Indeferimento liminar;
princípio do contraditório; decisão-surpresa*
I. O sumário de RL 30/1/2025 (5901/24.8T8SNT.L1-8) é o seguinte:
1. O princípio do contraditório impõe que, mesmo nas questões que o juiz entenda serem de conhecimento oficioso, não possa decidir sobre as mesmas sem que às partes seja dada a oportunidade de se pronunciarem sobre essas questões.2. Não obstante existir o referido vício na decisão recorrida, tendo em conta as alegações da Apelante, não se impõe já o exercício do contraditório, tendo-se o mesmo por exercido cabalmente com a apresentação do presente recurso.3. O procedimento de injunção não é o meio processual adequado para obter a condenação em quantias com a natureza de indemnização derivada de responsabilidade civil contratual ou extracontratual, donde, não pode ter por finalidade a obtenção de um título executivo que englobe tais quantias4. O uso indevido do procedimento de injunção, exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso pode ser conhecida pelo juiz de execução, quando se possa concluir, pela análise direta do título, que há manifesta falta de título porquanto o mesmo não é exequível fora da finalidade para que foi criado.5. Resultando da injunção, de forma clara e segura, que a Requerente pediu o montante de € 184,42, a título de indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida, concluindo-se que o procedimento de injunção não é o meio processual adequado para fazer valer em juízo essa pretensão, impõe-se o indeferimento/rejeição parcial da execução quanto a este montante, continuando o título válido relativamente aos demais pedidos, devendo a execução prosseguir para cobrança aqueles valores.
II. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
1. Relatório.
N. intentou contra C. a presente execução com base em requerimento de injunção ao qual foi aposta força executiva por secretário de justiça, do qual consta peticionado o pagamento, além do mais, de outras quantias, a título de indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida”, no valor de € 184,42.
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Sem que tenha dado qualquer oportunidade às partes de se pronunciarem sobre a possibilidade de indeferir o requerimento executivo, o tribunal “a quo”, por despacho de 07/05/2024, entendeu não dispor a exequente de título executivo eficaz, por a pretensão formulada não se ajustar à finalidade do procedimento de injunção e, dando por verificada a exceção dilatória da falta de título executivo, decidiu rejeitar a execução. (cf. artigos 734.º n.º 1 e 726.º n.º 2 al. a) do CPC).
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Notificada de tal decisão, não se conformando com a mesma, veio a Exequente interpor o presente recurso sustentando que a decisão recorrida, ao rejeitar, liminarmente, a execução, violou, nomeadamente: o artigo 726.º n.º 2 do C.P.C., o artigo 734.º do CPC, o artigo 14.º-A n.º 2 do regime anexo ao DL 269/98 e os artigos 227.º, número 2 e 573.º do CPC. o artigo 193.º do CPC e o artigo 3.º n.º 3 do CPC, pelo que deverá, consequentemente, ser revogada e substituída por decisão que admita o requerimento executivo e mande prosseguir os autos [...].
4. Fundamentação de direito
4.1. Falta de contraditório prévio à prolação da decisão recorrida.
Como resulta dos autos, o tribunal “a quo” proferiu a decisão ora em crise sem previamente ouvir as partes quanto à exceção dilatória da falta de título executivo.
Estipula o n.º 3 do art.º 3.º do CPC “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
A observância, ao longo de todo o processo, do princípio do contraditório, principio fundamental do processo civil, visa garantir a participação efetiva e em igualdade das partes no desenvolvimento de todo o litígio e evitar decisões surpresa.
O princípio do contraditório impõe que, mesmo nas questões que o juiz entenda serem de conhecimento oficioso, não possa decidir sobre as mesmas sem que às partes seja dada a oportunidade de se pronunciarem sobre essas questões.
É esta a regra e que visa, no essencial, evitar a chamada decisão surpresa, na qual o juiz oficiosamente suscita uma questão e encontra uma solução para essa questão que, embora previsível, não foi configurada pelas partes, nem as mesmas tinham obrigação de a prever. [Ac. STJ de 10.4.2024 (Ricardo Costa); Ac. TRL de 9.5.2024 (Arlindo Crua). www.dgsi.pt)]
Porém, o mesmo normativo prevê exceções, o juiz poderá decidir qualquer questão sem ouvir as partes, quando for manifesta a desnecessidade, cf. resulta do n.º 3 acima transcrito, “salvo caso de manifesta desnecessidade”.
Assim, em todos os casos em que as partes objetivamente de boa-fé não possam alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir ou as respetivas consequências, existe manifesta desnecessidade em ouvi-las antes da decisão.
No presente caso, estamos perante uma execução sumária, a mesma não está sujeita a despacho liminar, cf. art.º 855.º do CPC, sendo o requerimento executivo imediatamente enviado por via eletrónica ao agente de execução e, a menos que o agente de execução suscite a intervenção do tribunal, nos termos do art.º 855.º n.º 2, b), do CPC, o que no caso presente não ocorreu, a penhora precede a citação do executado.
