"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/07/2025

Jurisprudência 2024 (204)


Juiz;
garantias de imparcialidade*


1. O sumário de RP 5/11/2024 (2449/22.9T8STS-A.P1) é o seguinte:

I - É de reconhecer às partes (a par das garantias extrínsecas de imparcialidade do juiz) a faculdade de se defenderem contra a parcialidade subjectiva do juiz, que se verificará quando o juiz dá mostras, no decurso do processo, de um interesse pessoal no destino a dar à causa ou evidencia preconceito.

II - Ainda que a parcialidade subjectiva constitua motivo de suspeição e, também, sem prejuízo de tal parcialidade se manifestar em erro de julgamento susceptível de ser impugnado em recurso, pode entender-se que a mesma, traduzindo radical e insustentável violação dum dos pilares essenciais da tutela jurisdicional efectiva (o processo justo), é insanável – ou seja, que a verificar-se, não poderá tal violação ter-se por sanada por não ter a parte usado meio processual que a lei lhe faculta para se defender dela (a dedução da suspeição), pois que irremediavelmente inquinada a decisão na sua essência, por proferida em processo que não pode ter-se por justo.

III - A nulidade da decisão à luz do art. 615º, nº 1, b) do CPC ocorre tanto nas situações em que a fundamentação é totalmente inexistente quanto nos casos em que a sua insuficiência tem como consequência impossibilitar os seus destinatários de a compreenderem e acederem às razões que a justificam.

IV - O réu pode sustentar articulado superveniente em factos modificativos ou extintivos do direito invocado pelo autor.

V - Não sendo, por natureza, objectivamente supervenientes (pois que contemporâneos do facto constitutivo do direito), os factos impeditivos só justificam a apresentação de articulado superveniente em caso de superveniência subjectiva.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A. Da violação dos princípios da imparcialidade e da isenção.

Alega a apelante que a decisão tomada pelo tribunal recorrido – e a conduta do tribunal, ao ‘causticá-la’ com a rejeição do articulado, ao aplicar-lhe a sanção de duas UC, ao referir-se ao seu requerimento colocando-o entre aspas, ao referir que a sua pretensão é merecedora de ‘repugnância’ do tribunal e ao consignar não ordenar o desentranhamento do articulado que rejeitou para poder apurar da litigância da sua apresentante – e a fixação dos temas da prova (neles incluindo a questão da litigância de má fé das partes) lhe inculca a convicção de que a decisão da causa ‘já se encontra pré-tomada na cabeça do julgador’, além de que, omitindo a decisão os concretos termos da proposta de transacção recusada e afirmando ‘que a recorrente quer resolver unilateralmente o litígio, faz um juízo valorativo, em nada imparcial, sobre a recorrente, colocando-a, evidentemente, sob uma luz desfavorável’, omissão (dos concretos temos da proposta de transacção) que poderá analisar-se como uma ‘’violação do dever de verdade substantiva e adjetiva que balizam a elaboração de uma decisão judicial, corolário do dever de imparcialidade’.

Parcialidade e falta de isenção que os autos não revelam.

A ‘administração da justiça não é pensável sem um tribunal independente e imparcial: a imparcialidade do tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo’ (art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 14º, nº 1 do Pacto Internacional sore os Direitos Civis e Políticos e art. 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) [Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª Edição, 1997, p. 40.] – e por isso que o alcance do art. 20º da Constituição da República Portuguesa não pode ser desligado da imposição dum processo equitativo, célere e direcionado para uma tutela efectiva, garantindo que qualquer causa seja examinada por um tribunal independente e imparcial [Cfr. José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 4ª Edição, 2017, p. 101.]

A garantia de imparcialidade do tribunal analisa-se em duas perspectivas: como garantia do tribunal perante terceiros (garantias materiais - respeitando à liberdade do tribunal perante qualquer instrução ou intromissão doutro órgão do Estado - e garantias pessoais - que protegem o juiz em concreto, como as garantias da inamovibilidade e a da irresponsabilidade) e como garantia das partes perante o tribunal, respeitante à independência do juiz e sua neutralidade perante o objecto da causa [Teixeira de Sousa, Estudos (…), p. 40.]

