"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/07/2025

Jurisprudência 2024 (205)


Acção de divisão de coisa comum;
benfeitorias; reconvenção*


1. O sumário de RL 7/11/2024 (2372/23.0T8SXL.L1-2) é o seguinte:

Numa acção de divisão de coisa comum deve ser admitida a reconvenção em que o réu invoque a existência de créditos seus contra a autora que tenham a ver com o prédio a dividir e que possam influenciar o valor daquilo que a autora tenha direito a receber no fim dessa acção, de modo a evitar que tenha que ser intentada nova acção para discutir esses créditos.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Precisamente a propósito do ac. do TRL de 25/6/2020 (329/18.T8FNC-A.L-8) que serviu de base ao despacho recorrido, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa fez o seguinte comentário crítico publicado a 08/01/2021 no blog do IPPC, Jurisprudência 2020 (122):

“a) O problema decidido pela RL não tem uma solução linear, mas, salvo o devido respeito, propende-se para uma orientação diferente.

Ao contrário do entendimento da RL, não parece impossível aplicar, numa acção de divisão de coisa comum, o disposto, quanto ao pedido reconvencional relativo a benfeitorias, no art.º 266.º, n.º 2, al. b), CPC. No fundo, o que o autor dessa acção pretende é a entrega da parcela que tem na coisa indivisa, pelo que não é impossível entender que, se a parte demandada tiver direito a benfeitorias por obras que realizou na coisa indivisa, possa fazer valer esse direito na acção pendente. Portanto, o requisito da conexão objectiva entre os pedidos encontra-se preenchido.

Sendo assim, o que importa analisar é se permanecem outros obstáculos à admissibilidade do pedido reconvencional relativo a benfeitorias na acção de divisão de coisa comum.

A alternativa à inadmissibilidade da dedução do pedido reconvencional relativo a benfeitorias é, naturalmente, a necessidade de fazer valer esse direito numa acção autónoma. Por isso, o que, em termos de exercício dos poderes de gestão processual, tem de ser ponderado é se é justificado "complicar" a acção de divisão de coisa comum para permitir a resolução definitiva da situação das partes e evitar uma acção autónoma. É claro que a acção de divisão se "complica"; mas o que tem de ser ponderado é se essa "complicação" evita outras "complicações".

Atendendo especialmente ao disposto no art.º 929.º, n.º 2, CPC (aplicável no caso sub iudice pela circunstância de a coisa ser indivisível), era desejável que, no acerto de contas entre as partes, pudesse tomar-se em consideração o eventual direito a benfeitorias da parte demandada.

Pelo exposto, nada impediria que, através da aplicação dos poderes de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1, e 547.º CPC), o pedido reconvencional relativo às benfeitorias fosse considerado admissível. Note-se que o exercício desses poderes pode ir para além do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 37.º CPC, para o qual remete o art.º 266.º, n.º 3, CPC.

b) Num outro plano, pode ainda perguntar-se se, na hipótese de o direito a benfeitorias pertencer à parte demandante, seria impensável admitir que esse direito pudesse ser feito valer na acção de divisão de coisa comum. Se não se descortinam razões para considerar inadmissível essa cumulação de pedidos pela parte demandante, então, por imposição do princípio da igualdade das partes, também a dedução de um idêntico pedido pela parte demandada não pode ser inadmissível.”

Esta posição corresponde àquela que se considera a melhor e maioritária jurisprudência sobre a matéria (daí que o réu possa ter arrolado 26 acórdãos do STJ e das Relações no mesmo sentido), sendo também a posição assumida pelo relator do actual no ac. do TRL de 12/09/2024, proc. 16759/21.9T8LSB-A.L1-2, de que se passam a transcrever apenas algumas partes [visto que muitas outras dizem respeito a questões que foram então levantadas pelas partes ou pelo respectivo despacho recorrido e não se levantam nestas] com apenas algumas adaptações:

Visto que a acção especial de divisão de coisa comum permite ao juiz vir a decidir, quando verificar que as questões não podem ser sumariamente decididas, mandar seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum (art.º 926/3 do CPC), a jurisprudência está hoje praticamente estabilizada no sentido de o juiz dever autorizar (ao abrigo dos artigos 266/3, 37/2-3, 6 e 547, todos do CPC) a reconvenção – normalmente em situações que têm sido enquadradas nas hipóteses (b) e (c) do art.º 266/2 do CPC: quando o réu se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor, - pois que vê nisso interesse relevante ou considera mesmo que a apreciação conjunta das pretensões é indispensável para a justa composição do litígio, fazendo-se, se necessário, adaptação do processado. Isto porque, se se vai acabar com a compropriedade, se considera que todas as questões conexas devem ser resolvidas de uma vez por todas, sem dar origem a novos processos.

