"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/11/2021

Jurisprudência 2021 (81)


Processo tutelar cível; critério de decisão; 
discricionariedade; recurso


1. O sumário de STJ 4/5/2021 (7603/20.5T8PRT-C.P1.S1) é o seguinte:

Nos termos do artigo 13.º da Convenção sobre Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção de Haia, de 25-10-1980), que determina que a autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto, tendo o tribunal recorrido decidido pelo não regresso com base em juízos de conveniência e oportunidade, não se coloca uma questão de legalidade estrita que possa ser conhecida pelo STJ, por força do artigo 988.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4. Da violação do disposto nos artigos 3º, 11º, 12º e na al. b) do artigo 13º da Convenção da Haia, de 1980

Para sustentar a decisão de não ordenar, revogando a decisão do Tribunal de 1.ª instância, o regresso das menores AA e BB à Islândia, permanecendo as mesmas em Portugal a residir com o progenitor, o Acórdão exarou a seguinte fundamentação:

“A Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças - (Convenção de Haia) tem por objecto, para além do mais assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer estado contratante ou nele retidos indevidamente - cf. art 1º, alínea a).

Tendo decorrido menos de um ano desde a data da deslocação ilícita, o regresso apenas não deve ser ordenado, se a pessoa que se opuser ao mesmo provar: – que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com essa transferência ou retenção; ou – que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável (cf. alíneas a) e b) do artigo 13º da Convenção).

A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto - citado artº 13º da Convenção.

Revertendo à situação dos autos, constata-se que as menores AA, prestes a completar 15 anos de idade e BB, prestes a completar 11 anos de idade, vivem com o pai desde a separação dos progenitores, ocorrida em Abril de 2020, até Julho de 2020 na Islândia e a partir desse mês em Portugal.

A conduta do pai ora recorrente, ao decidir unilateralmente pela alteração da residência das filhas para Portugal é reprovável, como igualmente é o envolvimento no conflito conjugal e o não incitar as menores a falar com a mãe pelo telefone.

Todavia, as menores manifestaram, pelo menos, em dois momentos distintos o seu desejo de permanecer com o pai em Portugal: em .. de setembro de 2020 que não querem voltar para a Islândia, e, em .. de novembro de 2020 que pretendem permanecer em Portugal porque se sentem mais integradas socialmente, vendo o convívio com os avós paternos de forma positiva, sendo também expressivo o convívio escolar com os pares.

Têm uma maturidade compatível com a sua idade. (…)

Ora, atendendo à idade das menores, que têm uma maturidade compatível com a mesma, que as mesmas manifestaram vontade de permanecer em Portugal porque se sentem mais integradas socialmente, vendo o convívio com os avós paternos de forma positiva, sendo também expressivo o convívio escolar com os pares, têm no pai a figura afectiva de referência e apresentam bom aproveitamento escolar, o imediato regresso destas menores à Islândia contra a sua vontade poderá provocar consequências psicológicas negativas para as mesmas, consequências essas que não foram equacionadas e perturbar o seu desenvolvimento harmonioso.

Assim, entendemos que tendo em consideração, por um lado, a oposição das menores ao seu regresso a Islândia, a sua boa integração, quer no agregado familiar paterno quer no estabelecimento de ensino que frequentam, e o referido no citado art. 13º, da Convenção de Haia e, por outro o disposto no art. 3º, da Convenção sobre os Direitos da Criança assinada em Nova Iorque em 26 de Janeiro de 1990, e que o interesse superior das menores reconduz-se ao direito destas ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade (cfr. Almiro Rodrigues in “Interesse do menor contributo para uma definição - Revista Infância e Juventude, nº 1, 1985, página 18) estas menores deverão continuar a residir com o progenitor em Portugal.”

Entende a Recorrente que o Acórdão deve ser revogado, pela seguinte ordem de razões:

- primeiro, o processo para pedir o regresso de uma criança, fundado em rapto, disciplinado na Convenção de Haia de 1980, destina-se apenas a obter o regresso, apurada a ilicitude da deslocação ou da retenção, ou seja, a contrariar o uso de meios de auto-tutela e não a discutir o regime de exercício das responsabilidades parentais;

- segundo, os menores tinham residência habitual na Islândia;

- terceiro, a lei islandesa veda a qualquer um dos progenitores levar as crianças para fora do país sem autorização do outro;

- quarto, o risco previsto na alínea b) do artigo 12.º da Convenção não deve consistir apenas na (inevitável) perturbação psicológica resultante para a criança do seu regresso mas de um perigo imputável ao progenitor cujo direito foi violado e que procura a restituição da criança. Para além de ser exigida a prova dos riscos inadmissíveis a que a criança estaria exposta ao regressar ao estado requerente, existem ainda decisões que exigem que se comprove que as autoridades requerentes não tutelariam o bem-estar da criança. Nada disso foi demonstrado;

- quinto, a oposição das crianças em regressarem à Islândia não foi livre nem esclarecida.

