"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/07/2025

Jurisprudência 2024 (209)


Pedido subsidiário;
conhecimento pela Relação


1. O sumário de STJ 14/11/2024 (3994/20.STSVCT.G1.S1) é o seguinte:

I. Na circunstância em que o Tribunal da Relação julga procedente o pedido subsidiário, impugnado pelos Réus na contestação e objecto de resposta em contra-alegações, não ocorre decisão surpresa que justifique novo exercício do contraditório ao abrigo do disposto no artigo 665º, nº 3, do CPC.

II. A prova plena do documento particular a que alude o artigo 376.º, n.º 1, do CC, reporta ao que foi declarado no documento em causa, ou seja, apenas abrange a prova de que as partes fizeram aquelas declarações, mas não se estende à coincidência dessas declarações com a realidade, podendo a parte fazer prova por testemunhas quanto à falta de coincidência da referida declaração com a realidade.

III. O contrato de intermediação financeira configura um "contrato-quadro", um "negócio de cobertura" ou, um contrato organizatório, que tem a função de previsão das diretrizes gerais do projeto a desenvolver no futuro e das relações negociais.

IV. A nulidade do contrato de intermediação financeira por violação do artigo 9º do RGCC, implica a nulidade dos contratos sucessivos ou de execução, como são os contratos de subscrição dos produtos financeiros.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2.1. Nulidade - omissão de pronúncia

Sustentam os Recorrentes, em primeiro lugar, que o acórdão impugnado não se pronunciou quanto à responsabilidade da Interveniente AIG, para a qual haviam transferido a sua responsabilidade, e mais argumentam que deveria a Relação proceder à exigida notificação para o exercício do contraditório, no pressuposto da alteração do sentido decisório da sentença, que lhes veio a ser desfavorável.

Apreciemos.

As questões que o juiz deve apreciar são todas aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal – artigo 608º, n.º 2, do CPC – e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer – independentemente de alegações e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.

A omissão traduz-se, assim, como resulta da tradução normativa da figura, na falta de tratamento e decisão (pronúncia) quando o tribunal deixa de conhecer de questões que deveria apreciar ou conheça de questões de que não poderia conhecer – art. 615º, n.º 1, al. d), do CPC.

Sabido, também, que a omissão de pronúncia só se verifica quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que foram submetidas pelas partes ou de que deva conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidas pelas partes na defesa das teses em presença, e bem assim, não tem que se pronunciar sobre questões que ficam prejudicadas pela solução que deu a outra questão que apreciou.

Nos autos.

Resulta do relatório que os Autores formularam diversos pedidos, uns a título principal, outros, a título subsidiário (ou secundário de acordo com a P.I.) para o caso de aqueles não procederem.

Em primeira nota, sublinhamos que o Tribunal de 1ª instância julgou improcedentes todos os pedidos formulados, sejam eles principais ou subsidiários, embora sem apreciar alguns dos fundamentos invocados alegados pelos Autores, tal como se retira do dispositivo da sentença - «julgo a acção (…) improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolvo os Réus e a Interveniente principal dos pedidos formulados.»

Por seu turno, o Tribunal da Relação debruçou-se sobre cada um dos pedidos, com excepção, justamente, da pretensão alicerçada na responsabilidade civil, referente à indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 30.000,00, por ter sido excluída pelos Autores nas suas alegações [---].

Sobre todas as questões suscitadas no recurso pelos Autores foi dada aos Réus a oportunidade do exercício de resposta nas contra-alegações na linha da estratégia escolhida na defesa da sua posição na demanda.

Acompanhando o sistematizado iter decisório do acórdão em sindicância, evidencia-se que a Relação apreciou, ainda, todos os fundamentos e questões que não foram objeto de apreciação na sentença, em resultado da arguição pelos recorrentes de diversas nulidades e invocação de vários fundamentos.

