"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/02/2025

Jurisprudência 2024 (101)


Embargo de obra nova;
requisitos


1. O sumário de RE 23/4/2024 (312/23.5T8BNV.E1) é o seguinte:

I – Estabelecendo o artigo 397.º, n.º 1, do CPC, entre os fundamentos do embargo, como um dos requisitos do respetivo decretamento, que o ato iniciado – obra, trabalho ou serviço – seja novo, é de rejeitar a peticionada ratificação de embargo realizado por via extrajudicial de obra que não apresenta inovação relativamente à situação preexistente;

II – A rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto importa se considere prejudicada a apreciação de questão de direito suscitada na apelação, se solução preconizada se baseia na peticionada modificação de determinado facto considerado indiciariamente assente;

III - A improcedência da apelação deduzida, com a consequente manutenção da decisão recorrida, importa se considere prejudicada a apreciação das questões que integram a ampliação do objeto do recurso requerido pelo recorrido.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Está em causa, no presente recurso, embargo extrajudicial de obra nova realizado pelos requerentes, cuja ratificação foi rejeitada pela decisão recorrida, por se ter entendido que a matéria de facto indiciariamente apurada não preenche os requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar requerida.

Considerou a 1.ª instância que não decorre da matéria de facto tida por indiciariamente assente que os trabalhos iniciados pelo requerido, cujo embargo extrajudicial foi realizado, constituam uma obra nova, pelo que se concluiu não se encontrarem preenchidos os requisitos de que depende a ratificação de tal embargo.

No que respeita aos motivos pelos quais assim se entendeu, extrai-se da decisão recorrida o seguinte:

(…) considera-se que in casu falece o pressuposto da «obra nova».

O requerido afasta este pressuposto sustentando que a intervenção realizada no prédio dos autos não configura inovação, mas apenas e só uma intervenção destinada a conservar e recuperar o património já existente.

Neste conspecto, apurou-se indiciariamente que, o requerido removeu o portão existente na frente do prédio e demoliu um dos pilares laterais que o suportavam, assim como demoliu parte do muro da frente. Na parte de trás do prédio, o requerido iniciou a construção de duas sapatas. Este, o estado da obra no momento em que foi comunicado o embargo.

Ressuma, ainda, da matéria de facto indiciada que a obra que o requerido pretendia realizar no prédio, na parte de trás, era a colocação de um portão sustentado em dois postes metálicos, facilmente amovíveis, que assentariam em duas sapatas, e tanto assim que isso mesmo veio a executar, colocando o portão que existia na parte da frente (e que substituiu por um novo) na parte de trás.

Já na parte da frente do prédio, o requerido pretendia substituir o portão existente por um novo, e restaurar o muro e os pilares – e isso mesmo veio a concluir – sendo que esse portão encontrava-se velho, enferrujado e degradado, e o muros e os pilares, por seu turno, apresentavam aspecto envelhecido, rachas profundas e extensas, e algumas fracturas.

Assim sendo, é manifesto que, na parte da frente, não há novidade nenhuma: o que o requerido pretendeu fazer, e veio a concluir de facto, ressume-se a uma mera obra de conservação e restauração de infra-estruturas já existentes: o muro, os pilares e o portão.

Relativamente à obra levada a cabo na parte de trás, não se vê como a colocação de um portão (com aproveitamento do portão substituído na parte da frente) sustentado em dois postes metálicos, facilmente amovíveis – e portanto sem que se possa sequer concluir que estão incorporados no prédio, e ainda considerando que o acesso ao prédio se fazia habitualmente pelo portão da frente – tenha relevância suficiente para constituir uma inovação para efeitos da presente providência cautelar.

Para que esta providência cautelar possa ser decretada é, pois, necessário que esteja em causa uma obra, trabalho ou serviço efectivamente novo, ou seja, que implique uma modificação substancial da coisa (v.g. a abertura de novas portas ou janelas, demolição de paredes ou remoção de cobertura, ou reconstrução de um edifício em ruínas com diferente volumetria ou com novos pisos).

O embargo de obra nova não está ao alcance dos interessados para interferir com obras de meras modificações superficiais (em que incluímos a colocação de um portão nas traseiras, facilmente amovível) ou a mera reconstrução de uma situação pré-existente, em que não há inovação alguma, ou seja, quando se trate de reprodução ou repetição, pura e simples, de facto anterior […].

Com este fundamento, impõe-se julgar improcedente a presente providência cautelar e, em consequência, prejudicado fica o conhecimento dos demais pressupostos legais da providência sub iudice, assim como de todas as demais questões suscitadas pelas partes.

Discordando deste entendimento, os apelantes sustentam, quanto à obra em curso na parte da frente do prédio, que a lei não faz depender o decretamento da providência requerida da existência de uma inovação relativamente à situação preexistente e, quanto à construção iniciada nas traseiras do imóvel, que as sapatas e os postes metálicos que suportam o portão aí colocado, após remoção da parte da frente do prédio, não são facilmente amovíveis, conforme se consignou, defendendo se considere preenchido o pressuposto da ratificação do embargo extrajudicial tido por não verificado.

Vejamos se lhe assiste razão.

O procedimento cautelar de embargo de obra nova encontra-se regulado nos artigos 397.º a 402.º do CPC.

Permite o n.º 1 do artigo 397.º, àquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, requerer, dentro de 30 dias a contar do conhecimento do facto, que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente; acrescenta o n.º 2 do preceito que o interessado pode também fazer diretamente o embargo por via extrajudicial, notificando verbalmente, perante duas testemunhas, o dono da obra, ou, na sua falta, o encarregado ou quem o substituir para a não continuar; esclarece o n.º 3 que o embargo previsto no número anterior fica, porém, sem efeito se, dentro de cinco dias, não for requerida a ratificação judicial.

Visando suspender a execução de obra, trabalho ou serviço que cause ou ameace causar prejuízo ao requerente, até à decisão definitiva do litígio no âmbito da ação principal, o embargo de obra nova consiste numa providência cautelar de natureza conservatória, destinada a evitar a ofensa do direito do requerente ou o agravamento do respetivo prejuízo.

Da análise do n.º 1 do citado artigo 397.º decorre que são requisitos cumulativos do decretamento desta providência cautelar especificada os seguintes: i) encontrar-se em curso obra, trabalho ou serviço novo; ii) ofensa do direito de propriedade, singular ou comum, de qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou da posse do requerente, em resultado daquela obra; iii) verificação de prejuízo ou ameaça de prejuízo causado pela obra.

