"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/10/2024

Jurisprudência europeia (TJ) (313)


Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (CE) n.° 44/2001 — Artigos 34.° e 45.° — Reconhecimento e execução de decisões — Revogação de uma declaração de executoriedade de decisões — Motivos de recusa — Ordem pública do Estado requerido — Condenação de um jornal e de um dos seus jornalistas por ofensa à reputação de um clube desportivo — Indemnização — Artigo 11.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Liberdade de imprensa


TJ 4/10/2024 (C‑633/22, Real Madrid, AE / EE, Société Éditrice du Monde) decidiu o seguinte:

O artigo 34.°, ponto 1, e o artigo 45.° do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, conjugados com o artigo 11.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

devem ser interpretados no sentido de que:

a execução de uma sentença que condena uma sociedade editora de um jornal e um dos seus jornalistas no pagamento de uma indemnização pelos danos morais sofridos por um clube desportivo e por um dos membros da sua equipa médica devido a uma ofensa à sua reputação por causa de uma informação que lhes dizia respeito publicada por esse jornal deve ser recusada na medida em que tenha por efeito uma violação manifesta da liberdade de imprensa, conforme consagrada no artigo 11.° da Carta dos Direitos Fundamentais e, assim, uma violação da ordem pública do Estado‑Membro requerido.

 

Jurisprudência europeia (TJ) (312)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento n.° 1215/2012 — Artigo 1.°, n.° 1 — Âmbito de aplicação — Matéria civil e comercial — Conceito — Processo de substituição do consentimento do demandado para o levantamento do depósito judicial de um bem apreendido pelas autoridades penais — Artigo 8.°, ponto 2 — Pedido de intervenção — Conceito de “terceiros”


TJ 4/10/2024 (C‑494/23, QE, IJ/DP, EB) decidiu o seguinte:

O artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

o conceito de «matéria civil e comercial», na aceção desta disposição, não abrange uma ação destinada a substituir o consentimento do demandado no âmbito de um pedido de levantamento de um objeto sob depósito judicial, quando essa ação é um processo incidental em relação ao processo de depósito judicial do objeto apreendido pelas autoridades processuais penais.

 

04/10/2024

Jurisprudência europeia (TJ) (311)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Processos de insolvência — Regulamento (UE) 2015/848 — Artigo 3.° — Competência internacional — Centro dos interesses principais de uma pessoa singular que exerce uma atividade profissional independente — Conceito de “local de atividade principal” — “Conceito de estabelecimento” — Presidente do conselho fiscal de uma sociedade anónima.


TJ 19/9/2024 (C-501/23, DL/Land Berlin) decidiu o seguinte:

1) O artigo 3.°, n.° 1, terceiro parágrafo, do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência,

deve ser interpretado no sentido de que:

o conceito de «local de atividade principal» de uma pessoa singular que exerça uma atividade comercial ou profissional independente, na aceção desta disposição, não corresponde ao conceito de «[e]stabelecimento», definido no artigo 2.°, ponto 10, deste regulamento.

2) O artigo 3.º, n.° 1, terceiro parágrafo, do Regulamento 2015/848

deve ser interpretado no sentido de que:

tratando‑se de uma pessoa singular que exerça uma atividade comercial ou profissional independente, presume‑se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais dessa pessoa se situa no local da atividade principal da referida pessoa, mesmo que essa atividade não necessite de nenhum meio humano ou bem material.

 

Jurisprudência 2024 (19)

 
Patrocínio judiciário obrigatório;
requerimento da parte

 
I. O sumário de RG 25/1/2024 (1/21.5T8CHV-D.G2) é o seguinte:

1. A taxa de justiça devida só pode ser paga em prestações nos termos definidos pelo art. 33º RCP, e essa possibilidade não se aplica às multas processuais.

2. Um requerimento apresentado pela própria parte, que está representada por Advogado nos autos, a pedir o pagamento em prestações em caso em que tal não é legalmente admissível não pode ter como efeito o alargamento do prazo para pagamento da guia que tinha sido enviada ao Mandatário.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de execução ..., corre termos processo de embargos de executado em que é embargante AA e embargado BB.

No decurso da audiência de julgamento, realizada em 26.5.2022, pela ilustre mandatária do embargante foi pedida a palavra e, sendo-lhe concedida, no uso da mesma requereu a junção de documentos e a produção de prova pericial.
 
Após cumprimento do contraditório, o Tribunal proferiu despacho em que considerou ser extemporânea quer a requerida junção de prova documental quer a produção de prova pericial, pelo que indeferiu ao requerido.

O executado veio interpor recurso de apelação desse despacho proferido pelo tribunal a quo em sede de audiência de julgamento. Juntou alegações de recurso e comprovativo do pedido de apoio judiciário (fls. 85 e ss histórico).

A Segurança Social veio por ofício de 22.9.2022 informar o Tribunal que o pedido de apoio judiciário formulado pelo embargante foi indeferido, por ter sido considerado intempestivo.

Em 21.10.2022, na sequência de despacho no mesmo sentido, o Ilustre Mandatário do embargante foi notificado para, no prazo de 10 dias, efectuar o pagamento da taxa de justiça devida acrescida de uma multa de igual montante, sob pena de desentranhamento da alegação (art. 642º,1 CPC).

Por requerimento de 29.11.2022 veio o recorrente, na sequência de convite judicial, juntar aos autos cópia do requerimento de impugnação judicial da decisão de indeferimento do apoio judiciário.

A 24.1.2023 foi enviado ao Tribunal de Execução o recurso de impugnação da decisão proferida pela Segurança Social, de indeferimento.

Em 22.3.2023 foi proferido despacho final nesse recurso de impugnação, que o julgou improcedente e, em consequência, manteve a decisão proferida pelo Centro Distrital de Segurança Social de ....

