"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/05/2024

Jurisprudência 2023 (163)


Processo de inventário;
articulado superveniente; preclusão


1. O sumário de RC 12/9/2023 (38/21.4T8CNF-A.C1) é o seguinte:

I – Em processo de inventário apresenta-se como intempestivo o requerimento apresentado pelo cabeça de casal no sentido de serem efetuadas diligências tendentes à identificação de contas bancárias onde se mostrem depositados valores que alegadamente integram o património comum do casal, efetuado depois de proferida a decisão a que se refere o art. 1110.º, n.º 1, a) do CPC – resolução das questões suscetíveis de influir na determinação dos bens a partilhar.

II – Apesar de notoriamente vocacionado para o processo comum, não repugna a admissibilidade, em geral, do regime constante do art. 588.º do CPC (apresentação de articulado superveniente), na tramitação do processo especial de inventário (cfr. art. 549.º, n.º 1 do CPC), ainda que com as necessárias adaptações.

III – A apresentação desse articulado superveniente, com o objetivo de ampliar a relação de bens por parte do cabeça-de-casal, é intempestiva quando a sua dedução tenha ocorrido depois do encerramento da discussão da fase processual destinada à determinação dos bens a partilhar.

IV – Para efeitos do disposto no art. 588.º, n.ºs 4 e 5 do CPC é exigível, sob pena de indeferimento liminar, a alegação quanto à data em que a parte tomou conhecimento dos factos, e a indicação da prova a esse propósito, não podendo o tribunal suprir essas omissões mediante o convite ao seu suprimento, efetuado ao abrigo do princípio da cooperação.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O despacho recorrido tem o seguinte teor:

BB, cabeça de casal no presente inventário para separação de meações, veio requerer a realização de diligências probatórias adicionais, tendo em vista aferir que contas bancárias eram tituladas pelo interessado AA à data da decretação do divórcio. Para tanto, alega ter agora obtido “informações muito credíveis de familiares” de que o ex-cônjuge era titular de várias contas bancárias, circunstância que reputa de “absolutamente normal” face à profissão por este exercida.

Notificado para pronunciar quanto à pretensão da cabeça de casal, o interessado AA nada disse.

Cumpre apreciar e decidir.

É consabido que o quadro processual do regime do inventário na redacção dada pela Lei n.º 117/2019, de 13/09 introduziu amplas alterações ao paradigma pregresso, sendo uma delas a existência de fases processuais estanques, numa lógica de auto-responsabilização das partes. Aos desideratos de celeridade e de simplificação processual inerentes à reforma do processo de inventário, o legislador fez corresponder um princípio de auto-responsabilidade das partes, instituindo um sistema de preclusões que, concorrendo embora para uma marcha processual mais ágil, onera as partes com o exercício tempestivo das faculdades que adjectivamente lhes são conferidas.

Sabendo-se que a preclusão não encontra assento legal expresso, configura um instituto de criação doutrinal e jurisprudencial, radicado no ónus da concentração da defesa aplicável à contestação, cf. art. 573.º do CPC. Na síntese de Miguel Teixeira de Sousa, “(…) a preclusão pode ser definida como a inadmissibilidade da prática de um acto processual pela parte depois do prazo peremptório fixado, pela lei ou pelo juiz, para a sua realização” – “Preclusão e caso julgado”, Blog do IPPC, 2016, p. 1.

Nas esclarecedoras palavras de Pedro Pinheiro Torres, a propósito do ónus de alegação e prova a cargo do cabeça de casal, “[p]rocurou valorizar-se o processo de partes, configurado pelos articulados, o que, de modo significativo, se traduz na imposição ao requerente do inventário, quando este se arrogue ser titular (por direito ou obrigação legal) do exercício das funções de cabeça de casal, de um ónus de alegação e prova em tudo semelhante ao cometido a um qualquer autor numa ação judicial, passando a competir-lhe, nos termos do artigo 1097.º do CPC, trazer aos autos os elementos de identificação e prova suficientes para que sejam conhecidos a causa de pedir (abertura de sucessão) a sua legitimidade e os demais interessados, todos os elementos que entenda poderem influenciar a partilha, e a relação dos bens e dos créditos e dívidas da herança, deste modo se reunindo naquela peça processual diversos actos até aqui dispersos” - Notas Breves de Apresentação do Processo de Inventário na Redacção dada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, Inventário: o novo regime, Centro de Estudos Judiciários, 2020, p. 21.

