"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/05/2024

Jurisprudência 2023 (176)


Recurso de revisão;
âmbito de aplicação; factos novos


1. O sumário de RL 24/10/2023 (10936/18.7T8LSB-A.L1-7) é o seguinte:

I- Nos termos da al. c) do Artigo 696º do Código de Processo Civil, o documento que fundamenta o recurso de revisão servirá para provar factos oportunamente alegados na primeira ação (cuja prova sucumbiu), mas já não para reconfigurar a causa de pedir da primeira ação com adução de novos factos posteriores à decisão. O recurso de revisão não é instrumento para alterar a causa de pedir, fora casos legalmente permitidos (cf. Artigo 265º, nº1, do Código de Processo Civil).

II- Visando o recurso extraordinário de revisão corrigir errores in procedendo ou errores in iudicando, o mesmo tem por parâmetro temporal a data em que foi proferida a primeira decisão, extravasando o âmbito do recurso de revisão a adução de novos e supervenientes factos inexistentes à data em que foi proferida a primeira decisão e que, em abstrato, seriam idóneos a reverter o sentido da decisão.

III- Visando os documentos que o requerente junta a prova de factos novos e objetivamente supervenientes e não a prova factos oportunamente alegados na petição da ação anterior, cuja prova se malogrou, deve o recurso de revisão ser liminarmente indeferido.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Por decisão singular de 21.9.2023, o relator proferiu despacho de indeferimento liminar deste recurso de revisão.

Notificado dessa decisão, veio o recorrente reclamar nos termos do Artigo 643º do Código de Processo Civil, tendo a reclamação sido convolada em reclamação para a conferência.

Na sua reclamação, conclui o recorrente nos seguintes termos:

«A – Vem o Requerente reclamar, por não aceitar, nem concordar com o despacho de indeferimento, pelas razões e fundamentos seguintes:

B – O senhor Desembargador, indeferiu liminarmente o recurso de revisão, baseado em três pressupostos, que, no seu entender, não ocorreram para haver fundamento para o recurso de revisão, invocado pelo requerente:

C – 1. que o recurso extraordinário, tem o “mesmo por parâmetro temporal a data em que foi proferida a primeira decisão, extravasando o âmbito do recurso de revisão a adução de novos e superveninetes factos inexistentes à data em que foi proferida a primeira decisão e que, em abstracto seria idóneos a reverter a decisão.”

D – 2. O novo documento” não pode implicar uma nova causa de pedir ... , nem referir – se a factos não alegados na anterior acção”, questão que está interligada com a seguinte, que refere;

E – 3. “ No acórdão de 2018, julgou – se improcedente a apelação com um duplo fundamento: o aí 1º e 2º requeridos não foram parte no pacto de preferência e além do mais, só há incumprimento do pacto de preferência com a efectiva venda do imóvel e não apenas a realização do contrato promessa de compra e venda.”

F - Quanto ao primeiro argumento, referido em C – 1. O art.º 696º, al. c) do CPC, refere que a decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão, quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento ou de não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que só por si seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida. [...]

H – Na lei em parte alguma refere que o parâmetro temporal é a data em que foi proferida a primeira decisão.

I – A própria Lei, a Doutrina e a Jurisprudência, também na aplicação deste recurso, em caso algum vêm balizar, como o Exmo. Senhor Desembargador o fez, que “tem por parâmetro temporal a data em que foi proferida a primeira decisão.” [...]

M – O presente recurso de revisão foi apresentado após o Recorrente ter conhecimento do dito documento que invocou, uma escritura pública, porque só neste momento foi realizada.

N – No nosso modesto entender o senhor Juiz Desembargador não aplicou a Lei, pois nesta em parte alguma se refere ao parâmetro temporal da data em que foi proferida a primeira decisão e, interpretando desse modo, está a violar a mesma.

O – Quanto ao segundo argumento do senhor Juiz Desembargador de indeferir liminarmente, “o novo documento não pode implicar uma nova causa de pedir, nem referir – se a factos não alegados na anterior acção”.

P - O senhor Juiz Desembargador refere “que o requerente pretende é reabrir um processo findo em que decaiu com base em factos objectivamente supervenientes, a saber a celebração de contratos de compra e venda e de hipoteca, em Junho de 6.6.2023. Os documentos que junta destinam – se a provar factos novos e objectivamente supervenientes e não a provar factos oportunamente alegados na petição da acção anterior, cuja prova se malogrou”.

Q – O senhor Juiz Desembargador, vem designar como factos novos e objectivamente supervenientes, quando tal não aconteceu.

R – Foi por não haver ainda escritura pública que os anteriores senhores Juízes Desembargadores referem e se encontra transcrito a fls. 14 do Acórdão : “A celebração de um contrato promessa de compra e venda, desprovido de eficácia real, com vista à alienação do bem a terceiro, sem dar a possibilidade do preferente exercer o seu direito, não verifica o incumprimento do pacto de preferência. Só a celebração do contrato definitivo, nessas condições verifica esse incumprimento.” [...]

CC – A existência da posterior venda não “é um facto totalmente novo”. Tal facto sempre foi considerado como possível e presumível, acontece que são [sic] agora é que veio a acontecer, mas sempre foi equacionado, sendo a razão do procedimento cautelar, para acautelar os interesses do requerente, respeitante ao seu crédito. [...]

