"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/01/2025

Condições de recorribilidade das decisões sobre pedidos cumulados


1. A parte dispositiva de uma decisão proferida em 1.ª instância é a seguinte:

"A) Julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:

a) Condeno a 1.ª Ré BB a pagar ao Autor AA a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), correspondente ao valor da franquia;

b) Condeno a 2.ª Ré EMP01... COMPANY SE, SUCURSAL EM ..., a pagar ao Autor AA a quantia de € 27.152,50 (vinte e sete mil, cento e cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos em consequência da actuação ilícita da 1.ª Ré ao abrigo do contrato de mandato celebrado entre esta e aquele, acrescida de juros de mora à taxa legal contados da data da citação até efectivo e integral pagamento; 

c) Declaro que o Autor AA sofreu danos não patrimoniais no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros) em consequência da actuação ilícita da 1.ª Ré ao abrigo do contrato de mandato celebrado entre esta e aquele e, por decorrência, condeno a 2.ª Ré EMP01... COMPANY SE, SUCURSAL EM ... a pagar-lhe os juros de mora à taxa legal calculados sobre essa importância de € 5.000,00 (cinco mil euros), contados da data da presente sentença até efectivo e integral pagamento;

d) Absolvo as Rés do demais contra si peticionado pelo Autor;

B) Declaro que não há fundamento para a condenação do Autor e das Rés por litigância de má fé."

A decisão que consta da al. c) da letra A ("Declaro que o Autor AA sofreu danos não patrimoniais no valor de € 5.000,00 [...] e, por decorrência, condeno a 2.ª Ré [...] a pagar-lhe os juros de mora à taxa legal calculados sobre essa importância de € 5.000,00" [...], contados da data da presente sentença até efectivo e integral pagamento") não é, pelo menos para alguém que está fora do processo, facilmente compreensível. Seja como for, o que se pode dizer quanto ao recurso desta decisão é o mesmo que se vai dizer quanto ao recurso interposto da decisão que consta da al. a) da mesma letra A.

2. a) Da sentença da 1.ª instância foi interposto recurso de apelação tanto pela 1.ª Ré, como pela 2.ª Ré. O recurso interposto pela 1.ª Ré foi objecto de uma decisão singular do Relator. Contra esta decisão foi deduzida reclamação para a conferência. No acórdão que foi proferido na sequência da reclamação escreveu-se o seguinte:

"[...] A 1.ª ré interpôs recurso de apelação da sentença, sem indicar o respectivo valor, constando do respectivo requerimento o seguinte:

“BB, identificada nos autos, não se conformando com a sentença de fls., em que a condenou a pagar ao A. a quantia de 5.000,00 Euros, correspondente ao valor da franquia, e a 2.ª RÉ., ao pagamento das quantias aí mencionadas, em a), b) e c), em consequência da actuação ilícita da 1.ª RÉ., ao abrigo do contrato de mandato celebrado entre esta e aquele, acrescidas de juros, vem da mesma interpor recurso para o Tribunal da Relação [...], o qual é de Apelação, subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Assim, porque está em tempo e tem legitimidade para tal deve o mesmo ser recebido e processado em seus regulares termos.”

Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, em 22.02.2024, foi proferido despacho ao abrigo do disposto no art.º 652, nº 1, al. b), do NCPC, nos seguintes termos:

“Analisados os autos a fim de preparar a elaboração de projecto de acórdão, constatamos que foi fixado à causa o valor de € 72.798,17, por despacho datado de 27.02.2020, que não mereceu qualquer impugnação.

Foi proferida sentença a julgar parcialmente procedente a acção e a condenar, para além do mais, a 1.ª ré BB a pagar ao autor a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros).

Esta ré veio interpor recurso da sentença, mas não fez qualquer referência no requerimento de interposição de recurso ao valor da sucumbência, para efeitos do disposto no art.º 12.º, n.º 2, do RCP, e apenas comprovou o pagamento de € 102,00 de taxa de justiça.

