"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/11/2021

Jurisprudência 2021 (84)


Prazo regressivo;
contagem; férias judiciais*


1. O sumário de RP 26/4/2021 (903/18.6T8PNF-A.P1) é o seguinte

I- Os prazos processuais podem ser progressivos ou regressivos, sendo estes os de contagem inversa, com materialização no nº2, do art. 423º (“os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final”) e no nº2 do art. 598º, do CPC, (“O rol de testemunhas pode ser alterado ou aditado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final”).

II - A regra geral de contagem de um prazo processual é a da continuidade, consagrada no art. 138º, do CPC, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais (v. nº1).

III - E terminando um prazo progressivo em dia em que os tribunais estejam encerrados, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte (v. nº2, do referido artigo), regime não aplicável aos prazos regressivos, por a disposição que os consagra constituir norma específica, a impor a observância de concreta anterioridade, que não pode, por isso, deixar de ser observada.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:


I. RELATÓRIO

[...] B…, chamado na ação declarativa, com processo comum, em que é Autor C… e Ré D…- Companhia de Seguros, SA, interpôs recurso do despacho que admitiu o aditamento de testemunhas apresentado pelo Autor pretendendo a sua revogação e substituição por outro que o indefira com base nas seguintes conclusões:

I. Por seu requerimento datado de 10.12.2020 veio o A. requerer o aditamento do rol de testemunhas:

II. A audiência de julgamento estava marcada para o dia 6.1.2021, em cuja data, aliás se iniciou.

III. Por seu despacho de 21.12.2020, veio a Mª Juíza admitir o aditamento de tal rol de testemunhas, pelo que é, justamente, desse despacho de admissão que se interpõe o presente recurso.

IV. Porquanto, tal aditamento não cumpre o requisito legal de ser feito até 20 dias antes data da audiência de julgamento (conforme dispõe o artigo 598-2 CPC)

V. Na verdade, entre 22 de Dezembro de 2020 e 3.1.2021 decorreram as férias judiciais, período em que a contagem de tais dias se suspende (artigo138-1 C.P.C)

VI. Sendo esse prazo regressivo, notório é que não se cumpriram os 20 dias de antecedência necessários, tal como é de lei e entendimento jurisprudencial pacífico.

VII. Ao decidir pela forma como o fez a Mª Juíza do Tribunal a quo, fez menos correta interpretação do disposto no artigo 598-2 C.P.Civil.


II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Assim, a questão a decidir é a seguinte:

- Se o aditamento do rol de testemunhas apresentado pelo Autor é inadmissível, por intempestivo, dado que a contagem, inversa, do prazo regressivo estatuído no nº 2 do art. 598º do CPC, para o mesmo – “até 20 dias antes da data da realização da audiência final” -, embora contínua, se suspende em férias judiciais.

*
II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos provados, com relevância, para a decisão constam já do relatório que antecede.

*
II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

- Da inadmissibilidade do aditamento ao rol de testemunhas oferecido pelo Autor

Insurge-se o chamado contra o despacho que admitiu o aditamento do rol de testemunhas apresentado em 10.12.2020 estando a audiência de julgamento marcada para o dia 6.1.2021, data em que, efetivamente se iniciou.

Entende que tal aditamento não cumpre o requisito legal de ser feito até 20 dias antes data da audiência de julgamento imposto pelo nº2, do artigo 598º, do Código de Processo Civil, pois que entre 22 de dezembro de 2020 e 3.1.2021 decorreram as férias judiciais, período em que a contagem do prazo se suspende, nos termos do nº1, do artigo 138º, daquele diploma legal, a que pertencem todos os preceitos a citar.

Assim, única questão a apreciar, que se prende com a tempestividade do requerimento de aditamento do rol de testemunhas do Autor, é a de saber se a anterioridade imposta foi desrespeitada (dado em férias judiciais se suspender a contagem do referido prazo (regressivo)). [...]

Sendo a regra a da continuidade dos prazos, que implica que os mesmos sejam contados também aos sábados, domingos e feriados, suspendendo-se, contudo, durante o período de férias judiciais (cfr. nº1, do art. 138º), e não podendo deixar de assim ser, também, nos prazos regressivos (tanto mais que se impõe a observância do estatuído na parte final do nº2, do art. 598º - a ser admitido o aditamento, caber ordenar a notificação da parte contrária, para usar, querendo, igual faculdade, no prazo de cinco dias -, o que seria incompatível com o entendimento de o prazo correr em férias, dado que, desde logo, tal contenderia com o andamento do processo, que o legislador pretendeu evitar), certo é que contando-se o prazo de modo inverso (da audiência final para trás), o requerimento tem, sempre e forçosamente, de respeitar a anterioridade específica e expressamente estatuída – tem de ser, sempre, apresentado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final.

Assim, havendo norma específica para os prazos regressivos, a impor a observância de determinada anterioridade em relação a um ato (nº 2, do art. 598º), afigura-se-nos não poder ser aplicada norma, genérica, do nº2, do art. 138º, embora, e como é, na verdade, entendimento jurisprudencial uniforme, durante as férias judiciais (que decorreram de 22/12 a 3/1) todos os prazos processuais, incluindo os regressivos, se encontrem suspensos (conforme estatui a lei - v. nº1, do art. 138º -, apenas com a ressalva dos aí expressamente consagrados: prazos de duração igual ou superior a seis meses e relativos a processos que a lei considere urgentes).

Procedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, ocorrendo violação do nº2, do art. 598º e do nº1, do art. 138º, devendo, por isso, a decisão recorrida ser revogada e o requerimento do Autor, de aditamento do seu rol de testemunhas, merecer indeferimento."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, discorda-se da orientação da RP.

Se já é discutível que o prazo regressivo não possa terminar em férias judiciais e se imponha à parte que pratique o acto até ao início dessas férias, muito mais discutível é que o prazo regressivo se interrompa durante as férias judiciais e que a parte tenha de praticar o acto não só antes das férias judiciais, mas ainda com o acrescento (regressivo) da duração destas férias.

MTS 

23/11/2021

Legislação (211)


LOSJ

-- L 77/2021, de 23/11

Altera a Lei da Organização do Sistema Judiciário e o Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de março, que estabelece o regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais

 

Paper (473)


-- Dodge, William S., Substituted Service and the Hague Service Convention (SSRN 07.2021)


Jurisprudência 2021 (83)


Fixação de prazo;
litisconsórcio necessário*


1. O sumário de RP 27/4/2021 (268/21.9T8VCD.P1) é o seguinte:

I – A ação de fixação judicial de prazo tem como objeto único, a fixação de um prazo, adequado e razoável, para o cumprimento de uma obrigação.

II - Trata-se de um processo de jurisdição voluntária com uma tramitação simples e expedita, como decorre do disposto nos artºs 292º e segs e 986º e sgs do CPC, em que a o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita; nos processos de jurisdição voluntária, a função exercida pelo juiz não é estritamente a de intérprete e aplicador da lei.

III – Nestes processos não se discutem quaisquer questões substantivas relativas ao negócio cujo prazo se pretende fixar nomeadamente quanto à indagação da validade, modificação ou resolução do mesmo.

IV - Em regra, o litisconsórcio necessário, ativo ou passivo, não se aplica na ação especial para a fixação judicial de prazo quando esteja em causa a determinação de um prazo para a eficácia de um contrato.

V – Sempre que um dado interveniente nesse contrato requeira a fixação de prazo deve poder faze-lo ainda que os demais intervenientes no negócio, incluindo os concelebrantes, no caso promitentes-vendedores, por qualquer motivo, o não queiram fazer.