A 19.5.2023 foi o Ilustre Mandatário do embargante notificado, nessa qualidade, para, no prazo de 10 dias, efectuar o pagamento da taxa de justiça devida acrescida de uma multa de igual montante, sob cominação de que a falta de pagamento da taxa de justiça e da multa no prazo assinalado implica o desentranhamento da alegação, do requerimento ou da resposta apresentada pela parte em falta.
 
Em concretização, foi enviada uma guia para pagar a quantia de € 408,00 até ao dia 1.6.2023 (sendo € 204,00 de taxa de justiça e € 204,00 de multa).

Por e-mail enviado a 25.5.2023 o próprio embargante (e não o seu Mandatário) veio informar que não tinha condições financeiras para efectuar o pagamento de uma só vez, por dificuldades económicas, e veio solicitar autorização para efectuar o pagamento em 6 prestações mensais.

O Tribunal proferiu em 27.6.2023 o seguinte despacho (o despacho recorrido):

“Compulsados os autos constata-se que, em 29/05/2023 (Cfr. ref.ª...98), a Secção procedeu à notificação do ilustre mandatário do executado AA, para, no prazo de 10 dias, efectuar o pagamento da taxa de justiça devida acrescida de uma multa nos termos legais (art. 642.º, n.º 1 do CPC), sob cominação da falta de pagamento da taxa de justiça e da multa no prazo assinalado implicar o desentranhamento dos autos, da alegação, do requerimento ou da resposta eventualmente apresentada pela parte em falta.
 
Por requerimento junto aos autos em 25/05/2023, veio o próprio executado requerer que lhe seja facultado o pagamento das quantias em dívida (taxa de justiça e multa) em prestações invocando, para o efeito, a existência de dificuldades económicas.
 
Cumpre apreciar: O requerido pelo executado/recorrente não tem fundamento legal pois não se encontra prevista a possibilidade da taxa de justiça devida e a multa respectiva de serem pagas em termos prestacionais, motivo pelo qual não pode proceder a pretensão daquele, o que se decide.
 
Assim sendo, uma vez que não se encontram comprovados nos autos os pagamentos que são devidos, a título de taxa de justiça e multa pela interposição do recurso
 
junto com o requerimento ref.ª ...30 de 13/06/2022, tem-se o aludido requerimento que
contém as alegações de recurso por extemporâneo.
 
Em face do exposto, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 642 do CPC, determina-se o desentranhamento das alegações de recurso juntas aos autos sob ref.ª ...30.
 
Custas a cargo do Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em uma (1) UC - art.7.ºdo RCP”.

O executado/embargante, não se conformando com tal despacho, veio apresentar reclamação ao abrigo do art. 643º,1 CPC.

Em síntese nossa, faz assentar a sua pretensão nos seguintes argumentos:

1. O Tribunal desconsiderou por completo o requerimento do embargante de pagamento em prestações.
2. Deveria o Tribunal conceder o prazo supletivo de 10 dias para o recorrente vir proceder ao pagamento da taxa de justiça e multa.
3. Ao agir como agiu violou o tribunal o direito de acesso à justiça consagrado no art. 20º CRP.
4. Foi proferido o despacho em crise, de desentranhamento das alegações de recurso, sem que tivesse sido dada oportunidade ao recorrente de vir proceder ao pagamento da taxa de justiça e multa, a fim de ser admitido e conhecido o objecto do recurso.
5. Não podia ter sido rejeitada a admissão do recurso com fundamento em extemporaneidade.
6. O despacho de não admissão de recurso viola o disposto no art. 642º CPC e 33º RCP e art. 20º CRP.
7. Deve ser proferida decisão que revogue o despacho que não admitiu o recurso, substituindo-o por outro que determine a notificação do recorrente para no prazo de 10 dias proceda ao pagamento da taxa de justiça e multa, e, consequentemente, admita e conheça do recurso.

Tal reclamação foi admitida a subir a este Tribunal da Relação, onde foi proferido a 26.9.2023 o seguinte despacho:

“A presente reclamação tem como objecto despacho proferido pelo Tribunal a quo a determinar o desentranhamento das alegações de um recurso apresentado pelo reclamante com fundamento na omissão do pagamento da taxa de justiça devida e respectiva multa, no qual é invocada, em suporte legal, a norma do n.º 2 do art. 642 do CPC.
 
Ora, como nota António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 225, nota 378, contra a decisão de desentranhamento arrimada no disposto no art. 642/2 do CPC cabe recurso e não reclamação.
 
Verifica-se, deste modo, um erro na qualificação do meio processual.
 
O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz que deve determinar a observância dos termos processuais adequados, em cumprimento do disposto no art. 193/3 do CPC.
 
Analisado o requerimento, verifica-se que o mesmo foi apresentado dentro do prazo previsto para a interposição de recurso. Examinando a reclamação, verifica-se: que esta foi apresentada dentro do prazo de 15 dias para interposição do recurso (art. 638/1 do CPC e 644/2, d), do CPC, aplicado por identidade de razões); consta de alegações e conclusões.
 
Desta forma, a reclamação pode convolar-se em recurso, com vista a ser apreciada, desde que a parte reclamante pague a taxa de justiça complementar.

Nestes termos:
 
1. Convida-se os interessados a pronunciarem-se, querendo, pela convolação da reclamação em recurso de apelação.
2. Convida-se o reclamante a pagar a taxa de justiça complementar do recurso, com referência ao valor da causa adrede fixado na 1.ª instância”.


Foi então o Ilustre Mandatário do embargante notificado para efectuar o pagamento da diferença entre o valor pago e a pagar da taxa de justiça devida pelas alegações apresentadas.
O mesmo veio informar que nada tinha a opor à convolação da reclamação em recurso de apelação, e efectuou o pagamento da taxa de justiça devida, no valor de € 153,00.