Também Carlos Lopes do Rego deixa clara a mudança de paradigma, sublinhando que é possível destrinçar, actualmente, uma fase de articulados, que abrange a fase inicial (espoletada com um requerimento que, quando apresentado pelo cabeça de casal, assume a natureza de petição inicial) e as fases de oposições e de verificação do passivo, “em que as partes, para além de requererem a instauração do processo, têm obrigatoriamente de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respetivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, ativo e passivo, que constitui objeto da sucessão” – “A recapitulação do processo de inventário”, Julgar Online, Dezembro de 2019, p. 9.

A marcha processual do processo de inventário caracteriza-se, assim, por fases distintas e estanques, que fluem inexoravelmente para a realização da partilha, e entre as quais não há, nem pode haver, vasos comunicantes. São elas: (i) a fase dos articulados, que tem por elemento axial a relação de bens e a declaração de compromisso de honra, (ii) a fase de oposição, impugnação e reclamação, (iii) o despacho de saneamento, forma à partilha e agendamento da conferência de interessados, (iv) conferência de interessados e, finalmente, (v) mapa de partilha e sentença homologatório.

É através deste recorte processual que o legislador pretende que se estabilizem, na fase de saneamento do processo, todas as questões que possam influir na partilha, quais sejam a identificação das pessoas que a ela concorrem, os respectivos quinhões ideais e o acervo patrimonial a partilhar. Daí que, uma vez proferidos os despachos previstos nos n.ºs 1 e 2 do art. 1110.º do CPC, não seja admitida a reapreciação das questões de facto e direito sobre as quais eles incidiram, sendo a interposição de recurso o meio processualmente próprio para reagir a tais decisões, como previsto no art. 1123.º, n.º, 2, al. b).

São apodícticas as palavras de Pedro Pinheiro Torres a este propósito: “Após o termo do prazo resultante da notificação prevista na al. b) do n.º 1 do art. 1110.º, o juiz deverá proferir um despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada interessado e designando dia para a realização da conferência de interessados. Com a previsão da prolação dos despachos enunciados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 1110.º do CPC o legislador procurou dotar os interessados do conhecimento dos termos (fixados pelo Juiz) em que deverão intervir na Conferência de Interessados, quer relativos aos bens a partilhar ou aos encargos da herança, quer os relativos ao quinhão ideal de cada um na herança, isto é, à “percentagem” com que cada um concorre à mesma, independentemente dos bens que, em concreto, poderão vir a preencher esses quinhões.

Com estas decisões pretende-se estabilizar, nesta fase do saneamento, as questões de facto e de Direito suscetíveis de interferir no curso da “partilha” propriamente dita, excetuando deste o conhecimento de eventual incidente de verificação e redução de inoficiosidades, que deve ser suscitado até ao momento do início das licitações e sobre o qual mais abaixo será feita uma referência mais detalhada.

Como reforço dessa proposta de estabilidade – e, naturalmente, da força dessas decisões no processo – foi consagrada, na alínea b) do n.º 1 do artigo 1123.º do CPC a possibilidade de apelação autónoma das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha, admitindo-se, mesmo, no n.º 3 desse artigo que o Juiz poderá atribuir efeito suspensivo do processo ao recurso interposto daquelas decisões se a questão a ser apreciada puder afetar a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas na conferência de interessados.

Com esta previsão de recorribilidade, cria-se, naturalmente, a força do trânsito em julgado daquelas decisões, quando não impugnadas, retirando, assim, às partes, a possibilidade de virem a suscitar, posteriormente, as questões conhecidas nas mesmas, como se de meras decisões interlocutoras se tratasse” – cf. “Notas Breves (…)” cit., p. 26.