Termos em que deve ser admitida a presente Reclamação, deferida e em consequência deve o recurso ser admitido e provido, com as legais consequências

Assim se fazendo a costumeira Justiça.»

Contra-alegou propugnando pela improcedência da apelação.

QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial. [Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito. [Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140. [...]]

Nestes termos, a questão a decidir consiste em aferir se deve manter-se o despacho de indeferimento liminar do recurso de revisão ou se, pelo contrário, deve este prosseguir.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir. [...]

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Nos termos do Artigo 696º, al. c), do Código de Processo Civil, a decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

Conforme se refere em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 896:

«O acesso ao recurso de revisão ao abrigo da al. c) apenas pode ser permitido nos casos em que não tenha sido objetiva ou subjetivamente possível à parte apresentar o documento a tempo de interferir no resultado declarado na decisão revidenda (cf. STJ 19-12-18, 179/14). Não basta que o documento legitimador da revisão tenha a virtualidade de abalar a matéria de facto fixada na decisão recorrida, devendo ser de tal modo antagónico com aquela, no seu alcance probatório, que justifique, sem qualquer relação com a prova produzida no processo, a decisão em sentido contrário (requisito da suficiência) (STJ 14-1-21, 84/07, STJ 11-11-20, 8250/15, STJ 19-10-17, 181/09, STJ 13-7-10, 480/03, STJ 17-9-09, 09S0318, RG 10-10-19, 465/15, RL 6-7-17, 2178/04). Uma sentença judicial não pode servir de fundamento a recurso extraordinário de revisão por não poder ser qualificada como um documento (RL 10-4-18, 2020/12).»

Todavia, o novo documento não pode implicar uma nova causa de pedir (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.3.1973, BMJ nº 194, pp. 170-172) nem referir-se a factos não alegados na anterior ação (cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3.3.1972, Revista dos Tribunais, Ano 90º, nº 1869, pp. 129-132 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.2.2000, Sousa Inês, 00B033, afirmando-se aqui que “A obtenção superveniente de um documento não supre a falta de alegação oportuna do facto a provar pelo documento”).

Ou seja, visando o recurso extraordinário de revisão corrigir errores in procedendo ou errores in iudicando, o mesmo tem por parâmetro temporal a data  em que foi proferida a primeira decisão, extravasando o âmbito do recurso de revisão  a adução de novos e supervenientes factos inexistentes à data em que foi proferida a primeira decisão e que, em abstrato, seriam idóneos a reverter o sentido da decisão. Dito de outra forma e com referência à al. c) do Artigo 696º, o novo documento servirá para provar factos oportunamente alegados na primeira ação (cuja prova sucumbiu), mas já não para reconfigurar a causa de pedir da primeira ação com adução de novos factos posteriores à decisão. O recurso de revisão não é instrumento para alterar a causa de pedir, fora casos legalmente permitidos (cf. Artigo 265º, nº 1, do Código de Processo Civil).

No caso em apreço, o que o requerente pretende é reabrir um processo findo, em que decaiu, com base em factos objetivamente supervenientes, a saber a celebração de contratos de compra e venda e de hipoteca, em 6.6.2023. Os documentos que junta destinam-se a provar factos novos e objetivamente supervenientes e não a provar factos oportunamente alegados na petição da ação anterior, cuja prova se malogrou.

O requerente faz uma leitura do âmbito do recurso de revisão que não corresponde ao regime deste.

No acórdão de 2018, julgou-se improcedente a apelação com um duplo fundamento: o aí 1º e 2º requeridos não foram parte no pacto de preferência e, além do mais, só há incumprimento do pacto de preferência com a efetiva venda do imóvel e não apenas com a realização do contrato-promessa de compra e venda.

Agora, a parte vem demonstrar documentalmente que já ocorreu a venda (em 6.6.2023) e pretende demonstrar a existência do pacto de preferência. A existência da posterior venda é um facto totalmente novo, que não foi (nem poderia) ter sido alegado no processo anterior. Assim, não estamos no âmbito de um recurso de revisão, cabendo ao requerente aquilatar se ocorrem novos factos que determinem a propositura de nova ação com fundamento em violação de pacto de preferência. O que não pode o requerente é reabrir a discussão nestes autos com um âmbito (causa de pedir) que nunca teve e cuja transmutação está legalmente vedada. O recurso de revisão não é pertinente neste contexto.

Mesmo que assim não fosse, e a título de obter dictum, sempre se dirá que acresce que o processo findo é um procedimento cautelar de arresto em que o requerente peticionava o arresto da fração “A”. Perante a venda da mesma a “SM – Unipessoal, Lda.”, em 6.6.2023, o (hipotético) arresto da fração corresponderia à apreensão de um bem de terceiro, a qual só seria admissível nos termos estritos dos Artigos 619º, nº 2, do Código Civil e 392º, nº2 do Código de Processo Civil , cabendo ao requerente a alegação e demonstração da provável procedência da impugnação do ato transmissivo (cf. Ana Carolina dos Santos Sequeira, Do Arresto como Meio de Conservação da Garantia Patrimonial, Almedina, 2020, pp. 330-331).

Ora, nos 39º artigos da sua petição inicial de 2018, o requerente nada alegou no sentido da existência de um fundamento de impugnação do ato transmissivo (que nem tinha ocorrido ainda), estando também preterido fazê-lo agora pelas limitações de alteração da causa de pedir.

De todo o exposto se conclui que não ocorre o fundamento de recurso de revisão invocado pelo requerente."

[MTS]