Sigilo bancário; dispensa;
competência hierárquica*
1. A decisão do tribunal de 1ª instância de autorizar a dispensa do sigilo de supervisão bancária do Banco de Portugal pode qualificar-se como inexistente, atenta a falta de poder jurisdicional do juiz de 1ª instância para o efeito, por ser questão da competência dos tribunais superiores, devendo aquele limitar-se a avaliar a legitimidade da escusa de tal entidade em prestar as informações solicitadas e nesse caso remeter para o tribunal superior o incidente para o levantamento/quebra do sigilo.
2. É legítima a recusa do Banco de Portugal em identificar os elementos relativos às contas bancárias de uma das partes no processo de inventário, com fundamento no dever de segredo a que está sujeito, nos termos do art.º 80.º do RGICSF, dever de segredo que se estende às bases de dados das contas bancárias que lhe compete organizar e gerir, conforme prevê o art.º 81.º-A daquele diploma.
3. É adequado e proporcional o levantamento do sigilo de supervisão bancária quando estamos no âmbito de um processo de inventário que visa a partilha do património comum do casal após a dissolução do seu casamento por divórcio, quando o cabeça de casal não consegue identificar as contas bancárias da interessada à data da separação do casal e a mesma recusa colaborar para esse efeito, já que não obstante possam estar em causa contas bancárias da sua exclusiva titularidade, o seu saldo à data da separação do casal pode, pela sua origem, assumir a natureza de bem comum.
4. Em face dos vários direitos em presença, o segredo de supervisão bancária invocado pelo Banco de Portugal deve ser levantado, de modo a que possam ser identificadas as contas bancárias de que a interessada era titular à data da separação do casal, o que se torna necessário para o apuramento do património comum do casal, o que vai ao encontro do interesse público na boa administração da justiça."
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Na sequência do incidente de levantamento do sigilo requerido pelo cabeça de casal, e após o Sr.º Notário determinar o envio do processo para o tribunal para decisão do incidente, veio o tribunal a quo reconhecer o direito ao sigilo do Banco de Portugal, remetendo o processo para este tribunal, ainda que anteriormente tenha proferido um primeiro despacho a autorizar a quebra do sigilo.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Na sequência do incidente de levantamento do sigilo requerido pelo cabeça de casal, e após o Sr.º Notário determinar o envio do processo para o tribunal para decisão do incidente, veio o tribunal a quo reconhecer o direito ao sigilo do Banco de Portugal, remetendo o processo para este tribunal, ainda que anteriormente tenha proferido um primeiro despacho a autorizar a quebra do sigilo.
Para autorizar a quebra do sigilo, como veio mais tarde a reconhecer o Exm.º Juiz a quo, o tribunal de 1ª instância carecia de competência, pelo que tem de considerar-se legítima também a segunda recusa do Banco de Portugal em prestar os elementos bancários que lhe foram solicitados.
Sobre a questão da falta de poder jurisdicional do tribunal de 1ª instância para decidir o incidente da quebra de sigilo, por razões de simplificação e por se concordar com o aí referido em situação idêntica, remete-se para o Acórdão do TRL de 14-09-2021 no proc. 2835/20.9T8CSC.L1-7 in www.dgsi.pt que sobre esta questão se pronuncia nos seguintes termos: “a quebra do segredo, pelo juízo que envolve, é, por opção legislativa, necessariamente da competência de um tribunal superior (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça, conforme os casos). Este último não funciona, pois, como uma instância residual, quando se suscitem dúvidas sobre a legitimidade da escusa, mas sim como instância de decisão do incidente da quebra do segredo, nas situações em que a escusa é legítima.” No mesmo sentido, encontram-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 21-01-2014, relator Rodrigues Pires, processo n.º 664/04.6TJVNF-C.P1 e de 22-05-2017, relatora Ana Paula Amorim, processo n.º 271/13.2TMPRT-A.P1. Ora, nos presentes autos, o tribunal de 1ª instância entendeu ser competente para, reconhecendo a legitimidade da escusa por parte do Banco de Portugal, ordenar a quebra do segredo de supervisão determinando a prestação por aquela entidade das informações visadas pela requerida. Sucede que, embora o notário tenha competência, como se viu, para ordenar a notificação do Banco de Portugal para prestar tais informações, já não a tem para suscitar ou apreciar o incidente de dispensa de sigilo, incidente que foi remetido para o juízo de família e menores, tribunal com competência para apreciar a legitimidade da escusa, pois que o RJPI não atribui tais competências ao notário. No entanto, aferida essa legitimidade, impunha-se à 1ª instância, suscitar perante o Tribunal imediatamente superior a apreciação do incidente de quebra do dever de segredo e não proceder, ela própria, à sua apreciação, sendo certo que, como se referiu, a quebra do segredo é, por opção legislativa, necessariamente da competência de um tribunal superior, o que de modo algum foi afastado ou se pode considerar afastado pelo regime jurídico do processo de inventário – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-03-2016, relator António Beça Pereira, processo n.