Então, o Ex.mo Desembargador Relator proferiu, em 4.10.2023 o seguinte despacho:

“Considerando a declaração expressa pelo Reclamante no sentido de «concordar com a convolação» e atenta a comprovação do pagamento da taxa de justiça complementar, nos termos e pelos fundamentos que constam do despacho proferido no dia 26.09 –que, brevitatis causa, se dão por integralmente reproduzidos –, decide-se: 
 
1) convolar a presente reclamação em recurso de apelação;
2) consequentemente, julgar extinta a presente instância de reclamação prevista no art. 643 do CPC; e
3) determinar a remessa dos presentes autos ao Tribunal de 1ª Instância para que, em cumprimento do disposto no art. 641 do CPC, aprecie os requisitos de admissibilidade do requerimento ora convolado em recurso de apelação”.

Regressados os autos à primeira instância, foi então proferido o seguinte despacho, de 13.11.2023:

“Nos termos dos despachos proferidos superiormente em 26/09/2023 e em 04/10/2023 neste apenso D) que, anteriormente, seguiu termos como Reclamação (art.643.º do CPC), foi determinada a convolação da mesma em Recurso.
 
Determinou-se também que os autos baixassem à primeira instância para serem apreciados os pressupostos de admissibilidade do recurso, nos termos do art. 641.º do CPC.
 
Um dos pressupostos de admissão do recurso é a apresentação de “Conclusões”.
 
Analisado o requerimento de interposição da “Reclamação” (art. 643.º do CPC), agora convolado em requerimento de interposição de “Recurso”, não vislumbramos que o mesmo contenha as ditas conclusões.
 
A nosso ver, não tendo o executado/recorrente cumprido este ónus que sobre si recaía e não havendo lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, apenas nos restaria rejeitar o recurso por falta de conclusões nos termos do art. 641.º, n.º 2, alínea b) do CPC.
 
Contudo, compulsado o teor do douto despacho proferido em 26/09/2023 no Tribunal da Relação verificamos que o Exmo. Sr. Juiz Desembargador fez constar, para além do mais, o seguinte: “(…) Analisado o requerimento, verifica-se que o mesmo foi apresentado dentro do prazo previsto para a interposição de recurso. Examinando a reclamação, verifica-se: que esta foi apresentada dentro do prazo de 15 dias para interposição do recurso (art. 638/1 do CPC e 644/2, d), do CPC, aplicado por identidade de razões); consta de alegações e conclusões (…)” [...]
 
Assim, por dever de obediência às decisões superiores, temos de aceitar que o requerimento de recurso contém conclusões.
 
Neste contexto, por legalmente admissível (uma vez que, entretanto, o recorrente já procedeu ao pagamento da taxa de justiça que, anteriormente, não tinha pago – cfr. ref.ª ...80 de 02/10/2023 e que foi o motivo de não ter sido admitido o recurso interposto pelo executado em 13/06/2022, sob ref.ª ...30 do Apenso B), tempestivo e interposto por quem para tal tem legitimidade, admito o recurso interposto por AA através do douto articulado junto em 10/07/2023, sob ref.ª ...34, o qual é de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo (cfr. art. 644.º, n.º 1, alínea d), 645.º, n.º 2 e 647.º, n.º 1 todos do NCPC).
 
Oportunamente, remeta os presentes autos ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães”.


E assim chegou este apenso de recurso de apelação a esta Relação.
 
Previamente, temos de dizer que o Tribunal recorrido apercebeu-se, e bem, que o requerimento de reclamação não continha conclusões, e fez menção disso no despacho. Porém, considerou que por dever de obediência à decisão da Relação, onde se podia ler que “analisado o requerimento, verifica-se que o mesmo (..) consta de alegações e conclusões”, deveria actuar como se as conclusões estivessem lá, e admitiu o recurso.
 
Embora se compreenda esta postura, a verdade é que mesmo que “Deus todo poderoso” diga que estão lá as conclusões, se elas lá não estiverem, não estão mesmo.

E não estão.
 
Donde, tendo o Tribunal recorrido recebido da Relação a incumbência de “apreciar os requisitos de admissibilidade do requerimento ora convolado em recurso de apelação”, em nosso entendimento deveria ter rejeitado o recurso for falta objectiva e incontornável de conclusões.
 
Porém, tendo sido admitido, e considerando toda a tramitação que referimos, e até considerando a extrema simplicidade da questão suscitada, vamos conhecer do mesmo de imediato.
 
A única questão a decidir é saber se o Tribunal recorrido andou bem quando, por despacho de 27.6.2023, determinou o desentranhamento das alegações de recurso.
 
E a resposta é que andou bem.
 
Recordando, o recorrente não goza de apoio judiciário, pretensão que foi indeferida.
 
Logo, foi notificado em 19.5.2023 para, no prazo de 10 dias, efectuar o pagamento da taxa de justiça devida acrescida de uma multa de igual montante, sob cominação de desentranhamento das alegações. Foi-lhe enviada uma guia para pagar a quantia de € 408,00 até ao dia 1.6.2023 (sendo € 204,00 de taxa de justiça e € 204,00 de multa).
 
O recorrente, apesar de representado por Advogado nos autos, veio, pessoalmente e por e-mail recebido em Tribunal a 25.5.2023, requerer o pagamento da quantia em dívida em 6 prestações mensais.
 
Sucede que a lei não permite o referido pagamento em prestações. O art. 33º,1 do Regulamento das Custas Processuais só admite o pagamento em prestações quando o valor a pagar seja igual ou superior a 3 UC, ou seja, igual ou superior a € 306,00. E a taxa de justiça devida era de valor inferior. E note-se que a faculdade concedida pelo art. 33º,1 RCP só se aplica à taxa de justiça, e não às multas ou penalidades lato sensu, como explica Salvador da Costa, in As custas processuais, 6ª edição, fls. 251.
 
E estando o recorrente representado por Advogado, é óbvio que este último sabia que a quantia em dívida não podia ser paga em prestações. O facto de ter sido a própria parte, e não o Mandatário, a vir pedir a faculdade de pagar em prestações, (não se sabendo por que tal sucedeu) não pode ter como efeito um alargamento do prazo de pagamento.
 