À economia da presente apelação interessa esta segunda vertente.

Às partes, a imparcialidade dos juízes é ‘garantida positivamente pelas regras de determinação do juiz natural e negativamente pela enunciação dos casos em que o juiz que normalmente seria concretamente investido na função jurisdicional fica impedido de a exercer’ (arts. 115º e 117º do CPC) ‘ou pode ser afastado por suspeição’ (art. 120º do CPC) [José Lebre de Freitas, Introdução (…), p. 82.].

A par destas garantias extrínsecas de imparcialidade do juiz, tem também de reconhecer-se às partes a faculdade de se defenderem contra a parcialidade subjectiva do juiz, que se verificará quando o juiz (cuja isenção e rigor processual são de presumir) dá mostras, no processo, de um interesse pessoal no destino a dar à causa ou evidencia preconceito [Caracterizando assim a parcialidade subjectiva do juiz, o acórdão do STJ de 24/05/2011 (Armindo Monteiro), no sítio www.dgsi.pt.] – no domínio da aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (que vigora directamente na nossa ordem interna – art. 8º, nº 2 da CRP [Convenção Europeia dos Direitos do Homem, concluída em Roma em 4 de Novembro de 1950, entre nós aprovada para ratificação pela Lei 65/78, de 13/10.]) tem sido entendido ser inadmissível a parcialidade subjectiva, expressa em actos anteriores à decisão (designadamente quando a pretensão da parte é pelo juiz, em audiência, qualificada como mentirosa, escandalosa ou repugnante ou mesmo quando o juiz denuncia a decisão que vai tomar antes do momento próprio para a proferir) [José Lebre de Freitas, Introdução (…), pp. 82/83.].

Ainda que a parcialidade subjectiva, constituindo motivo de suspeição (parte final do nº 1 do art. 119º do CPC), deva ser arguida pela parte no prazo previsto no art. 120º do CPC (em caso de comportamento ocorrido em audiência, deve ser arguida em tal acto) sob pena de não o poder fazer mais tarde (nº 3 do art. 120º do CPC) e, também, sem prejuízo de tal parcialidade se manifestar em erro de julgamento susceptível de ser impugnado em recurso (os erros de julgamento, quer no âmbito da decisão de facto, quer no âmbito da decisão de direito, decorrentes da tal parcialidade, constituem razões de recurso), poderá entender-se que a mesma, traduzindo radical e insustentável violação dum dos pilares essenciais da tutela jurisdicional efectiva (o processo justo), é insanável – ou seja, que a verificar-se, não poderá tal violação ter-se por sanada por não ter a parte usado meio processual que a lei lhe faculta para se defender dela (a dedução da suspeição), pois que irremediavelmente inquinada a decisão na sua essência, por proferida em processo que não pode ter-se por justo.

É precavendo esta possibilidade interpretativa que se aprecia da arguição da ré apelante – arguição de evidente improcedência.

Como se referiu, a apelante sustenta a parcialidade do Exmo. Juiz (e o juízo pré-concebido desfavorável à sua, ré, posição), conjugando a rejeição do articulado, a aplicação da sanção de duas UC, o menosprezo (a expressão é nossa, não da apelante) do tribunal ao referir-se, na decisão apelada, ao requerimento que estava em apreciação colocando-o entre aspas, a referência (na decisão apelada) a que pretensão é merecedora de ‘repugnância’ do tribunal e ao não ordenar o desentranhamento do articulado que rejeitou em vista de apurar da litigância de má fé da sua apresentante, para lá de omitir os concretos termos da proposta de transacção recusada e afirmando ‘que a recorrente quer resolver unilateralmente o litígio’ (o que revela ter feito juízo valorativo desfavorável sob a ré apelante).