Ou seja, procedeu ao pagamento de um valor inferior ao da taxa de justiça devida pela interposição de recurso, atento o valor fixado à causa. [...]

Isto posto, necessário é concluir que a 1.ª ré não pagou a taxa de justiça devida pelo recurso no momento definido, pois o pagamento de um valor inferior ao devido equivale à falta de comprovação do pagamento, conforme determina o n.º 2 do art.º 145.º do NCPC.

E, assim sendo, previamente à admissão do recurso, deveria ter sido cumprido – ou sido ordenado o cumprimento – do disposto previsto no supra citado art.º 641º, n.º 1, do NCPC, o que manifestamente não foi feito.

De todo o modo, tendo em consideração que a decisão que admitiu o recurso não nos vincula (cfr. art.º 641.º, n.º 5, do NCPC), impõe-se, pois, ordenar agora, nesta sede e antes de mais, que a secretaria notifique a 1.ª ré para, em 10 dias, efectuar o pagamento omitido, acrescido de multa de igual montante, mas não superior a 1 Uc nem superior a 5 Uc.

Pelo exposto, e ao abrigo das normas citadas e do disposto no art.º 652º, nº 1, als. b) e d), do NCPC, ordena-se a notificação da aludida recorrente (1.ª ré) nos termos e para os efeitos previstos no art.º 642.º, n.º 1, do mesmo compêndio legal.

Notifique.”

Regularmente notificada, veio a 1.ª ré/recorrente reclamar do aludido despacho, requerendo a reforma do mesmo, a decidir em conferência [...].

b) Decidindo em conferência a reclamação apresentada pela 1.ª Ré, a Relação pronunciou-se, no acórdão acima referido, no seguinte sentido:

"Como já delimitamos, a única questão que importa agora conhecer é a de saber se o disposto no art.º 642.º, n.º 1, do NCPC foi devidamente aplicado no caso, averiguando previamente das consequências da falta de indicação do valor do recurso pela ré/recorrente BB.

A reclamante, embora reconhecendo que, aquando da interposição do recurso e da apresentação das alegações, não procedeu à indicação do valor da sucumbência, defende não só que o podia fazer posteriormente, mas também que deveria ter sido notificada para tal.

Mais defende que o valor da sucumbência a ter em consideração é o valor de € 5.000,00, tendo liquidado correctamente a taxa de justiça devida pela interposição do recurso, ou caso assim não se entenda, dever-se-á ter em consideração para tal efeito o valor de € 32.152,50, indicado pela co-ré no respectivo recurso. [...]

Ora, no caso, a recorrente, ora reclamante, no requerimento de interposição de recurso exarou que pretendia interpor recurso da sentença que julgou parcialmente procedente a acção e condenou as rés em determinadas quantias, pugnando pela absolvição das rés das quantias em quem foram condenadas.

Daqui decorre evidente que, se por um lado, a recorrente não pretende impugnar a sentença apenas relativamente à parte em que foi condenada na quantia de € 5.000,00, por outro, esta tomada de posição será suficiente para delimitar o valor da sucumbência -- e, portanto, do recurso -- no valor global das quantias em que as rés foram condenadas, ou seja, no montante de € 32.152,50, como a própria reclamante acaba por admitir (cfr. artigos 6.º, 7.º e 12.º da reclamação em apreço). 

Com efeito, como vimos, a mesma não se limitou a pedir a revogação da sentença na parte em que a condenou, tendo pugnado pela revogação integral da sentença e pedido a absolvição de ambas as rés (diga-se, aliás, que a ré/reclamante tem evidente interesse em pugnar pela absolvição da ré seguradora, visto que a condenação desta tem como fundamento a conduta ilícita daquela). 

E, assim sendo, forçoso é assentar, como se fez no despacho ora em crise, que a recorrente em causa liquidou a taxa de justiça devida pela interposição do recurso em montante inferior ao devido, sendo aplicável ao caso o disposto no art.º 642.º, n.º 1, do NCPC, conforme também ali determinado e pelas razões aí expressas que nos escusamos de repetir.