Tendo presentes estas premissas, fácil é concluir que a realização das diligências probatórias requerida pela cabeça de casal carece de fundamento legal, por ostensivamente extemporânea.

Com efeito, no dia 14/01/2023 foi proferida sentença relativa à reclamação à relação de bens deduzida pelo interessado AA, o que equivale dizer que foram resolvidas todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, sem prejuízo daquelas quanto às quais as partes foram remetidas para os meios comuns. Logo, a realização de diligências probatórias adicionais com vista à identificação de outros saldos bancários que, eventualmente, pudessem integrar o património comum, implicaria a reapreciação de questões relativamente às quais o tribunal já se pronunciou e, decorrentemente, quanto às quais está esgotado o seu poder jurisdicional (cf. art. 613.º, n.º 1 do CPC). Numa palavra, está encerrada a segunda fase do processo, i.e., a fase de oposição, impugnação e reclamação.

Sempre se diga que, ainda que não tivesse sido proferida decisão quanto à reclamação à relação de bens, sempre a pretensão da cabeça de casal estaria votada ao insucesso. Isto porque, pese embora pudessem ser alegados factos objectiva ou subjectivamente supervenientes, nos termos consignados no art. 588.º do CPC, esta segunda modalidade de superveniência (como é o caso da invocada) depende da prova de que a parte apenas tomou conhecimento dos mesmos após o termo dos prazos previstos nos artigos 1104.º e 1105.º. Ora, uma vez que a cabeça de casal não indicou qualquer meio de prova da superveniência que alega, não poderia ser admitida a introdução de elementos factuais inovadores. Mal se compreende, de resto, que, sendo conhecedora da profissão do interessado, carecesse da informação de um familiar para requerer as informações bancárias ora solicitadas, já que as poderia ter requerido no momento processualmente próprio.

Em face do exposto, e sem necessidade de considerações adicionais, indefere-se o requerido pela cabeça de casal”.

Ou seja, no despacho recorrido entendeu-se, para fundamentar o indeferimento da realização das diligências pretendidas, que

- à data da formulação do requerimento se encontrava encerrada a fase de oposição, impugnação e reclamação; e

- não ter sido produzida prova da superveniência do conhecimento (quanto à existência de outras contas tituladas pelo cointeressado à data do divórcio).

Já a recorrente defende nas suas alegações de recurso que o requerimento é tempestivo na medida em que foi apresentado antes de ter sido proferido o despacho a que se refere o art. 1110.º, n.º 2 do CPC e que, a ser exigível a apresentação de prova quanto à superveniência do conhecimento, cabia ao Sr. Juiz convidar a recorrente a apresentar essa prova, ao abrigo do princípio da cooperação.

Vejamos:

A interessada, ora recorrente, desempenha no processo de inventário as funções de cabeça de casal, sendo que o requerimento inicial foi apresentado pelo seu ex-marido.

Competia-lhe, como tal, após a citação, apresentar a relação de todos os bens sujeitos a inventário, a incluir a relação dos créditos e das dívidas (cfr. art. 1097.º, n.º 3, c), 1098.º e 1102.º, n.º 1, b) do CPC).

Na relação de bens que apresentou (em 19 de maio de 2021 – ref. 4688313), e no que se refere a saldos de contas bancárias, a cabeça de casal apenas relacionou o montante depositado no Banco 1... na conta n.º ...39 (verna n.º 7 – dinheiro/frutos civis), no montante de € 16.315,83.

Nada mais referiu quanto à possível existência de outras bancárias onde estivesse depositado dinheiro ou valores pertença do casal, nem requereu a realização de qualquer diligência no sentido de verificar a sua hipotética existência.

O interessado apresentou reclamação quanto à relação de bens (a 30.06.2021 – ref.- 4765004), a que a cabeça de casal respondeu. [...]

