1. O sumário de RC 11/2/2025 (132/23.7T8LMG.C1) é o seguinte:
I - Intentada, simultaneamente, pelo filho/registado, nos mesmos autos, ação de impugnação da perfilhação e de investigação da paternidade, quando se mantinha o registo da filiação decorrente da perfilhação (o perfilhante como pai no assento de nascimento), a norma do art.º 1848.º, n.º 1, do CCiv. veda a ação de investigação de paternidade, por o reconhecimento de paternidade, que se pretende através de sentença na ação investigatória, ser contrário à filiação constante do registo de nascimento, o qual não foi ainda retificado, invalidado ou cancelado.II - Assim, para o efeito de determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, não releva aquela ação de investigação de paternidade, que não é admitida legalmente, mas apenas a causa de pedir e o pedido da prioritária ação de impugnação da perfilhação.III - Se a perfilhação e o registo ocorreram em país estrangeiro, de que são cidadãos nacionais o demandante e o demandado na ação de impugnação da perfilhação, residindo o autor em Portugal e o réu em Moçambique, sendo a mãe do autor também de nacionalidade estrangeira e tendo os factos tendentes a demonstrar a desconformidade com a verdade biológica ocorrido no estrangeiro, a circunstância de o autor residir em Portugal não permite, só por si, conferir aos tribunais portugueses competência internacional para tal ação impugnatória.IV - Doutro modo, sempre os tribunais portugueses seriam competentes para qualquer ação de impugnação da perfilhação intentada por um residente em Portugal, ainda que tudo o mais fosse estranho à ordem jurídica portuguesa e a Portugal e o demandado residisse no estrangeiro.V - Uma tal situação conferiria ao autor (apenas em atenção à sua residência) o benefício – injustificado – de poder demandar o réu nos tribunais portugueses, apesar de o demandado, vivendo no estrangeiro, nenhuma ligação ter a Portugal, mas ficando obrigado a exercer a sua defesa no foro do autor, e não no tribunal do seu próprio domicílio (ou do seu país), desvantagem significativa para que não se encontra respaldo.VI - A interpretação normativa no sentido da incompetência internacional não viola, atentas as circunstâncias do caso, preceitos ou princípios de ordem constitucional.
O Apelante defende a revogação da decisão de absolvição da instância, por considerar não se verificar a incompetência, em razão da nacionalidade, do Tribunal recorrido, ao contrário do entendimento adotado por este nos autos.
Considera, assim, o Apelante, contra o expendido pela 1.ª instância, que é de aplicar ao caso o sistema jurídico português, incluindo as normas reguladoras da competência dos tribunais. Por isso, convoca, reiteradamente, os art.ºs “62.º e seguintes do CPC, 56.º do Código Civil, arts. 18.º, 26.º e 26.º da CRP”, que considera violados.
Mesmo em matéria de direito – na sua petição e/ou no seu recurso –, sempre alude às normas e aos princípios da ordem jurídica portuguesa (sejam de natureza constitucional, civil ou processual civil).
É a essa luz normativa que pugna, no caso, pela competência internacional dos tribunais portugueses, mais precisamente o Tribunal recorrido, bem sabendo que apresenta pretensões correspondentes a duas ações diversas (embora apenas intente uma ação judicial, em que concentra as duas pretensões).
Com efeito, como o A. refere – corretamente – na sua conclusão 2.ª do recurso, os «autos tiveram início com a interposição de ação de impugnação de perfilhação e investigação de paternidade» (no fundo, duas ações cíveis em uma), sabido que na ação de impugnação de perfilhação é visado o R. perfilhante, ou seja, o 2.º R., de nacionalidade estrangeira (nacional de São Tomé e Príncipe e residente em Moçambique) e sem qualquer ligação com Portugal.
Enquanto o 1.º R. apenas é visado na outra ação, a sucedânea ação de investigação de paternidade.
Na verdade, existe registo da paternidade do A., figurando como pai o 2.º R.. Por isso, o A. começa por atacar a perfilhação, impugnando-a, já que a considera não correspondente à verdade biológica (considera ser seu pai biológico o 1.º R., contra ele deduzindo a ação de investigação).
Ora, os dois primeiros pedidos do A., tal como constantes do petitório da ação, repostam-se exclusivamente àquela ação de impugnação de perfilhação, com vista a afastar a paternidade registada: «a) Declarar-se que o Autor não é filho do segundo Réu CC; // b) Anular-se a perfilhação do segundo Réu ao Autor, e que consta do seu assento de nascimento de São Tomé, devendo disso ser dado conhecimento aos registos daquele país para que procedam à sua anulação».