Todavia, à luz dos princípios da proporcionalidade e da justiça processual e material, considera-se ajustado que, no caso, seja tomado em consideração não o valor da acção, mas apenas o valor de € 32.152,50, para efeitos de fixação do valor do recurso, a que corresponde a taxa de justiça de apenas € 306,00.

Destarte e sem necessidade de outros considerandos, procede a reclamação, mas tão só nesta medida e, em consequência, determina-se que se proceda a nova liquidação da taxa de justiça e consequente emissão de guia, atendendo ao referido valor do recurso, no montante de € 32.152,50."

3. Salvo o devido respeito, o acórdão da Relação não prima pela felicidade.

A parte recorrente (1.ª Ré) foi condenada a pagar € 5.000, mas a Relação acabou por atribuir ao recurso por ela interposto o valor de € 32.152,50. Importa perceber como se chegou a esta conclusão.

4. A justificação adiantada pela Relação para que o recurso de uma parte que foi condenada a pagar € 5.000 tenha afinal o valor de € 32.152,50 foi a de que "a recorrente não pretende impugnar a sentença apenas relativamente à parte em que foi condenada na quantia de € 5.000,00", ou seja, também pretende impugnar as condenações da 2.ª Ré.

Diferentemente do que parece entender a Relação, a possibilidade de um recorrente impugnar condenações de outras partes não é nada evidente. Bem muito pelo contrário, dado que a parte tem legitimidade para recorrer de uma decisão que lhe é desfavorável (art. 631.º, n.º 1, CPC), mas só em certas situações tem legitimidade para impugnar decisões desfavoráveis a outras partes (art. 631.º, n.º 2, CPC).

Segundo parece, a Relação aplicou, embora sem o citar, o art. 631.º, n.º 2, CPC, dado que afirmou que "a ré/reclamante tem evidente interesse em pugnar pela absolvição da ré seguradora, visto que a condenação desta tem como fundamento a conduta ilícita daquela". Ter-se-ia exigido algo mais da Relação sobre este ponto.

5. a) Sempre que se afere o valor do recurso tem de se considerar o montante na qual a parte recorrente ficou vencida. Quando a parte foi condenada, o valor do recurso é, naturalmente, o montante no qual a parte recorrente foi condenada.

A este propósito cabe referir que não se pode assegurar que a Relação não tenha caído num equívoco. Segundo se percebe, a Relação aceita que o recurso possa ter um valor global correspondente à soma das diferentes condenações das partes, pelo que, como este valor é, no caso sub iudice, superior à alçada da 1.ª instância e ao valor mínimo da sucumbência, nada impede a admissibilidade dos vários recursos interpostos pela 1.ª Ré. 

Ora, é preciso não esquecer que, como resulta da decisão de 1.ª instância acima transcrita, foram formulados pelo Autor três pedidos: um deles foi deduzido contra a 1.ª Ré e dois outros contra a 2.ª Ré (pressupondo que a decisão que consta da al. c) da letra A corresponde a um pedido do Autor). Isto significa que a acção contém uma coligação passiva (que, como se sabe, é uma cumulação objectiva repartida por uma cumulação subjectiva). 

Nas situações de cumulação de pedidos, a pronúncia do tribunal é separada em relação a cada um daqueles pedidos e, por isso, também o recurso interposto dessa pronúncia é separado da impugnação de outras decisões. A decisões separadas correspondem necessariamente recursos separados, pois que os fundamentos da impugnação são sempre específicos para cada uma das decisões e o controlo a realizar pelo tribunal ad quem também é específico para cada uma das decisões impugnadas. Aliás, seria absurdo que o recorrente pudesse utilizar o valor de um dos pedidos cumulados (podendo, em última análise, nem sequer impugnar a decisão sobre ele) para recorrer da decisão sobre um pedido que, em si mesma, não satisfaz as condições constantes do art. 629.º, n.º 1, CPC. 

