"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/02/2025

Jurisprudência 2024 (98)


Ineptidão da petição inicial;
interpretação da petição inicial

1. O sumário de STJ 8/5/2024 (616/22.4T8CLD.L1-2é o seguinte: 

I – No atual regime processual civil, a interpretação dos articulados das partes deve ser efetuada com base nos princípios interpretativos aplicáveis às declarações negociais, valendo com o sentido que um declaratário normal lhes atribuiria, prevalecendo a substância sobre a forma, visando aproveitar ao máximo os atos praticados pelas partes, por forma a garantir o princípio da efetiva tutela jurisdicional, consagrado no artigo 20º da CRP, bem como a justa composição do litígio – cfr. artigos 295º, 236º, CC e 7º, nº 1, CPC.

II – A contradição entre o pedido e a causa de pedir gerador de ineptidão da petição inicial, nos termos do disposto no artigo 186º, nº 2, alínea b), CPC, apenas ocorre quando se verifica uma impossibilidade prática da sua coexistência, de forma que se possa afirmar que se negam reciprocamente por falhar qualquer nexo lógico.

III - Não ocorre a ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir quando o autor enquadra juridicamente a pretensão no âmbito da responsabilidade extracontratual, apesar de alegar factos suscetíveis de a enquadrar no âmbito da responsabilidade contratual, concluindo com um pedido indemnizatório.

IV – Por decorrência do princípio da legalidade da decisão judicial consagrado no artigo 203º da CRP e com expressão nos artigos 5º, nº 3 e 607º, nº 3, CPC, não está o tribunal limitado pelas alegações das partes no que se reporta à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Da ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir

A propósito da ineptidão da petição inicial, dispõe o artigo 186º do Código de Processo Civil:

1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
4 - No caso da alínea c) do n.º 2, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo”.

A nulidade do processo por ineptidão da petição inicial configura exceção dilatória nominada que determina a absolvição dos réus da instância – cfr.- artigos 576º, nºs 1 e 2, 577º, alínea b), 278º, nº 1, alínea b), CPC.

O pedido, que nos termos do disposto nos artigos 3º, nº 1 e 552º, nº 1, alínea e), CPC, deve ser formulado pelo autor na petição inicial, consiste na providência processual requerida ao tribunal para tutela da “(…) situação jurídica ou do interesse (…) materialmente protegido”- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, Volume 2ª, 3ª edição], [...] pág. 352)]. Na definição destes autores, a causa de pedir consiste no facto constitutivo “da situação jurídica material que quer fazer valer” [Pág. 353.]. Assim, a causa de pedir será constituída “(…) pelo facto ou pelos factos concretos que preenchem a norma jurídica da qual o Autor faz derivar os direitos que, segundo ele, conduzirão à procedência do pedido” – Acórdão da Relação de Coimbra de 10-07-2019 [Proferido no processo nº 5149/19.3YIPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt]. Nos termos do disposto nos artigos 5º, nº 1 e 552º, nº 1, alínea d), CPC, incumbe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir.

A contradição entre o pedido e a causa de pedir suscetível de gerar a ineptidão da petição inicial nos termos do artigo 186º , nº 2, alínea b), CPC, reporta-se a uma “(…) contradição lógica, distinta da inconcludência jurídica, isto é, da situação em que é alegada uma causa de pedir da qual não se pode tirar, por não preenchimento da previsão normativa, o efeito jurídico pretendido, constituindo causa de improcedência da ação (…)Em primeiro lugar, há que ter em conta que a ocorrência de factos impeditivos do efeito jurídico pretendido pelo autor , ainda que eles sejam alegados na petição inicial, é irrelevante para a configuração do vício (…) em segundo lugar (…) não basta que o efeito jurídico pretendido pelo autor não se retire da norma jurídica constitutiva por ele invocada: sempre haverá que ter em conta todas as outras normas constitutivas do sistema aplicáveis aos factos alegados, das quais o juiz o poderá oficiosamente retirar (…) em terceiro lugar, não basta ainda à contradição entre o pedido e a causa de pedir que nenhuma norma constitutiva estatua o efeito jurídico pretendido como consequência dos factos invocados como causa de pedir (…) é preciso que haja oposição entre o pedido e causa de pedir, que o pedido brigue com a causa de pedir” – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, Vol 1º, pág. 354 e 355.].

