"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/11/2021

Jurisprudência 2021 (82)


Assembleia de condóminos; deliberações;
anulação; legitimidade passiva*


1. O sumário de STJ 4/5/2021 (3107/19.7T8BRG.G1.S1) é o seguinte:

A acção de anulação de deliberação da assembleia de condóminos deve ser instaurada contra o condomínio, por só ele ter legitimidade passiva, embora representado pelo respectivo administrador.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No recurso, está em causa saber em quem radica a legitimidade passiva para a presente acção: se nos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação anulanda, como sustenta a recorrente, ou no condomínio, como se decidiu no acórdão recorrido, ainda que em ambos os casos representados pelo administrador.

O art.º 30.º do CPC contém o conceito de legitimidade, dispondo, no n.º 1, 2.ª parte, que “o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer”, sendo que, nos termos do n.º 2, este interesse se exprime pelo prejuízo que advenha da procedência da acção.

E acrescenta o n.º 3 do mesmo artigo que, “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”. [...]

Cremos não haver dúvidas de que a legitimidade das partes é um pressuposto processual que não deve ser confundido com a procedência ou improcedência da acção.

Como pressuposto processual que é, a legitimidade respeita às condições impostas ao exercício de uma situação subjectiva em juízo e traduz-se num posicionamento das partes quanto ao objecto do processo e pedidos nele formulados. [...]

Sendo o objecto do processo constituído pelo pedido e pela respectiva fundamentação, ou causa de pedir, mas conferindo-se a esta apenas uma função individualizadora daquele, será o pedido a realidade aferidora da legitimidade de qualquer parte.

Deste modo, a ilegitimidade só se verificará quando não se encontrar o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação.

O pedido formulado nesta acção é o de que seja “decretada a anulação, nos termos e ao abrigo do disposto no artº 1433º, nºs 1 e 4, do Cód. Civil, da deliberação da assembleia de condóminos de 04 de abril de 2019”.

Estamos, assim, perante a impugnação de uma deliberação tomada pela assembleia de condóminos de um prédio constituído em propriedade horizontal, surgindo no âmbito da acção da respectiva anulação a questão da legitimidade passiva.

Como se refere no acórdão da Formação que admitiu a revista excepcional, “é hoje bem conhecida a profunda divergência jurisprudencial que existe, em especial nos Tribunais Superiores e até na doutrina sobre a questão aqui em apreço, como de resto, se dá nota tanto na decisão da 1.ª instância como no acórdão recorrido.

Assim e em síntese, enquanto uma orientação se perfila no sentido de que as ações de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos devem ser propostas contra o próprio condomínio representado pelo respetivo administrador, tendo em conta o preceituado no artigo 12.º, alínea e), do CPC, conjugado com o disposto nos artigos 1437.º, n.ºs 1 a 3, e 1436.º, alínea h), apelando aos critérios interpretativos do art.º 9.º, n.º 3, todos do CC; outra orientação vai no sentido de que o artigo 1433.º, n.º 6, do CC, embora o não refira expressamente, oferece um vetor decisivo no sentido de afastar a legitimidade do próprio condomínio e de afirmar a legitimidade dos condóminos, tornando inquestionável que a ação terá necessariamente de ser proposta contra todos aqueles que votaram a favor da aprovação da deliberação cuja anulação se pretende, ainda que representados pelo administrador ou porventura por pessoa que a assembleia designe para o efeito”.

São, fundamentalmente, estas as duas teses em confronto sobre a legitimidade passiva nas acções de impugnação de deliberações condominiais.

Ao nível da jurisprudência, encontrámos acórdãos dos Tribunais Superiores nos dois sentidos, sendo que nos pareceu, das buscas que efectuámos, haver uma tendência maioritária para a referida primeira tese, ou seja, no sentido de atribuir legitimidade ao condomínio.

Assim, no sentido da legitimidade dos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação anulanda, embora representados pelo administrador, sustentada pela recorrente, podem ver-se, entre outros, os seguintes acórdãos do STJ de 2/2/2006, processo n.º 05B4296; de 29/11/2006, processo n.º 06A2913; de 20/9/2007, proc.º n.º 07B787 (agravo n.º 787/07 – 2.ª Secção, com dois votos de vencido, sendo um do Conselheiro Quirino Soares, que segue a tese da legitimidade do condomínio e outro do Conselheiro Santos Bernardino, relativamente a um procedimento processual, mas também no sentido da legitimidade dos condóminos); de 24/6/2008, agravo n.º 1755/08, com um voto de vencido do Conselheiro Urbano Dias, e de 6/11/2008, proc.º n.º 08B2784, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

E, no sentido da legitimidade do condomínio, podemos ver, inter alia, os seguintes acórdãos do STJ:

- De 5/5/2005, agravo n.º 1114/05 - 7.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“I - A legitimidade processual passiva nas acções de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos pertence ao condomínio, pois a decisão judicial que anular a deliberação será oponível àquele, integrado por todos os condóminos (art.ºs 1433, n.º 6, do CC e 6, al. e), do CPC).