Nos casos de cumulação de pedidos (conjugada, ou não, com a coligação), o que é correcto é que a recorribilidade seja apreciada separadamente para cada um dos pedidos formulados e decididos pelo tribunal a quo. Pode recorrer-se de todas as decisões, mas também se pode recorrer apenas de uma ou de algumas delas. 
Sendo assim, não é aceitável que a apelação interposta pela 1.ª Ré tenha um valor global resultante da soma das condenações pronunciadas pelo tribunal de 1.ª instância.

b) Sendo assim, pode concluir-se o seguinte:

-- A condenação da 1.ª Ré em € 5.000 não admite recurso, dado que não se cumpre o disposto no art. 629.º, n.º 1, CPC (recordando-se que o valor da alçada dos tribunais de 1.ª instância é precisamente de € 5.000: art. 44.º, n.º 1, LOSJ));

-- O mesmo há que concluir quanto ao recurso da (algo enigmática) decisão que consta da al. c) da letra A, dado que o montante que pode ser considerado desfavorável à 2.ª Ré não excede os € 5.000 (como é claro, a condenação em juros nunca releva para a aferição da recorribilidade da decisão);

-- A única decisão que era recorrível era aquela que condenou a 2.ª Ré a pagar ao Autor a quantia de € 27.152,50. 

6. Do exposto resulta que, a pressupor-se que a 1.ª Ré tinha legitimidade para recorrer, ao único recurso por ela interposto que podia ser considerado admissível só poderia ser atribuído o valor de € 27.152,50.

MTS


Jurisprudência 2024 (91)


Instituições de crédito; autorização para actividade;
revogação; inutilidade superveniente da lide

1. O sumário de STJ 30/4/2024 (18490/16.8T8LSB.L1.S1-A) é o seguinte:

I- A decisão de revogação da autorização para o exercício da atividade de instituição de crédito, sem qualquer impugnação contenciosa, e consequente requerimento de liquidação, levado a cabo pelo Banco de Portugal produz os efeitos de insolvência.

II- Por força do disposto no artigo 90.º e no n.º 3 do artigo 128.º do CIRE (aplicáveis por força do disposto no n.º 1 e no n.º 2 do artigo 8.º do DL n.º 199/2006, de 25-10), o crédito detido contra um Banco que haja entrado em liquidação deve ser reclamado no respetivo processo de liquidação judicial.

III- Estando pendente ação declarativa para reconhecimento judicial do crédito, deve esta ação extinguir-se por inutilidade superveniente da lide, em conformidade com o decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014, de 8.05.2013.

IV- A aplicação da orientação jurisprudencial mencionada em III não pressupõe que se tenha declarado aberto incidente de qualificação de insolvência com carácter pleno.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"É [...] entendimento pacífico na jurisprudência do STJ, por nós seguido, que revogada a autorização de certa instituição de crédito para o exercício da sua atividade e determinada a liquidação judicial, nos termos do DL n.º 199/2006, de 25.10, tem o credor que se arrogue a titularidade de crédito sobre tal instituição o ónus de o reclamar na liquidação, em conformidade com o disposto nos artigos 90.º e 128.º do CIRE e estando pendente ação declarativa para reconhecimento judicial do crédito, deve esta ação extinguir-se por inutilidade superveniente da lide, em conformidade com o decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014, de 8.05.2013.

Os dois fundamentos específicos em que o Recorrente alicerça a sua discordância relativamente ao decidido pelo Tribunal da Relação: o facto de o pedido por si formulado na ação declarativa não ter índole exclusivamente patrimonial, dado que se discute igualmente nos autos a questão da nulidade do contrato de intermediação financeira e o pedido de indemnização dela decorrente; e a circunstância de não se saber se o património do devedor insolvente será suficiente para responder pelos créditos reclamados uma vez que no despacho de prosseguimento proferido nos termos do artigo 9.º do Decreto - Lei n.º199/2006 não foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, não sendo, como tal, aplicável ao caso o AUJ n.º1/2014, foram detalhadamente analisados pelo acórdão acima citado de 06.11.2018 [Processo n.º 8364/16.2T8LSB-A.L1.S2], relator Lima Gonçalves, que se passa a seguir de perto.