Ora, por forma a indagar da verificação do mencionado vício, haverá que ter presente que da alegação contida na petição inicial extrai-se, no essencial, o seguinte:

- A autora em janeiro de 2019 celebrou um contrato de locação financeira que teve por objeto um veículo de marca Tesla, Modelo S Long Range, tendo-se comprometido a pagar à locadora 48 rendas, no valor global de € 75.105, 69, ficando com a opção de aquisição do veículo no termo do contrato, pelo valor de € 1.502,11, acrescido de IVA;
- Em cumprimento de tal contrato, a autora celebrou com a ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA” “um seguro com cobertura de danos próprios decorrentes de choque, colisão e capotamento e privação de uso por sinistro” (artigo 10º da petição inicial);
- No dia 03-04-2021, o gerente da autora, condutor habitual da referida viatura, sofreu um sinistro, que consistiu no despiste da viatura, o qual foi participado à ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA”;
- Com vista à sua reparação, o veículo foi enviado para uma oficina sita em Alfragide, pertencente à ré “C. Santos-Veículos e Peças, SA”.;
- A autora solicitou às rés “Tesla Portugal-Sociedade Unipessoal, Ldª” e “C. Santos – Veículos e Peças, SA” um veículo de substituição mas o mesmo foi-lhe recusado;
- A reparação do veículo arrastou-se ao longo de quase 8 meses, o que se deveu à atuação de todas as rés; [...]
- Na perspetiva da autora, a atuação das rés não foi diligente, gerando a violação do seu direito de propriedade, imputando-lhes a prática de facto ilícito extracontratual, nos termos do disposto no artigo 483º, nº 1 do Código Civil, considerando ser solidária a responsabilidade de todas as demandadas nos termos do disposto nos artigos 490º e 497º do Código Civil;
- A autora solicitou, a título principal, a condenação solidária das rés no pagamento do valor global de € 22.859,05 e subsidiariamente, pediu a condenação da ré “Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA” no pagamento daquele valor.

A interpretação de tal articulado deverá ser efetuada de harmonia com os cânones interpretativos vigentes para a declaração negocial, atribuindo-lhe o sentido que um declaratário normal atribuiria, nos termos do disposto no artigo 236º do Código Civil, ex vi artigo 295º do mesmo código.

Ora, da leitura e interpretação da petição inicial, de harmonia com o princípio interpretativo exposto, conclui-se que a autora atribui às rés a prática de factos ilícitos (que enquadra juridicamente no domínio da responsabilidade extracontratual prevista nos artigos 483º e ss do Código Civil), considerando que a atuação de todas as rés, em conjunto e no concreto facto histórico que descreve naquele articulado, gerou os danos de que pretende ser compensado por via da presente ação. Danos esses que, de harmonia com o enquadramento jurídico que conferiu à causa, responsabilizam solidariamente todas as rés, nos termos do disposto nos artigos 490º e 497º do Código Civil.

Ora, tal enquadramento jurídico não se afigura isento de dúvidas e até de imprecisões. Desde logo, no artigo 90º da petição inicial, invoca a autora um direito de propriedade sobre o veículo que foi objeto do contrato de locação financeira descrito, contrato esse que por não estar ainda cumprido integralmente, e por não ter sido exercida ainda a opção de compra, não lhe confere tal direito – cfr. artigo 1º Dl 149/95, de 24 de junho, na sua atual redação. Porém, julgamos que se trata de lapso colmatado pela leitura global do articulado, do qual resulta que no período em que o veículo esteve imobilizado aguardando reparação, a autora, embora tenha suportado os encargos inerentes à locação financeira, pagando as rendas devidas,  não o pode afetar à sua atividade, o que gerou um dos danos que pretende ver ressarcidos por via da presente ação. Ou seja, mais do que a lesão do direito de propriedade (cuja aquisição naquele momento constituiria mera expetativa), a autora viu lesado, de forma prolongada, o direito ao uso da viatura, direito esse que lhe era conferido pelo contrato em questão.