Face ao objeto do recurso, cumpre aferir, antes de mais, se a factualidade indiciariamente assente preenche o primeiro dos indicados requisitos, isto é, se permite concluir que se encontrava em curso, aquando da realização do embargo extrajudicial, no prédio rústico identificado no ponto 2 de 2.1.1., obra, trabalho ou serviço novo.

Encontra-se indiciariamente assente que, aquando da realização do embargo extrajudicial, o requerido: i) havia removido o portão existente na frente do prédio, demolido um dos pilares laterais que o suportavam e demolido parte do muro da frente; ii) na parte de trás do prédio, iniciara a construção de duas sapatas destinadas a suportar dois postes metálicos para albergar um portão.

Mais se apurou que, após o embargo, o requerido prosseguiu os trabalhos, tendo: i) na parte da frente do prédio, reconstruído o muro e o pilar que havia demolido, bem como substituído o portão removido por um portão novo; ii) colocado na parte de trás o portão que removera da parte da frente, sustentado em dois postos metálicos facilmente amovíveis.

No que respeita à parte da frente do prédio, decorre desta factualidade que o requerido removeu o portão aí colocado, que substituiu após o embargo extrajudicial por um portão novo, bem como demoliu um dos pilares que o suportavam e parte do muro, os quais veio a reconstruir depois do embargo, assim concluindo a obra iniciada.

Extrai-se dos pontos 8 e 9 de 2.1.1. que o portão substituído se encontrava velho, enferrujado e degradado, sendo que o muro e os pilares que existiam na parte da frente do prédio apresentavam aspecto envelhecido, rachas profundas e extensas, e algumas fraturas. Consta do ponto 11, por seu turno, que o prédio rústico em causa tem sido usado pelo requerido, para cultivo, desde há 30 anos aproximadamente, na sequência de lho ter o seu pai disponibilizado para o efeito.

A análise que a 1.ª instância efetuou destes elementos mostra-se acertada, ao considerar que se trata de uma mera obra de conservação e restauro de infraestruturas já existentes – o muro, os pilares e o portão – e não de uma obra nova, nos termos previstos no artigo 397.º, n.º 1, do CPC.

Os apelantes, sem colocarem em causa a ausência de inovação relativamente à situação preexistente, defendem que a lei não faz depender de tal requisito o decretamento da providência requerida.

Não lhes assiste, porém, razão, dado que a posição que defendem não tem em conta os fundamentos do embargo constantes do n.º 1 citado artigo 397.º, na parte em que estabelece como requisito do respetivo decretamento que o ato iniciado – obra, trabalho ou serviço – seja novo.

Esclarece Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, Coimbra, Almedina, 2001, pág. 228) o seguinte: «A ‘novidade’ que entra na qualificação do procedimento implica que apenas possam ser embargadas obras que impliquem uma modificação substancial da coisa e não se traduzam em meras modificações superficiais ou na mera reconstrução de uma situação preexistente».

Em anotação ao aludido artigo 397.º, explicitando o sentido da previsão legal, no que respeita à referência a «obra, trabalho ou serviço novo», José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 166) afirmam: «Para que possa ser considerada nova, a obra tem de inovar relativamente ao estado anterior. Assim não pode ser tida por obra nova a retomada da extração de minério (…), a reconstituição dum edifício destruído por incêndio (…) ou a reparação de paredes e a substituição de telhados e pisos».

No mesmo sentido, afirma Marco Carvalho Gonçalves (Providências Cautelares, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 282) o seguinte: «(…) para que possa ser decretado o embargo de obra nova, torna-se ainda necessário que esteja em causa uma obra, trabalho ou serviço efetivamente “novo”, isto é, que implique “uma modificação substancial da coisa”, não sendo, por isso, admissível o recurso a este meio cautelar para o embargo de uma obra que se traduza em “meras modificações superficiais ou na mera reconstrução de uma situação preexistente”. Com efeito, o embargo de obra nova só pode ser requerido contra a execução de “obras relevantes”, encontrando-se excluídas as “meramente secundárias, os acabamentos ou o aproveitamento de obras anteriores” (por exemplo, substituição de um telhado, reparação de uma parede ou reconstrução de um edifício).

Assente que os atos iniciados na parte da frente do prédio – remoção do portão, demolição de um dos pilares laterais que o suportavam e demolição de parte do muro da frente –, visando a substituição do portão, que se encontrava enferrujado e degradado, por um portão novo, bem como a reconstrução de um dos pilares que suportavam o portão e de parte do muro, que apresentavam aspecto envelhecido, rachas e fraturas, não configuram uma inovação relativamente à situação preexistente, tal impede se considere preenchido o aludido pressuposto de que depende a ratificação judicial do embargo extrajudicial, no que se reporta a tais atos, conforme decidiu a 1.ª instância.

No que respeita à parte de trás do prédio, decorre da factualidade apurada que, aquando da realização do embargo extrajudicial, o requerido havia iniciado a construção de duas sapatas destinadas a suportar dois postes metálicos para albergar um portão, o que veio a concluir após o embargo, colocando nas traseiras do prédio o portão que removera da parte da frente, sustentado em dois postos metálicos facilmente amovíveis.

Considerou a 1.ª instância que, relativamente à obra levada a cabo na parte de trás, não se vê como a colocação de um portão (com aproveitamento do portão substituído na parte da frente) sustentado em dois postes metálicos, facilmente amovíveis – e portanto sem que se possa sequer concluir que estão incorporados no prédio, e ainda considerando que o acesso ao prédio se fazia habitualmente pelo portão da frente – tenha relevância suficiente para constituir uma inovação para efeitos da presente providência cautelar. Pelo motivo exposto, foi considerado não preenchido o requisito em apreciação, de que depende a ratificação judicial do embargo extrajudicial.

No que respeita à construção iniciada nas traseiras do imóvel, os apelantes baseiam a solução que preconizam na alteração da factualidade considerada indiciariamente assente, por via da modificação do ponto 7 de 2.1.1. – com a redação: Concretamente, para concluir a obra, o requerido reconstruiu o muro e o pilar que havia demolido, e substituiu o portão existente na parte da frente do prédio por um novo, e na estrema das traseiras do prédio, colocou o portão removido da parte da frente, sustentado em dois postes metálicos facilmente amovíveis –, preconizando lhe seja atribuída a redação seguinte: «Concretamente, para concluir a obra, o requerido reconstruiu o muro e o pilar que havia demolido, construiu um novo pilar para assentar o portão da frente do prédio aumento a área da entrada em, pelo menos, um metro linear e substituiu o portão existente na parte da frente do prédio por um novo, e na estrema das traseiras do prédio, colocou o portão removido da parte da frente, sustentado em dois postes metálicos assentes em sapatas, não removíveis».