Assim, o despacho recorrido limitou-se a dizer que a pretensão do pagamento em prestações não tinha fundamento legal, e como o prazo limite de pagamento da guia já tinha sido em muito ultrapassado, sem o pagamento ser feito, aplicou a cominação legal prevista no art. 642º,2 CPC, ordenando o desentranhamento das alegações de recurso."

[MTS]


03/10/2024

Papers (514)


-- Dylag, Matthew, The Impact of Artificial Intelligence on Access to Justice: Predictive Analytics and the Legal Services Market (SSRN 03.2024)


Jurisprudência 2024 (18)

Oposição à execução;
processo declarativo; falta de intervenção do réu

 
I. O sumário de RL 25/1/2024 (4118/19.8T8OER-A.L1-2) é o seguinte:

1. A fundamentação da sentença deve ser de facto – com indicação dos factos provados e não provados - e de direito – com a indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes, e assenta no direito das partes a saberem as razões da decisão do tribunal, de modo a poderem avaliar a bondade da mesma e, se for caso disso, ponderar a sua impugnação, constituindo uma fonte de legitimação da decisão judicial.

2. A decisão sob recurso é nula por falta de fundamentação de facto, nos termos do art.º 615.º n.º 1 al. b) do CPC, ao não fazer o elenco dos factos que tem como assentes ou tidos como provados, limitando-se singelamente a afirmar a verificação ou não das exceções que aprecia e a indicar de forma conclusiva a norma jurídica correspondente.

3. O art.º 729.º do CPC ao elencar os casos em que pode haver lugar a oposição à execução quando esta se funda em sentença, prevê na sua al. d) que o executado pode opor-se quando tenha existido “Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.” remetendo dessa forma para aqueles fundamentos do recurso de revisão.

4. Não estamos perante um caso em que há uma falta absoluta de intervenção da R. no processo declarativo onde foi proferida a sentença dada à execução, como é exigência do corpo da al. e) do art.º 696.º do CPC, quando a R. aí foi devidamente citada, tomando por isso conhecimento da ação que havia sido intentada contra si e até teve intervenção no processo, ainda que não tenha apresentado contestação.

5. A integração da subalínea iii) da al. e) do art.º 696.º do CPC exige que o R. não tenha podido apresentar contestação por motivo de força maior, conceito que, como a própria expressão indica, impõe que o evento causador de tal omissão não seja imputável à parte por estar fora do seu controle, podendo aplicar-se aqui o conceito de justo impedimento previsto no art.º 140.º do CPC.

6. Não configura um motivo de força maior para a não apresentação de contestação, a falta de conhecimento atempado da decisão da segurança social sobre o patrocínio judiciário requerido, notificada para morada que a R. indicou quando formulou o requerimento e que é a da sua sede, só tendo informado a segurança social que pretendia a notificação numa nova morada cerca de sete meses depois da formulação do pedido de proteção jurídica e quando já havia sido proferida decisão sobre ele.

7. O caso julgado, tal como a litispendência, tem como objetivo evitar que o julgador seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior, tal como dispõe o n.º 2 do mesmo artigo, ao que estão subjacentes razões de confiança e segurança dos cidadãos nas decisões judiciais, também no sentido de que uma vez decidida a questão a mesma fica definitivamente resolvida.

8. No que se refere à identidade da causa de pedir, importa avaliar os factos que foram alegados pelas partes e que suportam o pedido formulado na ação que já foi decidida e naquela que é proposta mais tarde, só havendo identidade de causa de pedir, nos termos do art.º 581.º n.º 4 do CPC, se os factos submetidos à apreciação do tribunal em ambas as ações forem essencialmente os mesmos. 

9. Não há identidade de pedido e de causa de pedir entre duas ações, ainda que o litígio se centre no mesmo contrato de compra e venda que foi celebrado entre as partes, quando: no primeiro processo, a A. vem pedir o cumprimento do contrato pela R. no sentido da sua condenação no pagamento do remanescente do preço acordado que não foi pago, tendo-se discutido também os factos alegados pela ali R. relativos aos defeitos dos bens, que não obstante se tenha apurado que existiram ficou também provado que foram substituídos ou reparados; no segundo processo, a A., R. na primeira ação, vem invocar factos novos e posteriores, que se reportam aos bens que foram substituídos e reparados, alegando que estes vieram posteriormente a apresentar os mesmos defeitos, pedindo a condenação da R. no pagamento de uma indemnização correspondente aos danos sofridos.

10. Os factos alegados pela A. na segunda ação não põem em causa, nem pretendem representar de uma forma diferente a situação contratual das partes já apreciada e decidida na primeira ação, antes correspondem a factos novos que surgem mais tarde ainda no desenvolvimento daquela relação contratual, não podendo dizer-se que correspondem ao núcleo essencial de factos que já haviam sido objeto de julgamento, o que revela a diversidade das causas de pedir.

11. Não é cometida qualquer irregularidade pelo tribunal quando envia à R. a notificação da sentença para a morada onde a mesma havia sido citada e corresponde à sua sede, exatamente conforme previsto no art.º 249.º n.º 1 e 5 do CPC, não obstante a carta tenha sido devolvida ao processo com a indicação de “mudou-se”, o que não obsta a que a notificação produza os seus efeitos, como estabelece o n.º 2 do referido artigo.


II. Na fundamentação do (multifacetado) acórdão escreveu-se o seguinte:

"IV. Razões de Direito

- do motivo de força maior para a não intervenção do Recorrente no processo declarativo

Alega a Recorrente que a sua falta de intervenção na ação declarativa onde foi proferida a sentença dada à execução ficou a dever-se a motivo de força maior, nos termos do art.º 696.º al. e) subalínea iii) e por via disso no art.º 729.º al. d) do CPC. Refere que o que determinou a falta de apresentação de contestação no processo declarativo onde foi proferida a sentença dada à execução, foi a falta de notificação tempestiva da Segurança Social da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário que havia apresentado, o que deve ser encarado como motivo de força maior, que não lhe é imputável, nem aos seus representantes.