Por outro lado, também o enquadramento do litígio efetuado pela autora no âmbito da responsabilidade extracontratual não se afigura isento de dúvidas, uma vez que os factos concretos que carreou para os autos poderão vir a merecer enquadramento diverso, quer no âmbito da responsabilidade do produtor, quer no domínio contratual.

Ou seja, sendo manifesto que parte da factualidade alegada, ao contrário do que defende a recorrente, pode bem vir a ser subsumida à responsabilidade contratual, o certo é que a opção final de enquadramento jurídico apenas na decisão de mérito poderá vir a ser efetuada. No atual estado dos autos, tendo por base a alegação da autora, não pode deixar de ser configurada a eventual existência de um concurso entre a responsabilidade contratual e extracontratual que ocorre quando, como refere Fernando A. Ferreira Pinto [O concurso entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual, Revista de Direito Comercial, www.revistadedireitocomercial.com pág. 3 e 4] “um único facto danoso, praticado por uma só pessoa, integra simultaneamente os pressupostos de aplicação dos regimes da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual, representando, pois, concomitantemente, a inexecução de uma obrigação em sentido estrito e a violação do genérico dever de neminem laedere. São duas, por conseguinte, as suas caraterísticas essenciais: por um lado, do ponto de vista subjetivo, lesante e lesado correspondem, respetivamente, ao devedor e ao credor de uma relação obrigacional, por outro lado, do ponto de vista objetivo, o dano aquiliano é consequência direta do inadimplemento da obrigação”.

De todo o modo, interpretada a causa de pedir e os pedidos formulados, não pode concluir-se que se verifique, entre ambos, uma incompatibilidade formal, reveladora de falta de absoluto nexo lógico, ou sequer que ambos se excluam reciprocamente.

Ao invés, independentemente da procedência final da pretensão formulada, não pode deixar de considerar-se que o pedido formulado (indemnização) decorre da causa de pedir invocada (facto ilícito gerador de responsabilidade civil), não se verificando a apontada contradição, sem embargo de, no momento próprio, o tribunal a quo optar por diverso enquadramento jurídico para o litígio. Efetivamente, como já referido se no nosso regime processual civil, fortemente influenciado pelo princípio do dispositivo, cabe às partes carrear para o processo os factos (pelo menos os essenciais) que integrarão o objeto do processo, e ao tribunal incumbe a apreciação das questões que lhe incumbe conhecer com base nos fundamentos jurídicos que considere aplicáveis. Julgamos ser esta a posição que se revela mais conforme ao atual regime processual civil, relativamente ao qual se deve afirmar o “princípio da prevalência do fundo sobre a forma” com, se necessário, o convite à correção de imprecisões da matéria de facto ou à sua complementação, com base nos poderes de gestão inicial do processo conferidos ao juiz, e sempre com a perspetiva da justa composição do litígio e, consequentemente, da efetiva tutela jurisdicional– cfr. artigos 6º, 7º, e 590º CPC e artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.

A este propósito, refere-se no acórdão da Relação de Évora de 17-06-2021 [Proferido no processo nº 112/20.4T8TBV-E1, disponível em www.dgsi.pt]:

No novo regime processual civil foi reforçada a ideia que sustentava que a atividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite, de forma que todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, sempre que seja possível corrigir as irregularidades ou suprir as omissões verificadas, de modo a viabilizar uma decisão de meritis (…) Efetivamente, a generalidade das exceções dilatórias são supríveis, quer por iniciativa do autor, quer por determinação oficiosa do Tribunal” e na mesma decisão, citando Abrantes Geraldes [Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. I, 2ª edição pág. 126, 132, 147 a 150 e 158] a propósito da falta de requisitos dos pedidosrefere-se que “(…) deve prevalecer o entendimento de «impor o aproveitamento da instância, em conjugação com todo um conjunto de princípios que sempre devem orientar o intérprete na busca das melhores soluções – (economia processual, prevalência da substância sobre a forma, eficiência do sistema, cooperação mútua) – exigem que a questão em análise seja resolvida de forma diversa daquela que deveria emergir do anterior CPC, ao nível do despacho saneador».

Importa, pois, determinar a revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que, julgando improcedente a exceção de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir, ordene a prossecução dos autos."

[MTS]