Rejeitada a modificação da decisão de facto, designadamente do aludido ponto da matéria tida por indiciariamente assente, mostra-se prejudicada a apreciação da solução defendida pelos apelantes, no que respeita aos atos executados nas traseiras do prédio.

Efetivamente, a solução que os recorrentes defendem para esta parte do litígio assenta na alteração da factualidade considerada indiciariamente assente, por via da modificação da redação do ponto 7; rejeitada tal modificação da matéria de facto, não defendem qualquer alteração da matéria de direito, no que respeita à questão indicada, a apreciar na hipótese de se manter a factualidade fixada pela 1.ª instância.

Verifica-se, assim, que a não alteração da factualidade considerada indiciariamente assente importa se considere prejudicada a apreciação da questão da verificação dos pressupostos do decretamento da providência requerida, no que respeita aos atos executados nas traseiras do prédio.

Como tal, cumpre considerar acertada a decisão recorrida, ao ter como não preenchido o aludido requisito necessário ao decretamento da providência requerida."

MTS

06/02/2025

Jurisprudência constitucional (233)


Investigação da paternidade;
prazo

TC 23/1/2025 (62/25) decidiu (com um voto de vencido):

a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 26.º e do n.º 1 do artigo 36.º da Constituição, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, a norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação da paternidade por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante; e, em consequência,

b) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 26.º e do n.º 1 do artigo 36.º da Constituição, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, do artigo 1817.º, n.º 3, al. c), na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de três anos para a propositura da ação, contado desde o conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação; [...]

 

Jurisprudência 2024 (100)


Acção de divisão de coisa comum;
erro na forma de processo*


1. O sumário de RL 9/5/2024 (752/22.7T8SCR.L1-6) é o seguinte:

I – Para que a herança indivisa, comproprietária, seja parte no processo de divisão de coisa comum, devidamente representada por todos os herdeiros, exigem-se ainda outros dois pressupostos para que se possa falar na adequação da acção de divisão de coisa comum e afastar assim a verificação de erro na forma de processo:

- Conhecer-se os comproprietários;
- Conhecer-se a extensão do seu direito.

II – Sendo uma das RR. apenas herdeira de uma comproprietária, cuja herança não se mostra partilhada, não pode atribuir-se-lhe a qualidade de comproprietária nem fixar as quotas de todos os comproprietários, simultaneamente herdeiros, sem que se efectue primeiro a partilha (acresce estar ainda em causa a possível inoficiosidade da doação pela qual os restantes herdeiros se haviam tornado comproprietários); verifica-se assim o erro na forma de processo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Nos termos do art.º 1403.º do Código Civil, existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa, exercendo os comproprietários em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas – art.º 1405º do Código Civil.

Sendo vários os titulares do direito, o exercício conjunto do direito de propriedade está sujeito às regras e limitações previstas pelos artigos 1406º a 1411º do Código Civil.

Desta forma, sendo assim regulado e partilhado o exercício do direito, prevê a Lei no art.º 1412º, n.º1, do Código Civil que nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa.

Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1972, Vol. III, página 343 e 344, em anotação ao artigo citado, “(…) o direito de que trata o artigo 1412º é, no fundo, um direito de dissolução da compropriedade, que normalmente se opera mediante a divisão em substância da coisa, mas que também pode realizar-se através da partilha do seu valor (ou preço) (…) o direito potestativo do art.º 1412º distingue-se, entre todas as formas de dissolução da comunhão ou compropriedade, pelo facto de se dirigir contra todos os consortes e ter como fim prático a cessação da compropriedade (…) É exactamente para frisar a nota de que não se trata apenas de concretizar a quota do requerente na coisa comum, mas de dissolver a relação de compropriedade existente entre todos os consortes, que os tribunais italianos acentuam o carácter universal da acção de divisão da coisa comum (…) No processo terão que intervir todos os consortes, seja na posição de autores, seja na de réus “.

Estipula o art.º 1413º do Código Civil que:

“1. A divisão é feita amigavelmente ou nos termos da lei de processo.
2. A divisão amigável está sujeita à forma exigida para a alienação onerosa da coisa.”

Em consonância com esta disposição, encontra-se regulado nos artigos 925.º a 930.º do Código de Processo Civil o processo de divisão de coisa comum, aqui em causa.

Assim, não há dúvida que este processo tem como pressuposto a compropriedade sobre um bem (ou a comunhão de quaisquer outros direitos na medida em que lhe sejam aplicáveis as regras da compropriedade por força do art.º 1404.º do Código Civil) e como finalidade a efetivação do direito à divisão que o art.º 1412.º do Código Civil confere aos comproprietários nos casos de divisibilidade ou indivisibilidade material da coisa.

A acção de divisão de coisa comum é uma acção de natureza real porquanto visa a modificação subjetiva e objetiva do direito real complexo em que se traduz a compropriedade.

Nos termos do art.º 925º do Código de Processo Civil: “Todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respetivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas.”

Posto que as partes na acção de divisão de coisa comum têm de ter a qualidade de comproprietários (para o que aqui interessa, deixando agora de lado os casos do art.º 1404º do Código Civil) tem sido discutido na doutrina e jurisprudência a possibilidade de uma dessas partes se tratar de uma herança indivisa.

Na herança os herdeiros não são titulares de um direito de propriedade comum sobre uma coisa, mas antes contitulares do direito à herança que recai sobre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará; “(…) enquanto não se fizer a partilha, os herdeiros têm sobre os bens que constituem a herança indivisa um direito indivisível, recaindo tal direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta(…) A contitularidade do direito à herança implica um direito a uma parte ideal desta considerada em si mesmo e não sobre um dos seus bens que a compõem” – conf. Luís Filipe Pires de Sousa, in Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2016, Almedina, pág. 19.

Nessa medida, não se tratando de coisa comum de que sejam comproprietários, não podem os herdeiros instaurar acção de divisão de coisa comum para dividir prédio que integre a herança, uma vez que só após a atribuição dos bens em partilha é que os herdeiros podem recorrer à acção de divisão de coisa comum.