VI – A ação de fixação judicial de prazo no âmbito de um contrato-promessa de compra e venda de imóvel não diz respeito a interesses imateriais nos termos e para os efeitos previstos no artigo 303º, nº1 do Código do Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A ação especial de fixação judicial de prazo encontra-se legalmente prevista no art.º 1026º do Código do Processo Civil (CPC): “Quando incumba ao tribunal a fixação do prazo para o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever, o requerente, depois de justificar o pedido de fixação, indica o prazo que repute adequado.” Os termos posteriores são os previstos no artigo seguinte (1027.º): a parte contrária é citada para responder; se não o fizer, é fixado o prazo proposto pelo requerente ou o julgado razoável pelo juiz; se houver resposta, o juiz decide, após as diligências probatórias tidas como necessárias.

Estes dois preceitos concatenam-se com o artº 777.º do Código Civil, o qual, sob a epígrafe “Determinação do Prazo” estatui:

“1. Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela.
2. Se, porém, se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordarem na sua determinação, a fixação dele é deferida ao tribunal.”
 
Ou seja, esta ação de fixação judicial de prazo tem como objeto único, a fixação de um prazo, adequado e razoável, para o cumprimento de uma obrigação; torna-se necessária tal definição, quer porque as partes o não fizeram quer porque credor e devedor não chegaram a acordo sobre esse ponto.

O fim ulterior visado, uma vez fixado o prazo, será o de permitir ao requerente poder contar com uma data limite para o cumprimento da obrigação, indispensável, desde logo, para a determinação da mora.

Em termos processuais, trata-se de um processo de jurisdição voluntária com uma tramitação simples e expedita, como decorre do disposto nos artºs 292º e segs e 986º e sgs do CPC, em que a o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, “devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” (artigo 987º do CPC). Nos processos de jurisdição voluntária, a função exercida pelo juiz não é tanto de intérprete e aplicante da lei, mas age mais como “gestor de negócios” – negócios que a lei colocou sob a fiscalização do Estado através do poder judicial (neste sentido, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, pág. 66).

Importa ainda sublinhar que neste processo não se discutem questões substantivas relativas ao negócio cujo prazo se pretende fixar, quais sejam vícios como o de inexistência, nulidade ou prescrição da obrigação ou quaisquer outros, por se incluírem nos temas a resolver no âmbito da ação comum que, possivelmente, se seguirá (vide, por todos, recenseando toda a jurisprudência atinente sempre no mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Évora de 25.01.2018, processo nº 238/16.9T8ELV.E1, disponível em dgsi.pt).

Esta delimitação circunscrita do objeto do processo – a mera fixação de um prazo – e a natureza do processo, que é de jurisdição voluntária, já nos remete para uma conclusão segundo a qual não será necessária a imposição de um litisconsórcio necessário, seja do lado passivo ou ativo.

Nos termos do artigo 33º do CPC, existe uma situação de litisconsórcio necessário quando a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, ou quando a própria natureza da relação jurídica exija essa intervenção para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

A douta sentença apelada entendeu, no âmbito do contrato promessa de compra e venda de um imóvel, que para a fixação de prazo requerida, no âmbito do presente contrato promessa de compra e venda, exigir-se-ia a presença de todos os promitentes vendedores (litisconsórcio necessário ativo). Note-se que, na presente acção, todos os atuais intervenientes no contrato foram demandados, incluindo aqueles que, figurando como promitentes-vendedores, entenderam não requerer a fixação judicial de prazo; foram demandados pelos restantes promitentes-vendedores, ora requerentes, surgindo, portanto, como requeridos, juntamente com todos os promitentes-compradores.

Ora, estando em causa apenas a determinação de um prazo, no âmbito de um processo em que se pretende, como explicamos acima, encontrar, através da intervenção jurisdicional, a melhor forma de gerir um dado negócio, dando-lhe um destino, não vislumbramos, salvo o devido respeito, estarmos perante uma situação concreta que deva espoletar a exigência de um litisconsórcio necessário (no caso, ativo). Percorrendo o citado artigo 33º do CPC, a lei não o impõe, naturalmente, até por estarmos perante um processo de jurisdição voluntária destinada a “gerir” por via judicial um dado momento negocial; o negócio também não na medida em que não está em causa a discussão do contrato-promessa outorgado pelas partes, a sua validade, subsistência ou efeitos, e, finalmente, está plenamente assegurado o efeito útil normal da decisão a emitir com eventual indicação de um prazo para a concretização do contrato na medida em que todos os contratantes se encontram presentes nesta ação, seja do lado ativo, como demandantes, seja do lado passivo, como demandados.

Tal como foi estruturado o requerimento inicial os autores entendem que no contrato em apreço não foi fixado um prazo para a celebração do contrato de compra e venda (contrato prometido) e o pedido formulado é, justamente, que seja fixado aos promitentes-compradores e demais requeridos (promitentes-vendedores) um prazo de trinta dias, para a celebração do contrato de compra e venda previsto no contrato-promessa relativo ao imóvel nele identificado.

Na hipótese de procedência do pedido, uma vez fixado pelo tribunal um prazo para que se outorgue o contrato prometido, todos os participantes poderão invocar, utilmente, eventuais vícios do negócio que justifiquem essa não outorga; o que não nos parece poder ser rejeitado é o direito de qualquer um deles, acompanhado ou desacompanhado dos demais, a que seja fixada uma data limite a partir da qual se terá eventualmente de converter uma promessa na venda efetiva.

A presente ação existe para que, numa determinada relação jurídica, provando-se não ter sido, por acordo, fixado qualquer prazo para obrigações contratualmente assumidas, o tribunal fixe esse prazo, a requerimento de qualquer um dos interessados. O tribunal limita-se a suprir a vontade das partes na determinação de um dos elementos do acordo, não decide da existência, validade, exigibilidade ou obrigação de o cumprir; por isso, deve inexistir a imposição de um qualquer litisconsórcio.

De outro modo, de forma labiríntica e como se aventa nas alegações de recurso, caso exigíssemos, nestes autos, que os demandantes se fizessem acompanhar dos demais promitentes-vendedores, tendo em conta a impossibilidade de os convocar processualmente no âmbito do presente processo de jurisdição voluntária, como a sentença recorrida bem anota, restaria apenas aos autores intentar uma ação declarativa comum concernente ao cumprimento do contrato prometido na qual, todavia, permaneceria sempre a ausência de um requisito prévio para o mesmo: justamente a definição do prazo para a eficácia do negócio.

Julgamos, portanto, que, uma vez presentes nesta ação todos os diversos outorgantes do contrato cujo prazo de eficácia se pretende definir, nada impede o prosseguimento dos autos com a citação dos requeridos para responder, nos termos do artigo 1027.º do CPC."


*3. [Comentário] Acompanha-se a solução que consta do acórdão, porque, conforme neste se afirma, todas as partes do contrato-promessa se encontram em juízo, umas como partes demandantes e as restantes como partes demandadas. A solução não seria a mesma se isso não sucedesse, isto é, se em juízo estivessem apenas algumas das partes que celebraram o contrato-promessa.

Nestes termos, o sumariado nos pontos IV. e V. tem de entendido com cuidado. A sua formulação é demasiado abstracta, dado que pode levar a entender que o processo de fixação de prazo pode ser proposto por qualquer um dos vários contraentes contra qualquer um desses contraentes. Ora, não se pode entender assim.

O que pode suceder -- e o que sucedeu no caso sub iudice -- é que, havendo um desacordo global entre os contratantes, algum ou alguns destes contratantes (independentemente da posição que cada um deles ocupe no contrato como parte activa ou passiva) demandem todos os demais contratantes. 