Já os restantes pedidos são caraterísticos da sucedânea ação de investigação de paternidade: «c) Reconhecer-se a paternidade jurídica do Primeiro Réu BB, relativamente ao Autor seu filho, (…) estabelecendo-se por decisão judicial, a filiação que ainda não foi estabelecida por perfilhação voluntário do mesmo e, por via disso, // d) Declarar-se que o Autor é filho do Primeiro Réu, ordenando-se que tal paternidade conste e fique averbada no assento do respectivo nascimento; // e) Condenar-se o Primeiro Réu a reconhecê-lo (…)».
Quanto àquela primeira ação (a de impugnação da perfilhação), dispõe o art.º 1859.º, n.º 1, do CCiv. que a perfilhação que não corresponda à verdade é impugnável em juízo mesmo depois da morte do perfilhado.
Como esclarecido pela doutrina, “(…) a perfilhação é só um meio de estabelecer a paternidade e a impugnação dirige-se, precisamente, contra o resultado obtido, que se supõe falso. O que se impugna é a paternidade estabelecida por via da perfilhação, do mesmo modo que se impugna a maternidade estabelecida por declaração (art. 1807.º), ou a paternidade do marido fixada através da presunção pater is est… (arts. 1838.º e segs.). O acto que o perfilhante praticou, esse, torna-se inútil, incapaz de preencher o fim para que existe – o reconhecimento da paternidade biológica – e caduca. Neste sentido, enquanto a anulação visa destruir o próprio acto de perfilhação, a impugnação dirige-se contra o resultado desse acto – contra a paternidade.” (Cfr. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. II, tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 181, Autores que concluem, nesta senda, que “a impugnação visa afastar a paternidade biologicamente falsa”.).
Por isso se compreende que, quanto à prossecução e tramitação da ação de impugnação da perfilhação, sejam de «aplicar por analogia as regras estabelecidas para a impugnação da paternidade do marido, já que se trata da mesma questão fundamental: afastar uma paternidade que não corresponde à verdade biológica, como quer que ela tenha sido adquirida pelo registo civil.» (Assim, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, op. cit., p. 187.).
Já, diversamente, na ação de investigação de paternidade – e quanto ao objeto do processo – o «(…) pedido que o autor faz ao tribunal é que declare a paternidade jurídica do réu, relativamente ao filho, estabelecendo por decisão judicial a filiação que não foi estabelecida por perfilhação», sendo a «causa de pedir (…) o vínculo biológico de progenitura que, pretensamente, liga o réu ao filho.» (Cfr., op. cit., p. 216.).
Parece ser compreensível, assim, a inviabilidade de uma pretensão de estabelecimento da filiação através de decisão judicial, no seio de ação de investigação de paternidade, sem que se mostre afastada – previamente – a paternidade estabelecida por via de perfilhação e, como tal, registada.
É que dispõe o art.º 1847.º do CCiv., quanto às formas de reconhecimento de paternidade, que o reconhecimento do filho nascido ou concebido fora do matrimónio efetua-se por perfilhação ou decisão judicial em ação de investigação.
Sendo estas as duas formas de reconhecimento, não é, porém, admitido o reconhecimento em contrário da filiação que conste do registo de nascimento enquanto este não for retificado, declarado nulo ou cancelado (cfr. art.º 1848.º, n.º 1, do CCiv.).
Ou seja, havendo paternidade registada, não pode haver reconhecimento conflituante, no caso por via de investigação de paternidade (através de sentença), enquanto o registo originário (o que consta do assento de nascimento) não for modificado (por retificação, declaração de nulidade ou cancelamento).
Assim, só pode obter viabilidade a ação de investigação de paternidade, se em contrário à filiação constante do registo de nascimento (do filho), depois de ter sido retificado, declarado nulo ou cancelado esse registo.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, estamos perante «(…) um simples corolário do princípio geral da prioridade dos actos primeiro levados a registo, desde que sujeitos a inscrição no registo civil, aproveitando por conseguinte tanto ao assento de nascimento» de filho nascido no casamento, «como ao registo de nascimento do filho nascido ou concebido fora do matrimónio, mas perfilhado perante o funcionário do registo civil (…)» (Cfr. Código Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 229.).