Desta forma, é pacífico que a forma de dividir um prédio que integre uma herança é através do processo de inventário.

Posto isto, pode suceder que um dos comproprietários seja uma herança indivisa.

Nesse caso, acompanha-se a jurisprudência que entende que esta circunstância não obsta à instauração da acção de divisão de coisa comum, aplicando a doutrina defendida por Luís Filipe Pires de Sousa: “pode ocorrer que a herança indivisa seja, ela própria, comproprietária (a par de terceiros) de um imóvel” e, nesse caso “sendo interposta uma acção de divisão de coisa comum de tal imóvel por terceiro, antes da partilha, deverão ser demandados todos os herdeiros, os quais agirão como representantes da herança e não em nome próprio”. [...]

Feito este enquadramento, vejamos se no caso ocorre erro na forma de processo como se decidiu na Sentença proferida.

O erro na forma de processo, previsto pelo art.º 193º do Código de Processo Civil, consiste na utilização pelo autor de uma forma processual inadequada para fazer valer a sua pretensão.

Para aferir da verificação deste vício é imprescindível que se analise o pedido e a causa de pedir que o sustenta.

Assim o refere o Conselheiro Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, págs. 398 e 399: “O erro na forma de processo consiste em ter o autor usado de uma forma processual inadequada para fazer valer a sua pretensão (…) É pela pretensão que se pretende fazer valer, e portanto, pelo pedido formulado, que se há-de aquilatar do acerto ou do erro do processo que se empregou...”; Mais adianta Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, vol. I, pág. 247 que “…a forma de processo escolhida pelo autor deve ser a adequada à pretensão que deduz e deve determinar-se pelo pedido que é formulado e, adjuvantemente, pela causa de pedir”.

Concluindo-se que se verifica uma situação de erro na forma de processo, a consequência é a nulidade, tal como prevista no artigo 196.º do Código de Processo Civil, a ser conhecida pelo Juiz no despacho saneador – art.º 200º do Código de Processo Civil.

Revertendo ao caso concreto.

Sendo que à partida não repugna que a herança indivisa, comproprietária, seja parte no processo de divisão de coisa comum, devidamente representada por todos os herdeiros, da jurisprudência que supra se citou resultam ainda outros dois pressupostos para que se possa falar na adequação da acção de divisão de coisa comum e afastar assim a verificação de erro na forma de processo:

- Conhecer-se os comproprietários;
- Conhecer-se a extensão do seu direito.

Ora, são estes precisamente os pressupostos que falecem no caso concreto, à luz da p.i. apresentada e analisada a pretensão da Requerente, como não pode deixar de se fazer na análise do erro na forma de processo.

É que a A. não intentou a acção contra a herança indivisa de MF..., representada pelas partes na causa.

A A. intentou a presente acção contra os restantes herdeiros de MF…, sendo os três primeiros RR. igualmente comproprietários.

Mas a terceira R., S..., é apenas herdeira de MF….

No entanto, a A. vem dizer na p.i. que “O que significa que, a Autora e os Réus E... e J..., são titulares de ¼ do prédio supra identificado, a que acresce 1/16 avos da herança da falecida MF...(1/4 + 1/16), correspondendo o direito de cada um dos referidos titulares a 5/16 avos do prédio.

Já, por seu turno, o direito da Ré, S..., corresponde 1/16 avos do prédio, sendo esta a sua quota parte.”

Ora, não pode a A. atribuir a quota parte da propriedade do imóvel às partes nesta acção nos termos em que fez.

No caso dos autos e observada a pretensão da A., a fim de se apurar quem são efectivamente os comproprietários do imóvel (qualidade que a R. S... não tem, não sendo comproprietária de 1/6 do imóvel, mas apenas herdeira, juntamente com os seus irmãos, as restantes partes nestes autos, da comproprietária falecida MF…) bem como a extensão da sua quota parte na propriedade do imóvel (que neste momento para a A. e os dois primeiros RR. é apenas e tão somente de ¾ para todos e não de 5/16 avos para cada um como a A. afirma) é necessário que se proceda previamente à partilha da herança de MF….

Só após a partilha é que será possível conhecer a identidade de todos os comproprietários e a extensão das suas quotas, que pode ou não coincidir com o que a A. pretende e invoca na p.i.

Acresce que a extensão da sua quota parte pode ser relevante para se aferir da divisibilidade ou indivisibilidade do prédio em causa, para o que, aliás e como notam os RR. S...e V..., poderá a A. ter que demonstrar o cumprimento das exigências administrativas que ao caso sejam exigidas para o fraccionamento do imóvel, em caso de ser possível a divisão (vindo a A., aliás, em sede de esclarecimentos solicitados pelo Tribunal a referir: “…a requerente entende que, poderia ser solicitado à Câmara Municipal de … a legalização das construções existentes, com divisão do prédio ou constituição de propriedade horizontal e adjudicação de cada fracção ao respectivo titular…”.

Finalmente, atente-se ainda na invocação de inoficiosidade da herança efectuada pelos RR. S...e V..., questão que apenas em sede de Inventário cumpre apreciar e que pode efectivamente ter repercussões na titularidade do direito das restantes partes, uma vez que a quota parte (1/4) que arrogam caber-lhes lhes adveio de doação em vida de MF…, não tendo a R. S... sido contemplada."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, a questão suscitada pela acção pendente não se reconduz a qualquer erro na forma de processo. 

Importa recordar que este erro ocorre quando a acção segue uma forma de processo que não é adequada e quando há uma outra forma que é a apropriada para a acção. Aplicando ao caso concreto: dado que à acção de divisão de coisa comum corresponde um processo especial, entender que a acção não é admissível por erro na forma de processo implica reconhecer que há uma outra forma de processo especial que seria a adequada ou que, em última análise, a acção poderia seguir a forma de processo comum. 

Ora, os problemas que são suscitados pela acção vão muito para além do recurso a uma forma de processo alternativa à que foi utilizada pelo autor.