Assim, precisamente ao contrário do que se pode ser levado a inferir do sumariado nos pontos IV. e V., no processo de fixação de prazo o litisconsórcio é necessário, no sentido de que têm de ser demandados todos os contratantes que não proponham a acção. Em concreto, trata-se de um caso de litisconsórcio necessário natural (art. 33.º, n.º 2, CPC), dado que sem a presença de todos os interessados na acção, a decisão nela proferida não produz o seu efeito normal, dado que a fixação do prazo tem de ser uniforme e simultânea para todos os contraentes.

MTS

22/11/2021

Bibliografia (997)


-- Windau, J., Doppelrelevante Tatsachen im Europäischen Zuständigkeitsrecht (Nomos: Baden-Baden 2021)


Jurisprudência 2021 (82)


Assembleia de condóminos; deliberações;
anulação; legitimidade passiva*


1. O sumário de STJ 4/5/2021 (3107/19.7T8BRG.G1.S1) é o seguinte:

A acção de anulação de deliberação da assembleia de condóminos deve ser instaurada contra o condomínio, por só ele ter legitimidade passiva, embora representado pelo respectivo administrador.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No recurso, está em causa saber em quem radica a legitimidade passiva para a presente acção: se nos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação anulanda, como sustenta a recorrente, ou no condomínio, como se decidiu no acórdão recorrido, ainda que em ambos os casos representados pelo administrador.

O art.º 30.º do CPC contém o conceito de legitimidade, dispondo, no n.º 1, 2.ª parte, que “o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer”, sendo que, nos termos do n.º 2, este interesse se exprime pelo prejuízo que advenha da procedência da acção.

E acrescenta o n.º 3 do mesmo artigo que, “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”. [...]

Cremos não haver dúvidas de que a legitimidade das partes é um pressuposto processual que não deve ser confundido com a procedência ou improcedência da acção.

Como pressuposto processual que é, a legitimidade respeita às condições impostas ao exercício de uma situação subjectiva em juízo e traduz-se num posicionamento das partes quanto ao objecto do processo e pedidos nele formulados. [...]

Sendo o objecto do processo constituído pelo pedido e pela respectiva fundamentação, ou causa de pedir, mas conferindo-se a esta apenas uma função individualizadora daquele, será o pedido a realidade aferidora da legitimidade de qualquer parte.

Deste modo, a ilegitimidade só se verificará quando não se encontrar o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação.

O pedido formulado nesta acção é o de que seja “decretada a anulação, nos termos e ao abrigo do disposto no artº 1433º, nºs 1 e 4, do Cód. Civil, da deliberação da assembleia de condóminos de 04 de abril de 2019”.

Estamos, assim, perante a impugnação de uma deliberação tomada pela assembleia de condóminos de um prédio constituído em propriedade horizontal, surgindo no âmbito da acção da respectiva anulação a questão da legitimidade passiva.

Como se refere no acórdão da Formação que admitiu a revista excepcional, “é hoje bem conhecida a profunda divergência jurisprudencial que existe, em especial nos Tribunais Superiores e até na doutrina sobre a questão aqui em apreço, como de resto, se dá nota tanto na decisão da 1.ª instância como no acórdão recorrido.

Assim e em síntese, enquanto uma orientação se perfila no sentido de que as ações de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos devem ser propostas contra o próprio condomínio representado pelo respetivo administrador, tendo em conta o preceituado no artigo 12.º, alínea e), do CPC, conjugado com o disposto nos artigos 1437.º, n.ºs 1 a 3, e 1436.º, alínea h), apelando aos critérios interpretativos do art.º 9.º, n.º 3, todos do CC; outra orientação vai no sentido de que o artigo 1433.º, n.º 6, do CC, embora o não refira expressamente, oferece um vetor decisivo no sentido de afastar a legitimidade do próprio condomínio e de afirmar a legitimidade dos condóminos, tornando inquestionável que a ação terá necessariamente de ser proposta contra todos aqueles que votaram a favor da aprovação da deliberação cuja anulação se pretende, ainda que representados pelo administrador ou porventura por pessoa que a assembleia designe para o efeito”.

São, fundamentalmente, estas as duas teses em confronto sobre a legitimidade passiva nas acções de impugnação de deliberações condominiais.

Ao nível da jurisprudência, encontrámos acórdãos dos Tribunais Superiores nos dois sentidos, sendo que nos pareceu, das buscas que efectuámos, haver uma tendência maioritária para a referida primeira tese, ou seja, no sentido de atribuir legitimidade ao condomínio.

Assim, no sentido da legitimidade dos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação anulanda, embora representados pelo administrador, sustentada pela recorrente, podem ver-se, entre outros, os seguintes acórdãos do STJ de 2/2/2006, processo n.º 05B4296; de 29/11/2006, processo n.º 06A2913; de 20/9/2007, proc.º n.º 07B787 (agravo n.º 787/07 – 2.ª Secção, com dois votos de vencido, sendo um do Conselheiro Quirino Soares, que segue a tese da legitimidade do condomínio e outro do Conselheiro Santos Bernardino, relativamente a um procedimento processual, mas também no sentido da legitimidade dos condóminos); de 24/6/2008, agravo n.º 1755/08, com um voto de vencido do Conselheiro Urbano Dias, e de 6/11/2008, proc.º n.º 08B2784, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

E, no sentido da legitimidade do condomínio, podemos ver, inter alia, os seguintes acórdãos do STJ:

- De 5/5/2005, agravo n.º 1114/05 - 7.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“I - A legitimidade processual passiva nas acções de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos pertence ao condomínio, pois a decisão judicial que anular a deliberação será oponível àquele, integrado por todos os condóminos (art.ºs 1433, n.º 6, do CC e 6, al. e), do CPC).

II - Em tais acções, deverá o administrador ser citado como representante legal do condomínio (art.º 231, n.º 1, do CPC). [...]”

- De 10/1/2006, revista n.º 3727/05 – 6.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“I - A al. e) do art.º 6 do CPC revisto, veio atribuir personalidade judiciária aos condomínios nas acções em que por ele pode intervir o administrador, nos termos do art.º 1433, n.º 6, do CC.

II - Assim, diversamente do que acontecia anteriormente à reforma do processo civil, o conjunto de condóminos (o condomínio) pode ser directamente demandado quando, estejam em causa deliberações da assembleia, devendo ser citado o administrador como representante legal do condomínio - art.º 231, n.º 1, do CPC.”

- De 14/6/2007, agravo n.º 502/07 - 2.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“I - A deliberação social que se pretende impugnar exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos individualmente considerados; pelo que, sendo um acto do condomínio, a legitimidade passiva cabe ao administrador.

II - O titular do interesse relevante para efeito de legitimidade é o condomínio, sendo, na acção, representado pelo administrador; este, enquanto representante judiciário, age em nome e no interesse do colectivo dos condóminos, do condomínio.”

- De 29/5/2007, revista n.º 1484/07- 1.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“É ao administrador que cabe a representação do condomínio com vista a assegurar o contraditório numa acção de impugnação de deliberações, a menos que a assembleia designe outra pessoa para tal.”

- De 14/6/2007, agravo n.º 502/07 - 2.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“I - A deliberação social que se pretende impugnar exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos individualmente considerados; pelo que, sendo um acto do condomínio, a legitimidade passiva cabe ao administrador.

II - O titular do interesse relevante para efeito de legitimidade é o condomínio, sendo, na acção, representado pelo administrador; este, enquanto representante judiciário, age em nome e no interesse do colectivo dos condóminos, do condomínio.”

- De 25/9/2012, revista n.º 3592/09.5TBPTM.E1.S1- 6.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“I - O condomínio é um ente colectivo, constituído pelo conjunto dos condóminos, que manifesta a sua vontade através das deliberações da assembleia dos condóminos e do respectivo administrador – arts. 1430.º, n.º 1, 1432.º, 1435.º e 1436.º do CC.