Vindo o Tribunal da Relação a concluir pela exclusiva procedência do pedido subsidiário que concerne à aplicação do regime legal das cláusulas contratuais gerais (RCCG) aos contratos celebrados entre as partes, e cuja nulidade declarou com a consequente restituição do prestado, como efeito previsto no artigo 289º, nº 1, do CC.

Numa segunda nota, a génese do pedido que procedeu em nada intercepta o regime da responsabilidade civil e, o efeito da nulidade dos contratos em apreço - a obrigação de restituição do prestado - revela-se independente de função compensatória, estando circunscrita à esfera jurídica dos Réus; trata-se, portanto, de obrigação alheia à Interveniente Seguradora, à margem da relação contratual que assumiu perante os Réus através da cobertura de risco [Cfr. a propósito o Acórdão do STJ de 18.02.2020, no proc. nº8963/16, in www.dgsi.pt.].

Donde, não tendo sido julgado procedente qualquer pedido com fundamento em responsabilidade civil, ou resultado a condenação dos Réus a ressarcir danos dos Autores, não cabia ao tribunal a quo pronunciar-se sobre a posição da Interveniente AG.

Improcede a nulidade.

Também nesta parte, não assiste razão aos recorrentes.

2.2.O exercício do contraditório

Noutra vertente da arguição da nulidade do acórdão, alegam os Réus que o Tribunal da Relação, ao conjeturar a procedência do recurso das Autoras, deveria ter ordenado a prévia notificação das partes para o exercício do contraditório sobre as questões não decididas na primeira instância.

Apontam a violação do disposto no artigo 665º, nº 3, do CPC.

In casu, é manifesto que tal não se verifica.

É bom de ver, que a circunstância prevenida no citado normativo – evitar decisão surpresa – não tem qualquer respaldo na situação sub judice.

Sempre se dirá, de todo o modo, que, a sentença, embora afaste a aplicação do regime da nulidade dos contratos à luz do RGCC, como solução do litígio, apreciou este pedido, como espelha o seguinte ponto que se reproduz – « Entendemos que, num primeiro momento e no cruzamento do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro) com os deveres de informação que resultam do CVM, incumbe ao intermediário financeiro alegar e provar que procedeu a uma comunicação adequada e efectiva dos termos do negócio. O não cumprimento desse dever pode conduzir à nulidade do contrato – de todo ele – nos termos do artigo 9º, nº 2, do RJCCG. (…) Pelo que, por esta via (artigo 9º, nº 2, do RJCCG) e em face do exposto, consideramos inexistir a nulidade cuja declaração é peticionada.

Improcede, consequentemente, o pedido de declaração de nulidade dos contratos celebrados e das ordens de subscrição.»

Nesse pressuposto, a Relação não apreciou o pedido em primeira mão.

O acórdão recorrido apreciou e julgou procedente, sem inovação ou surpresa – este pedido formulado na alínea H do petitório/ampliação, que foi objecto do contraditório pelos Réus na contestação e nas contra-alegações da apelação, enfatizando que os Autores, como atrás dito, apenas excluíram da sua pretensão recursiva o pedido de indemnização por danos não patrimoniais.

Os Réus, e ora recorrentes, dispuseram de ampla oportunidade de pronúncia acerca deste concreto pedido de declaração de nulidade dos contratos celebrados entre as partes em aplicação do RGCC, submetido à apreciação da Relação pelos Autores no seu recurso [Cfr. a propósito o Acórdão do STJ de 18.02.2020, no proc. nº8963/16, in www.dgsi.pt.].

Por outras palavras, a Relação usou dos poderes de cognição do pedido subsidiário em causa, como lhe competia, dentro do objecto do recurso e nos limites anteriormente discutidos pelas partes nos articulados e nas peças recursivas.

O acórdão recorrido conheceu do pedido subsidiário e das implicações do mesmo, tendo sido inteiramente cumprido o direito ao contraditório.

Conclui-se pela não verificação da apontada nulidade processual por violação do princípio do contraditório."

[MTS]