"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/11/2025

Jurisprudência 2025 (28)


Transmissão de bem litigioso;
substituição processual


I. O sumário de RG 30/1/2025 (2168/24.1T8BRG-A.G1) é o seguinte:

1. Ainda [sic] é válido o princípio iura novit curia. A legitimidade ad causam é um pressuposto processual, que visa garantir que estão na lide as pessoas certas, atenta a causa de pedir apresentada pelo autor. A falta dessa legitimidade, ou seja, a ilegitimidade de uma das partes, não permite que se conheça da substância da causa, mas antes dá lugar a uma decisão de absolvição da instância. E nunca a uma absolvição do pedido.

2. Quando as partes chegam a um pré-acordo que envolve a realização de obras por uma delas, mas depois se desentendem quanto à realização dessas obras, sendo que uma diz que fez as obras todas e a outra diz que faltam fazer muitas obras e as que foram feitas estão defeituosas, o que na realidade sucede é que não chegou a haver uma verdadeira transacção a ser homologada judicialmente.

3. A doação do prédio onde se encontra o poço em litígio configura uma transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso. E nos termos do art. 263º, 1 CPC, “no caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo”. Assim sendo, não pode o Tribunal considerar o alienante parte ilegítima na instância cautelar, e muito menos julgar a providência cautelar improcedente com esse fundamento.

4. Não faz sentido uma parte vir pedir ao Tribunal que suscite a intervenção do adquirente do prédio nos autos, porque essa parte pode, ela própria, promover esse incidente de habilitação (art. 356º, 2 CPC), e não carece da ajuda do Tribunal para isso.
 

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A sentença recorrida julgou que as requeridas careciam de legitimidade passiva para continuar na lide, e por isso, determinou o indeferimento da providência.

Apesar de nenhuma das partes ter suscitado a questão, a verdade é que ainda é válido o princípio iura novit curia. E portanto, o Tribunal tem o dever de conhecer do Direito, dentro do âmbito das pretensões deduzidas pelas partes.

Ora, há aqui uma contradição imediatamente aparente, que importa sanar. A legitimidade ad causam é um pressuposto processual, que visa garantir que estão na lide as pessoas certas, atenta a causa de pedir apresentada pelo autor.

Por aplicação do disposto no artigo 30º, 1, 2 CPC, “o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer”, exprimindo-se o interesse em contradizer pelo prejuízo que da procedência do pedido advenha. O nº 3 da mesma norma, por seu turno, dispõe que “são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor”.

A falta dessa legitimidade, ou seja, a ilegitimidade de uma das partes, não permite que se conheça da substância da causa, mas antes dá lugar a uma decisão de absolvição da instância.

É que, como é sabido, só se conhece da substância dos pedidos quando estão reunidos todos os pressupostos processuais necessários.

A ilegitimidade é uma excepção dilatória (art. 577º, e CPC) que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (art. 576º, 2 CPC).

Donde, não podia o Tribunal recorrido julgar verificada a excepção dilatória de ilegitimidade das rés, e de seguida indeferir a providência. O que havia e há a fazer, caso se devam declarar as requeridas partes ilegítimas é a sua absolvição da instância cautelar.

Mas, ultrapassada esta questão prévia, vamos agora apreciar as duas questões suscitadas pelos Recorrentes: [...]

2. A outra pretensão dos recorrentes é a de afirmar que as requeridas deviam ter sido convidadas, com base no entendimento da sua ilegitimidade superveniente para a realização das obras, a deduzir incidente de intervenção do Município ..., chamando-o aos presentes autos de procedimento cautelar atendendo à doação que lhe efectuou, na pendência destes autos, do terreno no qual se localiza o poço e onde a donatária pretende edificar piscinas municipais.

Ora bem.

A instância pode modificar-se, em relação às pessoas, em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio, e em virtude dos incidentes da intervenção de terceiros (art. 262º CPC).

O que já vimos que sucedeu nestes autos foi que a requerida Junta de Freguesia doou ao Município ... o prédio onde se encontra o poço, portanto onerado com a aí registada servidão de águas.

O Tribunal recorrido, atendendo ao facto de este prédio objecto de doação respeitar ao prédio onde se encontra o poço, portanto onerado com a aí registada servidão de águas, considerou que “o núcleo essencial do presente procedimento cautelar baseia-se, neste momento, num litígio que terá de ser dirimido com o Município e não com as requeridas. E pergunta o Tribunal: como podem as requeridas cumprir com a providência a ordenar (no caso de procedência) se as mesmas não são proprietárias do terreno onde essas obras teriam de ser executadas? E foi por isso que terminou dizendo: “atenta a ilegitimidade passiva das requeridas, determino o indeferimento da presente providência”.

Mas não podemos concordar com tal decisão.

Primeiro, porque como começámos por dizer, a consequência de julgar uma parte ilegítima é sempre uma decisão de forma, uma absolvição da instância, e nunca o indeferimento da providência peticionada.

Segundo, porque o que verdadeiramente se está a passar neste litígio, e pelo que vemos ainda não foi apontado por ninguém, é que ocorreu uma transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso. E para essas situações rege o disposto no art. 263º,1 CPC, que dispõe: “no caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo”.

Essa habilitação é feita através do incidente de habilitação do adquirente ou cessionário, regulado nos arts. 356º e 357º CPC.

Ora, que saibamos, ninguém ainda veio requerer a habilitação do Município ..., nem na acção principal, nem neste procedimento cautelar. O que sucedeu foi a dedução de um incidente de intervenção de terceiros, que culminou com um despacho a admitir a intervenção principal do Município ... como co-réu na acção.

E sendo este o status quo, é evidente que a decisão recorrida não se pode manter. E não se pode manter porque, como acabámos de ver, “no caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo”.

Como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC anotado, em anotação ao citado artigo, “esta norma cria uma situação de legitimidade extraordinária porque a mesma não decorre já da titularidade da relação material litigada. Na medida em que da ilegitimidade do alienante poderiam resultar graves prejuízos para a outra parte, o legislador atribuiu uma legitimidade extraordinária àquele, permitindo que a instância decorra regularmente até final, situação que só cessará quando se efectivar a habilitação do transmissário”.

E assim, errou o Tribunal recorrido ao considerar verificada uma situação de ilegitimidade passiva das requeridas. As mesmas continuam a ter legitimidade para a causa enquanto a Câmara Municipal não for, por meio de incidente de habilitação, ocupar o lugar delas na lide cautelar e também na lide principal.

Mas também não assiste qualquer razão às recorrentes quando dizem que o Tribunal deve convidar a requerida Freguesia ..., alienante do prédio onde se localiza o poço, a suscitar a intervenção do aquirente do mesmo, por aplicação analógica do incidente de intervenção provocada, com as necessárias adaptações (cf. art. 261.º e 316.º e ss. do CPC). Quanto mais não seja porque os recorrentes também podem, eles próprios, promover este incidente de habilitação (art. 356º, 2 CPC), e não carecem da ajuda do Tribunal para isso."

[MTS]