II - As deliberações impugnadas da assembleia dos condóminos não são pessoais de cada condómino, mas do condomínio, como ente colectivo, que as aprovou em assembleia convocada para o efeito, nos termos legais e regulamentares.

III - Numa acção de impugnação de deliberações da assembleia dos condóminos o condomínio pode estar em juízo, representado pelo respectivo administrador.”

- E de 24/11/2020, revista n.º 23992/18.9T8LSB.L1.S1 – 6.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“I – O condomínio é um ente colectivo, constituído pelo conjunto dos condóminos, que manifesta a sua vontade através das deliberações da assembleia dos condóminos.

II – A deliberação tomada pela assembleia de condóminos exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos individualmente considerados, designadamente dos que a aprovaram.

III – A própria essência de uma deliberação constitui um conteúdo autonomizado da vontade dos sujeitos individuais que nela intervieram e para ela contribuíram, configurando-se não como uma soma das vontades singulares, mas como uma realidade autónoma e distinta.

IV – Na acção de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos, a legitimidade passiva pertence ao condomínio, representado pelo respectivo administrador”. [...]

Que dizer?

O art.º 12.º, al. e), do actual CPC, reproduzindo o art.º 6.º do CPC de 1961, na versão proveniente da revisão de 1995/96[...], atribui personalidade judiciária ao “condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador”.

Esta disposição legal remete para o art.º 1437.º do Código Civil, que prevê especificamente a “legitimidade do administrador” para agir em juízo activa e passivamente, nalguns casos, e também para o art.º 1436.º do mesmo Código que discrimina as diversas funções que competem ao administrador, nas quais se inclui a execução das deliberações da assembleia [alínea h)].

Por sua vez, o art.º 1433.º, n.º 6, do Código Civil prevê que “a representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as ações compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para o efeito”.

A deliberação de condóminos é a forma por que se exprime a vontade da assembleia de condóminos (art.ºs 1431.º e 1432.º, ambos do Código Civil), órgão deliberativo a quem compete a administração das partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal (art.º 1430.º, n.º 1, do Código Civil), sendo o administrador o órgão executivo da administração (art.ºs 1435.º a 1438.º, todos do Código Civil).

Como bem se refere no acórdão da Relação do Porto, de 13/2/2017, proferido no processo n.º 232/16.0T8MTS.P1[...], parcialmente transcrito no acórdão deste Supremo, de 24/11/2020, já citado:

“Se a deliberação exprime a vontade da assembleia de condóminos, estruturalmente percebe-se que seja essa entidade, porque vinculada pela deliberação, a demandada em ação em que se questione a existência, a validade ou a eficácia de uma sua qualquer deliberação.

Por outro lado, mal se percebe que os condóminos, pessoas singulares ou coletivas, dotados de personalidade jurídica, careçam de ser representados judiciariamente pelo administrador do condomínio. De facto, a representação judiciária apenas se justifica relativamente a pessoas singulares desprovidas total ou parcialmente de capacidade judiciária ou relativamente a entidades coletivas, nos termos que a lei ou respetivos estatutos dispuserem, ou ainda relativamente aos casos em que as pessoas coletivas ou singulares se venham a achar numa situação de privação dos poderes de administração e disposição dos seus bens por efeito da declaração de insolvência”.

Por isso, entende-se que, quando no n.º 6 do art.º 1433º do Código Civil se faz referência aos condóminos, o legislador incorreu nalguma incorreção de expressão, dizendo menos do que queria, pois parece ter tido em mira uma entidade colectiva - a assembleia de condóminos -, o condomínio vinculado pelas deliberações impugnadas e cuja execução compete ao administrador, como já se viu.

Se ao administrador compete executar as deliberações da assembleia de condóminos, nos termos do art.º 1436.º, al. h), do Código Civil), por igualdade de razão, cumpre-lhe sustentar a existência, a validade e a eficácia dessas mesmas deliberações, em representação do condomínio.

Concluímos, assim, com o devido respeito por outros entendimentos, que a legitimidade passiva na ação de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos, compete ao condomínio, representado pelo administrador. [...]

Com ela afastam-se problemas que resultariam da obrigatoriedade de demandar, em litisconsórcio necessário, os condóminos que votaram a favor da deliberação inválida, seja pelo elevado número de condóminos de certos edifícios, seja pela impossibilidade prática, na esmagadora maioria das vezes, de proceder à sua identificação, como sucede no caso dos autos, na versão apresentada pela recorrente.

A citação do administrador não evitaria esse problema, porquanto se trata de apurar a legitimidade passiva para a acção, ou seja, quem devia ser demandado e não quem os representa, sendo que, na tese que sustentamos, também o administrador representa o condomínio. Trata-se de saber quem deve figurar como parte, do lado passivo, e não o seu representante, questões distintas, como é evidente.

Atento o pedido formulado – de anulação da deliberação da assembleia de condóminos de 4/4/2019 – de acordo com a tese que sustentamos, cremos não haver dúvidas de que a legitimidade passiva é do condomínio, ainda que representado pelo seu administrador.

Era aquele que devia figurar no lado passivo da acção e não os condóminos que votaram favoravelmente a deliberação anulanda, não identificados, contra os quais foi endereçada a petição inicial e sustenta a recorrente.

Não lhe assiste, pois, qualquer razão na alteração que pretende através do recurso ora em análise.

Muito menos pode obter, através dele, a pretendida prolação de decisão em regime de substituição do Tribunal recorrido, visto que a regra de substituição não é aplicável na revista (cfr. art.ºs 665.º e 679.º, ambos do CPC)."


*3. [Comentário] Revendo a posição assumida em Jurisprudência 2019 (13), não se acompanha, salvo o devido respeito, a orientação defendida no acórdão quanto à legitimidade passiva nas acções de anulação de deliberações da assembleia de condóminos. Na verdade, esta orientação implica uma tríplice interpretação correctiva:

-- Do disposto no art. 1433.º, n.º 6, CC, que, claramente, atribui a legitimidade passiva aos condóminos, representados pelo administrador;

-- Do estabelecido no art. 1437.º CC, dado que em parte alguma deste preceito se atribui legitimidade ao administrador para representar o condomínio nas acções de anulação de deliberações das assembleias de condóminos; aliás, se o fizesse, estaria em completa contradição com o que se encontra estatuído no art. 1433.º, n.º 6, CC;

-- Finalmente, do disposto no art. 12.º, al. e), CPC, dado que não se vê em que medida as acções de anulação de deliberações das assembleias de condóminos podem ser integradas nas "acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador".

Quer dizer: a orientação seguida no acórdão não é justificável sem uma completa subversão do sistema substantivo e processual.

MTS 


19/11/2021

Legislação (210)


Arrendamento

-- P 257/2021, de 19/11

Regulamenta o regime do procedimento de injunção em matéria de arrendamento.


 

Bibliografia (996)


-- Hernández Marín, Rafael, Teoría general de las decisiones judiciales (Marcial Pons: Madrid 2021)



Bibliografia (Índices de revistas) (197)


Foro it.