A decisão recorrida, relativamente a esta questão colocada pela Embargante, limitou-se a referir: “A embargante invoca fundamentos de recurso de revisão (CPC 696º/e)), mas o presente tribunal não é competente para os apreciar (CPC 697º/1.).”

Com esta decisão, que não pode deixar de considerar-se ter sido proferida com muita ligeireza e precipitação, o Exm.º Juiz a quo não teve em conta: em primeiro lugar, que o Embargante não veio interpor nenhum recurso de revisão da sentença, que coubesse apreciar; em segundo lugar, que aqueles fundamentos do recurso de revisão, são os mesmos que podem servir de base à oposição à execução, conforme prevê o art.º 729.º n.º 1 al. d) do CPC por remissão, que não foram por ele apreciados.

O art.º 729.º do CPC vem elencar os casos em que pode haver lugar a oposição à execução quando esta se funda em sentença, prevendo na sua al. d), na redação que lhe foi dada pela Lei 117/2019 de 13 de setembro, que o executado pode opor-se quando tenha existido “Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.

O art.º 696.º do CPC diz respeito aos fundamentos do recurso de revisão, indicando de forma taxativa os casos em que a sentença transitada em julgado pode ser objeto de revisão e prevendo designadamente, para o que agora nos interessa, na sua al. e) que tal pode ocorrer quando:

 “e) Tendo corrido o processo à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que:

i) Faltou a citação ou que é nula a citação feita;
ii) O réu não teve conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável;
iii) O réu não pode apresentar a contestação por motivo de força maior;”

Avaliando este preceito legal, diz-nos com toda a clareza o Acórdão do TRP de 29 de setembro de 2021 no proc. 1250/20.9T8VLG-A.P1 in www.dgsi.pt : “Em tese geral, importa referir que o conceito de revelia relevante para efeitos do art. 696.º, n.º 1, do Código de Processo Civil designa a “falta absoluta de intervenção, por si ou por meio de representante, no processo em que foi proferida a sentença a rever” (José Alberto dos Reis, anotação ao art. 771.º em Código de Processo Civil anotado, vol. VI “apud” Acórdão do STJ de 8 de Abril de 2021, processo nº 3678/10.3TBCSC-A.L1.S1, em dgsi.pt, onde se citam ainda outras passagens similares do mesmo autor). Ora, como ficou dito na decisão recorrida e ressalta dos autos, não está em causa que essa intervenção, entendida de forma abrangente, incluindo não estar presente e também não se fazer representar, existiu; não se deve confundir a ausência de uma participação ativa com a impossibilidade dessa participação. Como se compreende, a parte pode não acudir ao processo o que não significa que nele não tenha podido estar presente; são realidades distintas. Essa impossibilidade parece afastada, desde logo, pela circunstância de o ora recorrente ter diligenciado, junto da Segurança Social pela concessão de apoio judiciário, face à interposição da ação em que veio a ser condenado; esta interveniência aparta a verificação da dita revelia absoluta independentemente do efeito que esse pedido tenha tido no destino do processo. (…) Não se ignora que a Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, veio alterar os requisitos para que se intente o recurso de revisão densificando-o. Destarte, a alínea e) do artigo 696º do CPC expressamente indica os casos em que o réu não logrou apresentar a contestação por motivo de força maior (sub-alínea iii). Porém, nada se alterou no preceito quanto à existência de uma “falta absoluta de intervenção do réu” (…).”

Manifestamente, não estamos perante uma situação que possa enquadrar-se no âmbito do ponto iii) da al. e) do art.º 696.º e consequentemente no art.º 729.º al. d) do CPC, não se verificando este fundamento válido de oposição à execução, contrariamente ao invocado pela Embargante.

Senão vejamos

Se atentarmos nos factos apurados, verifica-se, que não estamos perante um caso em que há uma falta absoluta de intervenção da R. no processo declarativo em questão, como é exigência do corpo da al. e) do art.º 696.º do CPC.

Na ação declarativa onde foi proferida a sentença dada à execução a R. foi devidamente citada, tomando por isso conhecimento da ação que havia sido intentada contra si e até teve intervenção no processo, nele se apresentando a prestar a informação de que havia formulado junto da segurança social requerimento de proteção jurídica. O que aconteceu foi que a R. não apresentou contestação no processo para o qual foi citada, mas não pode dizer-se que nele não teve qualquer intervenção.

De qualquer modo, a integração desta norma impõe que o R. não tenha podido apresentar contestação por motivo de força maior, conceito que exige desde logo, como a própria expressão indica, que o evento causador de tal omissão não seja imputável à parte, por estar fora do seu controle, podendo aplicar-se aqui o conceito de justo impedimento previsto no art.º 140.º do CPC – neste sentido pronuncia-se também o citado Acórdão do TRP.

No caso, a situação relatada pela Embargante não configura um motivo de força maior para não ter apresentado contestação naquele processo. Pelo contrário, não pode deixar de reconhecer-se que, mesmo a considerar-se ter existido uma falta de conhecimento atempado da decisão da segurança social, tal lhe foi inteiramente imputável. Veja-se que quando requereu o benefício de apoio judiciário a morada que a R. indicou foi a da sua sede, para a qual foi inicialmente notificada, só tendo informado a segurança social de uma nova morada com pedido de notificação para a mesma, cerca de sete meses depois da formulação do pedido de proteção jurídica, quando já havia sido proferida decisão sobre ele e enviada notificação para a sua sede. É por isso da sua inteira responsabilidade a circunstância (alegadamente) de não ter recebido a notificação da segurança social sobre o pedido que apresentou e que lhe foi enviado.

Em conclusão, não há uma absoluta falta de intervenção da R. na ação declarativa onde foi proferida a sentença que serve de base à execução e a falta de apresentação de contestação em tal processo não encontra justificação em qualquer motivo de força maior, não se mostrando preenchido o pressuposto da parte final da al. e) do art.º 696.º do CPC e consequentemente do art.º 729.º al. d) do CPC, não podendo servir de fundamento à oposição à execução.