º 42/16.4T8FAF-A.G1. O Tribunal recorrido ao apreciar e decidir sobre a dispensa do dever de sigilo extravasou o âmbito da sua competência, ou seja, a 1ª instância não tinha competência funcional para se pronunciar quanto a tal matéria, sendo incompetente, em razão da hierarquia, para o efeito – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-09-2011, relatora Ana Paula Amorim, processo n.º 3553/06.6TJVNF-D.P1 – “O tribunal de 1ª instância é incompetente, em razão da hierarquia, para apreciar e proferir decisão no presente incidente (art. 71º/1 CPC). A violação das regras de competência em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do tribunal e tem como consequência a remessa do processo ao Tribunal da Relação do Porto, onde deve ser promovida a tramitação subsequente do incidente de dispensa de segredo bancário (art. 101º, 102º, 107º/1 CPC).”; no sentido de que o tribunal, seja o juiz da 1ª instância sejam os juízes dos tribunais de recurso, não só pode como deve suscitar ex-officio a incompetência absoluta em razão da hierarquia, Francisco Manuel Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume I, 2ª Edição, Reimpressão 2018, pág. 375, nota 759. A decisão proferida pelo tribunal recorrido no âmbito do incidente de dispensa de sigilo, porque proferida por quem não detinha poder jurisdicional para a proferir, padece de vício gerador de inexistência jurídica.”
A decisão do tribunal de 1ª instância, de autorizar a dispensa de sigilo do Banco de Portugal é irrelevante para efeitos da decisão do presente incidente, podendo qualificar-se como inexistente atenta a falta de poder jurisdicional do juiz de 1ª instância para o fazer, já que é questão da competência dos tribunais superiores, pelo que bem fez o Exm.º Juiz a quo em, num segundo momento, remeter para este tribunal o processo para decisão."
*III. [Comentário] Não parece que a sentença de um tribunal de 1.ª instância sobre o levantamento do sigilo bancário seja uma sentença inexistente por falta de poder jurisdicional desse tribunal.
Qualquer tribunal tem poder jurisdicional. O que pode suceder é que não tenha competência para apreciar uma acção, nomeadamente porque o objecto desta não cabe na sua competência material ou hierárquica.
O que se diria se a revisão e confirmação de uma sentença estrangeira fosse decretada por um tribunal de 1.ª instância (em vez de, como se impõe, ser decretada por uma das Relações: art. 55.º, al. e), LOSJ)? Que se trata de uma sentença inexistente ou que se trata de uma sentença proferida por um tribunal absolutamente incompetente por violação das regras de competência hierárquica? A resposta seria certamente esta última (art. 96.º, al. a), CPC).
Aliás, se o pedido de revisão e confirmação for dirigido a um tribunal de 1.ª instância, o que o tribunal dirá é que absolutamente incompetente para apreciar a acção (não que uma eventual decisão sua seria inexistente).
Em conclusão: a decisão de levantamento do sigilo bancário proferida por um tribunal de 1.ª instância não é uma decisão inexistente, mas antes uma decisão proferida por um tribunal absolutamente incompetente.
Qualquer tribunal tem poder jurisdicional. O que pode suceder é que não tenha competência para apreciar uma acção, nomeadamente porque o objecto desta não cabe na sua competência material ou hierárquica.
O que se diria se a revisão e confirmação de uma sentença estrangeira fosse decretada por um tribunal de 1.ª instância (em vez de, como se impõe, ser decretada por uma das Relações: art. 55.º, al. e), LOSJ)? Que se trata de uma sentença inexistente ou que se trata de uma sentença proferida por um tribunal absolutamente incompetente por violação das regras de competência hierárquica? A resposta seria certamente esta última (art. 96.º, al. a), CPC).
Aliás, se o pedido de revisão e confirmação for dirigido a um tribunal de 1.ª instância, o que o tribunal dirá é que absolutamente incompetente para apreciar a acção (não que uma eventual decisão sua seria inexistente).
Em conclusão: a decisão de levantamento do sigilo bancário proferida por um tribunal de 1.ª instância não é uma decisão inexistente, mas antes uma decisão proferida por um tribunal absolutamente incompetente.
MTS