-- Foro it.146 (2021-9)



RDCiv

-- RDCiv. 67 (2021-4)

-- RDCiv. 67 (2021-5)


Jurisprudência 2021 (81)


Processo tutelar cível; critério de decisão; 
discricionariedade; recurso


1. O sumário de STJ 4/5/2021 (7603/20.5T8PRT-C.P1.S1) é o seguinte:

Nos termos do artigo 13.º da Convenção sobre Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção de Haia, de 25-10-1980), que determina que a autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto, tendo o tribunal recorrido decidido pelo não regresso com base em juízos de conveniência e oportunidade, não se coloca uma questão de legalidade estrita que possa ser conhecida pelo STJ, por força do artigo 988.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4. Da violação do disposto nos artigos 3º, 11º, 12º e na al. b) do artigo 13º da Convenção da Haia, de 1980

Para sustentar a decisão de não ordenar, revogando a decisão do Tribunal de 1.ª instância, o regresso das menores AA e BB à Islândia, permanecendo as mesmas em Portugal a residir com o progenitor, o Acórdão exarou a seguinte fundamentação:

“A Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças - (Convenção de Haia) tem por objecto, para além do mais assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer estado contratante ou nele retidos indevidamente - cf. art 1º, alínea a).

Tendo decorrido menos de um ano desde a data da deslocação ilícita, o regresso apenas não deve ser ordenado, se a pessoa que se opuser ao mesmo provar: – que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com essa transferência ou retenção; ou – que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável (cf. alíneas a) e b) do artigo 13º da Convenção).

A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto - citado artº 13º da Convenção.

Revertendo à situação dos autos, constata-se que as menores AA, prestes a completar 15 anos de idade e BB, prestes a completar 11 anos de idade, vivem com o pai desde a separação dos progenitores, ocorrida em Abril de 2020, até Julho de 2020 na Islândia e a partir desse mês em Portugal.

A conduta do pai ora recorrente, ao decidir unilateralmente pela alteração da residência das filhas para Portugal é reprovável, como igualmente é o envolvimento no conflito conjugal e o não incitar as menores a falar com a mãe pelo telefone.

Todavia, as menores manifestaram, pelo menos, em dois momentos distintos o seu desejo de permanecer com o pai em Portugal: em .. de setembro de 2020 que não querem voltar para a Islândia, e, em .. de novembro de 2020 que pretendem permanecer em Portugal porque se sentem mais integradas socialmente, vendo o convívio com os avós paternos de forma positiva, sendo também expressivo o convívio escolar com os pares.

Têm uma maturidade compatível com a sua idade. (…)

Ora, atendendo à idade das menores, que têm uma maturidade compatível com a mesma, que as mesmas manifestaram vontade de permanecer em Portugal porque se sentem mais integradas socialmente, vendo o convívio com os avós paternos de forma positiva, sendo também expressivo o convívio escolar com os pares, têm no pai a figura afectiva de referência e apresentam bom aproveitamento escolar, o imediato regresso destas menores à Islândia contra a sua vontade poderá provocar consequências psicológicas negativas para as mesmas, consequências essas que não foram equacionadas e perturbar o seu desenvolvimento harmonioso.

Assim, entendemos que tendo em consideração, por um lado, a oposição das menores ao seu regresso a Islândia, a sua boa integração, quer no agregado familiar paterno quer no estabelecimento de ensino que frequentam, e o referido no citado art. 13º, da Convenção de Haia e, por outro o disposto no art. 3º, da Convenção sobre os Direitos da Criança assinada em Nova Iorque em 26 de Janeiro de 1990, e que o interesse superior das menores reconduz-se ao direito destas ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade (cfr. Almiro Rodrigues in “Interesse do menor contributo para uma definição - Revista Infância e Juventude, nº 1, 1985, página 18) estas menores deverão continuar a residir com o progenitor em Portugal.”

Entende a Recorrente que o Acórdão deve ser revogado, pela seguinte ordem de razões:

- primeiro, o processo para pedir o regresso de uma criança, fundado em rapto, disciplinado na Convenção de Haia de 1980, destina-se apenas a obter o regresso, apurada a ilicitude da deslocação ou da retenção, ou seja, a contrariar o uso de meios de auto-tutela e não a discutir o regime de exercício das responsabilidades parentais;

- segundo, os menores tinham residência habitual na Islândia;

- terceiro, a lei islandesa veda a qualquer um dos progenitores levar as crianças para fora do país sem autorização do outro;

- quarto, o risco previsto na alínea b) do artigo 12.º da Convenção não deve consistir apenas na (inevitável) perturbação psicológica resultante para a criança do seu regresso mas de um perigo imputável ao progenitor cujo direito foi violado e que procura a restituição da criança. Para além de ser exigida a prova dos riscos inadmissíveis a que a criança estaria exposta ao regressar ao estado requerente, existem ainda decisões que exigem que se comprove que as autoridades requerentes não tutelariam o bem-estar da criança. Nada disso foi demonstrado;

- quinto, a oposição das crianças em regressarem à Islândia não foi livre nem esclarecida.

Vejamos.

A Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25 de outubro de 1980 (doravante Convenção), foi aprovada, em Portugal, pelo Decreto de Governo n.º 33/83, de 11 de maio (publicado no DR n.º 108/1983, Série I de 1983/05/11), e foi aprovada, igualmente, pelo governo Islandês.

A Convenção, tem por objeto assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente – art. 1.º al. a) –, considerando ilícita a transferência ou retenção quando tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa (…) individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção – art. 3.º, al. a) e) – e, aplica-se a qualquer criança com residência habitual num Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de custódia, e até atingir a idade de 16 anos – art. 4.º.

No caso dos autos, as menores, com 15 e 11 anos atualmente, viveram na Islândia, conjuntamente com os progenitores, casados entre si, nos últimos três anos anteriores a julho de 2020, não suscitando dúvida que aí tinham a sua residência habitual – factos 1. e 2.; em julho de 2020, após a separação dos progenitores ocorrida em abril de 2020, o progenitor, com o acordo da progenitora, deslocou-se com as menores para virem passar férias a Portugal e decidiu, sem o acordo daquela, mudar a residência das mesmas para este país – factos 4. e 5..

Os artigos 28-A e 29 da Lei islandesa (Children Act No. 76, de 27 de março de 2003) prevêem que, sendo os progenitores casados, o direito de custódia pertence a ambos, envolvendo este direito a faculdade de decidir sobre o lugar da sua (dos menores) residência – artigo 5.º, al. a), da Convenção.

Pelo que, a decisão do progenitor, sem o acordo da progenitora, de após o terminus das férias, decidir mudar a residência das menores para Portugal, configura, para efeitos de aplicação da Convenção, uma ilícita ou indevida retenção destes, já que viola o direito de custódia, exercido por direito, (também) pela progenitora antes da retenção.

Assim também se decidiu no acórdão de 14/04/2011, Revista n.º 883/09.9TMCBR.C1.S1, “I - A decisão unilateral por parte da progenitora (mãe) de não regressar ao país (Estado da residência habitual) onde a menor estava domiciliada, depois de se ter deslocado a Portugal pelo período de 15 dias com o consentimento do outro progenitor (pai), que detinha também a custódia da filha, configura à luz do art. 3.º, al. a), da Convenção sobre Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção de Haia, de 25-10-1980) uma situação de retenção ilícita, dado que não está em causa nos autos a regulação das responsabilidades parentais sobre a menor.”.

Deste excurso, seguir-se-ia ordenar imediatamente o regresso das menores à Islândia, censurando, de forma enérgica e exemplar, o uso pelo progenitor de meios de autotutela da regulação das responsabilidades parentais – artigo 1.º, al. a), da Convenção – cumprindo-se cabalmente a prescrição contida no artigo 12.º, primeiro parágrafo, da Convenção, segundo a qual “Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança”.

Ocorre que o artigo 13.º da Convenção ressalva:

“Sem prejuízo das disposições contidas no artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:

a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou

b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.

A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.

Ao apreciar as circunstâncias referidas neste artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança”.