Após produção de prova, a 14.01.2023 (ref. 91817798), foi proferida decisão atinente à reclamação, na parte que ainda subsistia, julgando-a improcedente, com a manutenção da verba n.º 7 na relação de bens (embora com redução do valor para € 15.404,86).

No final dessa decisão o Sr. Juiz ordenou a notificação dos interessados para efeitos do disposto no art. 1110.º, n.º 1, b) do CPC (proporem a forma da partilha), e bem assim a cabeça de casal para juntar nova relação de bens atualizada em função do decidido quanto à reclamação à relação de bens.

Foi então, decorrido mais de um mês após a prolação dessa decisão, em 13.02.2023, que a cabeça de casal veio formular o requerimento em causa, com o óbvio propósito de ampliar o objeto da partilha a créditos correspondentes ao saldo - à data do divórcio - de outras contas bancárias tituladas pelo interessado.

Contudo, esse requerimento apresenta-se como manifestamente intempestivo, por não ter sido formulado aquando da apresentação da relação de bens. [...]

Resta aferir se o requerimento podia ter sido enquadrado no âmbito do art. 588.º do CPC e se, nesse âmbito, incumbia ao tribunal o dever de convidar o cabeça-de-casal a suprir a falta de indicação da prova quanto à superveniência.

Apesar de notoriamente vocacionado para o processo comum, não repugna a admissibilidade, em geral, do regime constante do art. 588.º do CPC (articulado superveniente), ainda que com as necessárias adaptações, na tramitação do processo especial de inventário (cfr. art. 549.º, n.º 1 do CPC).

Todavia, ainda que no caso estivéssemos na presença de factos supervenientes - na justa medida em que relevam para efeitos da definição da massa a partilhar e foram conhecidos depois de findar o prazo para a prática do ato de relacionar os bens – o recurso a este mecanismo processual é intempestivo, por a sua dedução ter ocorrido depois do encerramento da discussão quanto à determinação dos bens a partilhar.

Na verdade, o requerimento em causa foi apresentado depois da decisão relativa a essa fixação e, consequentemente, depois de formado caso julgado formal sobre a mesma.

Na fase presente, os autos incluem apenas a determinação da forma da partilha, a conferência de interessados e a sentença da partilha, que não comportam a possibilidade de discussão sobre o património a partilhar, não tendo nenhum desses atos as finalidades correspondentes à audiência prévia ou à audiência final.

Mas, ainda que assim não se entendesse, e mesmo que se ignorassem também os termos imprecisos com que foi formulado [---], sem ao menos mencionar a fonte do conhecimento, nunca o requerimento podia ser admitido porquanto a recorrente não concretizou a data em que tomou conhecimento dos factos, nem ofereceu prova a esse propósito, inviabilizando, desde logo, a apreciação da tempestividade para efeitos do disposto no art. 588.º, n.º 3 do CPC.

E, face ao que resulta diretamente do art. 588.º, n.ºs 4 e 5 do CPC, essas faltas implicam a rejeição liminar do requerimento, não se justificando qualquer convite ao seu suprimento, efetuado ao abrigo do princípio da cooperação (art. 7.º do CPC [Como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, pág. 615) “Que, na falta de prova da superveniência, o articulado deve ser rejeitado, é uma decorrência do dever judicial de rejeição por verificação da apresentação do articulado fora de prazo. Só assim não seria se, ao invés, a apresentação fora do prazo não fosse oficiosamente cognoscível”]).

Na verdade, não impende sobre o tribunal qualquer dever de atuação oficiosa neste domínio, sendo que, como se refere no Ac. do TRG de 23.05.2019 (processo 1345/18.9T8CHV-A.G1 [---]) “o exercício do dever de diligenciar pelo apuramento da verdade e justa composição do litígio, não comporta uma amplitude tal que o autorizem a colidir quer com o princípio da legalidade e da tipicidade que comanda toda a tramitação processual, quer com outros princípios fundamentais como o do dispositivo, da autorresponsabilidade das partes e o da preclusão”."

[MTS]