"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/07/2025

Jurisprudência 2024 (203)


Direito à prova;
prova; relevância


1. O sumário de RP 11/11/2024 (5261/23.4T8MAI-E.P1) é o seguinte:

I - No âmbito da regulação das responsabilidades parentais, a fim de aferir do fundamento para obter informações acerca de consumos domésticos, rendimentos do trabalho, transferências e património, deve aquilatar-se da respetiva necessidade e relevância para a produção da prova.

II - Como contraponto da maior ou menor indispensabilidade da obtenção de informações, há que ponderar o direito dos visados a manterem a sua vida privada e económica em recato.

III - O direito à privacidade só deve ceder perante o direito à prova quando a sua quebra se mostre relevante, de modo a que se deva concluir que, sem a obtenção dos elementos pretendidos, o direito dos filhos a perceberem uma pensão de alimentos ajustada às suas necessidades e aos rendimentos e nível de vida dos pais não será salvaguardada.

IV - Releva para a decisão sobre a fixação do montante da pensão de alimentos apurar quais os rendimentos do trabalho dos pais.

V - Para a fixação do montante da prestação de alimentos não se justifica a junção de faturação referente aos consumos de água e de eletricidade daquela que foi a casa de morada de família, na íntegra suportados pelo pai dos menores.

VI - Não invocando o pai que não tem acesso ao seu vencimento, é despicienda para a decisão sobre a fixação do montante da prestação de alimentos determinar quais as transferências operadas do país em que o pai labora para Portugal.

VII - Evidenciando-se que o pai das crianças aufere rendimentos do trabalho bastantes para, por si, servirem para a satisfação de uma pensão de alimentos adequada, não releva o apuramento rigoroso do património imobiliário daquele e das eventuais rendas daí percebidas.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A requerida interpôs o presente recurso, considerando que a produção de prova negada pelo tribunal de 1.ª instância coarta a possibilidade de apuramento do local em que reside com as filhas, bem como da quantificação dos reais proventos do requerente.

O direito à prova encontra-se consagrado no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa, como componente do direito geral à proteção jurídica e de acesso aos tribunais. A prova é a atividade destinada à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos (art.º 341.º do C.C., que atribui às provas a função de demonstração de realidade dos factos).

Os princípios e as regras gerais a atender são aqueles que em seguida enunciaremos e que hão de ser tidos em consideração a propósito de cada uma das questões suscitadas no recurso.

A atividade de prova incumbe à parte onerada (art.º 342.º do C.C.), que não obterá uma decisão favorável se não satisfizer esse ónus (art.º 416.º do C.P.C. e art.º 346.º do C.C.).

O tribunal tem o dever de atender a todas as provas produzidas no processo, independentemente da sua proveniência, desde que lícitas (art.º 413.º/1 do C.P.C.). As partes podem utilizar em seu benefício os meios de prova que mais lhes convierem, devendo a recusa de qualquer meio de prova ser devidamente fundamentada na lei ou em princípio jurídico, não podendo o tribunal fazê-lo de modo discricionário.

Os factos necessitam de ser submetidos a prova porque foram alegados por uma parte e impugnados pela contraparte ou porque a revelia se revela inoperante, conforme ocorre no caso do disposto no art.º 568.º do C.P.C..

O direito à prova contém, porém, limites impostos pela proteção de direitos de terceiro e das próprias partes, em circunstâncias determinadas: cede perante direitos de terceiros e das partes que mereçam do ordenamento jurídico uma tutela mais forte.

O direito à prova mereceu particular atenção na reforma do processo civil emergente do decreto-lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro e do decreto-lei n.º 180/96, de 25 de setembro. Veja-se o art.º 6.º/1 do C.P.C., que atribui ao juiz o dever de dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (…). Confira-se ainda o art.º 411.º do C.P.C., nos termos do qual incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer. Acentuou-se o reforço do dever de colaboração com o tribunal, mesmo quando este possa envolver a quebra ou o sacrifício de deveres de sigilo ou confidencialidade (arts. 417.º e 418.º do C.P.C.).

Todas as pessoas têm o dever de colaboração para a descoberta da verdade (art.º 417.º/1 do C.P.C.). A lei reconhece-lhes, contudo, direito de recusa em determinadas situações. Uma delas ocorre quando a colaboração pedida importe violação de sigilo profissional, impendendo sobre os tribunais o ónus de dispensar a confidencialidade relativamente a matérias com relevância patrimonial (por exemplo, sigilo bancário, sigilo tributário).

Relativamente à reserva da vida privada e ao direito à intimidade, compreende-se no âmbito mais vasto do direito de personalidade.

Na ponderação do direito à privacidade no âmbito do direito português, haverá sempre que atender ao disposto no n.º 2 do art.º 18.º da Constituição da República Portuguesa, no sentido de que quanto às restrições de direitos, liberdades e garantias vigora o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso. As únicas restrições legítimas serão as que se mostrem necessárias (subprincípio da necessidade), adequadas para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (subprincípio da adequação) e racionais, isto é, proporcionadas em relação aos fins (subprincípio da racionalidade).