Com efeito, “IV - A ilicitude da deslocação ou da retenção é condição para que seja determinada a entrega imediata da criança”; porém, “V - Sendo ilícita, a entrega deve ser ordenada, salvo se ocorrerem as circunstâncias ponderosas que a Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25-10-1980, aprovada pelo DL n.º 22/83, de 11-05, e o referido Regulamento consideram aptas a fundamentar uma decisão de recusa” – Acórdão do STJ de 24/06/2010, Revista n.º 622/07.9TMBRG.G1.S1.

Para efeitos de tal normativo, em que se baseou o Acórdão recorrido para indeferir o regresso das menores, não ocorrem, ante a matéria de facto provada, as previsões contidas nas alíneas a) e b):

- para efeitos da alínea a), a progenitora, com quem as menores viviam antes de virem para Portugal onde ficarem retidas por decisão do progenitor, exercia (o ordenamento jurídico islandês prevê-o), o direito de custódia sobre as mesmas; e,

- para efeitos da alínea b), o progenitor não provou, como era seu ónus, que o regresso das menores à Islândia as exponha a perigos de ordem física ou psíquica ou as coloque numa qualquer situação intolerável. Frise-se: primeiro, a relação das menores com cada um dos progenitores e a dinâmica familiar antes da separação era positiva e gratificante, podendo vir a sê-lo novamente caso regressem para junto da mãe – factos 7. e 8.; segundo, o facto das menores estarem magoadas atualmente com a mãe radica exclusivamente na atitude censurável do pai – relatando-lhes o relacionamento da mãe com um terceiro como “uma traição a si e às filhas”, e levando-as local de trabalho, onde a viram no carro com um amigo, lhes transmitiu que a mãe deu um beijo a tal pessoa – que levou a aderiram ao seu ponto de vista – factos 10, 11, 12 e 13; terceiro, a integração social, familiar e escolar das menores em Portugal não exclui a mesmíssima integração na Islândia, não passando de futurologia o Acórdão afirmar que “o imediato regresso destas menores à Islândia contra a sua vontade poderá provocar consequências psicológicas negativas para as mesmas”.

Por todo o exposto, não será intolerável a situação das menores caso regressem à Islândia.

Remanesce o último fundamento obstativo ao regresso das menores, previsto no terceiro parágrafo: A autoridade judicial pode recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.

Uma vez que o controlo exercido por este Tribunal sobre o Acórdão da Relação, na parte em que relevou a oposição das menores ao regresso, opera num plano de legalidade estrita, resta escrutinar apenas se a matéria de facto evidencia essa mesma oposição, questão a que se não pode dar senão resposta positiva por expressamente dela constar que (as menores) “Verbalizam não pretender regressar a Islândia por estarem magoadas com a mãe” – facto 10.

Já o juízo vertido no Acórdão recorrido que, partindo desta oposição, que se confirma num plano de legalidade estrita constituir fundamento de denegação do regresso, teve como fundamento a maturidade, a integração social, familiar e escolar das crianças e, na ponderação global dos seus superiores interesses, concluiu pela sua maior promoção no caso de permanecerem e residirem em Portugal – traduzido nos seguintes parágrafos: “Ora, atendendo à idade das menores, que têm uma maturidade compatível com a mesma, que as mesmas manifestaram vontade de permanecer em Portugal porque se sentem mais integradas socialmente, vendo o convívio com os avós paternos de forma positiva, sendo também expressivo o convívio escolar com os pares, têm no pai a figura afectiva de referência e apresentam bom aproveitamento escolar, o imediato regresso destas menores à Islândia contra a sua vontade poderá provocar consequências psicológicas negativas para as mesmas, consequências essas que não foram equacionadas e perturbar o seu desenvolvimento harmonioso”. e “Assim, entendemos que tendo em consideração, por um lado, a oposição das menores ao seu regresso a Islândia, a sua boa integração, quer no agregado familiar paterno quer no estabelecimento de ensino que frequentam, e o referido no citado art. 13º, da Convenção de Haia e, por outro o disposto no art. 3º, da Convenção sobre os Direitos da Criança assinada em Nova Iorque em 26 de Janeiro de 1990, e que o interesse superior das menores reconduz-se ao direito destas ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade (cfr. Almiro Rodrigues in “Interesse do menor contributo para uma definição - Revista Infância e Juventude, nº 1, 1985, página 18) estas menores deverão continuar a residir com o progenitor em Portugal”.

Assim, a fundamentação do Acórdão recorrido, nesta parte, assenta na equidade, em juízos de conveniência e de oportunidade e, nessa medida, por limitação legal expressa – artigo 988.º, n.º 2, do Código de Processo Civil – pelo que não está sujeito ao controlo deste Supremo Tribunal.

Neste contexto, decidiu-se no Acórdão do STJ de 05/11/2009, Revista n.º 1735/06.0TMPRT.S1, “VI - Está fora do âmbito possível do recurso de revista o controlo de uma decisão de recusa ou de entrega com fundamento na maior adequação à protecção dos interesses da criança, apenas susceptível de recurso até à Relação”.

Deste modo, e atento o atrás exposto, o recurso terá de improceder."

[MTS]


18/11/2021

Jurisprudência 2021 (80)

Usucapião; fracção autónoma;
propriedade horizontal


1. O sumário de RG 15/4/2021 (1082/18.4T8PTL.G1) é o seguinte:

I- Quem pede a declaração de que é proprietário de uma fração autónoma quando não existe propriedade horizontal, com fundamento em usucapião, tem de formular em primeiro lugar o pedido de constituição da propriedade horizontal.

II- A causa de pedir dessa ação tem de ser preenchida com a alegação dos elementos descritivos no art. 1418º, n.º 1, do C. Civil, nomeadamente o valor relativo de cada fração, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Recurso da decisão interlocutória sobre o mérito da causa

A decisão recorrida tem o seguinte teor:

O despacho saneador destina-se, além do conhecimento das excepções dilatórias e nulidades processuais, ao conhecimento imediato “do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória”, nos termos do artigo 595.º, 1, alínea b) do Código de Processo Civil, o que se fará de seguida visto que os autos permitem desde já apreciar parcialmente do mérito da causa, no tocante ao peticionado pelo autor sob os pontos I, II, III e V do pedido e ao peticionado pelo réu/reconvinte sob as alíneas C) e D) do pedido reconvencional, razão principal do agendamento da presente audiência prévia.

Há factos que por força da contestação apresentada nos autos se mostram ainda controvertidos. Sucede que mesmo que esses factos vertidos na petição inicial provados ficassem, sempre a presente acção teria que improceder parcialmente.

De facto, justifica-se nos presentes autos um julgamento antecipado, pela evidente inutilidade de qualquer instrução e discussão posterior da causa, pois redundaria na prática de actos ilícitos, por inúteis, o que a lei expressamente proíbe na norma levada ao artigo 130.º do Código de Processo Civil.

É do seguinte teor o pedido que o autor deduz sob o ponto I do pedido: “Reconhecer-se que o autor é dono e legítimo proprietário da parte correspondente ao rés do chão da casa sita na Rua .... n.º ..., freguesia de ..., Ponte de Lima”.

Trata-se do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima, freguesia de ..., sob o n.º .../20150608, constituído por r/c e 1.º andar (cfr. fls. 53).

A pretensão do autor é, portanto, a de se ver declarado proprietário de parte de um edifício, de parte de um prédio urbano.

Ora, como se disse já no processo 166/16.8T8PTL deste tribunal, no que tange aos princípios constitucionais do direito das coisas, importa chamar à colação os princípios da especialidade ou individualização e da tipicidade.

