"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/05/2024

Jurisprudência 2023 (178)


Responsabilidade civil;
competência material; tribunais administrativos e fiscais


1. O sumário de RC 10/10/2023 (119/23.0T8GRD.C1) é o seguinte:

I - Sendo a Ré União de Freguesias de ..., ... e ... uma pessoa coletiva de direito público, e fundando-se a causa de pedir em responsabilidade civil extracontratual, a competência para conhecer do presente litígio cabe aos Tribunais Administrativos.

II - O fundamento para o pedido indemnizatório formulário consiste na responsabilidade civil aquiliana de todos os Réus, porque todos eles com a sua atuação/omissão, negligente, terão ocasionado o incêndio causador de prejuízos ao Autor, pelo que respondem solidariamente perante o lesado, pelo que a regra de competência por extensão prevista no art.º 4º, n.º 2, do ETAF é aplicável.

III- Se este opta por demandar todos os responsáveis concausais na mesma ação, encontrando-se entre os demandados uma pessoa coletiva de direito público, a ação deve ser proposta num Tribunal Administrativo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os Autores intentaram a presente ação, pedindo que os Réus fossem condenados, solidariamente, a indemnizá-los pelos prejuízos que sofreram em consequência de um incêndio num prédio de que são proprietários, imputando aos Réus a responsabilidade pelos prejuízos que resultaram da eclosão do incêndio.

A competência em razão da matéria afere-se pelos termos do litígio tal como é apresentado pelos demandantes, aí relevando a natureza da relação jurídica controvertida que integra a causa de pedir.

Um dos Réus é a União de Freguesias de ..., ... e ....

Relativamente a esta Ré, os Autores fundamentam a sua responsabilidade, na seguinte alegação:

48 . A Ré União de Freguesias é responsável perante terceiros, no caso o Autor, pelos danos que lhe foram ocasionados por facto ilícito extracontratual cometido no exercício da função administrativa de gestão da rede primária de combustíveis que lhe estava atribuída, inclusivamente pelo exercício anormal daquelas funções, já que atentas as circunstâncias e padrões médios de resultado lhe era razoavelmente exigível evitar os danos produzidos ao Autor (art.1º, nºs 1 a 3, e 2, art. 3º, e art. 7º, nº3 e 4, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, que aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e pessoas coletivas de direito público.

49. Caso assim não se entenda, a Ré União de Freguesias é objetivamente responsável perante terceiros, no caso o Autor, pelos danos que lhe foram ocasionados e decorrentes da concreta atividade administrativa especialmente perigosa, realizada na consecução da gestão da rede primária de combustíveis que lhe estava atribuída (art.11º, nº1, da cit. Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro).

50. Caso assim não se entenda, a Ré União de Freguesias é objetivamente responsável perante terceiros, no caso o Autor, pelos danos especiais e anormais que lhe foram ocasionados na consecução do interesse público da gestão da rede primária de combustíveis que lhe estava atribuída (art.16º, nº1, conjugado com o art.2º, da cit. Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro). [---]

Como consta do Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 10 de Março de 2011 [---]o novo ETAF (aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro) unificou a jurisdição no tocante à responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, desinteressando-se da questão de saber se o direito de indemnização provém de acto de gestão pública ou de gestão privada, e, do mesmo modo, integrou no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, bem como a resultante do deficiente funcionamento da administração da justiça, dissipando todas as dúvidas que pudessem colocar-se, no futuro, quanto à fronteira entre a jurisdição dos tribunais administrativos e dos tribunais comuns.

No mesmo sentido, se pronunciou o Acórdão do STJ, de 1 de Março de 2018 [---], ao dizer que com a Reforma do Contencioso Administrativo, operada pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, alterou-se, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.

Ou ainda, mais recentemente, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 5 de Maio de 2021 [---], reafirmando que o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, veio trazer para o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal todas as acções de responsabilidade civil extra-contratual instauradas contra entidades públicas, incluindo a responsabilidade resultante do exercício da função jurisdicional, tornando-se desnecessário apurar se o ato indicado como fonte obrigação de indemnizar, como tal indicado pelo autor, deve ser considerado um ato de gestão pública ou de gestão privada.

Assim, sendo a Ré União de Freguesias de ..., ... e ... uma pessoa coletiva de direito público, e fundando-se a causa de pedir em responsabilidade civil extracontratual, a competência para conhecer do presente litígio cabe aos Tribunais Administrativos, improcedendo este fundamento do recurso.