MTS

05/02/2025

Eficácia do caso julgado formal e confiabilidade do sistema processual




[Para aceder ao texto clicar em M. Teixeira de Sousa]


Jurisprudência 2024 (99)


Incidente da instância;
indeferimento liminar; recurso de apelação*


I. O sumário de RC 23/4/2024 (2692/23.3T8VIS-A.C1) é o seguinte:

1. - No âmbito do incidente de intervenção principal provocada passiva, suscitado pela parte demandada, não cabe recurso de apelação autónoma se a decisão incidental for de rejeição liminar da intervenção (por não se verificarem os pressupostos legais de admissibilidade ou manifesta improcedência), caso em que o recurso deve ser interposto posteriormente, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art.º 644.º do NCPCiv..

2. - A intervenção a que alude o art.º 316.º, n.º 3, al.ª a), do NCPCiv. depende da verificação de litisconsórcio voluntário entre o réu e o interessado que se pretende chamar, o que pressupõe a existência de uma relação material controvertida – de acordo com a configuração do autor na sua petição – em que sejam sujeitos passivos tais réu e interessado.

3. - Se, num tal âmbito incidental, o autor apenas alegou a existência de uma dívida faturada (referente a transporte de frutas), de pendor contratual, de que é credor aquele e devedor o demandado, a relação material controvertida vem reportada a esses sujeitos (e respetivos interesses) e a esse horizonte contratual, e não a outra(s) sociedade(s), pelo que apenas eles têm interesse em demandar e em contradizer, sendo, pois, as partes legítimas, não se mostrando que ocorra litisconsórcio voluntário passivo com a sociedade que se pretende fazer intervir.


II. O decidido no acórdão tem o seguinte voto de vencido:

"Concorda-se com a 2ª parte do acórdão e respectiva decisão, mas não com o decidido na 1ª parte, por se entender que o recurso deve ser admitido a subir imediatamente, tal como foi determinado na 1ª instância.

Ouvida a parte contrária, no suscitado incidente de intervenção principal provocada, proferiu-se despacho, à sombra do art. 318º, nº 2, do NCPC.

Com tal decisão terminou o referido incidente.

Assim, posto termo a tal incidente o recurso a interpor é o que está previsto no art. 644º, nº 1, a), in fine, do NCPC.

No acórdão cita-se posição doutrinal de Abrantes Geraldes, na sua obra Recursos …, no sentido do decidido, mas da consulta que efectuámos na referida obra (última edição, a 7ª), não conseguimos descortinar que assim seja. O mesmo autor no CPC Anotado dele (e mais dois outros autores), no 1º Vol. (última edição, a 3ª), consultado o mesmo, do que conseguimos descortinar, também não defende a posição que fez vencimento.

Também se citou Lebre de Freitas (no CPC Anotado, Vol. 1º, 4ª Ed.,) para defender a controversa questão, a propósito de despacho que admita a intervenção não ser autonomamente recorrível. Mas o nosso caso é exactamente o contrário.

Tal professor na referida obra, Vol. 3º (última edição, a 3ª), que cobre a análise do regime de recursos também não aponta para o decidido. Só no referido Vol. 1º (mencionada edição) o faz e defende exactamente o contrário da posição agora sentenciada. Diz tal autor que em caso de não admissão da intervenção - é o nosso caso - o recurso sobe imediatamente.

Também se diz no acórdão que estamos perante uma decisão de indeferimento/rejeição in limine do aludido incidente. Tratando-se de um indeferimento liminar, então menos se justifica o decidido, atento aquele art. 644º, nº 1, a), do NCPC.

Ou seja, a decisão incidental de indeferimento deve subir imediatamente e não diferidamente. No mesmo sentido pode ver-se Rui Pinto, na Rev. da Fac. Direito de Lisboa, 2020, nº 2, no seu artigo doutrinal Oportunidade processual de interposição de apelação à luz do artigo 644º do CPC, págs. 632/637."

*III. [Comentário] Houve um tempo em que, perante algum emaranhado legal, à pergunta "Quando é que sobe o agravo?" a resposta era "Quando Alberto dos Reis quis". Hoje o panorama dos recursos é outro e problemas deste tipo já não se levantam.

Compreensivelmente, o art. 644.º, n.º 1, al. a), CPC estabelece que cabe apelação autónoma, entre outras, da decisão que pôs termo a um incidente processado autonomamente. Na verdade, se o incidente terminou (ou, no caso do indeferimento liminar, quase não chegou a começar), não tem sentido reter o recurso até à decisão final do processo. Não só não há nenhuma interferência da pendência do recurso na continuação da tramitação da acção, como, até em termos de eficiência processual, seria estranho que o recurso de uma decisão que pôs termo a um incidente tivesse de aguardar pelo recurso interposto da decisão proferida na acção.

MTS

04/02/2025

Jurisprudência 2024 (98)


Ineptidão da petição inicial;
interpretação da petição inicial

1. O sumário de STJ 8/5/2024 (616/22.4T8CLD.L1-2é o seguinte: 

I – No atual regime processual civil, a interpretação dos articulados das partes deve ser efetuada com base nos princípios interpretativos aplicáveis às declarações negociais, valendo com o sentido que um declaratário normal lhes atribuiria, prevalecendo a substância sobre a forma, visando aproveitar ao máximo os atos praticados pelas partes, por forma a garantir o princípio da efetiva tutela jurisdicional, consagrado no artigo 20º da CRP, bem como a justa composição do litígio – cfr. artigos 295º, 236º, CC e 7º, nº 1, CPC.

II – A contradição entre o pedido e a causa de pedir gerador de ineptidão da petição inicial, nos termos do disposto no artigo 186º, nº 2, alínea b), CPC, apenas ocorre quando se verifica uma impossibilidade prática da sua coexistência, de forma que se possa afirmar que se negam reciprocamente por falhar qualquer nexo lógico.

III - Não ocorre a ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir quando o autor enquadra juridicamente a pretensão no âmbito da responsabilidade extracontratual, apesar de alegar factos suscetíveis de a enquadrar no âmbito da responsabilidade contratual, concluindo com um pedido indemnizatório.

IV – Por decorrência do princípio da legalidade da decisão judicial consagrado no artigo 203º da CRP e com expressão nos artigos 5º, nº 3 e 607º, nº 3, CPC, não está o tribunal limitado pelas alegações das partes no que se reporta à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Da ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir

A propósito da ineptidão da petição inicial, dispõe o artigo 186º do Código de Processo Civil:

1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
4 - No caso da alínea c) do n.º 2, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo”.

A nulidade do processo por ineptidão da petição inicial configura exceção dilatória nominada que determina a absolvição dos réus da instância – cfr.- artigos 576º, nºs 1 e 2, 577º, alínea b), 278º, nº 1, alínea b), CPC.

