"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/05/2024

Jurisprudência 2023 (167)


Processo de inventário;
âmbito de aplicação; divisão de coisa comum*


1. O sumário de RE 28/9/2023 (611/21.0T8SSB.E1) é o seguinte:

I – Após a dissolução conjugal, por regra, há lugar a inventário (exceção feita se o regime de bens for o da separação de bens – art.º 1 404.º, n.º 1, in fine) e não já a ação de divisão de coisa comum.

II – É em face do quadro factual apurado que importa indagar se assiste direito ao apelante a intentar a ação de divisão de coisa comum com vista à dissolução da compropriedade ou se deve intentar um processo de inventário para cessar a contitularidade de um imóvel cuja data de aquisição é anterior ao casamento.

III – No caso concreto, está em causa a aquisição de um imóvel, com recurso a empréstimo bancário, anteriormente ao casamento, entretanto dissolvido por divórcio, e que ao pagamento do mesmo foram afetos outros bens comuns do casal, existindo, ainda, outros bens adquiridos na constância do matrimónio, conforme se extrai das peças processuais impetradas nos autos por apelante e apelada.

IV – Por outro lado, na constância do casamento foram sendo pagas as prestações do empréstimo ao BPI, SA.

V – Por fim, tendo por acordo entre as partes sido atribuído o imóvel aludido como casa de morada da família à apelada até à venda ou partilha, tem de concluir-se que o imóvel em causa não podia ser objeto de divisão (entenda-se litigiosa) senão nos termos do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal na sequência da sentença do divórcio, ou através de meio próprio, após este processo de inventário.

VI – É que havendo bens em compropriedade do casal, quer por aquisição anterior, quer por aquisição posterior ao casamento e pretendendo em caso de divórcio qualquer dos cônjuges fazer a divisão daqueles bens, parece ser de admitir a possibilidade de uma única ação de inventário a correr por apenso ao processo de divórcio, nos termos do art.º 1 404.º, do Código de Processo Civil, onde se proceda à divisão ou partilha de todos os bens.


2. No Relatório e na fundamentação escreveu-se o seguinte:

"I – RELATÓRIO

1.1. AA intentou ação especial de divisão de coisa comum contra BB, alegando, em suma que casou com a ré no dia 05 de abril de 2013, no regime da comunhão de adquiridos; que no dia 05 de setembro de 2007 adquiriram a fração “D”, correspondente ao primeiro andar esquerdo do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, destinado habitação sito Rua …, para constituir a casa de morada de família, uma vez que estabeleciam uma relação afetiva, mas não eram casados à data; que o casamento com a ré foi dissolvido por sentença datada de 24 de outubro de 2019; que a supra referida fração é indivisível, não podendo ser constituídas duas frações autónomas e ambos não se entendem quanto à utilização da casa.

Conclui pedindo que se ponha termo à indivisão do referido imóvel. [...]

1.4. No dia 28 de abril de 2023, foi proferida a seguinte decisão:

O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da hierarquia e da matéria.

Erro da Forma do Processo.

Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Família e Menores, Juiz 3, o processo n.º 6171/19.5T8STB, onde foi alcançado acordo entre o Autor e a Ré, convolando o divórcio para mútuo consentimento, acordando ainda, especificamente, em atribuir à Autora o direito de utilização da casa de morada de família até à venda ou partilha.

Compulsados os autos resulta que os bens comuns do ex-casal ainda não se mostram partilhados através de escritura pública de partilha ou mediante ação especial de inventário.

A divisão de coisa comum é posterior à partilha, caso o imóvel em compropriedade não tenha sido atribuído a um dos ex-cônjuges com a tornas pelo outro.

O património conjugal constitui uma propriedade coletiva que pertence em comum aos cônjuges mas sem se repartir entre eles por quotas ideais, como acontece na compropriedade.

Após a dissolução conjugal, há lugar a inventário, exceção feita se o regime de bens for o da separação de bens, que não é o caso concreto, pois os ex-cônjuges casaram em comunhão de bens adquiridos, e não a ação de divisão de coisa comum – neste sentido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.07.2020., in www.dgsi.pt

O que sucede mesmo que o divórcio tenha sido por mútuo consentimento, quer no judicialmente quer na conservatória do registo civil.

Ocorre erro na forma do processo, sendo que a presente forma especial de divisão de coisa comum não é aproveitável para a ação especial de inventário, nem o presente tribunal seria competente.

Pelo exposto, decido absolver da instância a ré, BB, pela verificação de erro na forma do processo que anula todo o processado – artigo 193.º do CPC. [...]

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.3. Apreciação do recurso

O direito de exigir a divisão de coisa comum está previsto no art.º 1 412.º, n.º 1, do Código Civil, segundo o qual “nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa”.

