"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/11/2025

Jurisprudência 2025 (33)


Litigância de má fé;
condenação em indemnização; honorários do advogado


1. O sumário de RL 6/2/2025 (27691/21.6T8LSB.L1-A-6) é o seguinte:

I - As inúmeras insultuosas mensagens enviadas pelo apelante à apelada por si só demonstram a inveracidade do alegado ascendente desta e fragilidade emocional do apelante, que se apresentou como pessoa inexperiente e vítima de manipulação para sustentar o pedido de anulação do casamento por, na sua tese, ter sido celebrado sob coacção moral.

II - Contraditoriamente com a versão da sua alegada fragilidade emocional e psíquica, o apelante diz que é empresário de grande sucesso, pelo que o valor da multa nada tem de desproporcionado face à sua conduta processual.

III - O apelante instaurou a acção pedindo a anulação do casamento somente depois da condenação por crime de violência doméstica e poucos dias após o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio na acção instaurada pela apelada, mostrando-se esta actuação bem demonstrativa da utilização dos meios processuais para retaliar contra o ex-cônjuge.

IV - Não tem fundamento legal a pretensão de que os honorários do mandatário da apelada correspondam ao valor fixado no âmbito do patrocínio judiciário.

V - É irrelevante não ter a apelada comprovado que já pagou os honorários ao seu mandatário, como decorre do disposto no nº 4 do art.º 543º do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Para justificar a condenação do apelante como litigante de má fé, vem exposto na sentença recorrida:

«Pretende a Ré que o Autor não tinha sequer o direito de propor a acção sub iudice, uma vez que não invocou os factos aqui trazidos na acção de divórcio. O Autor nega tal situação, afirmando que não existe caso julgado.

Resulta do disposto no art.º 571º do CPC que o Réu pode contestar por impugnação e por excepção, contradizendo os factos articulados na petição inicial, afirmando que tais factos não podem ter as consequências jurídicas pretendidas na petição inicial, alegando factos que obstam à apreciação do mérito da causa ou que sirvam de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor.

É inequívoco que o Autor poderia ter trazido os factos agora em discussão à acção de divórcio. Todavia, não cremos que o facto de não o ter feito obste a que possa suscitar a questão na presente acção. Os factos que o Autor trouxe a juízo são de natureza pessoal, alavancando-se em direitos indisponíveis. Deste modo, o facto de o Autor não os ter invocado previamente não implica qualquer renúncia aos mesmos (in casu, a invocá-los em acção diversa). A exceção invocada pela Ré não poderia, pois, proceder.

Situação juridicamente diversa do acima exposto é a verificação da existência de litigância de má fé por parte do Autor. A apreciação desta questão obriga, não já a uma apreciação em abstracto do direito do Autor a propor esta acção, mas antes à verificação do modo concreto como a mesma foi proposta e prova produzida.

A litigância de má-fé é uma figura processual tipicamente portuguesa.

Através dela pretende-se sancionar aquele que, de forma dolosa ou com negligência grave, viola os deveres de cooperação ou boa-fé processual, apresentando em juízo pretensões cuja falta de fundamento não poderia desconhecer, alterando a verdade dos factos ou omitindo aspectos relevantes para a decisão da causa, infringindo de forma grave o dever de cooperação ou fazendo do processo um uso manifestamente reprovável (art542º e seguintes do CPC). A doutrina distingue duas modalidades de má-fé processual: uma de índole material e outra de cariz instrumental.

A má-fé material relaciona-se com o mérito da causa, aí se integrando as situações em que a parte, não tendo razão, actuou no sentido de obter uma situação injusta ou realizar objectivo que se afasta da função processual. Já a má-fé instrumental diz respeito o comportamento processual assumido pela parte, independentemente do mérito ou demérito das razões por si invocadas quanto ao fundo da causa. Embora tradicionalmente a condenação como litigante de má-fé implicasse a demonstração de que a parte actuara de forma dolosa, na sequência da Reforma de 1995 passou a contemplar-se a possibilidade do instituto ser igualmente aplicado a quem patenteie negligência grave, alteração legislativa que teve em vista uma acrescida responsabilização das partes. Tal alargamento objectivo da litigância de má-fé não significa, porém, poder a mesma alicerçar-se na mera demonstração de que a parte incorreu em erro grosseiro ou mesmo que actuou de forma ousada. A avaliação cautelosa e ponderação casuística de cada uma das situações é ponto assente no tratamento jurisprudencial dispensado a esta figura, reservando-se a condenação como litigante de má-fé para os casos em que pela conduta da parte se demonstre ter a mesma querido, conscientemente, litigar de modo desconforme ao respeito devido, quer ao Tribunal, quer ao seu antagonista na lide.

Cabe, assim, dilucidar o que seja o “dolo” e a “negligência grave” a que se alude no art.º 542º do CPC. No que diz respeito à actuação dolosa, traduz-se a mesma num querer e saber estar a actuar contra a verdade ou com propósitos ilegais. Há dolo substancial quando se deduz pretensão ou imposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida (dolo directo) ou altera-se a verdade dos factos ou ainda quando se omite um elemento essencial (dolo indirecto). Já o dolo instrumental traduz-se na utilização dos meios e poderes processuais de forma manifestamente reprovável.

