"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/08/2014

Dupla conforme e obrigação de suscitar a apreciação prejudicial do TJ



1. O art. 671.º, n.º 3, nCPC consagra o (aliás, bastante discutível) regime da dupla conforme, estabelecendo o seguinte: sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo se for admissível a revista excepcional. Isto significa que uma decisão da Relação que confirme a decisão da 1.ª instância não admite recurso, excepto se a revista for sempre admissível (cf. art. 629.º, n.º 2, nCPC), se houver um voto de vencido de um Desembargador, se a fundamentação divergir essencialmente daquela que foi utilizada pelo tribunal de 1.ª instância ou ainda se for admissível a revista excepcional.



Destas excepções ao regime da dupla conforme apenas uma delas é independente da decisão que a Relação venha a proferir: aquela em que o recurso para o STJ é sempre admissível. Todas as outras excepções só podem ocorrer depois do proferimento da decisão da Relação: só após se conhecer esta decisão é que se pode saber se houve um voto de vencido, se a fundamentação é diferente daquela que foi utilizada pelo tribunal de 1.ª instância ou se o STJ admitiu a revista excepcional (cf. art. 672.º, n.º 1 e 3, nCPC).



2. O art. 367.º, n.º 3, TFUE estabelece que sempre que uma questão relativa à interpretação ou à validade dos tratados ou de um acto europeu seja suscitada num processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao TJ. De acordo com a jurisprudência do TJ, essa obrigação só existe se houver dúvidas razoáveis e se não existir uma jurisprudência consolidada do TJ (cf. TJ 6/10/1982 (C-283/81, CILFIT et al./Ministero della sanità et al.).



Nas hipóteses em que a revista é sempre admissível nos termos do art. 629.º, n.º 2, nCPC – uma das quais abrange, importa recordar, as decisões sobre a competência internacional, incluindo as baseadas nos vários regulamentos europeus que se ocupam da matéria –, é claro que a decisão da Relação é sempre passível de recurso e que, por isso, a Relação não tem a obrigação de suscitar a apreciação prejudicial do TJ.



Em todas as demais hipóteses, tudo depende das circunstâncias: a decisão da Relação pode vir a ser definitiva, mas também pode ser uma decisão que ainda admite recurso para o STJ. Importa analisar as consequências desta circunstância para a eventual obrigação de a Relação suscitar a apreciação prejudicial do TJ.



3. O TJ 4/6/2002 (C-99/00, Lyckeskog), n.º 16, decidiu o seguinte: “As decisões de um órgão jurisdicional nacional de recurso que possam ser impugnadas pelas partes perante um Supremo Tribunal não emanam de um «um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso  judicial previsto no direito interno», na acepção do artigo 234.° CE [= art. 267.º TFUE]. A circunstância de a apreciação do mérito de tais impugnações depender de uma declaração prévia de admissibilidade do Supremo Tribunal não tem por efeito privar as partes da via de recurso”. Isto é: o TJ entende que a circunstância de a admissibilidade do recurso de uma decisão ficar dependente de uma decisão do tribunal ad quem não significa que aquela decisão seja irrecorrível; atendendo a esta circunstância, não se pode dizer que esteja preenchido o previsto no art. 267.º, n.º 3, TFUE, pelo que o tribunal recorrido não tem a obrigação de suscitar a apreciação prejudicial do TJ.



Posto isto, importa verificar se a doutrina do referido acórdão do TJ é passível de ser aplicada à situação portuguesa. A referida decisão do TJ reporta-se a um caso em que as partes podem sempre recorrer para um Supremo Tribunal e em que cabe a este Supremo Tribunal, posteriormente à interposição do recurso, decidir se o recurso é admitido. O regime português da dupla conforme é distinto: em princípio, a revista não é admissível; a revista pode, contudo, ser admitida nos casos excepcionais enumerados no art. 672.º, n.º 1, nCPC, bem como se houver um voto de vencido ou se for utilizada uma fundamentação essencialmente distinta. Portanto, há necessariamente casos em que o STJ, mesmo que entenda que o recurso devia ser admitido, não o pode admitir: esses casos são todos aqueles em que não estão preenchidos os requisitos da revista excepcional e em que o acórdão da Relação não comporta nem voto de vencido, nem fundamentação essencialmente distinta.