Já os restantes Réus, solidariamente demandados, são pessoas coletivas e singulares de direito privado.

Apesar do apuramento da responsabilidade civil extracontratual dos particulares competir, em regra, aos tribunais comuns, atenta a competência residual destes tribunais - art.º 64º do C. P. Civil -, uma vez que eles foram demandados solidariamente com uma pessoa coletiva de direito público na mesma ação, há que ponderar a aplicação do disposto no art.º 4º, n.º 2, do ETAF - pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.

Note-se que não basta, que tenha sido pedido que o tribunal condene solidariamente pessoas coletivas de direito público e particulares, para que a competência para a apreciação dos pedidos deduzidos contra os particulares também seja atribuída aos Tribunais administrativos, sendo necessário que tenham sido alegados os factos de onde derive que as diferentes obrigações de indemnizar tenham entre si uma relação de solidariedade, a qual, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária dos demandados [---]

Com a presente ação os Autores pretendem que os Réus sejam condenados a indemnizá-los pelos prejuízos que sofreram com a destruição duma plantação de cedros provocada por um incêndio.

Para tanto alegam que no dia 30.05.2019, pelas 15.30 horas, deflagrou um incêndio numa área florestal, sita no lugar ..., perto da localidade de ..., sito na União de Freguesias de ..., ... e ..., concelho ..., o qual foi provocado em consequência direta e necessário da utilização de uma capinadeira de corta-mato, acoplada ao trator agrícola de matrícula ..-NB- .., tripulado por CC, pertencente à Ré sociedade A..., Unipessoal, Lda. [...]

Da exposição factual dos Autores resulta que o fundamento para o pedido indemnizatório formulário consiste na responsabilidade civil aquiliana de todos os Réus, porque todos eles com a sua atuação/omissão, negligente, terão ocasionado o incêndio causador de prejuízos ao Autor.

O art.º 497º, n.º 1, do C.  Civil, inserido no capítulo dedicado à responsabilidade civil extracontratual, dispõe que se forem várias pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade, pelo que, atenta a causa de pedir configurada pelos Autores, verifica-se uma relação de solidariedade entre os Réus, pelo que a regra de competência por extensão prevista no art.º 4º, n.º 2, do ETAF é aplicável.

Os Autores argumentam que o referido preceito apenas se aplica às situações de litisconsórcio necessário e não nas situações de litisconsórcio voluntário, como a que ocorre neste processo.

A tese de que a competência por extensão só se aplica nos casos de litisconsórcio necessário tem apoio nalguma jurisprudência [---], que vê na referência aos litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares, uma referência restritiva aos casos de litisconsórcio necessário.

No entanto, o termo devam, não tem aqui o significado duma obrigatoriedade de demanda plural, apenas se reportando a uma opção do demandante.

Se este opta por demandar todos os responsáveis concausais na mesma ação, encontrando-se entre os demandados uma pessoa coletiva de direito público, a ação deve ser proposta num Tribunal Administrativo.

Como se explica no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.05.2018, aquela interpretação restritiva do art.º 4º, n.º 2, do E.T.A.F., além de reduzir drasticamente o efeito útil da norma, é contrariada pelos termos do preceito, na medida em que a respetiva previsão, ao apontar expressamente situações de solidariedade, indica situações que constituem casos clássicos de litisconsórcio voluntário. O imperativo contido no verbo dever bem pode residir, em certos casos, nomeadamente de litisconsórcio voluntário, na vontade do lesado demandante. Temos, pois, que a exclusividade da competência dos tribunais administrativos para julgar ações que tenham por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas de direito público arrasta, por força do n.º 2 do art.º 4º do ETAF, para os tribunais administrativos a competência para julgar a concorrente responsabilidade civil de particulares.

Aliás, só assim se compreende que o Tribunal de Conflitos quando aprecia aplicabilidade do art.º 4º, n.º 2, do ETAF, apenas se preocupa que a responsabilidade entre os diversos demandados seja solidária, nunca tendo exigido que se estivesse perante uma situação de litisconsórcio necessário.

Assim sendo, revela-se correta a decisão recorrida que julgou o tribunal recorrido incompetente em razão da matéria."

[MTS]