Critérios práticos apontados para a ponderação da prevalência do princípio da cooperação ou do direito à privacidade, todos eles discutíveis e a avaliar casuisticamente, consistem no critério da necessidade ou indispensabilidade da informação; no critério da fundamentação, que obriga a que quaisquer pedidos de revelação de dados sejam circunstanciados e com propósito claramente explicitado; no critério do ónus da prova, segundo o qual o fornecimento da informação não deve redundar em prejuízo da parte sobre a qual o ónus não impende; no critério da opção, ou da escolha, a facultar às partes entre a aceitação das consequências da recusa ou a insistência na obtenção da informação; no critério da intencionalidade, reportado retroativamente ao momento da concessão da informação e no critério da expurgação, consistente na obrigação de cingir a concessão da informação ao mínimo visado.

Vejamos agora, em concreto, da necessidade e relevo das informações visadas pela apelante para a composição do litígio.

a - Se releva para a decisão aferir dos consumos de água e eletricidade daquela que foi a casa de morada de família.

Conforme genericamente apontámos, um primeiro critério a ponderar em todas as circunstâncias é um critério extrínseco ao conteúdo da informação visada e reside na necessidade desta. Os elementos pretendidos não deverão ser meramente úteis ou eventualmente convenientes. No momento em que são pedidos hão de ser tidos como essenciais. Se os dados a que se pretende aceder não se revelam vitais para a prossecução do fim visado pelo processo, não deverão ser solicitados nem cedidos.

Conforme sustenta o Digno Magistrado do Ministério Público, em termos de regulação do exercício das responsabilidades parentais é irrelevante que a progenitora resida com as crianças naquela que foi a casa de morada de família, ou em casa de seus pais, avós maternos das crianças.

Insistir na obtenção de elementos a respeito dos consumos de água e eletricidade não oferece virtualidade para a decisão, que, na verdade, ao invés do sustentado pela apelante, não deve incidir sobre o local onde as crianças residem com a mãe.

É, por isso, de confirmar a decisão recorrida que indeferiu a produção de prova neste particular.

b - Se releva para a decisão sobre a fixação do montante da pensão de alimentos apurar quais os rendimentos do trabalho do pai nos anos de 2021, 2022 e 2023.

O art.º 2004.º do mesmo Código define a medida dos alimentos, determinando que os mesmos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los, e que na sua fixação concreta se atenderá à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência.

O montante do rendimento do trabalho do pai dos menores é controvertido e releva para a fixação do quantitativo destinado a assegurar a subsistência daqueles, já que os filhos hão de ter um trem de vida compatível com o dos pais (cf. ac. da Relação de Coimbra de 12-10-2021, proc. 2089/16.1T8CLD.C1,Carlos Moreira).

Por isso, deverá ser deferido o pedido de notificação, ainda que em moldes mais circunscritos do que os requeridos. Efetivamente, a obtenção de informações, quer, nos termos sobreditos, pela ingerência que acarreta na esfera jurídica dos visados, quer por motivos de celeridade e de economia processual, deverá ser tão circunscrita quanto possível, contanto que se alcance o resultado pretendido.

A recorrente pediu a junção de cópia do contrato de trabalho em vigor, entre o Requerente e a A..., informação sobre todos os valores que foram pagos ao Requerente a título de remunerações, prémios, bónus, subsídios, despesas, ou a qualquer outro título, nos últimos três anos (2021, 2022 e 2023), e obtenção de documentos comprovativos.

Afigura-se-nos, porém, pese embora a circunstância de se tratar de empresa estrangeira, com os inerentes acréscimos burocráticos e de custos, que integra o desiderato do processo que a empresa informe acerca do rendimento global do apelado referente ao ano transato e ao corrente ano e modo de pagamento.

A pretensão da apelante deverá, por conseguinte, ser apenas parcialmente acolhida, determinando-se a notificação da entidade patronal do pai dos menores para informar qual o rendimento global deste no ano transato e no corrente ano e modo de pagamento, juntando documentos atinentes, isto, evidentemente, se o apelado se escusar a, por si próprio, vir fornecer e comprovar tais elementos.

c - Se releva para a decisão sobre a fixação do montante da pensão de alimentos determinar quais as transferências operadas de Angola para Portugal.

Trata-se, quanto a nós, de diligência cujo resultado em nada contribuirá para o apuramento dos meios de vida do apelado. Quanto muito, será este, a ter interesse, que poderá pretender demonstrar que não logra utilizar os proventos por si auferidos, por não os conseguir transferir para o sistema bancário português.

Na ausência de relevância do solicitado para os fins do processo, mantém-se a decisão de indeferimento.

d - Se releva para a decisão sobre a fixação do montante da pensão de alimentos certificar o património imobiliário do pai das crianças e os rendimentos eventualmente produzidos por tais imóveis.

A apelante invoca que o apelado aufere rendimentos do trabalho de montante que qualifica de elevado, mais do que suficientes para acudir às necessidades dos filhos de ambos e que, por si só, permitem o pagamento da prestação de alimentos por si peticionada. É incontestado que o pai suporta a totalidade do custo dos colégios e de seguro de saúde, bem como as despesas fixas daquela que foi a casa de morada de família.

Atentos os princípios enunciados no sentido de que as informações solicitadas hão de ser apenas e só as imprescindíveis e adequadas à fixação da prestação de alimentos, a inventariação do património do requerido e dos eventuais rendimentos daí advenientes extravasa os termos da concreta regulação das responsabilidades parentais e é desnecessária.

A prova da existência de património imobiliário e a sua descrição pormenorizada, bem como de eventuais rendas associadas, afigura-se, assim, despicienda para o apuramento da prestação alimentar adequada. Deve, por isso, manter-se também esta decisão de indeferimento."

[MTS]