Quer dizer: no caso decidido pelo TJ, a decisão do tribunal recorrido torna-se definitiva apenas se o tribunal ad quem não admitir o recurso; no sistema da dupla conforme, a decisão da Relação é sempre definitiva não só se não se estiver perante um caso de revista excepcional, mas também se não houver um voto de vencido ou se não for utilizada uma fundamentação substancialmente diferente. Dito pela positiva: no caso decidido pelo TJ, o tribunal ad quem pode, em teoria, admitir qualquer recurso que seja interposto; no direito português, o STJ só pode admitir o recurso nas hipóteses de admissibilidade da revista excepcional, assim como nos casos em que a revista é admissível ipso iure: existência de um voto de vencido e utilização de uma fundamentação essencialmente distinta. Parece assim dever concluir-se que o caso analisado no acórdão do TJ não coincide com os dados do direito português, pelo que a doutrina estabelecida no referido acórdão não pode ser aplicada, sem mais, à situação específica do direito português.



4. Atendendo ao exposto, poderia procurar ensaiar-se uma resposta doutrinária ao problema de saber em que situações, atendendo ao regime da dupla conforme (e das suas excepções), a Relação tem a obrigação de suscitar a apreciação prejudicial do TJ, quando perante ela se coloque uma questão de duvidosa solução sobre a interpretação ou a validade de um acto europeu. Talvez mais prático seja ficar por uma sugestão: a de que, quando numa das Relações se colocar uma dessas questões, ela mesma suscite ao TJ a apreciação prejudicial e, ao mesmo tempo, coloque a questão de saber se estava obrigada a tal.




MTS

29/08/2014

Paper (25)


-- Bertea, S./Sarra, C., Foreign Precedents in Judicial Argument: A Theoretical Account (07.2014)

27/08/2014

Bibliografia (28)


-- Thornburg, B./Knutsen, E. S./Crifò, C./Cameron, C., A Community of Procedure Scholars: Teaching Procedure and the Legal Academy, Osgoode Hall Law Journal 51 (2013), 93

26/08/2014

Bibliografia (27)


-- Clermont, K. M., Conjunction of Evidence and Multivalent Logic (06.2014)

Legislação (6)


-- L 59/2014, de 26/8: Procede à trigésima segunda alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, qualificando os crimes de homicídio e de ofensas à integridade física cometidos contra solicitadores, agentes de execução e administradores judiciais

25/08/2014

Bibliografia (26)


-- Mesquiita, M., A Metamorfose do Futuro Tribunal de Comarca (Coimbra: Almedina 2014)



24/08/2014

Inversão do contencioso e competência internacional




1. O art. 369.º, n.º 1, nCPC permite que o requerente de uma providência cautelar solicite que o juiz, na decisão que decrete a providência, o dispense do ónus de propositura da ação principal: para tal é necessário que a matéria adquirida no procedimento permita a esse juiz formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e que a natureza da providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio.

Se o procedimento cautelar comportar um elemento de estraneidade – isto é, se possuir uma relação (objectiva ou subjectiva) com várias ordens jurídicas –, há que averiguar a competência internacional dos tribunais portugueses para decretar essa providência. Isso é realizado nos seguintes moldes:

– Se o requerido tiver o seu domicílio (ou sede) num Estado-membro do Reg. 1215/2012, há que aplicar este instrumento europeu (cf. art. 6.º, n.º 1, Reg. 1215/2012);

– Se o requerido não tiver domicílio (ou sede) num Estado-membro do Reg. 1215/2012, a competência internacional dos tribunais portugueses é aferida por uma convenção internacional, ou, na maior parte dos casos, pelo direito interno português.