Ao contrário do alegado pelo Recorrente, tanto o pedido deduzido a título principal, como o pedido deduzido a título subsidiário (que apenas seria apreciado no caso de o primeiro não proceder – artigo 554.º, n.º1, do CPC) se reconduzem a uma questão patrimonial, posto que, em qualquer dos casos, o que autor, verdadeiramente, pretende obter é a condenação do Réu BES no pagamento de uma quantia pecuniária a título indemnizatório por danos patrimoniais e não patrimoniais.

Seja por via do instituto da violação dos deveres de informação, de diligência e de lealdade do intermediário financeiro (causa de pedir na qual assenta o pedido principal), seja por via do regime da nulidade do contrato de intermediação financeira por inobservância de forma (causa de pedir em que se alicerça o pedido subsidiário), o que o Autor, ora Recorrente, peticiona é a condenação solidária do BES juntamente com os restantes Réus, no pagamento da quantia € 244 949,836 a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros vencidos ( € 47,518,70) e vincendos, bem como da quantia que se vier a liquidar a título de danos não patrimoniais.

Pelo que, revestindo o efeito jurídico pretendido pelo Recorrente natureza patrimonial, dúvidas não restam que a sua apreciação influi necessária e diretamente na verificação do passivo do BES, consequentemente, na sua liquidação, e daí que, pelos fundamentos atrás referidos, não há qualquer utilidade em prosseguir essa apreciação fora do processo de liquidação judicial em curso.

De seguida, no citado acórdão, rebatendo a argumentação do Recorrente que são repetidas na alegação e conclusões do presente processo, consta:

Por outro lado, e no que tange ao invocado facto de o Tribunal responsável pelo processo de insolvência do FF se limitar a verificar e a reconhecer créditos do insolvente, sem que lhe caiba conhecer e julgar acerca da constituição da obrigação de prestar, trata-se de afirmação que não se encontra fundamentada e cujo sentido não se alcança, sobretudo, tendo em consideração que, conforme decorre expressamente do artigo 128.º, n.º5, do CIRE, a verificação tem por objeto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento .

Refira-se, aliás, que, no AUJ n.º1/2014, o Supremo Tribunal de Justiça apreciou idêntica questão, tendo concluído que a jurisdição conferida ao Tribunal/decisor da insolvência tem necessariamente implícita, nesse conspecto, uma verdadeira extensão da sua competência material, dado que, mercê do carácter universal e pleno da reclamação de créditos, aquele Tribunal absorve as competências materiais dos Tribunais onde os processos pendentes corriam termos, passando o juiz da insolvência a ter competência material superveniente para decidir os litígios emergentes desses processos e para, em caso de impugnação, verificar a natureza, a proveniência e o montantes dos créditos em causa, bem como dos respetivos juros (…).

E daí que, transpondo essas considerações para o caso dos autos, seja de concluir que o Tribunal do Comércio, encarregue da liquidação do BES, estenderá a sua competência, caso o crédito do recorrente seja impugnado, à apreciação do litígio emergente do presente processo no que àquele Banco concerne e, em concreto, à existência, natureza, proveniência e montante do crédito reclamado, sem que se vislumbre que exista qualquer impedimento nesse particular.

Invoca, por fim, o recorrente, na derradeira tentativa de afastar a aplicabilidade do AUJ n.º1/2014 ao caso, que, não tendo sido declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno no despacho de prosseguimento proferido nos termos do artigo 9.º do Decreto - Lei n.º199/2006, não é possível determinar se o património do devedor será suficiente para responder pelos créditos reclamados e se estão assegurados os direitos dos credores do insolvente, ao que acresce o facto de a proposta da Ex.ma Senhora Procuradora Geral Adjunta sobre a qual recaiu o referido AUJ pressupor que assim tivesse sucedido.

Crê-se, todavia, mais uma vez, que não lhe assiste razão.