[MTS]

02/10/2024

Acção popular e "processo estrutural"


1. Foi recentemente divulgado o acórdão do STJ de 19/9/2024 (28650/23.0T8LSB.S1)cujo sumário é o seguinte:

I - O pedido de condenação do Estado Português a adoptar as medidas necessárias e suficientes para assegurar, em relação aos valores de 2005, uma redução até 2030 de, pelo menos, 55% da emissão de gases de efeito de estufa (não considerando o uso do solo e florestas), as quais devem ser especificadas e calendarizadas no prazo de três meses a contar da data em que a sentença produza efeitos, é um pedido genérico, mas não ininteligível.

II – Recai sobre as autoras o ónus de o concretizar, visto que este pedido não se ajusta a nenhum dos casos em que é permitido formular pedidos genéricos (alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 556.º do CPC) e não é sobre o demandado que impende tal ónus.

O acórdão foi proferido no âmbito de uma acção popular proposta por três associações contra o Estado português.

2. a) Não cabe neste momento analisar o acórdão do STJ, mas antes chamar a atenção para a particularidade da acção popular que se encontra pendente. Note-se que não se procede a nenhuma apreciação sobre o mérito da acção. Do que agora se trata é apenas de saber como, numa perspectiva processual, se deve encarar a referida acção (algo que constitui, se assim se pode dizer, uma questão prévia) e como, na hipótese de a mesma passar da fase liminar em que se encontra, se deve enfrentar os problemas que ela suscita.

A acção popular agora pendente corresponde ao que, na terminologia da doutrina brasileira, se chama um "processo estrutural". Na opinião de três abalizados Autores (e Colegas), para se compreender o que é um "processo estrutural", há que ter presente, antes de tudo o mais, a noção de "problema estrutural":

"O problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada – uma situação de ilicitude contínua e permanente ou uma situação de desconformidade, ainda que não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal. Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de coisas que necessita de reorganização (ou de reestruturação)" (Didier Jr., F./Zanetti Jr., H./Alexandria de Oliveira, R., Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro, RMPRJ 75 (2020), 104).

Nesta base, sobre o "processo estrutural" é afirmado o seguinte: 

"O processo estrutural se caracteriza por: (i) pautar-se na discussão sobre um problema estrutural, um estado de coisas ilícito, um estado de desconformidade, ou qualquer outro nome que se queira utilizar para designar uma situação de desconformidade estruturada; (ii) buscar uma transição desse estado de desconformidade para um estado ideal de coisas (uma reestruturação, pois), removendo a situação de desconformidade, mediante decisão de implementação escalonada; (iii) desenvolver-se num procedimento bifásico, que inclua o reconhecimento e a definição do problema estrutural e estabeleça o programa ou projeto de reestruturação que será seguido; (iv) desenvolver-se num procedimento marcado por sua flexibilidade intrínseca, com a possibilidade de adoção de formas atípicas de intervenção de terceiros e de medidas executivas, de alteração do objeto litigioso, de utilização de mecanismos de cooperação judiciária; (v) e, pela consensualidade, que abranja inclusive a adaptação do processo (art. 190, CPC)" (Didier Jr., F./Zanetti Jr., H./Alexandria de Oliveira, R.RMPRJ 75 (2020), 107 s.).

b) O interesse da doutrina brasileira pela matéria relativa aos processos estruturais não é de admirar. No fundo, trata-se de uma evolução lógica a partir da tutela colectiva, um instituto que a doutrina brasileira muito estudou e fez avançar. Depois da tutela colectiva, os processos estruturais poderão vir a ser a segunda contribuição brasileira significativa para a evolução, a nível mundial, do processo civil.

3. Perante o que acima se descreveu, é fácil concluir que a acção popular agora pendente constitui para o sistema processual civil português um verdadeiro stress test. Perante uma acção popular que não é "como as outras", está lançado um verdadeiro desafio a esse sistema processual. 

Como já se referiu, o mais importante, neste momento, é saber enquadrar devidamente a acção popular. Trata-se de reconhecer que a acção popular agora pendente tem características que a distinguem das comuns acções populares. Uma vez que a acção ainda se encontra numa fase liminar, ainda se está a tempo de reconhecer as suas especificidades. Lembre-se que, no regime processual português, não há nenhuma regra de tipicidade das acções que podem ser propostas nos tribunais (e dos pedidos que nelas podem ser formulados).

Enquadrada a acção popular atendendo às suas características essenciais, é então que surgem os verdadeiros problemas. No entanto, não se pode dizer que o sistema processual civil português se encontra "desarmado" perante esses problemas. Se é verdade que se pode encontrar pouco apoio na actual (e, entretanto, "envelhecida") Lei da Acção Popular, também é verdade que o juiz da acção popular tem ao seu dispor o poder de gestão processual (consagrado no art. 6.º, n.º 1, CPC) e o poder de adequação formal (estatuído no art. 547.º CPC). Sem querer fazer futurologia, será praticamente impossível que a acção popular pendente possa vir a tramitar sem um forte recurso a esses poderes do tribunal (de preferência, utilizados em constante diálogo com as partes).

Como acima se disse, não cabe agora averiguar as possibilidades de êxito da acção popular pendente. Importa referir, no entanto, que, numa época em que se tem assistido a um claro abuso no recurso à acção popular, a acção agora pendente, qualquer que venha a ser a decisão sobre o seu mérito, volta a dignificar o instituto.

4. A temática dos processos estruturais no âmbito do processo civil não é nova na bibliografia disponível em Portugal. Pedindo-se antecipadamente desculpa por qualquer falha, divulga-se a seguinte bibliografia:

-- Costa e Silva, P., Perturbação dos contratos e processo estrutural, Ius Dictum 01 (2020), 5
 
-- Fernandez, E., Teoria das Decisões Estruturantes: Primeira Aproximação, Ius Dictum 06 (2022), 33

-- Fernandez, E., A segunda aproximação aos processos estruturais – Fundamentos iniciais para um contencioso de políticas públicas, Ius Dictum 09 (2023), 33

-- Vitorelli, E., A resolução estrutural de litígios: uma nova fase do processo civil coletivo brasileiro, Ius Dictum 09 (2023), 27

MTS 

Bibliografia (Índices de revistas) (239)


RDCiv.