2. Se o requerido não tiver o seu domicílio (ou sede) num Estado-membro do Reg. 1215/2012 e não for aplicável nenhuma convenção internacional de que Portugal seja parte, a competência internacional dos tribunais portugueses para o decretamento da providência cautelar e da inversão do contencioso é aferida nos termos do princípio da coincidência (art. 62.º, al. a), nCPC). Em concreto, há que conjugar esse princípio com o disposto no art. 78.º nCPC, assim se determinando, em simultâneo, a competência territorial de um tribunal português e a sua competência internacional.

O reconhecimento e a execução da providência proferida pelo tribunal português num outro Estado fica dependente do que se encontre estabelecido numa convenção internacional de que Portugal e esse Estado sejam partes ou no direito interno desse Estado.

3. Na hipótese de o requerido ter domicílio (ou sede) num Estado-membro do Reg. 1215/2012, há que aplicar o estabelecido no art. 35.º Reg. 1215/2012 (equivalente ao art. 31.º Reg. 44/2001) na determinação da competência internacional do tribunal português. Aquele preceito atribui ao requerente da providência uma opção:

– O requerente pode solicitar uma providência cautelar prevista na lei de um Estado-membro nos tribunais deste mesmo Estado, ainda que os tribunais de outro Estado-Membro sejam competentes para conhecer do mérito da causa, isto é, para a correspondente acção principal; 

– O requerente também pode solicitar a providência no tribunal que seja competente para apreciar o mérito, isto é, no tribunal que seja competente para apreciar a acção principal segundo um dos vários critérios estabelecidos no art. 1215/2012.

4. Se, nos termos descritos, o Reg. 1215/2012 dever ser aplicado na determinação da competência internacional, há que considerar, quanto ao reconhecimento e execução da medida que decreta a providência cautelar, uma importante especificidade. De acordo com a definição constante do art. 2.º, al. a) § 2,º 1.ª parte, Reg. 1215/2012, só são reconhecidas nos demais Estado-membros as providências que tenham sido decretadas num tribunal que (também) seja competente para apreciar o mérito. Esta solução não retira eficácia à decisão que decreta a providência quando a mesma tenha sido proferida por um tribunal que não seja competente, segundo o Reg. 1215/2012, para apreciar o mérito, mas restringe o âmbito dessa providência: esta fica confinada, em termos territoriais, ao Estado em que a providência tenha sido decretada.

Posto isto, importa determinar qual a consequência desta territorialidade da providência cautelar para a inversão do contencioso. Teoricamente, são possíveis duas soluções (sempre tendo presente que se trata de um caso em que deve ser aplicado o Reg. 1215/2012):

– Segundo uma delas, a territorialidade da providência estende-se à própria decisão de inversão do contencioso; de acordo com esta solução, a inversão do contencioso que seja decretada num tribunal português que não seja competente segundo o disposto no Reg. 1215/2012 não pode ser reconhecida em nenhum outro Estado-membro, ou seja, só pode ser executada em Portugal;

– Segundo uma outra solução possível, não é admissível solicitar a inversão do contencioso num tribunal português que não seja competente segundo o Reg. 1215/2012; isto significa que, mesmo que, nos termos do art. 35.º Reg. 1215/2012, a providência cautelar possa ser decretada em Portugal por ser uma providência prevista na legislação portuguesa, a inversão do contencioso só pode ser requerida num tribunal português que seja competente segundo algum dos critérios estabelecidos no Reg. 1215/2012.

Esta última solução é a que parece preferível. O decretamento da inversão do contencioso implica que a tutela provisória se consolida como tutela definitiva, se o requerido não instaurar uma acção de impugnação (cf. art. 371.º, n.º 1, nCPC). Seria contrário às finalidades do Reg. 1215/2012, e, em especial, ao princípio da liberdade de circulação das decisões no espaço europeu, admitir que pudesse existir, nesse mesmo espaço, uma decisão sobre uma tutela definitiva que, à partida, estivesse limitada quanto ao âmbito da sua eficácia (em concreto, estivesse restringida ao território português). O Reg. 1215/2012 pode admitir uma providência cautelar que não pode circular no espaço europeu, dado que, em última análise, essa tutela provisória se destina a ser confirmada ou substituída por uma tutela definitiva obtida num tribunal competente segundo esse acto europeu; mas o Reg. 1215/2012 não pode aceitar uma tutela definitiva que, por possuir uma restrição geográfica, não possa circular nesse espaço.