O pedido, que nos termos do disposto nos artigos 3º, nº 1 e 552º, nº 1, alínea e), CPC, deve ser formulado pelo autor na petição inicial, consiste na providência processual requerida ao tribunal para tutela da “(…) situação jurídica ou do interesse (…) materialmente protegido”- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, Volume 2ª, 3ª edição], [...] pág. 352)]. Na definição destes autores, a causa de pedir consiste no facto constitutivo “da situação jurídica material que quer fazer valer” [Pág. 353.]. Assim, a causa de pedir será constituída “(…) pelo facto ou pelos factos concretos que preenchem a norma jurídica da qual o Autor faz derivar os direitos que, segundo ele, conduzirão à procedência do pedido” – Acórdão da Relação de Coimbra de 10-07-2019 [Proferido no processo nº 5149/19.3YIPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt]. Nos termos do disposto nos artigos 5º, nº 1 e 552º, nº 1, alínea d), CPC, incumbe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir.

A contradição entre o pedido e a causa de pedir suscetível de gerar a ineptidão da petição inicial nos termos do artigo 186º , nº 2, alínea b), CPC, reporta-se a uma “(…) contradição lógica, distinta da inconcludência jurídica, isto é, da situação em que é alegada uma causa de pedir da qual não se pode tirar, por não preenchimento da previsão normativa, o efeito jurídico pretendido, constituindo causa de improcedência da ação (…)Em primeiro lugar, há que ter em conta que a ocorrência de factos impeditivos do efeito jurídico pretendido pelo autor , ainda que eles sejam alegados na petição inicial, é irrelevante para a configuração do vício (…) em segundo lugar (…) não basta que o efeito jurídico pretendido pelo autor não se retire da norma jurídica constitutiva por ele invocada: sempre haverá que ter em conta todas as outras normas constitutivas do sistema aplicáveis aos factos alegados, das quais o juiz o poderá oficiosamente retirar (…) em terceiro lugar, não basta ainda à contradição entre o pedido e a causa de pedir que nenhuma norma constitutiva estatua o efeito jurídico pretendido como consequência dos factos invocados como causa de pedir (…) é preciso que haja oposição entre o pedido e causa de pedir, que o pedido brigue com a causa de pedir” – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, Vol 1º, pág. 354 e 355.].

Ora, por forma a indagar da verificação do mencionado vício, haverá que ter presente que da alegação contida na petição inicial extrai-se, no essencial, o seguinte:

- A autora em janeiro de 2019 celebrou um contrato de locação financeira que teve por objeto um veículo de marca Tesla, Modelo S Long Range, tendo-se comprometido a pagar à locadora 48 rendas, no valor global de € 75.105, 69, ficando com a opção de aquisição do veículo no termo do contrato, pelo valor de € 1.502,11, acrescido de IVA;
- Em cumprimento de tal contrato, a autora celebrou com a ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA” “um seguro com cobertura de danos próprios decorrentes de choque, colisão e capotamento e privação de uso por sinistro” (artigo 10º da petição inicial);
- No dia 03-04-2021, o gerente da autora, condutor habitual da referida viatura, sofreu um sinistro, que consistiu no despiste da viatura, o qual foi participado à ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA”;
- Com vista à sua reparação, o veículo foi enviado para uma oficina sita em Alfragide, pertencente à ré “C. Santos-Veículos e Peças, SA”.;
- A autora solicitou às rés “Tesla Portugal-Sociedade Unipessoal, Ldª” e “C. Santos – Veículos e Peças, SA” um veículo de substituição mas o mesmo foi-lhe recusado;
- A reparação do veículo arrastou-se ao longo de quase 8 meses, o que se deveu à atuação de todas as rés; [...]
- Na perspetiva da autora, a atuação das rés não foi diligente, gerando a violação do seu direito de propriedade, imputando-lhes a prática de facto ilícito extracontratual, nos termos do disposto no artigo 483º, nº 1 do Código Civil, considerando ser solidária a responsabilidade de todas as demandadas nos termos do disposto nos artigos 490º e 497º do Código Civil;
- A autora solicitou, a título principal, a condenação solidária das rés no pagamento do valor global de € 22.859,05 e subsidiariamente, pediu a condenação da ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA” no pagamento daquele valor.

A interpretação de tal articulado deverá ser efetuada de harmonia com os cânones interpretativos vigentes para a declaração negocial, atribuindo-lhe o sentido que um declaratário normal atribuiria, nos termos do disposto no artigo 236º do Código Civil, ex vi artigo 295º do mesmo código.

Ora, da leitura e interpretação da petição inicial, de harmonia com o princípio interpretativo exposto, conclui-se que a autora atribui às rés a prática de factos ilícitos (que enquadra juridicamente no domínio da responsabilidade extracontratual prevista nos artigos 483º e ss do Código Civil), considerando que a atuação de todas as rés, em conjunto e no concreto facto histórico que descreve naquele articulado, gerou os danos de que pretende ser compensado por via da presente ação. Danos esses que, de harmonia com o enquadramento jurídico que conferiu à causa, responsabilizam solidariamente todas as rés, nos termos do disposto nos artigos 490º e 497º do Código Civil.

Ora, tal enquadramento jurídico não se afigura isento de dúvidas e até de imprecisões. Desde logo, no artigo 90º da petição inicial, invoca a autora um direito de propriedade sobre o veículo que foi objeto do contrato de locação financeira descrito, contrato esse que por não estar ainda cumprido integralmente, e por não ter sido exercida ainda a opção de compra, não lhe confere tal direito – cfr. artigo 1º Dl 149/95, de 24 de junho, na sua atual redação. Porém, julgamos que se trata de lapso colmatado pela leitura global do articulado, do qual resulta que no período em que o veículo esteve imobilizado aguardando reparação, a autora, embora tenha suportado os encargos inerentes à locação financeira, pagando as rendas devidas,  não o pode afetar à sua atividade, o que gerou um dos danos que pretende ver ressarcidos por via da presente ação. Ou seja, mais do que a lesão do direito de propriedade (cuja aquisição naquele momento constituiria mera expetativa), a autora viu lesado, de forma prolongada, o direito ao uso da viatura, direito esse que lhe era conferido pelo contrato em questão.