II - Em tais acções, deverá o administrador ser citado como representante legal do condomínio (art.º 231, n.º 1, do CPC). [...]”

- De 10/1/2006, revista n.º 3727/05 – 6.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“I - A al. e) do art.º 6 do CPC revisto, veio atribuir personalidade judiciária aos condomínios nas acções em que por ele pode intervir o administrador, nos termos do art.º 1433, n.º 6, do CC.

II - Assim, diversamente do que acontecia anteriormente à reforma do processo civil, o conjunto de condóminos (o condomínio) pode ser directamente demandado quando, estejam em causa deliberações da assembleia, devendo ser citado o administrador como representante legal do condomínio - art.º 231, n.º 1, do CPC.”

- De 14/6/2007, agravo n.º 502/07 - 2.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“I - A deliberação social que se pretende impugnar exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos individualmente considerados; pelo que, sendo um acto do condomínio, a legitimidade passiva cabe ao administrador.

II - O titular do interesse relevante para efeito de legitimidade é o condomínio, sendo, na acção, representado pelo administrador; este, enquanto representante judiciário, age em nome e no interesse do colectivo dos condóminos, do condomínio.”

- De 29/5/2007, revista n.º 1484/07- 1.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“É ao administrador que cabe a representação do condomínio com vista a assegurar o contraditório numa acção de impugnação de deliberações, a menos que a assembleia designe outra pessoa para tal.”

- De 14/6/2007, agravo n.º 502/07 - 2.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“I - A deliberação social que se pretende impugnar exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos individualmente considerados; pelo que, sendo um acto do condomínio, a legitimidade passiva cabe ao administrador.

II - O titular do interesse relevante para efeito de legitimidade é o condomínio, sendo, na acção, representado pelo administrador; este, enquanto representante judiciário, age em nome e no interesse do colectivo dos condóminos, do condomínio.”

- De 25/9/2012, revista n.º 3592/09.5TBPTM.E1.S1- 6.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“I - O condomínio é um ente colectivo, constituído pelo conjunto dos condóminos, que manifesta a sua vontade através das deliberações da assembleia dos condóminos e do respectivo administrador – arts. 1430.º, n.º 1, 1432.º, 1435.º e 1436.º do CC.

II - As deliberações impugnadas da assembleia dos condóminos não são pessoais de cada condómino, mas do condomínio, como ente colectivo, que as aprovou em assembleia convocada para o efeito, nos termos legais e regulamentares.

III - Numa acção de impugnação de deliberações da assembleia dos condóminos o condomínio pode estar em juízo, representado pelo respectivo administrador.”

- E de 24/11/2020, revista n.º 23992/18.9T8LSB.L1.S1 – 6.ª Secção[...], com o seguinte sumário:

“I – O condomínio é um ente colectivo, constituído pelo conjunto dos condóminos, que manifesta a sua vontade através das deliberações da assembleia dos condóminos.

II – A deliberação tomada pela assembleia de condóminos exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos individualmente considerados, designadamente dos que a aprovaram.

III – A própria essência de uma deliberação constitui um conteúdo autonomizado da vontade dos sujeitos individuais que nela intervieram e para ela contribuíram, configurando-se não como uma soma das vontades singulares, mas como uma realidade autónoma e distinta.

IV – Na acção de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos, a legitimidade passiva pertence ao condomínio, representado pelo respectivo administrador”. [...]

Que dizer?

O art.º 12.º, al. e), do actual CPC, reproduzindo o art.º 6.º do CPC de 1961, na versão proveniente da revisão de 1995/96[...], atribui personalidade judiciária ao “condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador”.

Esta disposição legal remete para o art.º 1437.º do Código Civil, que prevê especificamente a “legitimidade do administrador” para agir em juízo activa e passivamente, nalguns casos, e também para o art.º 1436.º do mesmo Código que discrimina as diversas funções que competem ao administrador, nas quais se inclui a execução das deliberações da assembleia [alínea h)].

Por sua vez, o art.º 1433.º, n.º 6, do Código Civil prevê que “a representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as ações compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para o efeito”.

A deliberação de condóminos é a forma por que se exprime a vontade da assembleia de condóminos (art.ºs 1431.º e 1432.º, ambos do Código Civil), órgão deliberativo a quem compete a administração das partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal (art.º 1430.º, n.º 1, do Código Civil), sendo o administrador o órgão executivo da administração (art.ºs 1435.º a 1438.º, todos do Código Civil).