O direito potestativo de que trata o art.º 1 412.°, do Código Civil, é, na sua essência, um direito de dissolução da compropriedade, que normalmente se opera mediante a divisão em substância da coisa, mas que também pode realizar-se através da partilha do seu valor ou preço.

Há, porém, muitos atos conducentes à cessação da comunhão que nada têm a ver com o direito potestativo aqui regulado, uma vez que a comunhão pode cessar, através dos vários negócios entre vivos ou mortis causa, ou até da usucapião, capazes de concentrarem a propriedade da coisa comum numa só pessoa, que tanto pode ser um dos dois ou mais comproprietários, como um terceiro.

O direito a que alude o art.º 1 412.°, citado, distingue-se, todavia, das outras formas de dissolução da comunhão ou compropriedade, pelo facto de se dirigir contra todos os consortes e ter como fim prático a cessação da compropriedade, e não apenas a determinação da quota do consorte na coisa comum [P. Lima/A. Varela, Código Civil anotado, III, 2.ª ed, p. 386-387.

A divisão da coisa comum pode ser feita amigavelmente ou nos termos da lei do processo (art.º 1 413.º, do Código Civil).

O Código de Processo Civil, no art.º 1 052.º, n.º 1, que “todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão da coisa comum requererá, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respectivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas”.

Coloca-se na presente ação e recurso, como essencial, a questão de saber se o autor, ora apelante, tem direito a pôr termo à indivisão da fração autónoma de que é comproprietário com a ré, ora apelada, invocando o primeiro que o imóvel em causa foi adquirido por ele e pela ré no estado civil de solteiros, não integrando, assim, o património conjugal.

Ora, vejamos, antes de mais, os factos:

O apelante e a apelada casaram um com o outro em 05 de abril de 2013, no regime de comunhão de adquiridos, sendo que antes do casamento, adquiriram, por meio de empréstimo, fração identificada em 1. que foi a casa de morada de família do casal e que foi atribuída à ré na sequência do divórcio homologado por sentença proferida em 24 de outubro de 2019.

Na constância do casamento e já após o divórcio, foram sendo pagas as prestações do empréstimo ao BPI, SA.

É em face deste quadro factual que importa indagar se assistia direito ao apelante a intentar a presente ação de divisão de coisa comum com vista à dissolução da compropriedade ou se deveria ter intentado um processo de inventário para cessar a contitularidade do imóvel em causa.

Antes de mais, há tomar na devida conta que a “compropriedade” ou “contitularidade” que está em causa nos autos não é entre dois estranhos indivíduos, mas sim entre marido e mulher, casados em comunhão de adquiridos e que possuem em comum não só o imóvel dos autos adquirido antes do casamento, como outros bens adquiridos na constância do matrimónio, conforme se extrai das peças processuais impetradas nos autos por apelante e apelada.

Veja-se, até, que é o próprio apelante que se opõe à admissibilidade da reconvenção alegando que:

O pedido reconvencional efetuado pela Ré, fundamentado no pagamento de valores alegadamente efetuados por si efetuados e referentes a prestações de crédito automóvel, à sua contribuição para o Plano Poupança Reforma, às prestações do crédito habitação e respectivos seguros do imóvel cuja divisão se peticiona, quotizações de condomínio e outras decorrentes da vida em comum havida entre as partes, com vista ao reconhecimento desse crédito sobre o Autor a ser efetivado/compensado aquando da adjudicação ou venda do imóvel, não é admissível à míngua da não verificação de qualquer requisito substancial de conexão (…); e que:

De igual modo, não poderá ser aqui apreciada qualquer divisão de créditos futuros relativos aos empréstimos bancários em vigor, os quais não são adequados à presente forma de Ação especial.”.

O que indicia que existem outros bens, sejam eles ativos ou passivos, a partilhar.

Por outro lado, na constância do casamento e já após o divórcio, foram sendo pagas as prestações do empréstimo ao BPI, SA.

Ora, outros bens, igualmente comuns, foram afetos ao pagamento das prestações do empréstimo relativo à aquisição da fração em causa.

Por fim, mas não menos importante, tendo por acordo entre as partes sido atribuído o imóvel aludido como casa de morada da família à apelada até à venda ou partilha, tem de concluir-se que o imóvel em causa não podia ser objeto de divisão (entenda-se litigiosa) senão nos termos do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal na sequência da sentença do divórcio, ou através de meio próprio, após este processo de inventário.

É que havendo bens em compropriedade do casal, quer por aquisição anterior quer por aquisição posterior ao casamento e pretendendo em caso de divórcio qualquer dos cônjuges fazer a divisão daqueles bens, parece ser de admitir a possibilidade de uma única ação de inventário a correr por apenso ao processo de divórcio, nos termos do art.º 1 404.º, do Código de Processo Civil, onde se proceda à divisão ou partilha de todos os bens.