Relativamente ao primeiro, postula que “não há direitos reais sobre coisas genéricas (...), sendo necessária a especificação dessas coisas, que elas se tornem certas e determinadas, para que nelas incida um jus in re. É claro que, segundo a teoria das coisas, a especificação ou individualização jurídica não corresponde necessariamente a uma individualização física” [Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, Coimbra Editora, 2012, 163]. Como também refere o mesmo autor [Ob. e loc. cit.], as partes componentes e as partes integrantes de uma coisa (art.º 204.º do Código Civil), encontrando-se estreitamente conexas com uma coisa diferente, não poderão sofrer a incidência de direitos reais diversos dos que incidem sobre esta, pelo menos até ocorrer a desafectação ou separação.

O princípio da tipicidade, por seu lado, assenta, essencialmente, na “tendência dos direitos das coisas para se oferecerem em tipos característicos” [Orlando de Carvalho, Ob. Ci., 178-179].

Ora, conforme refere o Ac. RC de 07.04.2016 [Proc.º n.º 421/13.9TBOHP.C1, relatora Sílvia Pires, www.dgsi.pt], “em face do regime geral do direito de propriedade sobre imóveis, qualquer edifício incorporado no solo só pode ser objecto de um único direito de domínio, o qual abrangerá toda a construção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe servem de logradouro, como se infere das regras sobre acessão industrial imobiliária e do disposto no art.º 1344º do C. Civil, numa manifestação do princípio da especialidade ou da individualização que rege os direitos reais, na vertente segundo a qual, incidindo o direito de propriedade sobre a totalidade das coisas que constituem o seu objecto, não podem as suas partes integrantes ou componentes serem objecto de direito de propriedade de titular diferente, sendo o destino jurídico da coisa unitário”. Ou seja, no caso de edifício não constituído em propriedade horizontal, a coisa objecto de relações jurídicas é o próprio prédio e não cada andar individualmente [L. M. Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina, 2011, 320, nota 876].

A excepção é, precisamente a propriedade horizontal, como subtipo do direito de propriedade, observados que sejam os pressupostos legais da sua constituição (arts. 1414.º e ss. do Código Civil), “uma vez que permite que sobre o mesmo edifício de estrutura unitária se constituam distintos direitos de propriedade, com diferentes titulares, que incidem sobre fracções independentes desse prédio” [Ac. RC de 07.04.2016, loc. cit.]. Daí que se conclua que “os tribunais têm vindo a afirmar que a posse, em termos de direito de propriedade, de parte de um prédio não sujeito ao regime da propriedade horizontal, não pode determinar a aquisição por usucapião dessa parte, sem a prévia ou, pelo menos, simultânea constituição do imóvel em propriedade horizontal, a qual pode ocorrer por usucapião” [Ac. RC de 07.04.2016, loc. cit.; Ac. RE de 14.06.2007, Proc.º n.º 796/07-3, relator Fernando Bento; e Ac. RL 31.05.2012, Proc.º n.º 5747/07.8TMSNT.L1-2, relator Pedro Martins, todos em www.dgsi.pt].

No presente caso, o autor pretende precisamente o reconhecimento da aquisição por usucapião de partes especificadas do prédio urbano descrito na petição inicial sem que o mesmo se encontre constituído em propriedade horizontal ou sequer sem peticionar essa constituição (artigo 1417º, 1 e 2 do Código Civil), para o que necessariamente deveria, para além de deduzir o pedido, alegar os pertinentes factos, concretamente, a subsunção de todas as fracções do edifício ao regime do artigo 1415.º do Código Civil, para o que a alegação levada ao artigo 24.º da petição inicial é não só insuficiente como conclusiva, sendo certo que a matéria levada à réplica não deve ser atendida como constitutiva dos direitos do autor, mas apenas impugnativa, impeditiva, modificativa ou extintiva das excepções deduzidas pelo réu.
 
Em face do exposto, o pedido deduzido em I pelo autor não se afigura legalmente possível, pelo que é manifesta a sua improcedência, o que, por sua vez, acarreta a improcedência dos que dele são dependência – pedidos deduzidos em II e III).

Há ainda outro pedido – o deduzido sob o ponto V – cuja improcedência se deve desde já declarar: sob o argumento da celebração com terceiros de um acordo verbal para promessa de transmissão de um bem imóvel (cfr. artigo 6.º da p.i.) ou mesmo transmissão de um imóvel (não se percebe bem - cfr. artigo 8.º da p.i.), peticiona o autor do réu, e em consequência do que alega sob os artigos 6.º, 18.º, 19.º e 20.º da petição inicial, a condenação no pagamento da quantia de € 19.420,00.

Ora, não só em nenhum momento da petição inicial se invoca que o réu é único e universal herdeiro de A. F. e M. F. (invoca-se, sob o artigo 2.º da petição inicial, que o réu é filho único de ambos, mas quanto à existência de demais herdeiros, designadamente testamentários, nada se afirma; haverá, em princípio, perante a afirmação levada ao artigo 25.º da petição inicial de que o réu era o cabeça-de-casal da herança, outros herdeiros…), como é manifesto que a acção não é intentada contra o réu com o fundamento de que é este, por via da sucessão hereditária, obrigado ao pagamento de qualquer quantia ao autor por incumprimento contratual dos seus pais. Na realidade, o autor limita-se, perante a eventualidade da improcedência do primeiro bloco de pedidos, a pedir a condenação do réu em pagamento de quantia certa decorrente do incumprimento de uma promessa feita por terceiros (ou decorrente da invalidade do negócio por vício de forma – insiste-se que, em face do teor dos artigos 6.º e 8.º da p.i., não é clara a causa do pedido).

Mas, como é bom de ver, o réu não é parte nesse negócio e pela via do seu singelo incumprimento não lhe pode ser assacada qualquer obrigação (cfr. artigo 406.º, 2 do Código Civil).

E tanto basta para que também se deva ter este pedido como improcedente.

A inadmissibilidade do exercício (por parte do autor) de actos de posse sobre parte de coisa que é, afinal, indivisível (o que acarreta a impossibilidade de aquisição do direito de propriedade), permite desde já também, e perante a inscrição, na conservatória do registo predial, da aquisição do prédio urbano a favor do réu, o conhecimento dos pedidos reconvencionais deduzidos pelo réu/reconvinte.

Na realidade, na improcedência dos pedidos principais deduzidos pelo autor, sempre subsistirá o seguinte facto dado como provado, porque assente em documento autêntico cuja falsidade não foi invocada, e que dispensa a demonstração de tudo quanto o réu alega quanto à posse prolongada no tempo:

Facto provado:

Mostra-se, pela ap. 1156 de 2015/06/08, a aquisição, por sucessão hereditária, a favor do réu/reconvinte, do prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo ....º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../20150608, freguesia de ..., constituído por casa de rés-do-chão e primeiro andar.

Nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial (“o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”), o facto jurídico definitivamente registado faz presumir que o direito resultante do facto jurídico registado existe e pertence a quem assim é considerado no facto jurídico registado.

Ora, uma vez que não ressalta dos articulados qualquer divergência quanto aos elementos da descrição predial e sua correspondência com a realidade física em disputa, nada impede que se tenha desde já por eficaz a presunção legal prevista no referido artigo 7.º do Código do Registo Predial e, em consequência, se declare ser o réu o proprietário do prédio em discussão nos autos (presunção que se retira do facto registado), direito que resulta da sua aquisição por sucessão por morte (o facto registado), que é uma das formas da aquisição da propriedade (artigo 1316.º do Código Civil).

Decisão (parcial)

Pelo exposto, e em consequência do que acima se disse, desde já:

-Se absolve o réu dos pedidos deduzidos pelo autor sob os pontos I, II, III e V do pedido;

-Se julga o pedido reconvencional procedente e, em consequência, se declara o réu/reconvinte proprietário do prédio urbano composto por casa de rés-do-chão e primeiro andar, destinado a habitação, sito na Rua ..., n.º ..., freguesia de ..., Ponte de Lima, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima sob o n.º .../20150608 da mesma freguesia; e, em consequência,

-Se condena o autor no correspectivo dever jurídico de se abster da prática de actos que estorvem, impeçam ou limitem o gozo e exercício do direito de propriedade do réu/reconvinte.
 
