"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/11/2021

Jurisprudência 2021 (83)


Fixação de prazo;
litisconsórcio necessário*


1. O sumário de RP 27/4/2021 (268/21.9T8VCD.P1) é o seguinte:

I – A ação de fixação judicial de prazo tem como objeto único, a fixação de um prazo, adequado e razoável, para o cumprimento de uma obrigação.

II - Trata-se de um processo de jurisdição voluntária com uma tramitação simples e expedita, como decorre do disposto nos artºs 292º e segs e 986º e sgs do CPC, em que a o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita; nos processos de jurisdição voluntária, a função exercida pelo juiz não é estritamente a de intérprete e aplicador da lei.

III – Nestes processos não se discutem quaisquer questões substantivas relativas ao negócio cujo prazo se pretende fixar nomeadamente quanto à indagação da validade, modificação ou resolução do mesmo.

IV - Em regra, o litisconsórcio necessário, ativo ou passivo, não se aplica na ação especial para a fixação judicial de prazo quando esteja em causa a determinação de um prazo para a eficácia de um contrato.

V – Sempre que um dado interveniente nesse contrato requeira a fixação de prazo deve poder faze-lo ainda que os demais intervenientes no negócio, incluindo os concelebrantes, no caso promitentes-vendedores, por qualquer motivo, o não queiram fazer.

VI – A ação de fixação judicial de prazo no âmbito de um contrato-promessa de compra e venda de imóvel não diz respeito a interesses imateriais nos termos e para os efeitos previstos no artigo 303º, nº1 do Código do Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A ação especial de fixação judicial de prazo encontra-se legalmente prevista no art.º 1026º do Código do Processo Civil (CPC): “Quando incumba ao tribunal a fixação do prazo para o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever, o requerente, depois de justificar o pedido de fixação, indica o prazo que repute adequado.” Os termos posteriores são os previstos no artigo seguinte (1027.º): a parte contrária é citada para responder; se não o fizer, é fixado o prazo proposto pelo requerente ou o julgado razoável pelo juiz; se houver resposta, o juiz decide, após as diligências probatórias tidas como necessárias.

Estes dois preceitos concatenam-se com o artº 777.º do Código Civil, o qual, sob a epígrafe “Determinação do Prazo” estatui:

“1. Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela.
2. Se, porém, se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordarem na sua determinação, a fixação dele é deferida ao tribunal.”
 
Ou seja, esta ação de fixação judicial de prazo tem como objeto único, a fixação de um prazo, adequado e razoável, para o cumprimento de uma obrigação; torna-se necessária tal definição, quer porque as partes o não fizeram quer porque credor e devedor não chegaram a acordo sobre esse ponto.

O fim ulterior visado, uma vez fixado o prazo, será o de permitir ao requerente poder contar com uma data limite para o cumprimento da obrigação, indispensável, desde logo, para a determinação da mora.

Em termos processuais, trata-se de um processo de jurisdição voluntária com uma tramitação simples e expedita, como decorre do disposto nos artºs 292º e segs e 986º e sgs do CPC, em que a o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, “devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” (artigo 987º do CPC). Nos processos de jurisdição voluntária, a função exercida pelo juiz não é tanto de intérprete e aplicante da lei, mas age mais como “gestor de negócios” – negócios que a lei colocou sob a fiscalização do Estado através do poder judicial (neste sentido, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, pág. 66).

Importa ainda sublinhar que neste processo não se discutem questões substantivas relativas ao negócio cujo prazo se pretende fixar, quais sejam vícios como o de inexistência, nulidade ou prescrição da obrigação ou quaisquer outros, por se incluírem nos temas a resolver no âmbito da ação comum que, possivelmente, se seguirá (vide, por todos, recenseando toda a jurisprudência atinente sempre no mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Évora de 25.01.2018, processo nº 238/16.9T8ELV.E1, disponível em dgsi.pt).

Esta delimitação circunscrita do objeto do processo – a mera fixação de um prazo – e a natureza do processo, que é de jurisdição voluntária, já nos remete para uma conclusão segundo a qual não será necessária a imposição de um litisconsórcio necessário, seja do lado passivo ou ativo.

Nos termos do artigo 33º do CPC, existe uma situação de litisconsórcio necessário quando a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, ou quando a própria natureza da relação jurídica exija essa intervenção para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

A douta sentença apelada entendeu, no âmbito do contrato promessa de compra e venda de um imóvel, que para a fixação de prazo requerida, no âmbito do presente contrato promessa de compra e venda, exigir-se-ia a presença de todos os promitentes vendedores (litisconsórcio necessário ativo). Note-se que, na presente acção, todos os atuais intervenientes no contrato foram demandados, incluindo aqueles que, figurando como promitentes-vendedores, entenderam não requerer a fixação judicial de prazo; foram demandados pelos restantes promitentes-vendedores, ora requerentes, surgindo, portanto, como requeridos, juntamente com todos os promitentes-compradores.