Só não poderá haver lugar a este inventário, com tal abrangência, se o regime de bens do casamento for de separação (art.º 1 404.º, n.º 1, in fine), sendo que neste caso, se houver bens em compropriedade, é que terá de recorrer-se a ação de divisão de coisa comum [este sentido Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, III, 3.ª ed., p. 346 e Abel Pereira Delgado, in O Divórcio, 1980, p. 101.].

Daí que quando no processo de divórcio as partes acordaram “O direito de utilização da casa de morada de família é atribuído à autora até venda ou partilha” (cfr. documento junto com a contestação da ré/apelada), as partes só poderiam ter em mente que o acordo firmado era para durar até à partilha dos bens do casal efetuada em inventário na sequência do divórcio ou até a uma eventual venda do imóvel feito por acordo das partes ou de forma litigiosa na âmbito do mesmo inventário.

Não no âmbito de qualquer ação de divisão de coisa comum que, em princípio, não poderia ter lugar.

Fácil será de entender que um declaratário normal, colocado na situação da apelada enquanto requerente da atribuição da morada da casa de família, não aceitaria um acordo no sentido de aquela atribuição lhe ser feita apenas até à venda que viesse a ser realizada no âmbito de qualquer ação de divisão de coisa comum, que no dia seguinte ao acordo o apelante lhe pudesse mover.

Perante o acordo firmado pelo apelante e pela apelada quanto à atribuição do imóvel dos autos como casa de morada de família para a segunda só podia ter o significado de o destino do imóvel ser o do acordo concertado até que entre as partes fosse feita a partilha e eventual venda dos bens.

Tanto mais quanto decorre do processo, designadamente dos documentos juntos com a contestação, que existem outros bens e dívidas (cfr. documentos não impugnados pelo autor/apelante) a partilhar.

Diga-se, ainda, que o douto acórdão do STJ invocado pelo apelante nas suas doutas motivações de recurso não têm paralelismo, o com o presente caso, ou pelo menos na sua totalidade.

Veja-se que ali se escreveu:

Não pode confundir-se esta situação com aquela que estava subjacente ao Ac. da Rel. de Lisboa, de 1-6-10, nº 2104/09.5TBVFX-A.L1, relatado pelo ora relator e sendo adjunto também o ora primeiro adjunto, pois a tal aresto estava subjacente uma dívida perante terceiros que era da responsabilidade de ambos os cônjuges, tendo então sido considerado adequado o aproveitamento do processo de inventário para regular os interesses que eram comuns a ambos os cônjuges.

Assumiu-se então que, embora não existam bens comuns a partilhar (ativo patrimonial), o processo de inventário pode integrar a regulação de outros efeitos patrimoniais do divórcio, desde que se trate de aspetos em que ambos os cônjuges estão envolvidos, por corresponderem designadamente a dívidas que ambos assumiram ou de que ambos são responsáveis.(…)”

Ou seja, naquele caso, inexistem bens comuns a partilhar, o que não é o caso, como resulta dos autos, em que existem bens e dívidas.

Neste conspecto, e subscrevendo a decisão recorrida, julga-se improcedente a apelação."


*III. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar o decidido pela RE.

Na anterior acção de divórcio, os agora ex-cônjuges acordaram que “O direito de utilização da casa de morada de família é atribuído à autora até venda ou partilha”. Disto não resulta necessariamente que, quanto à "partilha", o direito de utilização da casa de morada de família termina necessariamente no momento dessa "partilha". A declaração também pode ter o sentido de que, depois de realizada a "partilha" dos bens que houver a partilhar entre os ex-conjuges, o destino da casa de morada de família tem de ser objecto de novo acordo ou de qualquer outra solução.

No entanto, o argumento incontornável que pode ser invocado contra a orientação da RE é o de que não é certamente uma disposição negocial que pode alterar o âmbito de aplicação das formas do processo. Portanto, não é por as partes referirem a "partilha" de um bem em compropriedade que a forma de processo adequada passa a ser o inventário, dado que, quanto a ex-cônjuges, este processo só pode ser aplicado "para partilha dos bens comuns" (art. 1133.º, n.º 1, CPC).

b) A RE afirma o seguinte:

"Só não poderá haver lugar a este inventário, com tal abrangência, se o regime de bens do casamento for de separação (art.º 1 404.º, n.º 1, in fine), sendo que neste caso, se houver bens em compropriedade, é que terá de recorrer-se a ação de divisão de coisa comum."

É verdade que, se o regime for de separação e houver bens em situação de compropriedade, "terá de recorrer-se à acção de divisão de coisa comum". O que falta concluir é que, mesmo que o regime seja de comunhão e houver bens em situação de compropriedade, também terá de recorrer-se à acção de divisão de coisa comum para a divisão desta compropriedade. O âmbito de aplicação da acção de divisão de coisa comum define-se em função de uma situação de compropriedade, sendo totalmente irrelevante não só se os comproprietários são casados entre si, mas também se o são no regime de separação ou no de comunhão de bens.

MTS