Disto decorre que, se o requerido tiver domicílio (ou sede) num Estado-membro do Reg. 1215/2012 – e se, portanto, este acto europeu dever ser aplicado na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses –, a inversão do contencioso só pode ser solicitada num tribunal português que seja competente segundo um dos critérios enunciados no Reg. 1215/2012.


MTS

22/08/2014

Legislação (5)


Organização judiciária

-- P  161/2014, de 21/8: Aprova os mapas de pessoal das secretarias dos tribunais judiciais de primeira instância e fixa as regras de transição e de afetação dos oficiais de justiça e demais trabalhadores;

-- P 163/2014, de 21/8: Homologa o regulamento, aprovado pelo Centro de Estudos Judiciários, do primeiro curso de formação específico para o exercício de funções de presidente do tribunal, de magistrado do Ministério Público coordenador e de administrador judiciário;

-- P 164/2014, de 21/8: Estabelece os critérios objetivos para a distribuição do pessoal oficial de justiça e demais trabalhadores, também aplicáveis aos casos de recolocação transitória de oficiais de justiça.

21/08/2014

Novo Código de Processo Civil brasileiro


-- Quadro comparativo do Código de Processo Civil / Projeto de Lei do Senado nº 166, de 2010 (nº 8.046, de 2010, na Câmara dos Deputados) (9.6.2014)

Nota: Para aceder à versão aprovada pela Câmara dos Deputados clicar aqui.

15/08/2014

Bibliografia (25)


-- Pérez Ragone, A., Prelación, isonomía y agrupamiento de créditos en la ejecución civil, Revista de Derecho de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso 37 (2011), 437



14/08/2014

O regime da alegação dos factos complementares no nCPC




1. O nCPC opera com uma clara distinção entre a causa de pedir e os factos complementares (cf. art. 5.º, n.º 1 e 2, al. b)), o que, para além do mais, indicia que estes factos não integram aquela causa petendi. É indiscutível que a causa de pedir tem de ser alegada pelo autor na petição inicial (cf. art. 552.º, n.º 1, al. d)), sob pena de ineptidão deste articulado (cf. art. 186.º, n.º 2, al. a)). Em contrapartida, quanto aos factos complementares tem havido alguma dificuldade em compreender o regime da sua alegação. Supõe-se que a dificuldade radica numa confusão entre a não preclusão da alegação desses factos se os mesmos não forem alegados na petição inicial (ou na contestação) – o que é verdadeiro – e a inexistência do ónus de alegação desses factos nesses mesmos articulados – o que é falso.

Importa procurar elucidar o regime da alegação dos factos complementares. Para se perceber este regime há que empreender uma análise sistemática, pois que há que considerar vários aspectos relacionados com os factos complementares.

2. O art. 5.º, n.º 2, al. b), ao permitir que o tribunal considere os factos complementares que resultem da instrução da causa, mostra que a omissão da alegação desses factos nos articulados não tem nenhum efeito preclusivo. Afinal, o facto complementar adquirido durante a instrução da causa pode ser considerado pelo tribunal, mesmo que a parte não o tenha alegado anteriormente no respectivo articulado.

Pode perguntar-se se isto é suficiente para que se possa afirmar que a parte não tem o ónus de alegar factos complementares na petição inicial (ou na contestação). A resposta a esta questão só poderia ser afirmativa se fosse seguro que a parte não correria nenhum risco e não sofreria nenhuma desvantagem se não alegasse esse facto no seu articulado. Ora, a circunstância de a aquisição do facto complementar durante a instrução ser aleatória e eventual (depende, por exemplo, de o facto constar do depoimento de uma testemunha) não permite afirmar que a parte não corre nenhum risco e não sofre nenhuma desvantagem se não alegar, desde logo, esse facto no seu articulado. Se o facto não alegado não resultar da instrução da causa, o mesmo não se encontra adquirido para o processo e não pode ser considerado pelo tribunal.