Para além de todos aqueles já invocados ao longo de todo o relatório deste acórdão, vejam-se, ainda, por exemplo, os acórdãos (alguns já referidos): do TRE de 27/06/2024, proc. 58/23.4TBLAG.E1; do TRP de 06/06/2024, proc. 408/23.3T8VCD.P1; do TRP de 20/02/2024, proc. 183/22.9T8PNI-B.C1; do TRP de 27/11/2023, proc. 654/22.7T8PVZ-A.P1; do TRL de 28/09/2023, proc. 2212/21.4T8PDL.L1-6; do TRL de 13/07/2023, proc. 1845/20.0T8AMD-A.L1-7; do TRL de 11/05/2023, proc. 2772/22.2T8OER-A.L1-2; do TRG de 04/05/2023, proc. 121/22.9T8MNC-A.G1; do STJ de 28/03/2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1; do TRP de 28/03/2023, proc. 8188/21.0T8VNG.P1; do TRP de 8/11/2022, proc. 5744/20.4T8MTS.P1; do TRG de 13/07/2022, proc. 1889/21.5T8VCT.G1; do TRP de 30/06/2022, proc. 179/22.0T8OVR.P1; do STJ de 25/05/2021, proc. 1761/19.9T8PBL.C1.S1; do STJ de 26/01/2021, proc. 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1; do TRP de 27/4/2021, proc. 5962/20.9T8VNG.P1; do STJ de 01/10/2019, proc. 385/18.2T8LMG-A.C1.S2; do TRE de 17/01/2019, proc. 764/18.5T8STB.E1; do TRG de 20/09/2018, proc. 242/17.0T8VPC-A.G1; do TRL de 15/03/2018, proc. 2886/15.5T8CSC.L1.L1-8; do TRL de 24/09/2015, proc. 2510/14.3T8OER-A.L1-2; do TRG de 25/09/2014, proc. 260/12.4TBMNC-A.G1.

No mesmo sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2021, página 536, referem dois destes acórdãos; Miguel Teixeira de Sousa, também tem aderido a alguns acórdãos com a mesma posição [16/11/2023, Jurisprudência 2023 (52), ac. do TRL 2/3/2023 (102/22.2T8VLS.L1-2); 24/02/2022, Jurisprudência 2021 (140), ac. do TRL 8/6/2021 (13686/20.0T8LSB.L1-7); 06/12/2021, Jurisprudência 2021 (91), ac. do TRP 27/4/2021(5962/20.9T8VNG.P1)] e num comentário publicado no blog do IPPC, em 21/07/2021, Jurisprudência 2021 (17), ao ac. do TRP de 26/01/2021 (1509/19.8T8GDM.P1), aventa a possibilidade de enquadrar algumas das despesas reconvindas na alínea (a) do art.º 266 do CPC. Num outro – publicado em 11/04/2023, Jurisprudência 2022 (160), quanto ao ac. do TRG de 13/7/2022 (1889/21.5T8VCT.G1) - chama “a atenção para que o que estava em causa nos citados STJ 01/10/2019 e STJ 26/07/2021 era a admissibilidade de um pedido reconvencional de compensação de um crédito por despesas suportadas para além da quota respectiva. Faltou, portanto, dizer que o que vale para a admissibilidade desse pedido reconvencional também vale para a cumulação inicial de um semelhante pedido na acção de divisão de coisa comum.” Num outro, de 08/01/2021, Jurisprudência 2020 (122), quanto ao ac. do TRL de 25/6/2020 (329/18.T8FNC-A.L-8), desenvolve a defesa da admissibilidade da reconvenção no caso das benfeitorias, ao abrigo do art.º 266/2-b do CPC, com fundamentos que permitem a defesa ampla da admissibilidade da reconvenção para as situações que estão em causa em muitos outros daqueles acórdãos e ainda defende que não só a parte demandada pode reconvir, como o demandante pode cumular pedidos com o pedido da acção especial. Já no sentido defendido, mas em termos iniciais e menos desenvolvidos, veja-se ainda o comentário publicado em 24/04/2018, Jurisprudência 2018 (10), quanto ao ac. do TRL de 11/01/2018 (386-15.2T8MFR.L2-8).