Como bem se refere no acórdão da Relação do Porto, de 13/2/2017, proferido no processo n.º 232/16.0T8MTS.P1[...], parcialmente transcrito no acórdão deste Supremo, de 24/11/2020, já citado:

“Se a deliberação exprime a vontade da assembleia de condóminos, estruturalmente percebe-se que seja essa entidade, porque vinculada pela deliberação, a demandada em ação em que se questione a existência, a validade ou a eficácia de uma sua qualquer deliberação.

Por outro lado, mal se percebe que os condóminos, pessoas singulares ou coletivas, dotados de personalidade jurídica, careçam de ser representados judiciariamente pelo administrador do condomínio. De facto, a representação judiciária apenas se justifica relativamente a pessoas singulares desprovidas total ou parcialmente de capacidade judiciária ou relativamente a entidades coletivas, nos termos que a lei ou respetivos estatutos dispuserem, ou ainda relativamente aos casos em que as pessoas coletivas ou singulares se venham a achar numa situação de privação dos poderes de administração e disposição dos seus bens por efeito da declaração de insolvência”.

Por isso, entende-se que, quando no n.º 6 do art.º 1433º do Código Civil se faz referência aos condóminos, o legislador incorreu nalguma incorreção de expressão, dizendo menos do que queria, pois parece ter tido em mira uma entidade colectiva - a assembleia de condóminos -, o condomínio vinculado pelas deliberações impugnadas e cuja execução compete ao administrador, como já se viu.

Se ao administrador compete executar as deliberações da assembleia de condóminos, nos termos do art.º 1436.º, al. h), do Código Civil), por igualdade de razão, cumpre-lhe sustentar a existência, a validade e a eficácia dessas mesmas deliberações, em representação do condomínio.

Concluímos, assim, com o devido respeito por outros entendimentos, que a legitimidade passiva na ação de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos, compete ao condomínio, representado pelo administrador. [...]

Com ela afastam-se problemas que resultariam da obrigatoriedade de demandar, em litisconsórcio necessário, os condóminos que votaram a favor da deliberação inválida, seja pelo elevado número de condóminos de certos edifícios, seja pela impossibilidade prática, na esmagadora maioria das vezes, de proceder à sua identificação, como sucede no caso dos autos, na versão apresentada pela recorrente.

A citação do administrador não evitaria esse problema, porquanto se trata de apurar a legitimidade passiva para a acção, ou seja, quem devia ser demandado e não quem os representa, sendo que, na tese que sustentamos, também o administrador representa o condomínio. Trata-se de saber quem deve figurar como parte, do lado passivo, e não o seu representante, questões distintas, como é evidente.

Atento o pedido formulado – de anulação da deliberação da assembleia de condóminos de 4/4/2019 – de acordo com a tese que sustentamos, cremos não haver dúvidas de que a legitimidade passiva é do condomínio, ainda que representado pelo seu administrador.

Era aquele que devia figurar no lado passivo da acção e não os condóminos que votaram favoravelmente a deliberação anulanda, não identificados, contra os quais foi endereçada a petição inicial e sustenta a recorrente.

Não lhe assiste, pois, qualquer razão na alteração que pretende através do recurso ora em análise.

Muito menos pode obter, através dele, a pretendida prolação de decisão em regime de substituição do Tribunal recorrido, visto que a regra de substituição não é aplicável na revista (cfr. art.ºs 665.º e 679.º, ambos do CPC)."


*3. [Comentário] Revendo a posição assumida em Jurisprudência 2019 (13), não se acompanha, salvo o devido respeito, a orientação defendida no acórdão quanto à legitimidade passiva nas acções de anulação de deliberações da assembleia de condóminos. Na verdade, esta orientação implica uma tríplice interpretação correctiva:

-- Do disposto no art. 1433.º, n.º 6, CC, que, claramente, atribui a legitimidade passiva aos condóminos, representados pelo administrador;

-- Do estabelecido no art. 1437.º CC, dado que em parte alguma deste preceito se atribui legitimidade ao administrador para representar o condomínio nas acções de anulação de deliberações das assembleias de condóminos; aliás, se o fizesse, estaria em completa contradição com o que se encontra estatuído no art. 1433.º, n.º 6, CC;

-- Finalmente, do disposto no art. 12.º, al. e), CPC, dado que não se vê em que medida as acções de anulação de deliberações das assembleias de condóminos podem ser integradas nas "acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador".

Quer dizer: a orientação seguida no acórdão não é justificável sem uma completa subversão do sistema substantivo e processual.

MTS