Por outro lado, também o enquadramento do litígio efetuado pela autora no âmbito da responsabilidade extracontratual não se afigura isento de dúvidas, uma vez que os factos concretos que carreou para os autos poderão vir a merecer enquadramento diverso, quer no âmbito da responsabilidade do produtor, quer no domínio contratual.

Ou seja, sendo manifesto que parte da factualidade alegada, ao contrário do que defende a recorrente, pode bem vir a ser subsumida à responsabilidade contratual, o certo é que a opção final de enquadramento jurídico apenas na decisão de mérito poderá vir a ser efetuada. No atual estado dos autos, tendo por base a alegação da autora, não pode deixar de ser configurada a eventual existência de um concurso entre a responsabilidade contratual e extracontratual que ocorre quando, como refere Fernando A. Ferreira Pinto [O concurso entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual, Revista de Direito Comercial, www.revistadedireitocomercial.com pág. 3 e 4] “um único facto danoso, praticado por uma só pessoa, integra simultaneamente os pressupostos de aplicação dos regimes da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual, representando, pois, concomitantemente, a inexecução de uma obrigação em sentido estrito e a violação do genérico dever de neminem laedere. São duas, por conseguinte, as suas caraterísticas essenciais: por um lado, do ponto de vista subjetivo, lesante e lesado correspondem, respetivamente, ao devedor e ao credor de uma relação obrigacional, por outro lado, do ponto de vista objetivo, o dano aquiliano é consequência direta do inadimplemento da obrigação”.

De todo o modo, interpretada a causa de pedir e os pedidos formulados, não pode concluir-se que se verifique, entre ambos, uma incompatibilidade formal, reveladora de falta de absoluto nexo lógico, ou sequer que ambos se excluam reciprocamente.

Ao invés, independentemente da procedência final da pretensão formulada, não pode deixar de considerar-se que o pedido formulado (indemnização) decorre da causa de pedir invocada (facto ilícito gerador de responsabilidade civil), não se verificando a apontada contradição, sem embargo de, no momento próprio, o tribunal a quo optar por diverso enquadramento jurídico para o litígio. Efetivamente, como já referido se no nosso regime processual civil, fortemente influenciado pelo princípio do dispositivo, cabe às partes carrear para o processo os factos (pelo menos os essenciais) que integrarão o objeto do processo, e ao tribunal incumbe a apreciação das questões que lhe incumbe conhecer com base nos fundamentos jurídicos que considere aplicáveis. Julgamos ser esta a posição que se revela mais conforme ao atual regime processual civil, relativamente ao qual se deve afirmar o “princípio da prevalência do fundo sobre a forma” com, se necessário, o convite à correção de imprecisões da matéria de facto ou à sua complementação, com base nos poderes de gestão inicial do processo conferidos ao juiz, e sempre com a perspetiva da justa composição do litígio e, consequentemente, da efetiva tutela jurisdicional– cfr. artigos 6º, 7º, e 590º CPC e artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.

A este propósito, refere-se no acórdão da Relação de Évora de 17-06-2021 [Proferido no processo nº 112/20.4T8TBV-E1, disponível em www.dgsi.pt]:

No novo regime processual civil foi reforçada a ideia que sustentava que a atividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite, de forma que todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, sempre que seja possível corrigir as irregularidades ou suprir as omissões verificadas, de modo a viabilizar uma decisão de meritis (…) Efetivamente, a generalidade das exceções dilatórias são supríveis, quer por iniciativa do autor, quer por determinação oficiosa do Tribunal” e na mesma decisão, citando Abrantes Geraldes [Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. I, 2ª edição pág. 126, 132, 147 a 150 e 158] a propósito da falta de requisitos dos pedidosrefere-se que “(…) deve prevalecer o entendimento de «impor o aproveitamento da instância, em conjugação com todo um conjunto de princípios que sempre devem orientar o intérprete na busca das melhores soluções – (economia processual, prevalência da substância sobre a forma, eficiência do sistema, cooperação mútua) – exigem que a questão em análise seja resolvida de forma diversa daquela que deveria emergir do anterior CPC, ao nível do despacho saneador».

Importa, pois, determinar a revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que, julgando improcedente a exceção de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir, ordene a prossecução dos autos."

[MTS]


03/02/2025

Legislação (243)


Tabela de honorários 


Prevê [sic] uma atualização da tabela de honorários, seja quanto aos atos descritos, seja quanto aos valores respetivos, e as suas regras de aplicação.

 

A prova digital em processo civil: aspectos gerais

 


[Para aceder ao texto clicar em M. Teixeira de Sousa]


Jurisprudência 2024 (97)


Impugnação da matéria de facto;
ónus do recorrente


1. O sumário de STJ 17/4/2024 (1324/21.9T8FNC.L1.S1) é o seguinte:

Restringindo-se o objecto do recurso à questão de saber se os recorrentes cumpriram os ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil na impugnação, perante a Relação, da decisão sobre a matéria de facto, se essa impugnação significa uma alteração da causa de pedir da reconvenção, o que não é admitido em recurso, a revista improcede.

2. Na fundamentação do acórdão afirmou-se o seguinte:

"4. O presente recurso tem como objecto a questão de saber se os recorrentes cumpriram ou não os ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil para a impugnação, perante a Relação, da decisão sobre a matéria de facto.

Encontrando-se preenchidos os pressupostos gerais de admissibilidade de recurso e enquadrando-se o acórdão recorrido no n.º 1 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, admite-se a revista, com efeito meramente devolutivo (n.º 1 do artigo 676.º do Código de Processo Civil), não sendo caso de “revista excepcional” e, portanto, de envio do processo à Formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.

Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que “a dupla conformidade de decisões da 1.ª Instância e da Relaçãonos termos definidos pelo n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, não constitui obstáculo à apreciação da aplicação feita pela Relação, seja dos requisitos exigidos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil para a impugnação da decisão de facto da 1ª Instância, seja dos poderes que são conferidos à 2ª Instância pelo artigo 662.º, no recurso de revista (“normal”, por oposição à “revista excepcional”, que tem requisitos específicos de admissibilidade – artigo 672.º do Código de Processo Civil e pressupõe a ocorrência de dupla conformidade das decisões das instâncias). Observa-se frequentemente que, quanto a uns e a outros, não existem duas decisões, o que, por si só seria suficiente para excluir a eventualidade de dupla conforme” (excerto retirado de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Julgamento de facto em 1.ª e 2:ª Instâncias, Jurismat, n.º 12, 2020, pág. 203 e segs., pág. 216).