Note-se que a solução é diferente para a situação inversa, isto é, quando se pretenda enxertar, num processo comum, um processo especial de divisão de um imóvel comum: acórdão do TRL de 13/09/2018, proc. 358/17.2T8SNT.L1-2 [do relator do actual], acórdão que não segue, assim, ao contrário do que por vezes se vê escrito, a posição de negar a admissibilidade da reconvenção neste processo especial, antes pelo contrário como se pode ver em obiter dictum dele constante (o acórdão foi publicado por Miguel Teixeira de Sousa, no que parece ser uma aceitação da posição seguida, a 20/12/2018, no blog do IPPC, 20/12/2018, Jurisprudência 2018 (140); veja-se também o já citado ac. do TRL de 17/06/2014, proc. 2548/12.TJLSB.L1-1 no mesmo sentido de na acção comum não poder ser enxertada uma acção especial de divisão).

Naturalmente, o que vale para empréstimos para pagamento do preço de aquisição, ou outros créditos conexos, como tem sido dito por aquela jurisprudência, com referência, por exemplo, a seguros, impostos, quotas de condomínio, etc., vale também para empréstimos, feitos por ambos, para pagamento de obras no prédio; a norma do art.º 266/2-c do CPC não faz qualquer restrição a créditos relativos à aquisição e as razões que têm sido dadas para a admissibilidade da reconvenção abrange uns e outros.

A jurisprudência que ia em sentido contrário tem sido revogada (por acórdãos do STJ em revistas excepcionais) e os argumentos dela, que no caso são defendidos pelo despacho recorrido, têm sido sistematicamente afastados:

Assim, um dos fundamentos do despacho recorrido foi o de que “face aos elementos constantes dos autos, é possível proferir de seguida decisão sumária, […] posto que não está colocada em causa nem a compropriedade nem a indivisibilidade do imóvel.” Mas, ao pôr assim as coisas, o despacho recorrido não está a considerar tudo o que está nos autos, ou seja, também a contestação com a reconvenção. E esta omissão é o reconhecimento de que o está nos autos não permite a decisão sumária de todas as questões que eles levantam. Pelo que o raciocínio certo é o contrário: se as questões levantadas pela contestação, com a reconvenção, não puderem ser decididas sumariamente, tal não deve ser visto como impeditivo da admissibilidade da reconvenção, mas apenas como razão para que o processo não seja decidido sumariamente, devendo-se passar a seguir os termos de uma acção comum, onde se decidam também as questões que a reconvenção levanta, o que tem por pressuposto que esta seja admitida. Sendo que as questões que a contestação pode levantar, como diz o ac. do STJ de 28/03/2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1, são muito mais amplas do que a da fixação dos quinhões ou da divisibilidade: “a acção de divisão de coisa comum é o meio processual adequado a regular as relações jurídicas entre as partes, nomeadamente, os direitos de crédito relacionados com aquisição ou amortização de empréstimos bancários com vista à aquisição da coisa comum para além da respectiva quota. Tais questões não poderão deixar de ser enquadradas como ‘questões suscitadas pelo pedido de divisão’ já que é a cessação da indivisão do prédio que faz nascer o direito à repartição do valor do bem comum de acordo com as quotas dos comproprietários.”

Note-se que aquele argumento do despacho recorrido vem ainda do ac. do TRL de 04/03/2010, proc. 1392/08.9TCSNT.L1-6, sendo que este acórdão é expressamente referido nos acórdãos do STJ de 01/10/2019, proc. 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, de 26/01/2021, proc. 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1, e de 28/03/2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1, já citados acima, que o afastaram com os argumentos acima sintetizados.

Outro argumento que costuma ser avançado contra a posição que se entende melhor, vem de um ac. do TRP de 26/01/2021, proc. 1509/19.8T8GDM.P1, repetindo muitos outros e sendo repetido por muitos outros: “o pedido reconvencional fundamentado em despesas alegadamente efectuadas apenas pela ré na aquisição e manutenção do imóvel cuja divisão se peticiona, […], com vista ao reconhecimento desse crédito sobre o autor a ser efectivado/compensado aquando da adjudicação ou venda do imóvel, não é admissível à míngua da não verificação de qualquer requisito substancial de conexão, cf. art.º 266/2 do CPC.”