Ora, estando em causa apenas a determinação de um prazo, no âmbito de um processo em que se pretende, como explicamos acima, encontrar, através da intervenção jurisdicional, a melhor forma de gerir um dado negócio, dando-lhe um destino, não vislumbramos, salvo o devido respeito, estarmos perante uma situação concreta que deva espoletar a exigência de um litisconsórcio necessário (no caso, ativo). Percorrendo o citado artigo 33º do CPC, a lei não o impõe, naturalmente, até por estarmos perante um processo de jurisdição voluntária destinada a “gerir” por via judicial um dado momento negocial; o negócio também não na medida em que não está em causa a discussão do contrato-promessa outorgado pelas partes, a sua validade, subsistência ou efeitos, e, finalmente, está plenamente assegurado o efeito útil normal da decisão a emitir com eventual indicação de um prazo para a concretização do contrato na medida em que todos os contratantes se encontram presentes nesta ação, seja do lado ativo, como demandantes, seja do lado passivo, como demandados.

Tal como foi estruturado o requerimento inicial os autores entendem que no contrato em apreço não foi fixado um prazo para a celebração do contrato de compra e venda (contrato prometido) e o pedido formulado é, justamente, que seja fixado aos promitentes-compradores e demais requeridos (promitentes-vendedores) um prazo de trinta dias, para a celebração do contrato de compra e venda previsto no contrato-promessa relativo ao imóvel nele identificado.

Na hipótese de procedência do pedido, uma vez fixado pelo tribunal um prazo para que se outorgue o contrato prometido, todos os participantes poderão invocar, utilmente, eventuais vícios do negócio que justifiquem essa não outorga; o que não nos parece poder ser rejeitado é o direito de qualquer um deles, acompanhado ou desacompanhado dos demais, a que seja fixada uma data limite a partir da qual se terá eventualmente de converter uma promessa na venda efetiva.

A presente ação existe para que, numa determinada relação jurídica, provando-se não ter sido, por acordo, fixado qualquer prazo para obrigações contratualmente assumidas, o tribunal fixe esse prazo, a requerimento de qualquer um dos interessados. O tribunal limita-se a suprir a vontade das partes na determinação de um dos elementos do acordo, não decide da existência, validade, exigibilidade ou obrigação de o cumprir; por isso, deve inexistir a imposição de um qualquer litisconsórcio.

De outro modo, de forma labiríntica e como se aventa nas alegações de recurso, caso exigíssemos, nestes autos, que os demandantes se fizessem acompanhar dos demais promitentes-vendedores, tendo em conta a impossibilidade de os convocar processualmente no âmbito do presente processo de jurisdição voluntária, como a sentença recorrida bem anota, restaria apenas aos autores intentar uma ação declarativa comum concernente ao cumprimento do contrato prometido na qual, todavia, permaneceria sempre a ausência de um requisito prévio para o mesmo: justamente a definição do prazo para a eficácia do negócio.

Julgamos, portanto, que, uma vez presentes nesta ação todos os diversos outorgantes do contrato cujo prazo de eficácia se pretende definir, nada impede o prosseguimento dos autos com a citação dos requeridos para responder, nos termos do artigo 1027.º do CPC."


*3. [Comentário] Acompanha-se a solução que consta do acórdão, porque, conforme neste se afirma, todas as partes do contrato-promessa se encontram em juízo, umas como partes demandantes e as restantes como partes demandadas. A solução não seria a mesma se isso não sucedesse, isto é, se em juízo estivessem apenas algumas das partes que celebraram o contrato-promessa.

Nestes termos, o sumariado nos pontos IV. e V. tem de entendido com cuidado. A sua formulação é demasiado abstracta, dado que pode levar a entender que o processo de fixação de prazo pode ser proposto por qualquer um dos vários contraentes contra qualquer um desses contraentes. Ora, não se pode entender assim.

O que pode suceder -- e o que sucedeu no caso sub iudice -- é que, havendo um desacordo global entre os contratantes, algum ou alguns destes contratantes (independentemente da posição que cada um deles ocupe no contrato como parte activa ou passiva) demandem todos os demais contratantes. 

Assim, precisamente ao contrário do que se pode ser levado a inferir do sumariado nos pontos IV. e V., no processo de fixação de prazo o litisconsórcio é necessário, no sentido de que têm de ser demandados todos os contratantes que não proponham a acção. Em concreto, trata-se de um caso de litisconsórcio necessário natural (art. 33.º, n.º 2, CPC), dado que sem a presença de todos os interessados na acção, a decisão nela proferida não produz o seu efeito normal, dado que a fixação do prazo tem de ser uniforme e simultânea para todos os contraentes.

MTS