RDP


Jurisprudência 2024 (17)

 
Procedimento de injunção;
admissibilidade; erro na forma do processo
 

I. O sumário de RL 25/1/2024 (101821/22.2YIPRT.L1-8) é o seguinte:

1. A acção especial para cumprimento de obrigações implica a existência de uma relação contratual e que o pedido corresponda a obrigação pecuniária, decorrente de forma clara e linear do contrato firmado entre as partes;

2. O procedimento de injunção é adequado à cobrança de obrigações pecuniárias de quantidade ou de soma, isto é, dívidas em dinheiro pelo que, pode concluir-se que, quando a lei se refere a «…obrigações pecuniárias emergentes de contratos…» prevê contratos cuja prestação principal, a cargo do devedor, consiste na obrigação pecuniária de quantidade (ou de soma) ou seja, dívidas em dinheiro.

3. O procedimento de injunção não é o meio processual adequado para cobrança de quantias resultantes de cláusulas penais;
 
4. Verificando-se que o procedimento de injunção não era o adequado porque por via dele não é possível ao credor obter a cobrança de valor atinente a cláusula penal, a acção especial para cobrança de obrigações pecuniárias de valor inferior à alçada da Relação, iniciada em consequência de transmutação do procedimento de injunção também não poderá ser aproveitada por ter tido origem em procedimento não admissível, estando comprometida a própria instância verificando-se uma excepção dilatória inominada.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"In casu, vem alegado que, das condições de venda resulta que a falta de pagamento das facturas no prazo acordado implicaria o pagamento de juros de mora à taxa legal para as dívidas comerciais, acrescida da sobretaxa de 3 %, bem como da quantia correspondente a 25 % do valor total da factura, em valor nunca inferior a 250,00€, a título de cláusula penal, para acorrer a despesas de contencioso, o que a Requerida aceitou expressamente.
 
A questão que se põe, é, pois, a de saber, se o pedido de pagamento de cláusula penal é admissível em sede de procedimento de injunção.
 
Como em muitas outras questões, a jurisprudência não é unânime distinguindo-se duas correntes:
 
-A corrente que nega a possibilidade de lançar mão do procedimento de injunção para obter o pagamento de quantia estipulada por cláusula penal [---] e,
 
- A corrente que admite o recurso ao procedimento de injunção como meio processual para obter o pagamento de quantia pecuniária indemnizatórias ainda que estabelecida por cláusula penal [---].
 
A corrente que defende não ser possível o recurso ao processo injuntivo argumenta que a quantia estabelecida a título de cláusula penal não constitui uma obrigação pecuniária em sentido estrito e, por isso, está afastada a possibilidade de recurso à via injuntória porque reservada a pedidos de quantia pecuniária stricto sensu.
 
Aquela que não restringe o recurso à injunção nestes casos defende ser admissível ao credor exigir do devedor a indemnização fundada em cláusula penal desde que a prestação prometida pelo devedor consiste numa soma pecuniária.
 
No que toca às correntes doutrinárias, também se identificam posições distintas.
 
Salvador da Costa entende «…distinguir consoante a natureza da cláusula penal em causa, isto é, conforme ela foi convencionada a título indemnizatório, para o caso de incumprimento de um contrato, ou com escopo meramente compulsório. Na primeira situação trata-se de indemnização por incumprimento contratual antecipadamente fixada e, consequentemente não pode ser exigida neste tipo de acção ou de procedimento; na segunda situação, em que se está perante uma sanção aplicável sempre que se verifique ou não um facto contratualmente previsto, parece que nada obsta a que o pedido do montante convencionado possa ser objecto da acção ou procedimento em causa.» [
A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 5ª edição, Almedina, pág. 43]
 
Carlos Pereira Gil, seguindo na esteira de Salvador da Costa, escreve a propósito: «…se se tratar de uma cláusula penal indemnizatória, estaremos face a uma típica indemnização pelo dano fixada prévia e contratualmente. Daí que, a nossa ver, não possa tal cláusula penal ser exigida nessa acção. Porém, se a cláusula penal tiver escopo exclusivamente compulsório, não poderá afirmar-se que constitua uma indemnização pelo dano. Nesta situação depara-se-nos uma soma monetária estipulada a título de mera sanção sempre que ocorra ou não o evento contratualmente previsto. Deste modo, parece-nos que nesta modalidade de cláusula penal poderá ser reclamada nesta acção, pois trata-se de uma mera importância pecuniária pactuada para sancionar certa conduta.
[Algumas Notas Sobre os DL. 269/98 e 274/97, CEJ, 1999, pág. 3, nota 7]
 
Diferentemente, João Vasconcelos Raposo e Luís Batista Carvalho defendem: «…esta não é a via processual adequada para accionar cláusula penal, mesmo que compulsória, decorrente de mora ou qualquer vicissitude na execução do contrato…(…) …o sentido do diploma e das regras que o integram é o de conceder uma via especialmente simples para a cobrança das dívidas que estejam directa e necessariamente previstas no contrato e não quaisquer obrigações pecuniárias condiciomais.»
[Injunções e Ações de Cobrança, Quid Juris, 2012]
 
Perante as divergências jurisprudenciais e doutrinais, cumpre decidir in casu.
 
O Art.º 1º do Dec.Lei 269/98, apenas estabelece que o procedimento de injunção se destina a exigir «(…) o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (…)» Cfr. Art.º 1º do Dec.Lei 269/98, redacção Dec.Lei nº 303/2007. Na esteira do CCivil, não define, pois, o que se deve entender por obrigações pecuniárias pelo que terá de entender-se que se visa a noção comum de dinheiro. [---]
 
O critério de distinção entre as dívidas de dinheiro e as dívidas de valor reside no seguinte: nas dívidas de dinheiro a prestação pecuniária é a prestação devida; já nas dívidas de valor, a prestação pecuniária é uma prestação substitutiva da prestação devida.
 
