), conclui-se inequivocamente que os Réus não deduziram (de forma explícita nem implícita) qualquer pretensão no sentido de ser declarada a inutilidade superveniente da lide e/ou a extinção da instância em razão da doação que realizaram.
Frise-se que, independentemente dos efeitos daquela 1ª decisão que integra o despacho proferido em 10/05/2023, para apuramento da existência ou não de litigância da má-fé, importa considerar qual foi a concreta conduta da parte e, neste sentido, é de uma clareza absoluta que, no primeiro daqueles requerimentos, os Réus se limitaram a informar a existência da doação e a juntar respectivo documento comprovativo, e que, no segundo, se limitaram a pronunciar-se sobre o requerimento dos Autores datado de 02/05/2023 (assinalando-se que a referência a «o alegado reconduz-se, praticamente, a uma inutilidade superveniente da lide» respeita exclusivamente à conduta do donatário que os Autores descrevem no seu requerimento), nada sequer alegando ou requerendo sobre o fim determinado pelo Tribunal no despacho de 17/04/2023 (notificação das partes «para dizerem o que tiverem por conveniente sobre o exposto nomeadamente em face do exposto no art 263º do Cód de Proc Civil»).
Mais se saliente ainda que, nestes requerimentos, os Réus também nada alegaram nem nada requereram no sentido da sua falta de legitimidade para, como partes, continuarem na presente acção.
Nestas circunstâncias, não se pode subscrever a decisão recorrida quando afirma que os Réus quiseram «atingir um objectivo ilegal» que consistia em «atingir o terminus dos autos mediante a declaração de inutilidade superveniente da lide, através da doação da coisa em litígio»: como se deixou expresso, apesar de terem prestado informação sobre a existência da doação, certo é que não foi formulada uma concreta pretensão de inutilidade superveniente da lide, nem foi suscitada qualquer questão sobre a falta de legitimidade para prosseguirem na acção, pelo que jamais se pode concluir que os Réus quiseram obter um fim ilegítimo em face da lei (e isto mesmo sem se entrar na discussão sobre se, a sua concreta formulação, representaria um conduta que visa conseguir um «objectivo ilegal»).
Inexistindo sequer a dedução da pretensão que o Tribunal a quo qualificou como o «objectivo ilegal» que os Réus pretendiam atingir, então revela-se como totalmente infundada a afirmação plasmada na decisão recorrida no sentido de que estes «estão a tentar artificialmente terminar o processo usando o donatário»: não foi formulada pretensão para ser extinto o processo em razão da existência da doação, e não se vislumbra o que significa «tentar artificialmente terminar o processo (a realização da doação por parte dos Réus poderia, no máximo, conduzir à substituição do transmitente pelo adquirente nos termos do citado art. 263º, mas tal substituição não implica qualquer termo do processo). Deste modo, também não se pode subscrever este segmento da decisão recorrida.
Acresce que as afirmações plasmadas na decisão de recorrida de que «os Réus usam o donatário como “testa de ferro”» e «uma doação por um valor muito inferior ao real (conforme o valor de alienação sugerido pelos próprios réus na contestação), sugerindo assim a existência de uma simulação relativa, prejudicando o erário público» igualmente se mostram infundadas porque não foram apurados nos autos factos que as comprovem.
Não se vislumbra quais são os elementos de facto que permitem ao Tribunal a quo considerar que o donatário que figura na escritura pública de doação junta aos autos não é o verdadeiro interessado nesse negócio (assinale-se que, embora na 2ª decisão do despacho de 10/05/2023 se afirme que «o donatário é filho dos Réus», na decisão recorrida, o Tribunal a quo assume que «erroneamente pressupôs que o donatário era filho dos réus»). [...}
Por fim, constata-se que, na decisão recorrida, o Tribunal a quo não concretizou:
- de que forma os requerimentos apresentados pelos Réus em 23/03/2023 (limitando-se a informar da existência da doação) e em 02/05/2023 (limitando-se a pronunciar-se sobre um requerimento dos Autores) configuram «um uso do processo manifestamente reprovável», ou seja, em que termos tais actos processuais são notoriamente ofensivos da boa fé e da cooperação processual (e diga-se que este Tribunal ad quem também não o vislumbra);
- e de que forma a conduta dos Réus (nesses requerimentos) reveste uma actuação dolosa ou negligentemente grosseira (o que também não se vislumbra).
Por conseguinte, temos necessariamente que concluir dos elementos constantes dos autos, designadamente, dos decorrentes dos requerimentos datados de 23/03/2023 (com a referência citius «3236409») e de 02/05/2023 (com a referência citius «3272786») não permitem fornecer factos concretos que consubstanciem um comportamento processual previsto na alínea d) do nº2 do art. 542º (elemento objectivo), e uma actuação com dolo ou com negligência grave (elemento subjectivo), pelo que não podia o Tribunal a quo ter sancionado os Réus como litigantes de má-fé."
[MTS]