Custas da acção, nesta parte, pelo autor, que se fixam em 5/6 das da acção (artigo 527.º do CPC)”.

Conhecendo.

Cumpre averiguar se os pedidos I, II e III podiam ter sido logo decididos na fase em que o foram, ou se, como pretende o recorrente deveria o processo ter avançado para a audiência de julgamento e para a produção de prova.

Vejamos.

O recorrente não contesta a tese jurídica no centro da decisão recorrida, a de que devido ao princípio da especialidade que vigora em matéria de direitos reais, a posse, em termos de direito de propriedade, de parte de um prédio não sujeito ao regime da propriedade horizontal, não pode determinar a aquisição por usucapião dessa parte, sem a prévia ou, pelo menos, simultânea constituição do imóvel em propriedade horizontal, a qual pode ocorrer por usucapião. É pacífico que “a usucapião, enquanto acto jurídico de aquisição originária de direitos reais, não opera validamente sobre coisa que, nesse domínio, se traduza em objecto legalmente impossível, nos termos do art. 280º, aplicável por via do art. 295º, ambos do CC”.

A divergência está em que, enquanto a decisão recorrida considerou que para obter vencimento de causa o autor deveria ter deduzido o pedido de constituição da propriedade horizontal e alegado os pertinentes factos, o que não fez, já o recorrente entende que alegou os factos necessários, na petição inicial, na réplica e no requerimento com a referência electrónica 31515932. Mais entende que fez sempre alusão e alegação da constituição da propriedade horizontal, e que para tal pedido ser reconhecido, e contrariamente ao que se afirma na decisão recorrida, não é necessário peticionar a constituição de propriedade horizontal, basta alegar factos que levam ou podem levar a essa constituição.

Quid iuris?

Podemos desde já afastar aquilo que tenha sido alegado na réplica, pois esta peça processual serve, apenas e tão-só, para o autor deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção (art. 584º,1 CPC). Já não serve para acrescentar factos essenciais que ficaram por alegar na petição inicial.

Depois, é certo que o autor, para responder à matéria de excepção, apresentou o requerimento de 11.02.2019, no qual, com relevo para a solução, apenas vislumbramos o artigo 17º, com o seguinte teor: “aliás, das características do imóvel extrai-se precisamente que a constituição da propriedade horizontal sempre foi o acordado entre as partes, pois o rés do chão (propriedade do autor) e o primeiro andar (propriedade do réu) têm entradas independentes, com acesso a uma área comum e confrontação com a via pública”.

E na petição inicial, e para o que agora interessa, apenas vislumbramos o artigo 24º: “fazendo a ressalva que teriam que ser gerados dois artigos, um para a parte de baixo, outro para a parte de cima da casa, correspondendo respectivamente à parte do autor e do réu, sendo certo que há mais de vinte anos estas duas fracções estão materialmente divididas e têm entradas independentes”.

É ainda verdade que o autor não formulou qualquer pedido quanto à constituição da propriedade horizontal. Limitou-se a pedir o seguinte: “I. Reconhecer-se que o autor é dono e legítimo proprietário da parte correspondente ao rés do chão da casa sita na Rua ..., n.º ..., Freguesia de ..., Ponte de Lima. II. O réu ser condenado a reconhecer que o autor é dono e legítimo proprietário da parte correspondente ao rés do chão da casa sita na Rua ..., n.º ..., Freguesia de ..., Ponte de Lima. III. O réu ser condenado a abster-se da prática de actos que impeçam, disturbem ou diminuam o legítimo direito de propriedade do autor”.

Começando já por esta última parte, temos como pacífico que o autor tinha o ónus de formular o pedido de constituição da propriedade horizontal. Como está explicado na sentença recorrida, e o recorrente não contesta, “em face do regime geral do direito de propriedade sobre imóveis, qualquer edifício incorporado no solo só pode ser objecto de um único direito de domínio, o qual abrangerá toda a construção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe servem de logradouro, como se infere das regras sobre acessão industrial imobiliária e do disposto no art.º 1344º do C. Civil, numa manifestação do princípio da especialidade ou da individualização que rege os direitos reais, na vertente segundo a qual, incidindo o direito de propriedade sobre a totalidade das coisas que constituem o seu objecto, não podem as suas partes integrantes ou componentes serem objecto de direito de propriedade de titular diferente, sendo o destino jurídico da coisa unitário. No caso de edifício não constituído em propriedade horizontal, a coisa objecto de relações jurídicas é o próprio prédio e não cada andar individualmente. A excepção é, precisamente a propriedade horizontal, como subtipo do direito de propriedade, observados que sejam os pressupostos legais da sua constituição. Daí que se conclua que “os tribunais têm vindo a afirmar que a posse, em termos de direito de propriedade, de parte de um prédio não sujeito ao regime da propriedade horizontal, não pode determinar a aquisição por usucapião dessa parte, sem a prévia ou, pelo menos, simultânea constituição do imóvel em propriedade horizontal, a qual pode ocorrer por usucapião” [Ac. RC de 07.04.2016, loc. cit.; Ac. RE de 14.06.2007, Proc.º n.º 796/07-3, relator Fernando Bento; e Ac. RL 31.05.2012, Proc.º n.º 5747/07.8TMSNT.L1-2, relator Pedro Martins, todos em www.dgsi.pt].

Esta jurisprudência é pacífica. Veja-se vg. o Acórdão do STJ de 4/10/2018 (Relator: Tomé Gomes), em cujo sumário de pode ler: “I. A aquisição originária de um bem imobiliário por usucapião só é legalmente possível se a posse recair sobre coisa imóvel ou parte de coisa imóvel susceptível de constituir objecto de direito real. II. A usucapião, enquanto acto jurídico de aquisição originária de direitos reais, não opera validamente sobre coisa que, nesse domínio, se traduza em objecto legalmente impossível, nos termos do artigo 280.º, aplicável por via do art.º 295.º, ambos do CC”.

Assim, sendo pacífico que o tribunal não pode condenar em algo diverso do peticionado, sob pena de nulidade (artigos 609º,1 e 615º,1,e CPC), é igualmente pacífico que o autor tinha de formular o pedido de constituição da propriedade horizontal, sob pena de manifesta improcedência. Aliás, basta ver que o próprio pedido formulado (“Reconhecer-se que o autor é dono e legítimo proprietário da parte correspondente ao rés do chão da casa sita na Rua ..., n.º ..., Freguesia de ..., Ponte de Lima”) demonstra que o autor não teve presente esta característica dos direitos reais, e formulou o seu pedido como se o Tribunal pudesse declará-lo proprietário “da parte correspondente ao rés do chão da casa sita na Rua ..., n.º ...”, sem mais.

Aliás, decorre de tudo o que já ficou dito que há aqui uma precedência ou ordem lógica: primeiro devia ter sido pedida a constituição da propriedade horizontal, com todas as referências que isso implica, e só depois devia ser formulado o pedido de declaração de o autor ser proprietário de uma determinada fracção, identificando correctamente a mesma. E repare-se que, como refere o recorrido nas suas contra-alegações, o autor nem sequer foi capaz de identificar o imóvel em causa, com referência aos seus números de inscrição matricial e de descrição na Conservatória do Registo Predial. Não assiste de todo razão ao recorrente quando afirma que para que o seu pedido seja reconhecido, “e contrariamente ao que se afirma na decisão recorrida, não é necessário peticionar a constituição de propriedade horizontal, basta alegar factos que levam ou podem levar a essa constituição”.

[MTS]