A esta luz cumpre decidir a que tipo de obrigações pecuniárias se refere o Dec.Lei nº 269/98.
 
Tal diploma surgiu da necessidade de se criar um meio processual, de natureza administrativa, que permitisse ao credor de obrigação pecuniária a obtenção, de forma célere e simplificada, de um título executivo sem contraditório. Estas características de simplicidade, ausência de apreciação judicial, rapidez e intuito de descongestionamento dos tribunais, revelam o fim que o legislador visou alcançar.
 
Assim, quando no requerimento injuntivo se refere «valor do capital» há-de concluir-se que o procedimento de injunção é adequado à cobrança de obrigações pecuniárias de quantidade ou de soma, isto é, dívidas em dinheiro pelo que, pode concluir-se que, quando a lei se refere a «…obrigações pecuniárias emergentes de contratos…» prevê contratos cuja prestação principal, a cargo do devedor, consiste na obrigação pecuniária de quantidade (ou de soma) ou seja, dívidas em dinheiro. Daqui resultam, afastadas as obrigações pecuniárias de valor, sejam a título de prestação principal, sejam enquanto prestação acessória ou como obrigação com faculdade alternativa, como sucede com as obrigações emergentes de cláusulas penais, ainda que pecuniárias.
 
E assim sendo, desnecessário se torna distinguir entre cláusulas penais indemnizatórias e cláusulas penais compulsórias para admitir, ou não, consoante se trate de umas ou de outras, a possibilidade de o credor, para as cobrar, lançar mão do procedimento de injunção.
 
As cláusulas penais não encerram a estipulação de prestações principais de obrigações pecuniárias de quantidade, constituem cláusulas acessórias que determinam o pagamento de obrigações de valor, substitutivas da prestação principal ainda que estabelecidas em quantidade pelo que, o procedimento de injunção nunca seria o meio processual adequado para cobrança de quantias resultantes da fixação de tais cláusulas qualquer que seja a sua natureza.
 
Perante a decisão da 1ª instância que absolveu as requeridas por erro na forma de processo e a argumentação da apelante que defende que, « “[o] erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei” (artigo 193.º do CPCivil), nada impedindo, ademais, que, sendo caso disso, apenas o pedido relativo à cláusula penal fosse desconsiderado ou viesse a improceder.» necessário se torna apreciar o vício em causa.
 
Será que estamos perante o erro na forma de processo previsto no referido art.º 193º?
 
Evidenciam os autos que o procedimento de injunção intentado pela requerente foi transmutado em acção especial para cobrança de obrigações pecuniárias de valor inferior à alçada da Relação, em virtude das requeridas terem apresentado oposição.
 
Nos termos do art.º 17º, nº 1, do citado diploma legal, remetido o requerimento a distribuição, segue-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 1.º e nos artigos 3.º e 4.º, estipulando o art.º 3º, nº 1, que se «… a ação tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo   procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa». Daqui se conclui, que nesta fase inicial da acção e com vista ao conhecimento de qualquer excepção, compete ao juiz apreciar a concreta pretensão que o requerente configurou no requerimento de injuntivo e caso verifique a ocorrência de alguma excepção dilatória insuprível, cumpre-lhe absolver a parte demandada da instância, em conformidade com o estipulado no art.º 278º, nº 1, al. e), do CPCivil, assim lhe ficando vedado o conhecimento de mérito.
 
Terá sempre o juiz de apreciar e decidir analisada a pretensão do requerente, se o recurso ao procedimento de injunção como meio de obter a satisfação do crédito reclamado era admissível.
 
O recurso ao processo de injunção, quando não se mostram preenchidos os pressupostos legalmente exigidos para o efeito, configura uma verdadeira situação de uso indevido daquele meio como forma de exigir o cumprimento das obrigações a que se reporta o art.º 1º do referido diploma preambular e tal, como tem vindo a ser decidido, consubstancia uma verdadeira excepção dilatória inominaada.
[Ac. Rel.Lisboa, Rel. Edgar Taborda Lopes, Proc. nº88236/190YIPRT]
 
E, verificando-se que o procedimento de injunção não era o adequado porque por via dele não era possível ao credor obter a cobrança de valores atinentes a cláusulas penais acordadas, como se concluiu nos autos, o vício está a montante e a acção especial para cobrança de obrigações pecuniárias de valor inferior à alçada da Relação, iniciada em consequência de transmutação do procedimento de injunção também não poderá ser permitida, nem aproveitada por qualquer forma por ter tido origem em procedimento não admissível, estando comprometida a própria instância o que obsta ao conhecimento de mérito da totalidade do pediido.
[Cfr. neste sent. Ac. STJ, de 14.2.2012, Proc. nº 19937/10.3YIPRT.L1.S1, Rel. Salazar Casanova e Ac. Rel. Coimbra, de 20.5.2014, Proc. nº30092/13.6YIPRT.C1]
 
Pelo exposto, ainda que não por erro na forma de processo, mas por se entender proceder excepção dilatória inominada, entende-se confirmar a decisão recorrida, mantendo-se a absolvição da instância das apeladas."
 
 
III. [Comentário] Salvo melhor opinião, não se encontra justificação suficiente para que, partindo-se do princípio de que o procedimemnto de injunção não é adequado para obter uma quantia correspondente a uma cláusula penal, não se verifica, à partida, um erro na forma de processo (art. 193.º CPC). A excepção dilatória inominada (art. 576.º, n.º2, CPC) só se verifica (como sucedia no caso concreto) quando essa nulidade processual não for sanável.

Portanto, a alternativa não é entre erro na forma do processo e excepção dilatória inominada, mas entre erro na forma do processo sanável e não sanável. Só o erro na forma do processo insanável constitui uma excepção dilatória inominada.

MTS