A rejeição do articulado superveniente apresentado pela apelante não permite concluir (porque não revela uma ou outra) pela imparcialidade ou falta de isenção do Exmo. Juiz – a decisão tomada não permite outra conclusão que não a de que, exercendo o seu dever de decidir a questão, o Exmo. Juiz entendeu ser inadmissível o articulado superveniente e, em consequência, rejeitou-o, sem que se evidencie ter sido a decisão determinada por qualquer preconceito, interesse pessoal no destino a dar à causa ou qualquer juízo pré-concebido desfavorável à ré apelante.

A condenação da apelante na taxa de justiça de duas UC resulta do tribunal ter qualificado (bem ou mal) a dedução do articulado como um incidente anómalo – não está em causa na apreciação da invocada parcialidade do tribunal o acerto ou justeza do decidido. Ponderação (e entendimento jurídico expresso) do tribunal que não sustenta, minimamente, a invocada parcialidade e/ou o preconceito do Exmo. Juiz relativamente à apelante – trata-se de posição jurídica sujeita a crítica e a impugnação perante o tribunal superior (possibilidade que, diga-se, o apelante, não usou – na presente apelação a ré apelante não impugna especificamente esse segmento decisório), que não baseia nem sustenta, minimamente, a existência de parcialidade, preconceito e/ou pré-juízo sobre a sorte da acção por parte do Exmo. Juiz.

De recusar, também, que o Exmo. Juiz haja menosprezado a peça processual apresentada pelo apelante ao aludir a ela colocando-a entre aspas – o que o tribunal expressou foi, tão só (e outra interpretação não se mostra legítima, à luz da teoria da impressão do destinatário), que o requerimento apresentado [Transcreve-se o despacho no segmento que o apelante ressalta para basear a sua alegação: Assim, não pode este Tribunal considerar que a proposta unilateral da resolução do litígio avançada por uma das partes, configure um facto superveniente na acepção do artigo 588º do Código de Processo Civil, pelo que, verdadeiramente, aquilo que a ré denomina, “articulado superveniente” carece de relevância jurídica para o objeto dos autos, nos quais se discute a invalidade da deliberação adotada em assembleia geral da ré de 29-07-2022 e que o autor pretende ver declarada com todos os efeitos legais, não estando obviamente o autor obrigado a ir ao encontro de soluções unilaterais que a parte contrária considera constituir a fórmula acertada de colocar fim ao processo.não consubstanciava, verdadeiramente, um articulado superveniente, por carecer de relevância para tanto; apreciação da técnica literária à parte (e até do maior ou menor acerto jurídico da fundamentação aduzida), a utilização das aspas não radica, assim, em qualquer menosprezo e, no que interessa, em qualquer parcialidade, preconceito e/ou pré-juízo desfavorável à apelante, antes em fazer ressaltar que o articulado em apreciação não preenchia os requisitos necessários para que fosse admitido, à luz do art. 588º do CPC.

Cai pela base a imputação de parcialidade e pré-juízo a si desfavorável que a apelante imputa ao Exmo. Juiz por este decidir manter o rejeitado articulado nos autos (por não ordenar o respectivo desentranhamento) em vista de apurar da litigância de má fé da sua apresentante se se considerar, como a própria apelante faz ressaltar, que o Exmo. Juiz elencou como tema da prova aferir da litigância de má fé das partes (e não apenas apurar da litigância de má fé da ré apelante) – nenhum juízo valorativo desfavorável à ré apelante resulta de tal anunciado propósito de aferir e valorizar a conduta das partes em ordem a apreciar da sua eventual litigância de má fé, antes nele se observa a equidistância própria da imparcialidade exigida ao julgador (que, como resulta dos arts. 542º e ss. do CPC, tem o dever oficioso - cumprindo a propósito o contraditório - de censurar as partes quando se apure a sua litigância de má fé).