Em casos como o presente, não se pode ter expetável – contrariamente ao que ocorre quando o juiz haja de proferir obrigatoriamente despacho liminar – que o juiz, sem nenhuma auscultação das partes e sem que nada nos autos exista que fizesse antever a questão que veio a apreciar e que não foi suscitada por nenhuma das partes, viesse a rejeitar na totalidade a execução.
Assim, há que concluir que houve violação do principio do contraditório e a decisão recorrida deve ser considerada uma decisão-surpresa.
Resta, pois, apurar qual a consequência da violação do principio do contraditório.
Há quem entenda que a não observância do principio do contraditório, deve ser qualificado como nulidade processual a subsumir no art.º 195.º do CPC, outros entendem que tal vicio configura uma nulidade da decisão,  a integrar no art.º 615.º, n.º1, d) parte final do CPC, por ter o juiz conhecido questão que não podia conhecer naquele momento processual. [Ac.STJ de 31.10.24 (Maria da Graça Trigo)]
Admitindo-se que a violação do contraditório integra uma nulidade, suscetível de ser invocada em sede de recurso, tem-se defendido que há situações que não determinam, pese embora se constatar o vicio de inobservância do principio do contraditório, retrocesso do processo ao tribunal recorrido para aí ser cumprido o ato devido, observância do contraditório, nomeadamente, quando no próprio recurso, o recorrente apresenta as razões que é lícito concluir teriam sido as apresentadas se exercido convenientemente o dito contraditório.
Donde, não obstante existir o referido vício na decisão recorrida, tendo em conta as alegações da Apelante, não se impõe já o exercício do contraditório, tendo-se o mesmo por exercido cabalmente com a apresentação do presente recurso. [Ac. TRL de 10.10.2024 (João Paulo Raposo)]
Com efeito, a anulação do despacho recorrido e a substituição por outro que ordenasse audição das partes prévia à decisão seria um ato inútil, sem qualquer acréscimo relevante para o contraditório, porquanto, a constituiria uma simples repetição do contraditório, já exercido em sede de recurso [Ac.STJ de 12.1.2021 (Graça Amaral)].
Assim, no caso concreto, face às alegações e conclusões da Apelante, entende-se dispensável fazer atuar de novo o contraditório e, nessa medida, consideramos sanado o vício.
*III. [Comentário] Com a devida consideração, não parece que a RL tenha feito a melhor opção metodológica no resolução do problema.
O que verdadeiramente estava em causa era saber se é admissível o indeferimento liminar no processo executivo sem a prévia audição da parte exequente. Há, naturalmente, muito boas razões para considerar que, no processo executivo -- e, mais em geral, em qualquer processo -- o sistema tem de comportar a "válvula de escape" do indeferimento liminar.
A RL escolheu outra via: a de discutir se, não tendo havido contraditório anterior à decisão de indeferimento liminar da execução, essa falta de contraditório pode considerar-se sanada com a interposição de recurso desse indeferimento.
Salvo o devido respeito, este era um caminho que nunca poderia ter sido trilhado pela RL. Repare-se que a conclusão de que a ausência de um contraditório prévio à decisão pode ser substituída pelo exercício do contraditório em recurso interposto dessa decisão "mataria" toda e qualquer decisão-surpresa, sempre que esta decisão fosse susceptível de ser impugnada em recurso. Segundo esta orientação, a decisão-surpresa ficaria restrita ao caso em que essa decisão não fosse impugnável em recurso (ou, na orientação da RL, à situação na qual um contraditório posterior à decisão não poderia substituir a ausência de um contraditório prévio a essa decisão).
No fundo, o que a RL fez foi construir a decisão-surpresa que é sanável com um contraditório exercido na fase de recurso.
MTS
O que verdadeiramente estava em causa era saber se é admissível o indeferimento liminar no processo executivo sem a prévia audição da parte exequente. Há, naturalmente, muito boas razões para considerar que, no processo executivo -- e, mais em geral, em qualquer processo -- o sistema tem de comportar a "válvula de escape" do indeferimento liminar.
A RL escolheu outra via: a de discutir se, não tendo havido contraditório anterior à decisão de indeferimento liminar da execução, essa falta de contraditório pode considerar-se sanada com a interposição de recurso desse indeferimento.
Salvo o devido respeito, este era um caminho que nunca poderia ter sido trilhado pela RL. Repare-se que a conclusão de que a ausência de um contraditório prévio à decisão pode ser substituída pelo exercício do contraditório em recurso interposto dessa decisão "mataria" toda e qualquer decisão-surpresa, sempre que esta decisão fosse susceptível de ser impugnada em recurso. Segundo esta orientação, a decisão-surpresa ficaria restrita ao caso em que essa decisão não fosse impugnável em recurso (ou, na orientação da RL, à situação na qual um contraditório posterior à decisão não poderia substituir a ausência de um contraditório prévio a essa decisão).
No fundo, o que a RL fez foi construir a decisão-surpresa que é sanável com um contraditório exercido na fase de recurso.
MTS