Vejamos.

A Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25 de outubro de 1980 (doravante Convenção), foi aprovada, em Portugal, pelo Decreto de Governo n.º 33/83, de 11 de maio (publicado no DR n.º 108/1983, Série I de 1983/05/11), e foi aprovada, igualmente, pelo governo Islandês.

A Convenção, tem por objeto assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente – art. 1.º al. a) –, considerando ilícita a transferência ou retenção quando tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa (…) individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção – art. 3.º, al. a) e) – e, aplica-se a qualquer criança com residência habitual num Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de custódia, e até atingir a idade de 16 anos – art. 4.º.

No caso dos autos, as menores, com 15 e 11 anos atualmente, viveram na Islândia, conjuntamente com os progenitores, casados entre si, nos últimos três anos anteriores a julho de 2020, não suscitando dúvida que aí tinham a sua residência habitual – factos 1. e 2.; em julho de 2020, após a separação dos progenitores ocorrida em abril de 2020, o progenitor, com o acordo da progenitora, deslocou-se com as menores para virem passar férias a Portugal e decidiu, sem o acordo daquela, mudar a residência das mesmas para este país – factos 4. e 5..

Os artigos 28-A e 29 da Lei islandesa (Children Act No. 76, de 27 de março de 2003) prevêem que, sendo os progenitores casados, o direito de custódia pertence a ambos, envolvendo este direito a faculdade de decidir sobre o lugar da sua (dos menores) residência – artigo 5.º, al. a), da Convenção.

Pelo que, a decisão do progenitor, sem o acordo da progenitora, de após o terminus das férias, decidir mudar a residência das menores para Portugal, configura, para efeitos de aplicação da Convenção, uma ilícita ou indevida retenção destes, já que viola o direito de custódia, exercido por direito, (também) pela progenitora antes da retenção.

Assim também se decidiu no acórdão de 14/04/2011, Revista n.º 883/09.9TMCBR.C1.S1, “I - A decisão unilateral por parte da progenitora (mãe) de não regressar ao país (Estado da residência habitual) onde a menor estava domiciliada, depois de se ter deslocado a Portugal pelo período de 15 dias com o consentimento do outro progenitor (pai), que detinha também a custódia da filha, configura à luz do art. 3.º, al. a), da Convenção sobre Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção de Haia, de 25-10-1980) uma situação de retenção ilícita, dado que não está em causa nos autos a regulação das responsabilidades parentais sobre a menor.”.

Deste excurso, seguir-se-ia ordenar imediatamente o regresso das menores à Islândia, censurando, de forma enérgica e exemplar, o uso pelo progenitor de meios de autotutela da regulação das responsabilidades parentais – artigo 1.º, al. a), da Convenção – cumprindo-se cabalmente a prescrição contida no artigo 12.º, primeiro parágrafo, da Convenção, segundo a qual “Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança”.

Ocorre que o artigo 13.º da Convenção ressalva:

“Sem prejuízo das disposições contidas no artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:

a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou

b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.

A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.

Ao apreciar as circunstâncias referidas neste artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança”.

Com efeito, “IV - A ilicitude da deslocação ou da retenção é condição para que seja determinada a entrega imediata da criança”; porém, “V - Sendo ilícita, a entrega deve ser ordenada, salvo se ocorrerem as circunstâncias ponderosas que a Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25-10-1980, aprovada pelo DL n.º 22/83, de 11-05, e o referido Regulamento consideram aptas a fundamentar uma decisão de recusa” – Acórdão do STJ de 24/06/2010, Revista n.º 622/07.9TMBRG.G1.S1.