Para melhor compreensão da questão e da concernente solução, cumpre referir, antes de mais, que, apesar de a qualificação da insolvência revestir, na versão inicial do CIRE (constante do Decreto - Lei n.º53/2004, de 18 de março), um inequívoco carácter obrigatório, implicando a forçosa instauração do incidente para esse efeito, tal obrigatoriedade foi eliminada pela reforma levada a cabo pela Lei n.º 16/2014, de 20 de abril.

Essa alteração ficou, desde logo, expressa na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º39/XII, da qual constava precisamente que outra das novidades consiste na transformação do actual incidente de qualificação de carácter obrigatório num incidente cuja tramitação só terá de ser iniciada nas situações em que haja indícios carreados para o processo de que a insolvência foi criada de forma culposa pelo devedor ou pelos seus administradores de direito ou de facto, quando se trate de pessoa colectiva (artigos 36.º, 39.º, 188.º, 232.º e 233.º).

Extrai-se, assim, do exposto que, tendo o incidente de qualificação da insolvência deixado de ter carácter obrigatório, não está o juiz obrigado a declará-lo aberto quando profere sentença e muito menos o terá de fazer quando não é ele que declara a insolvência e se limita a proferir, como sucede neste caso, um despacho de prosseguimento do processo de liquidação judicial de uma instituição de crédito, processo esse requerido pelo Banco de Portugal por força de imposição legal nesse sentido, na sequência da revogação da autorização para o exercício da atividade bancária deliberada pelo BCE (…).

Conforme decorre da exposição de motivos a que se fez referência e das normas que regulam esta matéria, o aludido incidente destina-se a qualificar a insolvência como culposa ou fortuita, podendo assumir carácter pleno ou limitado, sendo que este último apenas se aplica nos casos previstos nos artigos 39.º, n.º1, e 232.º, n.º 5, do CIRE, isto é, quando o juiz oficiosamente ou, por indicação do administrador da insolvência, conclua que o património do devedor não é sequer presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa, não se justificando, por isso, que o processo prossiga para as fases da verificação de créditos e de liquidação que, em circunstâncias normais, teriam lugar (artigos 185.º, 188.º, e 191.º, do mesmo Código).

Nessa medida, afigura-se que se tal declaração, com carácter limitado, tivesse sido incluída no despacho de prosseguimento seria até manifestamente contrária ao fim e à natureza do processo de liquidação judicial, bem como à decisão do BCE que, ao ter revogado a autorização a que acima se fez referência, provocou a dissolução do Banco Réu e a sua entrada em liquidação, sendo essa decisão que equivale à declaração de insolvência.

Neste particular, importa sublinhar que não se está perante um verdadeiro processo de insolvência, mas antes perante um processo de liquidação judicial que obedece a normas próprias (Decreto - Lei n.º199/2006) e que apenas será regulado pelas normas do CIRE onde aquele for omisso e desde que essas normas sejam compatíveis com a natureza do processo.

E compreende-se que assim seja dado que, exercendo as instituições de crédito funções essenciais no âmbito do sistema bancário e do desenvolvimento económico e financeiro e estando a sua atividade sujeita a supervisão, desde cedo se concluiu que se impunha a sua sujeição a um enquadramento legal diferenciado precisamente por o regime do CIRE não se mostrar suficientemente adequado às ditas peculiaridades (artigo 2.º, n.º 2, al. b), do CIRE).

É verdade que a aplicação do CIRE às instituições de crédito não está totalmente excluída, contudo, trata-se de uma aplicação que rege apenas para os casos omissos e que opera de forma condicionada, na medida em que serão aplicáveis ao processo de liquidação judicial das referidas instituições as disposições que não sejam incompatíveis com o regime específico pelo qual o mesmo se regula (…)

Do exposto resulta que a hipótese aventada pelo recorrente – de vir a ser declarada aberto o incidente de qualificação de insolvência com carácter limitado por insuficiência do património do devedor para satisfação das custas do processo – para além de carecer de sentido, sempre seria incompatível com a natureza e com o fim do processo de liquidação judicial, com a intervenção e com as competências que o Banco de Portugal, enquanto entidade de supervisão, exerce nesse âmbito (artigos 10.º a 14.º do citado Decreto - Lei n.º199/2006) e bem assim com a deliberação do BCE de revogação da autorização para a atividade bancária do BES.

