Encontrando-se preenchidos os pressupostos gerais de admissibilidade de recurso e enquadrando-se o acórdão recorrido no n.º 1 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, admite-se a revista, com efeito meramente devolutivo (n.º 1 do artigo 676.º do Código de Processo Civil), não sendo caso de “revista excepcional” e, portanto, de envio do processo à Formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.
Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que “a dupla conformidade de decisões da 1.ª Instância e da Relação, nos termos definidos pelo n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, não constitui obstáculo à apreciação da aplicação feita pela Relação, seja dos requisitos exigidos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil para a impugnação da decisão de facto da 1ª Instância, seja dos poderes que são conferidos à 2ª Instância pelo artigo 662.º, no recurso de revista (“normal”, por oposição à “revista excepcional”, que tem requisitos específicos de admissibilidade – artigo 672.º do Código de Processo Civil e pressupõe a ocorrência de dupla conformidade das decisões das instâncias). Observa-se frequentemente que, quanto a uns e a outros, não existem duas decisões, o que, por si só seria suficiente para excluir a eventualidade de dupla conforme” (excerto retirado de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Julgamento de facto em 1.ª e 2:ª Instâncias, Jurismat, n.º 12, 2020, pág. 203 e segs., pág. 216).
5. Como também se recordou em outro acórdãos – por tratar-se de questão repetidamente colocada ao Supremo Tribunal de Justiça –, seguindo-se aqui o acórdão de 11 de Julho de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 121/06.6TBOBR.P1.S1 «Como o Supremo Tribunal de Justiça já por diversas vezes observou (cfr. por exemplo o acórdão de 4 de Novembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 7006.05.1TBBRG.G1.S1 e jurisprudência nele citada, e ainda os acórdãos de 29 de Novembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 39/2002.E1.S1 ou de 30 de Junho de 2011, www.dgsi.pt, proc. 6450/05.9TBSXL.L1.S1), “a impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão. Como se diz no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), ‘a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. (…) Nesse sentido, impôs-se ao recorrente um ‘especial ónus de alegação’, no que respeita ‘à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação’, em decorrência ‘dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta. Daí que se estabeleça’, continua o mesmo preâmbulo, ‘no [então] artigo 690º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto. Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo nº 6 do [então] artigo 705’. O ónus especificamente criado foi, assim, justificado pela necessidade de impor ao recorrente uma ‘delimitação do objecto do recurso’ e uma ‘fundamentação’, repete-se, tendo em conta o âmbito possível do recurso da decisão de facto, tal como foi concebido (cfr. acórdãos de 9 de Outubro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 07B3011, ou de 18 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2998). O artigo 690º-A do Código de Processo Civil foi posteriormente alterado pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto. Continuou a incumbir ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto proferida em primeira instância, para o que agora releva, ‘especificar (…) os concretos pontos de facto que [o recorrente] considera incorrectamente julgado’ e ‘os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida’. Mas, se ‘os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas [tiverem] sido gravados’, passou a caber-lhe, ‘sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522ºC’.O artigo 690º-A veio a ser revogado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que em sua substituição acrescentou ao Código o artigo 685º-B, mantendo os ónus referidos (indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que implicassem decisão diversa da proferida), mas determinando que, sendo possível ‘a identificação precisa e separada dos depoimentos’, que cabe ao recorrente, ‘sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição’.
Como também se teve já a ocasião de observar (cfr. “Notas sobre o novo regime dos recursos no Código de Processo Civil”, in O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina para a compreensão do novo Código de Processo Civil, caderno I, Centro de Estudos Judiciários, Dezembro de 2013, pág. 395 e segs)., a reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis, aliás modificado significativamente pouco tempo antes, pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto; mas teve a preocupação de ‘conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto’, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República, de cuja aprovação veio a resultar o actual Código de Processo Civil, disponível em www.parlamento.pt .
Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente:
– manteve a indicação obrigatória ‘dos concretos pontos de facto’ que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),
– manteve o ónus da especificação dos ‘concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida’ (al.b),
– exigiu ao recorrente que especificasse ‘a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas’ (al. c),
Cumpridos os requisitos assim definidos para a delimitação e fundamentação da impugnação da decisão de facto, então caberá à Relação julgar o recurso, nos termos amplos acima referidos.”
Estes ónus, no entanto, têm que ser entendidos à luz da respectiva função, como se recorda no acórdão de 29 de Outubro de 2015 deste Supremo Tribunal, www.dsgi.pt, proc. nº 233/09.4TBVNG.G1.S1, não devendo tornar-se em requisitos desproporcionadamente exigentes, tendo em conta o objectivo, em primeiro lugar, de delimitação e fundamentação do recurso e, em segundo lugar, de permitir ao tribunal de recurso encontrar sem dificuldade os pontos dos elementos de prova gravados que o recorrente tem por mal apreciados: “Percorrendo, deste modo, os regimes processuais que têm vigorado quanto a este tema, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes; e um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes.(…) o incumprimento do referido ónus secundário, tendente apenas a facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contem a gravação da audiência, deverá ser avaliado com muito maior cautela: é que, por um lado, o conceito usado pela lei de processo (exacta indicação das passagens da gravação) é, até certo ponto, equívoco, pressupondo a necessidade de distinguir entre a (insuficiente) mera indicação e a indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados; por outro lado, por força do princípio da proporcionalidade, não parece justificável a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa – não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado (como ocorrerá normalmente nos casos, como o dos autos, em que tal indicação do recorrente das passagens da gravação, é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso)».
Finalmente, importa também lembrar (cfr. acórdão de 8 de Março de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 656/20.8T8PRT.L1.S1 « (…) que se discutiu, ainda no domínio da lei anterior ao Código de Processo Civil de 2013 e após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 39/95, se, ao apreciar o recurso da decisão de facto sem imediação, mas com base no registo de prova que, em primeira Instância, havia sido produzida e apreciada de acordo com os princípios da oralidade e da imediação, a Relação se devia limitar a verificar a congruência entre o julgamento de facto impugnado e a respectiva fundamentação ou, diferentemente, se lhe cabia decidir de acordo com a convicção a que chegasse, nos termos do princípio da livre apreciação da prova. A jurisprudência que veio a formar-se no Supremo Tribunal de Justiça foi neste último sentido (…). Cfr. apenas como exemplo, os acórdãos de 15 de Maio de 2008, www.dgsi.pt, proc. n.º 08B1205, de 12 de Maio de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 13951/16.1T8LSB.L2.L1.S2, de 17 de Dezembro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 603/17.4T8LSB.L1.S1 ou de 16 de Dezembro de 2020, proc. n.º 4016/13.9TBVNG.P1.S3: “É hoje jurisprudência seguida por este Supremo que a reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte do tribunal de 2.ª instância, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”.»
Na verdade, o objectivo do Código de Processo Civil de 2013 de “conferir maior eficácia à 2.ª Instância para o exame da matéria de facto”, a que se fez já referência, não se esgotou na ampliação dos seus poderes, “revelou-se igualmente na consagração expressa da regra da livre apreciação da prova pela Relação, quando julga o recurso sobre a matéria de facto – n.º 5 do artigo 607.º, aplicável à apelação por força do disposto no artigo 663.º, n.º 2 (cfr. por exemplo o acórdão n.º 588/12.3TBPVL.G2.S1).” – mesmo acórdão de 8 de Março de 2022."
[MTS]