"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/02/2025

Jurisprudência 2024 (100)


Acção de divisão de coisa comum;
erro na forma de processo*


1. O sumário de RL 9/5/2024 (752/22.7T8SCR.L1-6) é o seguinte:

I – Para que a herança indivisa, comproprietária, seja parte no processo de divisão de coisa comum, devidamente representada por todos os herdeiros, exigem-se ainda outros dois pressupostos para que se possa falar na adequação da acção de divisão de coisa comum e afastar assim a verificação de erro na forma de processo:

- Conhecer-se os comproprietários;
- Conhecer-se a extensão do seu direito.

II – Sendo uma das RR. apenas herdeira de uma comproprietária, cuja herança não se mostra partilhada, não pode atribuir-se-lhe a qualidade de comproprietária nem fixar as quotas de todos os comproprietários, simultaneamente herdeiros, sem que se efectue primeiro a partilha (acresce estar ainda em causa a possível inoficiosidade da doação pela qual os restantes herdeiros se haviam tornado comproprietários); verifica-se assim o erro na forma de processo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Nos termos do art.º 1403.º do Código Civil, existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa, exercendo os comproprietários em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas – art.º 1405º do Código Civil.

Sendo vários os titulares do direito, o exercício conjunto do direito de propriedade está sujeito às regras e limitações previstas pelos artigos 1406º a 1411º do Código Civil.

Desta forma, sendo assim regulado e partilhado o exercício do direito, prevê a Lei no art.º 1412º, n.º1, do Código Civil que nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa.

Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1972, Vol. III, página 343 e 344, em anotação ao artigo citado, “(…) o direito de que trata o artigo 1412º é, no fundo, um direito de dissolução da compropriedade, que normalmente se opera mediante a divisão em substância da coisa, mas que também pode realizar-se através da partilha do seu valor (ou preço) (…) o direito potestativo do art.º 1412º distingue-se, entre todas as formas de dissolução da comunhão ou compropriedade, pelo facto de se dirigir contra todos os consortes e ter como fim prático a cessação da compropriedade (…) É exactamente para frisar a nota de que não se trata apenas de concretizar a quota do requerente na coisa comum, mas de dissolver a relação de compropriedade existente entre todos os consortes, que os tribunais italianos acentuam o carácter universal da acção de divisão da coisa comum (…) No processo terão que intervir todos os consortes, seja na posição de autores, seja na de réus “.

Estipula o art.º 1413º do Código Civil que:

“1. A divisão é feita amigavelmente ou nos termos da lei de processo.
2. A divisão amigável está sujeita à forma exigida para a alienação onerosa da coisa.”

Em consonância com esta disposição, encontra-se regulado nos artigos 925.º a 930.º do Código de Processo Civil o processo de divisão de coisa comum, aqui em causa.

Assim, não há dúvida que este processo tem como pressuposto a compropriedade sobre um bem (ou a comunhão de quaisquer outros direitos na medida em que lhe sejam aplicáveis as regras da compropriedade por força do art.º 1404.º do Código Civil) e como finalidade a efetivação do direito à divisão que o art.º 1412.º do Código Civil confere aos comproprietários nos casos de divisibilidade ou indivisibilidade material da coisa.

A acção de divisão de coisa comum é uma acção de natureza real porquanto visa a modificação subjetiva e objetiva do direito real complexo em que se traduz a compropriedade.

Nos termos do art.º 925º do Código de Processo Civil: “Todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respetivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas.”

Posto que as partes na acção de divisão de coisa comum têm de ter a qualidade de comproprietários (para o que aqui interessa, deixando agora de lado os casos do art.º 1404º do Código Civil) tem sido discutido na doutrina e jurisprudência a possibilidade de uma dessas partes se tratar de uma herança indivisa.

Na herança os herdeiros não são titulares de um direito de propriedade comum sobre uma coisa, mas antes contitulares do direito à herança que recai sobre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará; “(…) enquanto não se fizer a partilha, os herdeiros têm sobre os bens que constituem a herança indivisa um direito indivisível, recaindo tal direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta(…) A contitularidade do direito à herança implica um direito a uma parte ideal desta considerada em si mesmo e não sobre um dos seus bens que a compõem” – conf. Luís Filipe Pires de Sousa, in Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2016, Almedina, pág. 19.

Nessa medida, não se tratando de coisa comum de que sejam comproprietários, não podem os herdeiros instaurar acção de divisão de coisa comum para dividir prédio que integre a herança, uma vez que só após a atribuição dos bens em partilha é que os herdeiros podem recorrer à acção de divisão de coisa comum.

Desta forma, é pacífico que a forma de dividir um prédio que integre uma herança é através do processo de inventário.

Posto isto, pode suceder que um dos comproprietários seja uma herança indivisa.

Nesse caso, acompanha-se a jurisprudência que entende que esta circunstância não obsta à instauração da acção de divisão de coisa comum, aplicando a doutrina defendida por Luís Filipe Pires de Sousa: “pode ocorrer que a herança indivisa seja, ela própria, comproprietária (a par de terceiros) de um imóvel” e, nesse caso “sendo interposta uma acção de divisão de coisa comum de tal imóvel por terceiro, antes da partilha, deverão ser demandados todos os herdeiros, os quais agirão como representantes da herança e não em nome próprio”. [...]