Mas a jurisprudência actual tem sistematicamente respondido que os créditos que os réus possam ter, contra os autores, por pagamentos relacionados com os bens a dividir, feitos a mais para além do que seria devido pela quota de cada um, têm conexão com os direitos que afinal virão a ser reconhecidos ao autor, pois que estes, independentemente da forma que vierem a assumir, virão a ser afectados (reduzidos) devido à existência daqueles créditos (assim, no voto de vencido junto ao ac. do TRE de 07/03/2024, proc. 5182/21.5T8STB-B-E1: quando a ré refere que pretende ver reconhecido o seu crédito com o crédito de tornas que possa ser adjudicado a um dos comproprietários (onde se inclui o autor) uma vez que a fracção autónoma é indivisível (logo obriga a adjudicação ou venda), está a invocar um requisito substancial de conexão entre o pedido reconvencional e o pedido do autor. Isto porque ao intentar uma acção de divisão de coisa comum o autor está a formular um pedido abrangente e complexo, formado por tantos pedidos quantos caibam na fase declarativa e executiva desta acção especial, nomeadamente a adjudicação a si do imóvel ou a entrega a si de 1/2 do preço que terceiro pagar, e é sobre esse crédito que assenta o contra crédito da ré. Se a ré quer obter o pagamento do seu "sacrifício patrimonial" com a "vantagem patrimonial" do autor no momento da divisão do produto da venda, sendo ambos credores de metade, embora essa pretensão a um encontro de contas não constitua uma compensação em sentido estrito, cabe ainda assim na previsão da alínea (c) do artigo 266/2, na parte em que prevê a possibilidade de reconvenção para o reconhecimento de um crédito para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor.); e o ac. do STJ de 28/03/2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1, ainda lembra: II. Não impede o funcionamento do mecanismo da compensação a circunstância de os créditos do autor e da ré em relação ao bem comum serem ilíquidos no momento da formulação do pedido, já que o valor económico do direito de cada um deles só fica definido na conferência de interessados.

Ainda outros argumentos contra a melhor jurisprudência:

Um deles é o de que “a tramitação da acção especial de divisão de coisa comum não se compatibiliza com a tramitação de acção declarativa.” Mas, pelo contrário, a jurisprudência actual estabilizada responde que já que as normas do processo especial prevêem que, em dados casos, ele siga, a partir de determinado momento, os termos da acção comum, esta não é incompatível com ele (ac. do TRE de 17/01/2019, proc. 764/18.5T8STB.E1, com anotação concordante de Miguel Teixeira de Sousa, em 13/05/2019, Jurisprudência 2019 (18); acórdão do STJ de 01/10/2019, proc. 385/18.2T8LMG-A.C1.S2).

Outro é o de que “os valores monetários em causa sempre implicariam a incompetência deste tribunal em razão do valor”. Mas não é assim, já que a variação de valor não tem, só por si, influência na competência do tribunal, desde que o processo especial continue a ser um processo especial, como no caso, em que se trata, apenas de um processo especial passar a seguir, a partir de determinado momento, os termos de um processo comum, sem se converter num processo comum (ac. do TRL de 16/02/2016, proc. 7415/14.5T8LSB-A.L1-1, e ac. do TRE de 09/07/2021, proc. 24/20.1T8RMZ.E1); num estudo de 18/01/2015 de MTS publicado no blog do IPPC, sobre o título conversão da forma do processo; perpetuatio fori, conclui-se no mesmo sentido: “Na área dos processos civis declarativos ou executivos, a única situação de translatio iudicii prevista na LOSJ é a que se encontra regulada no seu art.º 117.º, n.º 3: são remetidos à secção cível da instância central os processos pendentes nas secções da instância local em que se verifique alteração do valor susceptível de determinar a sua competência. Logo, há que concluir que, não havendo outra excepção à regra da perpetuatio fori no âmbito daqueles processos, a secção genérica da instância local não perde a sua competência pelo facto de o processo especial que nela foi proposto passar, a partir de certo momento, a seguir a forma comum.”


*3. [Comentário] Não pode deixar de se agradecer a atenção que foi dispensada à orientação que se tem defendido neste Blog sobre a admissibilidade da reconvenção na acção de divisão de coisa comum.

MTS