E acrescentam os mesmos Autores: “Trata-se, de algum modo, de uma simples concretização do princípio hoje proclamado no artigo 4.º do Código de Registo Civil, segundo o qual «a prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de estado e nas acções de registo»” (Op. e loc. cits..). Ou seja, para que se admita no registo um reconhecimento contrário à filiação constante de assento já lavrado, exige-se que tal assento seja previamente retificado, declarado nulo ou cancelado (vide ps. 229 a 231 e 278 dos mesmos Autores e obra, esclarecendo que, se a perfilhação for anterior à proposição da ação de investigação, é obviamente a doutrina do n.º 1 do artigo 1848.º que deve aplicar-se).
Doutrina esta que implica a conclusão, para o caso dos autos – em que temos uma perfilhação (subsistente) anterior à ação de investigação de paternidade –, no sentido de, em aplicação do disposto no art.º 1848.º, n.º 1, do CCiv., não ser admitido o reconhecimento por decisão judicial em ação de investigação.
O registo da paternidade do perfilhante (2.º R.), de acordo com o que consta a respeito no registo de nascimento do A., não permite o reconhecimento de filiação em contrário, mediante sentença em ação de investigação, por conflituante, enquanto não for objeto de retificação, invalidação ou cancelamento.
Em suma, in casu a ação de impugnação da perfilhação é prioritária perante a ação de investigação de paternidade, não podendo esta ser admitida sem que ocorra (previamente) retificação, invalidação ou cancelamento do registo vigente (aquele que publicita a paternidade do aqui 2.º R.).
Do que resulta que, para o efeito da determinação da competência internacional – a questão de que se cuida –, o que importa é a causa de pedir e o pedido da ação (tal como configurados pelo A.) quanto, apenas, à pretensão de impugnação da perfilhação (deixando de lado a sucedânea investigação de paternidade).
Aqui chegados, cabe notar, salvo o devido respeito, que não se verifica, no caso – quanto à esfera da impugnação da perfilhação (a única que aqui importa) –, nenhum dos requisitos/fatores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, à luz do disposto no invocado art.º 62.º, al.ªs a) a c), do NCPCiv. (---).
É que, como dito na decisão recorrida:
- o A. é cidadão nacional da República de São Tomé, tal como a sua falecida mãe o era;
- consta do assento de nascimento do A., lavrado naquele País, ser filho de DD e de CC, o aqui 2.º R.;
- tal assento de nascimento foi lavrado com base em declarações diretas dos pais do registando e, depois de lido em voz alta perante todos e confirmado, foi assinado pelo pai CC e testemunhas EE, FF e GG;
- tanto a mãe como o pai no estado de solteiros, ela natural de Guadalupe, residente em ..., e ele natural de Trindade, residente em ..., em São Tomé;
- o 2.º R., também cidadão são-tomense, reside atualmente em Moçambique;
- em 17/08/1970, mediante declaração voluntária e testemunhada, o 2.º R. perfilhou o A., perante oficial público, na Conservatória de Registo Civil de São Tomé, de acordo com o Direito daquele País;
- perante o alegado na petição inicial, a conceção do A. resultou de relações de cópula ocorridas em São Tomé, tendo aquele nascido nesse País.
Ou seja, vistos o pedido e a causa de pedir da ação de impugnação da perfilhação, nenhuma conexão existe com o território português, sendo irrelevante, neste âmbito, que o A. resida em Portugal, posto o demandado (aqui 2.º R.) residir no estrangeiro (cfr. art.º 80.º, n.º 1, do NCPCiv.).
Como referem, a respeito do denominado critério da coincidência [o da al.ª a) daquele art.º 62.º], José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anot., vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 155.), «(…) o legislador considerou estar-se perante uma situação de competência internacional logo que determinada situação jurídica apresenta elementos de estraneidade», sendo que «uma coisa é a determinação (prévia) da competência dos tribunais duma ordem jurídica no seu conjunto e outra a determinação (ulterior) do tribunal concretamente competente dentro dessa ordem jurídica». Porém, para «apuramento da competência internacional dos tribunais portugueses não relevam os critérios residuais dos n.ºs 2 e 3 do art. 80, pois de outro modo os tribunais portugueses teriam competência internacional para todas as ações: o domicílio do autor, o lugar em que o réu se encontrasse em território português e, sobretudo, como critério último, o tribunal de Lisboa funcionariam, como fatores atributivos de competência, sempre que o réu não residisse em Portugal» (---).
Assim sendo, o que aqui releva é preceito do n.º 1 do dito art.º 80.º da lei adjetiva, que consagra o critério geral do domicílio do réu.
Ora, o 2.º R. – único demandado na ação de impugnação da perfilhação (que em nada respeita ao 1.º R.) – tem o seu domicílio em Moçambique, e não em Portugal, não sendo português.