Injustificada a alegação de que o tribunal qualificou a pretensão da ré apelante (a dedução do articulado) como repugnante, ou merecedora de repugnância (qualificação determinada por parcialidade e preconceito contra a ré apelante) – o que se afirmou na decisão sob censura foi que, limitando-se a ré apelante a ‘convocar como fundamento da superveniência a recusa “tout court” da proposta de transação’ por si sugerida, estando as partes ‘num plano de livre discussão de soluções que contribuam para um desfecho consensual do processo’, repugna ‘ao Tribunal que qualquer das partes faça alusão à sua proposta e à rejeição da mesma pela parte contrária, para daí extrair efeitos processuais que o processo não comporta e não admite’; não se trata, pois, de afirmar asco ou aversão à peça processual apresentada pela ré (ou à sua concreta pretensão), antes e só asseverar que tal peça processual, atentos os fundamentos em que assentava (materialidade alegada), merecia a repulsa (recusa ou rejeição) do ordenamento jurídico. De recusar, pois, que o termo tenha sido escolhido para qualificar ou adjectivar qualquer sentimento subjectivo que a peça processual tenha suscitado ao Exmo. Juiz (que assim seria movido por um pré-juízo desfavorável à ré que não conseguia dominar e/ou refrear), antes se tem de afirmar que o termo foi usado para demonstrar o entendimento de que o articulado apresentado teria de ser recusado, ou seja, era inadmissível e, por isso, deveria ser rejeitado por merecer a repulsa do ordenamento jurídico.

Infundamentado também o argumento de que ao omitir, no despacho impugnado, os concretos termos da proposta de transacção recusada e ao afirmar ‘que a recorrente quer resolver unilateralmente o litígio’, o Exmo. Juiz revela ter feito da ré apelante juízo valorativo desfavorável.

Por mais críticas que possa merecer o relato feito pelo Exmo. Juiz quanto aos termos do processo que expôs como relevantes (ou omitiu) para apreciar a questão que se lhe impunha decidir (a admissibilidade do articulado), seguro é não se poder retirar da apontada omissão a imputada falta de isenção ou parcialidade – ainda que tal omissão pudesse representar um erro de julgamento, certo é que nada permite concluir que ela seja justificada (haja sido determinada) por um pré-juízo do Exmo. Juiz, ou que tal pré-juízo possa ser aferido (concluído) dessa omissão.

Por fim, enfatize-se que a afirmação feita pelo tribunal a quo de que não podia considerar que a ‘proposta unilateral’ para resolução do litígio apresentada pela ré e rejeitada pelo autor é idónea a consubstanciar matéria que sustente a apresentação de articulado superveniente (acrescentando não estar o ‘autor obrigado a ir ao encontro de soluções unilaterais que a parte contrária considera constituir a fórmula acertada de colocar fim ao processo’) não representa mais do que a apreciação da matéria alegada pela ré apelante em vista de apurar se a mesma integrava ou não o conceito de factualidade superveniente para os efeitos do art. 588º do CPC – ou, pelo menos, e isso é o que releva, não pode fundar-se em tal afirmação a existência de qualquer pré-juízo formado pelo Exmo. Juiz relativamente à ré apelante.

Não pode concluir-se, pois, que as apontadas circunstâncias (apreciadas individualmente ou ponderadas de forma conjugada e combinada) revelem ou evidenciem qualquer preconceito, prejuízo, má-vontade ou falta de isenção (no fundo, qualquer parcialidade em desfavor da ré apelante) e, assim, não pode ter-se por demonstrada qualquer parcialidade subjectiva da Exmo. Juiz do tribunal a quo, improcedendo a invocada violação dos princípios da imparcialidade e da isenção (imparcialidade, isenção e rigor processual que, como acima se afirmou, são de presumir)."

*3. [Comentário] Ignorando tudo o que vai além do que se encontra transcrito no acórdão, talvez seja de lembrar que a observância do dever de recíproca correcção que é imposto aos juízes e às partes pelo art. 9.º CPC é tanto mais imperiosa quanto mais fortes forem as razões que poderiam justificar o desrespeito desse dever. 

MTS