Repare-se que, por força dessa deliberação, o Banco Réu ficou impedido de exercer a sua atividade, com a sua consequente dissolução, e daí que não se afigure possível que este pudesse recuperar o direito de dispor dos seus bens e de gerir livremente os seus negócios, sendo que este é um dos efeitos decorrentes do encerramento do processo por insuficiência da massa (artigos 39.º, n.ºs 1 e 7, 232.º, e 233.º, n.º 1, do CIRE).

Sublinhe-se, aliás, que no despacho de prosseguimento do processo de liquidação judicial proferido nos termos do artigo 9.º, n.º 2, do Decreto - Lei n.º 199/2006, foi, desde logo, fixado prazo para a reclamação de créditos, o que afastou, por si só, o carácter limitado do incidente em questão (artigo 39.º, n.º 7, als. a) e b), do CIRE).

Seja como for, o que importa reter, no que concerne à aplicabilidade do AUJ n.º1/2014 ao caso, é que o segmento uniformizador no qual ele culminou, contrariamente ao que o Recorrente pretende fazer crer, não restringe a aplicação do entendimento que aí foi adotado às hipóteses em que o incidente tenha sido, desde logo, declarado aberto, com carácter pleno e, dilucidando os fundamentos que conduziram à já apontada uniformização de jurisprudência, também não se encontra qualquer restrição nesse sentido.

Nessa medida, relevando apenas o aludido segmento uniformizador – que é o que foi tirado pelo Pleno das Secções Cíveis –, é evidente que não há que chamar à colação a “proposta” do Ministério Público, sobretudo quando esta, constituindo um mero parecer sobre a questão que originou a necessidade de uniformização, na parte especificamente atinente àquele segmento, nem sequer vingou, tendo antes vingado uma fórmula suficientemente abrangente que não faz depender a aplicabilidade do entendimento aí fixado da declaração ou não da abertura do incidente de qualificação da insolvência (artigo 687.º, n.º 1, do Código de Processo Civil aplicável ex vi artigo 695.º, n.º1, do mesmo diploma).

Esta conclusão não é, de modo algum, afastada pelo acórdão da Relação do Porto de 15-04-2013 que o Recorrente invoca em abono da sua tese, dado que a situação aí apreciada não tem qualquer paralelismo ou similitude com o caso retratado nos autos.

Na verdade, tal aresto debruçou-se sobre um caso muito particular em que à data em que foi declarada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide já há muito que tinha transitado a sentença de insolvência, aí proferida ao abrigo do disposto no artigo 39.º, n.º 1, do CIRE, sem que tivesse sido requerido o seu complemento, mostrando-se, por isso, o processo findo.

Ou seja, nesse caso, por não se terem produzido quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de insolvência e não ter tido sequer lugar a fase da reclamação de créditos e nem, decorrentemente, a da liquidação, o credor estava, naturalmente, impedido de fazer valer o seu alegado direito no âmbito do processo de insolvência (nessa altura, já findo) e daí que não se pudesse concluir pela inutilidade do prosseguimento da lide (artigos 39.º, n.ºs 1, 2 e 7, do CIRE).

Nada disso sucedendo, porém, no caso ajuizado, a solução que se impõe é naturalmente a inversa, isto é, a da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide no que concerne ao Réu BES, sendo irrelevante para o caso que o incidente de qualificação de insolvência não tenha sido expressamente declarado aberto com carácter pleno aquando do despacho de prosseguimento da liquidação judicial: quer porque tal declaração deixou de ser obrigatória, quer porque o entendimento fixado, para efeitos de uniformização de jurisprudência, no AUJ n.º1/2014 não está dependente de uma tal declaração (vejam-se, no sentido exposto, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22/05/2018, e de 19/06/2018, consultável in www.dgsi.pt).