Feito este enquadramento, vejamos se no caso ocorre erro na forma de processo como se decidiu na Sentença proferida.

O erro na forma de processo, previsto pelo art.º 193º do Código de Processo Civil, consiste na utilização pelo autor de uma forma processual inadequada para fazer valer a sua pretensão.

Para aferir da verificação deste vício é imprescindível que se analise o pedido e a causa de pedir que o sustenta.

Assim o refere o Conselheiro Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, págs. 398 e 399: “O erro na forma de processo consiste em ter o autor usado de uma forma processual inadequada para fazer valer a sua pretensão (…) É pela pretensão que se pretende fazer valer, e portanto, pelo pedido formulado, que se há-de aquilatar do acerto ou do erro do processo que se empregou...”; Mais adianta Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, vol. I, pág. 247 que “…a forma de processo escolhida pelo autor deve ser a adequada à pretensão que deduz e deve determinar-se pelo pedido que é formulado e, adjuvantemente, pela causa de pedir”.

Concluindo-se que se verifica uma situação de erro na forma de processo, a consequência é a nulidade, tal como prevista no artigo 196.º do Código de Processo Civil, a ser conhecida pelo Juiz no despacho saneador – art.º 200º do Código de Processo Civil.

Revertendo ao caso concreto.

Sendo que à partida não repugna que a herança indivisa, comproprietária, seja parte no processo de divisão de coisa comum, devidamente representada por todos os herdeiros, da jurisprudência que supra se citou resultam ainda outros dois pressupostos para que se possa falar na adequação da acção de divisão de coisa comum e afastar assim a verificação de erro na forma de processo:

- Conhecer-se os comproprietários;
- Conhecer-se a extensão do seu direito.

Ora, são estes precisamente os pressupostos que falecem no caso concreto, à luz da p.i. apresentada e analisada a pretensão da Requerente, como não pode deixar de se fazer na análise do erro na forma de processo.

É que a A. não intentou a acção contra a herança indivisa de MF..., representada pelas partes na causa.

A A. intentou a presente acção contra os restantes herdeiros de MF…, sendo os três primeiros RR. igualmente comproprietários.

Mas a terceira R., S..., é apenas herdeira de MF….

No entanto, a A. vem dizer na p.i. que “O que significa que, a Autora e os Réus E... e J..., são titulares de ¼ do prédio supra identificado, a que acresce 1/16 avos da herança da falecida MF...(1/4 + 1/16), correspondendo o direito de cada um dos referidos titulares a 5/16 avos do prédio.

Já, por seu turno, o direito da Ré, S..., corresponde 1/16 avos do prédio, sendo esta a sua quota parte.”

Ora, não pode a A. atribuir a quota parte da propriedade do imóvel às partes nesta acção nos termos em que fez.

No caso dos autos e observada a pretensão da A., a fim de se apurar quem são efectivamente os comproprietários do imóvel (qualidade que a R. S... não tem, não sendo comproprietária de 1/6 do imóvel, mas apenas herdeira, juntamente com os seus irmãos, as restantes partes nestes autos, da comproprietária falecida MF…) bem como a extensão da sua quota parte na propriedade do imóvel (que neste momento para a A. e os dois primeiros RR. é apenas e tão somente de ¾ para todos e não de 5/16 avos para cada um como a A. afirma) é necessário que se proceda previamente à partilha da herança de MF….

Só após a partilha é que será possível conhecer a identidade de todos os comproprietários e a extensão das suas quotas, que pode ou não coincidir com o que a A. pretende e invoca na p.i.

Acresce que a extensão da sua quota parte pode ser relevante para se aferir da divisibilidade ou indivisibilidade do prédio em causa, para o que, aliás e como notam os RR. S...e V..., poderá a A. ter que demonstrar o cumprimento das exigências administrativas que ao caso sejam exigidas para o fraccionamento do imóvel, em caso de ser possível a divisão (vindo a A., aliás, em sede de esclarecimentos solicitados pelo Tribunal a referir: “…a requerente entende que, poderia ser solicitado à Câmara Municipal de … a legalização das construções existentes, com divisão do prédio ou constituição de propriedade horizontal e adjudicação de cada fracção ao respectivo titular…”.

Finalmente, atente-se ainda na invocação de inoficiosidade da herança efectuada pelos RR. S...e V..., questão que apenas em sede de Inventário cumpre apreciar e que pode efectivamente ter repercussões na titularidade do direito das restantes partes, uma vez que a quota parte (1/4) que arrogam caber-lhes lhes adveio de doação em vida de MF…, não tendo a R. S... sido contemplada."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, a questão suscitada pela acção pendente não se reconduz a qualquer erro na forma de processo. 

Importa recordar que este erro ocorre quando a acção segue uma forma de processo que não é adequada e quando há uma outra forma que é a apropriada para a acção. Aplicando ao caso concreto: dado que à acção de divisão de coisa comum corresponde um processo especial, entender que a acção não é admissível por erro na forma de processo implica reconhecer que há uma outra forma de processo especial que seria a adequada ou que, em última análise, a acção poderia seguir a forma de processo comum. 

Ora, os problemas que são suscitados pela acção vão muito para além do recurso a uma forma de processo alternativa à que foi utilizada pelo autor.

MTS