Pode assim concluir-se que a possibilidade de o tribunal considerar factos complementares que sejam (eventualmente) adquiridos durante a instrução da causa não é suficiente para que se possa afirmar que a parte não tem o ónus de alegar esses factos no seu articulado.

3. Ao contrário do que poderia parecer, o panorama não se altera quando se considera um outro aspecto do regime legal relativo aos factos complementares: o dever de o tribunal convidar a parte a completar o seu articulado quando entenda que, apesar de a causa de pedir (ou de o fundamento da excepção) se encontrar alegada (ou alegado) no articulado, ainda assim falta um facto complementar que é indispensável para preencher uma determinada previsão legal e para que a acção (ou a excepção) possa ser julgada procedente (cf. art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4). A importância que o legislador concedeu a esse dever é demonstrada pelo disposto no art. 591.º, n.º 1, al. c): se o mesmo não tiver sido cumprido ou não tiver sido cumprido na medida do necessário, é ainda possível na audiência prévia convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado.

Talvez a expressão possa soar estranho a alguns ouvidos ainda habituados a outros paradigmas processuais, mas a verdade é que o dever de convite estabelecido no art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4 (e reforçado pelo disposto no art. 591.º, n.º 1, al. c)) implica que o risco da insuficiência da matéria de facto que é necessária para assegurar a procedência da acção (ou da excepção) deixou de recair totalmente sobre a parte. O tribunal também compartilha esse risco, no sentido de que, se não convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado, fica impedido de proferir uma decisão de improcedência da acção (ou da excepção) com base na falta de um facto complementar. Se não tiver dirigido esse convite e se, ainda assim, considerar a acção (ou a excepção) improcedente pela falta de um facto complementar, o tribunal profere uma sentença nula por excesso de pronúncia (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d)): a omissão do dever de convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado não permite que estejam preenchidas as condições para essa decisão de improcedência, pelo que, nestas circunstâncias, o tribunal conhece de mais do que poderia conhecer.

O dever de o tribunal convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado demonstra que a omissão da alegação do facto complementar pode ser corrigida na sequência de um dever de carácter assistencial que deve ser cumprido pelo tribunal. Dito de outro modo: a não alegação do facto complementar no articulado desencadeia, não uma qualquer consequência desfavorável para a parte, mas antes o dever de o tribunal convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado.

Daqui pode extrair-se que, não decorrendo da omissão da alegação do facto no articulado nenhuma consequência desfavorável para a parte, não recai sobre ela o ónus de alegação desse facto no articulado. Esta conclusão não é a que resulta do regime legal. O dever de convite que é imposto ao tribunal demonstra que a lei pretende que o facto complementar seja invocado no (primeiro) articulado da parte. Se este ónus não existisse não se compreenderia que a lei impusesse ao tribunal um dever de convidar a parte a suprir a sua omissão.

Noutros termos: o dever imposto ao tribunal de convidar a parte a suprir a omissão da alegação do facto complementar constitui uma demonstração inequívoca de que a parte tem o ónus de invocar esse facto nos articulados. Se a lei impõe ao tribunal um dever (não um mero poder discricionário) de convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado, isso demonstra que se pretende que a parte supra a omissão de algo que tinha o ónus de cumprir.

É tendo presente este contexto que há que interpretar o disposto nos art. 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d): na petição inicial compete à parte expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir. Este preceito define apenas a medida mínima da alegação da parte na petição inicial: desta tem de constar, pelo menos, a causa de pedir; se, além da causa petendi, a parte tem ainda o ónus de invocar qualquer facto complementar, isso só pode ser determinado em cada caso concreto.

4. Torna-se claro que o regime legal não permite que a parte distribua por diversos momentos a alegação dos factos relevantes para a apreciação da causa: a causa de pedir na petição inicial, os factos complementares em momento posterior.