Assim, quanto àquela ação de impugnação da perfilhação nenhum facto ou fator de ligação/conexão existe com referência a Portugal ou à nossa ordem jurídica, pelo que, a esta luz, não são os tribunais portugueses internacionalmente competentes (---).
Doutro modo, sempre os tribunais portugueses seriam competentes para qualquer ação de impugnação da perfilhação intentada por um residente em Portugal, ainda que tudo o mais fosse estranho à ordem jurídica portuguesa e a Portugal [todos os envolvidos fossem cidadãos estrangeiros, bem como residentes no estrangeiro (à exceção do autor), a perfilhação tivesse ocorrido no estrangeiro, assim como o registo respetivo, lavrado por autoridade estrangeira, com a sentença a ter de ser imposta a entidade de registo estrangeira].
Aliás, numa tal situação o autor teria o benefício – injustificado – de poder demandar o réu nos tribunais de Portugal (apenas por ter passado a residir aqui), apesar de este último (o demandado) viver no estrangeiro e nenhuma ligação ter a Portugal, e embora fossem ambos naturais de um mesmo país estrangeiro, onde foi efetuada a perfilhação e foi lavrado o registo, por autoridade competente desse País, e onde teriam ocorrido os factos demonstrativos da desconformidade da perfilhação com a verdade biológica, em termos, pois, de se obrigar o demandado (quem, afinal, tem de defender-se) a exercer a sua defesa no foro do autor (no estrangeiro), e não no tribunal do seu próprio domicílio (ou do seu País), desvantagem significativa, para a qual não se encontra respaldo.
E se assim é para o critério da coincidência, também o tem de ser para o critério da causalidade [al.ª b) do dito art.º 62.º]. Com efeito, no âmbito da ação de impugnação da perfilhação e respetiva causa de pedir, tal como configuradas pelo A., é fora de qualquer dúvida que nenhum facto integrante e relevante foi praticado em território português.
Resta o critério da necessidade [al.ª c) daquele art.º 62.º], o qual também não colhe aplicação ao caso.
Nada mostra que a ação de impugnação da perfilhação não possa ser intentada na República de São Tomé e Príncipe (ou na República de Moçambique, se se atender ao domicílio do respetivo demandado), País dotado, obviamente, de sistema jurídico e judicial, com legislação e tribunais próprios, designadamente com competência cível, em matéria de impugnação da perfilhação.
Também nada mostra que o aqui A. esteja impedido de se deslocar ao seu País, a República de São Tomé e Príncipe, com vista à instauração da ação, sabido que poderá até nem ter de ali se deslocar, tendo em conta a operância dos atuais meios de comunicação à distância, podendo outorgar e enviar procuração forense a advogado que lhe intente a ação na Justiça do seu País.
E a verdade é que nenhum elemento ponderoso de conexão há entre o objeto do litígio – matéria, apenas, de impugnação da perfilhação – e a ordem jurídica portuguesa, não bastando que o A. tenha vindo residir para Portugal, o que não justifica a imposição ao demandado (o aqui 2.º R.) do sacrifício de ter de se vir defender a país estranho e longínquo (uma vez que reside em Moçambique e é cidadão de São Tomé).
Também não pode proceder a argumentação do Recorrente referente a eventuais inconstitucionalidades.
A qual até se encontra prejudicada, por se reportar à incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer de ação de investigação de paternidade, “de pretenso pai português e residente em Portugal, com filho residente também em Portugal”, o que violaria “os princípios constitucionais básicos, o direito à identidade pessoal e ao conhecimento da ascendência biológica, previstos no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa”.
Como se viu, é vedado, in casu, intentar a ação de investigação de paternidade sem antes ter obtido a modificação do registo da paternidade (por via da ocorrida perfilhação), fosse por retificação, invalidação ou cancelamento.
E o Recorrente não pôs em causa a constitucionalidade da norma nuclear do art.º 1848.º, n.º 1, do CCiv..
Assim, não pode colher a invocação de inconstitucionalidades, tanto mais que inexiste qualquer interpretação com conteúdo discriminatório ou julgamento de incompetência dos tribunais portugueses apenas por a conceção não ter ocorrido em Portugal, não se demonstrando, pois, qualquer restrição desproporcionada do direito à obtenção de identidade pessoal ou do direito à integridade moral e a constituir família.
Termos em que improcede a apelação, não se verificando qualquer imputada violação de lei e cabendo ao Recorrente – vencido – as custas respetivas (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.), sem prejuízo, porém, do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido."
[MTS]