Mais complexa será a delimitação do conceito de “negligência grave”, sendo certo que parece prevalecer na jurisprudência o entendimento de que esta, além de excepcional, apenas tem por base prevaricações de natureza substantiva e não as meramente processuais. Além disso, porque o que está em causa é uma negligência grave (e não a comum) é igualmente jurisprudência dominante entre nós não poder tal condenação alicerçar-se na mera constatação de que a parte incorreu em erro grosseiro ou pleiteou de forma ousada ou mesmo temerária. Deste modo, a condenação como litigante de má-fé implica a demonstração de que a parte quis litigar de modo desconforme, formulando pedidos cujo carácter injusto conhecia, articulando factos cuja inverdade era do seu conhecimento ou requerendo diligências meramente dilatórias.

Cumpre apreciar e decidir.

O Autor propôs a acção alegando que casou com a Ré sob coacção moral e, assim não se entendendo, simulando com ela a vontade de se casar. Tal não se provou. O que se provou foi que quis casar com a Ré por dela gostar e não a querer perder, querendo reatar a relação e tendo posto fim a uma outra relação amorosa que não mais reatou.

As duas versões (a plasmada na petição inicial e a trazida a juízo) são incompatíveis entre si e tratando-se de matéria pessoal o Autor não pode deixar de o saber. É, pois, claro que propôs acção cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer. Em consequência, a condenação como litigante de má fé (nº1 e al.a) do nº 2 do art.º 542º do CPC).».

Apenas cumpre apreciar se é de manter os valores da multa e da indemnização, no caso de ser confirmada a condenação do apelante como litigante de má fé.

Foi já proferido acórdão em 18 de Dezembro de 2024, que julgou improcedente a apelação, mantendo o julgamento de improcedência da acção e de condenação do apelante como litigante de má fé, discreteando-se, além do mais:

«No caso vertente, mesmo levando-nos o facto não provado 50 a abstrair de que esta acção foi precedida de acção de divórcio promovida pela R. e fundamentos da oposição aí apresentada, basta atentarmos no que anteriormente expusemos acerca do mérito da presente acção para observar que se o Autor tivesse ponderado com razoabilidade e regular senso comum o que veio alegar aos autos não poderia deixar de considerar implausível a sua pretensão, e tal deveria levá-lo a indagar seriamente sobre o fundado da mesma e se o tivesse feito não poderia deixar de concluir pela falta de razão da pretensão que trouxe a juízo. Portanto a conduta processual do Autor – ademais estando necessariamente patrocinado por profissional do foro – é merecedora de um juízo de censura pelo menos da vertente da negligência grave, porque qualquer pessoa dotada de mediana inteligência, formação e experiência de vida, colocada na posição do Autor facilmente percepcionaria a desrazoabilidade das suas pretensões, e usando das mais elementares regras de prudência e diligência, que lhe eram exigíveis, inevitavelmente empreenderia sem esforço a indagação que lhe permitiria aperceber-se da total falta de fundamento da presente acção e abster-se-ia de a trazer a juízo.

Pelo que deve manter-se a sua condenação como litigante de má fé.».

Escusamo-nos de reproduzir os factos provados constantes da sentença proferida no processo em que foi condenado por violência doméstica, designadamente o teor das inúmeras insultuosas mensagens, recheadas de «baixo calão» enviadas pelo apelante à apelada que por si só demonstram a inveracidade do alegado ascendente desta e fragilidade emocional do apelante, que se apresentou como pessoa inexperiente e vítima de manipulação para sustentar o pedido de anulação do casamento por, na sua tese, ter sido celebrado sob coacção moral.

Além disso, contraditoriamente com a versão da sua alegada fragilidade emocional e psíquica, o apelante diz que é empresário de grande sucesso, pelo que o valor da multa nada tem de desproporcionado face à sua conduta processual.

Lembremos ainda que o apelante instaurou a acção pedindo a anulação do casamento somente depois da condenação por crime de violência doméstica e poucos dias após o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio na acção instaurada pela apelada, mostrando-se esta actuação bem demonstrativa da utilização dos meios processuais para retaliar contra o ex-cônjuge.

Quanto à indemnização referente aos honorários do mandatário judicial, não tem fundamento legal a alegação de que não deve ser concedida ou que deve corresponder ao valor fixado no âmbito do patrocínio judiciário, além de que nem sequer indica o apelante qual o valor dos honorários que são normalmente cobrados por um advogado em acções declarativas com processado similar; por fim, é irrelevante não ter a apelada comprovado que já pagou os honorários ao seu mandatário, como decorre do disposto no nº 4 do art.º 543º do CPC, sendo certo que a decisão recorrida indeferiu o pedido para que fossem pagos directamente ao advogado.

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida."

[MTS]