Para efeitos de tal normativo, em que se baseou o Acórdão recorrido para indeferir o regresso das menores, não ocorrem, ante a matéria de facto provada, as previsões contidas nas alíneas a) e b):

- para efeitos da alínea a), a progenitora, com quem as menores viviam antes de virem para Portugal onde ficarem retidas por decisão do progenitor, exercia (o ordenamento jurídico islandês prevê-o), o direito de custódia sobre as mesmas; e,

- para efeitos da alínea b), o progenitor não provou, como era seu ónus, que o regresso das menores à Islândia as exponha a perigos de ordem física ou psíquica ou as coloque numa qualquer situação intolerável. Frise-se: primeiro, a relação das menores com cada um dos progenitores e a dinâmica familiar antes da separação era positiva e gratificante, podendo vir a sê-lo novamente caso regressem para junto da mãe – factos 7. e 8.; segundo, o facto das menores estarem magoadas atualmente com a mãe radica exclusivamente na atitude censurável do pai – relatando-lhes o relacionamento da mãe com um terceiro como “uma traição a si e às filhas”, e levando-as local de trabalho, onde a viram no carro com um amigo, lhes transmitiu que a mãe deu um beijo a tal pessoa – que levou a aderiram ao seu ponto de vista – factos 10, 11, 12 e 13; terceiro, a integração social, familiar e escolar das menores em Portugal não exclui a mesmíssima integração na Islândia, não passando de futurologia o Acórdão afirmar que “o imediato regresso destas menores à Islândia contra a sua vontade poderá provocar consequências psicológicas negativas para as mesmas”.

Por todo o exposto, não será intolerável a situação das menores caso regressem à Islândia.

Remanesce o último fundamento obstativo ao regresso das menores, previsto no terceiro parágrafo: A autoridade judicial pode recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.

Uma vez que o controlo exercido por este Tribunal sobre o Acórdão da Relação, na parte em que relevou a oposição das menores ao regresso, opera num plano de legalidade estrita, resta escrutinar apenas se a matéria de facto evidencia essa mesma oposição, questão a que se não pode dar senão resposta positiva por expressamente dela constar que (as menores) “Verbalizam não pretender regressar a Islândia por estarem magoadas com a mãe” – facto 10.

Já o juízo vertido no Acórdão recorrido que, partindo desta oposição, que se confirma num plano de legalidade estrita constituir fundamento de denegação do regresso, teve como fundamento a maturidade, a integração social, familiar e escolar das crianças e, na ponderação global dos seus superiores interesses, concluiu pela sua maior promoção no caso de permanecerem e residirem em Portugal – traduzido nos seguintes parágrafos: “Ora, atendendo à idade das menores, que têm uma maturidade compatível com a mesma, que as mesmas manifestaram vontade de permanecer em Portugal porque se sentem mais integradas socialmente, vendo o convívio com os avós paternos de forma positiva, sendo também expressivo o convívio escolar com os pares, têm no pai a figura afectiva de referência e apresentam bom aproveitamento escolar, o imediato regresso destas menores à Islândia contra a sua vontade poderá provocar consequências psicológicas negativas para as mesmas, consequências essas que não foram equacionadas e perturbar o seu desenvolvimento harmonioso”. e “Assim, entendemos que tendo em consideração, por um lado, a oposição das menores ao seu regresso a Islândia, a sua boa integração, quer no agregado familiar paterno quer no estabelecimento de ensino que frequentam, e o referido no citado art. 13º, da Convenção de Haia e, por outro o disposto no art. 3º, da Convenção sobre os Direitos da Criança assinada em Nova Iorque em 26 de Janeiro de 1990, e que o interesse superior das menores reconduz-se ao direito destas ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade (cfr. Almiro Rodrigues in “Interesse do menor contributo para uma definição - Revista Infância e Juventude, nº 1, 1985, página 18) estas menores deverão continuar a residir com o progenitor em Portugal”.

Assim, a fundamentação do Acórdão recorrido, nesta parte, assenta na equidade, em juízos de conveniência e de oportunidade e, nessa medida, por limitação legal expressa – artigo 988.º, n.º 2, do Código de Processo Civil – pelo que não está sujeito ao controlo deste Supremo Tribunal.

Neste contexto, decidiu-se no Acórdão do STJ de 05/11/2009, Revista n.º 1735/06.0TMPRT.S1, “VI - Está fora do âmbito possível do recurso de revista o controlo de uma decisão de recusa ou de entrega com fundamento na maior adequação à protecção dos interesses da criança, apenas susceptível de recurso até à Relação”.

Deste modo, e atento o atrás exposto, o recurso terá de improceder."

[MTS]