O nCPC não determina nenhuma preclusão decorrente da omissão da alegação dos factos complementares na petição inicial (ou na contestação), porque impõe que o tribunal dê à parte a possibilidade de reparar a sua omissão. O dever de o tribunal dirigir à parte o convite ao aperfeiçoamento do articulado demonstra que a lei pretende que todos os factos – incluindo os complementares – sejam alegados nos articulados; é precisamente por isso que impõe que o tribunal convide a parte a alegar o que não alegou anteriormente no seu articulado. Este regime legal é perfeitamente compreensível: dado que o facto complementar, embora não seja essencial para delimitar a causa de pedir, é essencial para a procedência da acção (ou da excepção), a lei considera que a omissão da alegação pela parte de um facto que lhe é favorável é involuntária e concede-lhe a possibilidade de suprir essa omissão.

Este aspecto é importante. O nCPC não opera com o binómio diligência/negligência na possibilidade de suprir a omissão da alegação de factos, isto é, não afere a possibilidade da alegação posterior de um facto pela omissão não negligente da sua alegação anterior. Mas, dado que o facto complementar não alegado é um facto indispensável à procedência da acção (ou da excepção), o nCPC parte do princípio – que não pode ser considerado fora da realidade – de que a omissão da sua alegação pelo autor (ou pelo réu) foi involuntária. É por isso que essa omissão não tem nenhum efeito preclusivo (precisamente porque não se pretende penalizar a parte por um comportamento involuntário, aliás muitas vezes imputável ao seu mandatário), antes desencadeia o exercício de um dever assistencial pelo juiz da causa.

5. O regime sobre a alegação dos factos complementares também impede que a parte procure surpreender a parte contrária com a alegação desses factos fora da petição inicial (ou da contestação).

O cumprimento pelo tribunal do dever de convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado protege naturalmente a parte que omitiu (involuntariamente, pressupõe-se) a alegação do facto complementar que lhe é favorável. Além disso, importa realçar que, ao impor uma tomada de posição dessa parte quanto à alegação do facto complementar, o cumprimento do dever de convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado também protege a parte contrária, no sentido de que impede que a parte possa procurar conseguir qualquer efeito-surpresa através da alegação inesperada desse facto. A alegação dos factos complementares só pode ocorrer num momento próprio – que é a petição inicial (ou a contestação) – ou num momento eventual – que é a resposta da parte ao convite ao aperfeiçoamento dirigido pelo tribunal. O nCPC não comporta outros momentos para a alegação dos factos complementares.

Esta conclusão implica uma consequência prática importante: é irrelevante a alegação do facto complementar no depoimento de parte (cf. art. 452.º, n.º 1) ou na declaração de parte (cf. art. 466.º, n.º 1) durante a audiência final.

6. O convite ao aperfeiçoamento do articulado através da alegação do facto complementar pode ser seguido ou não seguido pela parte. Se não for seguido (e, portanto, se o facto complementar não for alegado pela parte), pode perguntar-se se, ainda assim, o tribunal pode considerar esse facto se o mesmo resultar da instrução da causa (cf. art. 5.º, n.º 2, al. b)). Parece impor-se uma resposta positiva: se a parte não corresponder ao convite do tribunal, fica definitivamente precludida a possibilidade de alegação posterior desse mesmo facto; é, no entanto, contrário à busca da verdade que o tribunal não possa considerar o facto quando o mesmo venha a ser adquirido em juízo por uma via distinta da alegação da parte.

7. Analisado o regime legal, o nCPC não consagra nenhum sistema de alegação à la carte dos factos complementares. Se o facto complementar não tiver sido alegado no articulado, o nCPC impõe ao tribunal um dever de carácter assistencial da parte que omitiu a alegação desse facto. A alegação ou não alegação do facto complementar na sequência do convite que foi dirigido à parte define, daí em diante, a situação desse facto no processo pendente: a aquisição do facto ou a preclusão do facto.

MTS
(“z. Zt. in München”)