5. Como também se recordou em outro acórdãos – por tratar-se de questão repetidamente colocada ao Supremo Tribunal de Justiça –, seguindo-se aqui o acórdão de 11 de Julho de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 121/06.6TBOBR.P1.S1 «Como o Supremo Tribunal de Justiça já por diversas vezes observou (cfr. por exemplo o acórdão de 4 de Novembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 7006.05.1TBBRG.G1.S1 e jurisprudência nele citada, e ainda os acórdãos de 29 de Novembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 39/2002.E1.S1 ou de 30 de Junho de 2011, www.dgsi.pt, proc. 6450/05.9TBSXL.L1.S1), “a impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão. Como se diz no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), ‘a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. (…) Nesse sentido, impôs-se ao recorrente um ‘especial ónus de alegação’, no que respeita ‘à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação’, em decorrência ‘dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta. Daí que se estabeleça’, continua o mesmo preâmbulo, ‘no [então] artigo 690º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto. Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo nº 6 do [então] artigo 705’. O ónus especificamente criado foi, assim, justificado pela necessidade de impor ao recorrente uma ‘delimitação do objecto do recurso’ e uma ‘fundamentação’, repete-se, tendo em conta o âmbito possível do recurso da decisão de facto, tal como foi concebido (cfr. acórdãos de 9 de Outubro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 07B3011, ou de 18 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2998). O artigo 690º-A do Código de Processo Civil foi posteriormente alterado pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto. Continuou a incumbir ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto proferida em primeira instância, para o que agora releva, ‘especificar (…) os concretos pontos de facto que [o recorrente] considera incorrectamente julgado’ e ‘os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida’. Mas, se ‘os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas [tiverem] sido gravados’, passou a caber-lhe, ‘sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522ºC’.O artigo 690º-A veio a ser revogado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que em sua substituição acrescentou ao Código o artigo 685º-B, mantendo os ónus referidos (indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que implicassem decisão diversa da proferida), mas determinando que, sendo possível ‘a identificação precisa e separada dos depoimentos’, que cabe ao recorrente, ‘sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição’.

Como também se teve já a ocasião de observar (cfr. “Notas sobre o novo regime dos recursos no Código de Processo Civil”, in O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina para a compreensão do novo Código de Processo Civil, caderno I, Centro de Estudos Judiciários, Dezembro de 2013, pág. 395 e segs)., a reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis, aliás modificado significativamente pouco tempo antes, pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto; mas teve a preocupação de ‘conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto’, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República, de cuja aprovação veio a resultar o actual Código de Processo Civil, disponível em www.parlamento.pt .

Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente:

– manteve a indicação obrigatória ‘dos concretos pontos de facto’ que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),

– manteve o ónus da especificação dos ‘concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida’ (al.b),

– exigiu ao recorrente que especificasse a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas’ (al. c),

sob pena de rejeição do recurso de facto. E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta ‘das passagens da gravação em que se funda’ o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder apresentar a ‘transcrição dos excertos’ relevantes.

Cumpridos os requisitos assim definidos para a delimitação e fundamentação da impugnação da decisão de facto, então caberá à Relação julgar o recurso, nos termos amplos acima referidos.”

Estes ónus, no entanto, têm que ser entendidos à luz da respectiva função, como se recorda no acórdão de 29 de Outubro de 2015 deste Supremo Tribunal, www.dsgi.pt, proc. nº 233/09.4TBVNG.G1.S1, não devendo tornar-se em requisitos desproporcionadamente exigentes, tendo em conta o objectivo, em primeiro lugar, de delimitação e fundamentação do recurso e, em segundo lugar, de permitir ao tribunal de recurso encontrar sem dificuldade os pontos dos elementos de prova gravados que o recorrente tem por mal apreciados: “Percorrendo, deste modo, os regimes processuais que têm vigorado quanto a este tema, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes; e um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes.(…) o incumprimento do referido ónus secundário, tendente apenas a facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contem a gravação da audiência, deverá ser avaliado com muito maior cautela: é que, por um lado, o conceito usado pela lei de processo (exacta indicação das passagens da gravação) é, até certo ponto, equívoco, pressupondo a necessidade de distinguir entre a (insuficiente) mera indicação e a indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados; por outro lado, por força do princípio da proporcionalidade, não parece justificável a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa – não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado (como ocorrerá normalmente nos casos, como o dos autos, em que tal indicação do recorrente das passagens da gravação, é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso)».

Finalmente, importa também lembrar (cfr. acórdão de 8 de Março de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 656/20.8T8PRT.L1.S1 « (…) que se discutiu, ainda no domínio da lei anterior ao Código de Processo Civil de 2013 e após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 39/95, se, ao apreciar o recurso da decisão de facto sem imediação, mas com base no registo de prova que, em primeira Instância, havia sido produzida e apreciada de acordo com os princípios da oralidade e da imediação, a Relação se devia limitar a verificar a congruência entre o julgamento de facto impugnado e a respectiva fundamentação ou, diferentemente, se lhe cabia decidir de acordo com a convicção a que chegasse, nos termos do princípio da livre apreciação da prova. A jurisprudência que veio a formar-se no Supremo Tribunal de Justiça foi neste último sentido (…). Cfr. apenas como exemplo, os acórdãos de 15 de Maio de 2008, www.dgsi.pt, proc. n.º 08B1205, de 12 de Maio de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 13951/16.1T8LSB.L2.L1.S2, de 17 de Dezembro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 603/17.4T8LSB.L1.S1 ou de 16 de Dezembro de 2020, proc. n.º 4016/13.9TBVNG.P1.S3: “É hoje jurisprudência seguida por este Supremo que a reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte do tribunal de 2.ª instância, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”.»

Na verdade, o objectivo do Código de Processo Civil de 2013 de “conferir maior eficácia à 2.ª Instância para o exame da matéria de facto”, a que se fez já referência, não se esgotou na ampliação dos seus poderes, “revelou-se igualmente na consagração expressa da regra da livre apreciação da prova pela Relação, quando julga o recurso sobre a matéria de facto – n.º 5 do artigo 607.º, aplicável à apelação por força do disposto no artigo 663.º, n.º 2 (cfr. por exemplo o acórdão n.º 588/12.3TBPVL.G2.S1).” – mesmo acórdão de 8 de Março de 2022."

[MTS]