É de referir, por último, que a solução da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, contrariamente ao aflorado pelo Recorrente nas conclusões da sua alegação recursória, não é violadora de quaisquer direitos e interesses constitucionalmente consagrados, designadamente do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º do CRP).

A verificação de créditos, que se estrutura como verdadeira ação declarativa, com as garantias a ela inerentes, assegura aos credores a defesa dos seus interesses, os quais, por razões de ordem prática, são concentrados no processo de insolvência.

Pelo que, permitindo a vocação universal do processo de insolvência (ou, mais rigorosamente, do processo de liquidação judicial) apreciar, no âmbito do aludido apenso de verificação de créditos, os factos e as razões de direito em que se ancora o alegado direito que o Recorrente pretende fazer valer, em nada fica cerceado o seu direito de acesso aos Tribunais, que se encontra constitucionalmente consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da CRP (assim se decidiu no AUJ n.º 1/2014, bem como no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/11/2017, consultável em www.dgsi.pt).”

É, pois, de concluir que , por força da doutrina emergente do AUJ n.º1/2014 que tem plena aplicação na presente ação, que se destina a fazer valer um alegado direito de crédito, nenhuma utilidade tem o prosseguimento da lide após a revogação da autorização da atividade bancária do réu BES, equivalente à declaração da insolvência, bem como à prolação do despacho de prosseguimento da sua liquidação judicial, uma vez que o Recorrente não está dispensado de reclamar o seu crédito no dito processo de liquidação e, por outro lado, sempre estaria impedido de executar qualquer sentença que viesse a obter, ainda que o resultado da demanda lhe fosse favorável."

Estando assente que a pretensão do Recorrente, no que concerne ao réu BES, apenas pode encontrar satisfação no âmbito do processo de liquidação judicial em curso, na presente ação impõe-se a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide (artigo 277.º, alínea e), do CPC), tal como foi decidido no acórdão recorrido."

[MTS]

23/01/2025

Jurisprudência 2024 (90)


Confissão judicial;
legitimidade para confessar; indivisibilidade da confissão*

1. O sumário de STJ 2/5/2024 (2313/14.5T8LSB.L1.S1) é, na parte agora relevante, a seguinte: 

I. A confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

II. A confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados ou em qualquer outro ato do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado, sendo que a declaração confessória deve ser inequívoca, salvo se a lei o dispensar, outrossim, a contraparte tem que fazer menção concreta, individualizada, do facto que aceita, não bastando, para esse efeito, aceitação genérica, exigindo-se sempre um mínimo de referência, sem o qual não poderá falar-se em aceitação.

III. Se os efeitos que o facto confessado é idóneo a produzir forem contrários ao interesse de uma pluralidade de sujeitos e subjetivamente incindíveis, a legitimidade para confessar radicará em consequência nessa pluralidade não podendo esses sujeitos isoladamente produzir uma confissão que se traduziria no reconhecimento da realidade de um facto que a todos é desfavorável.

IV. A litigante não pode aproveitar-se de parte das declarações prestadas que eventualmente lhe aproveite, desprezando a narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia dos factos alegadamente confessados ou a modificar ou extinguir os seus direitos, em desconsideração e ofensa à indivisibilidade da confissão.

V. Estando em causa a responsabilização solidária dos demandados, enquanto responsabilidade civil por atos médicos, um enquanto Hospital, e outro enquanto médico da demandante e autor da operação cirúrgica que alegadamente veio a desencadear os danos físico-emocionais, importa ter pressente que estas situações encerram relações jurídicas que envolve o contrato de prestação de serviços médicos privados, tipologia cuja natureza se pode distinguir em um dos seguintes termos:

(i) contrato total, que é “um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confeção de alimentos)”;

(ii) contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional), que corresponde a “um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações)”;

(iii) contrato dividido, que é aquele em que “a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (atos médicos).”

VI. Saber se houve cumprimento defeituoso dos contratos de prestação de serviços médico-cirúrgicos, responsabilidade civil por atos médicos, importa reconhecermos estar em causa uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, sendo que a orientação consolidada neste Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, mais favorável ao lesado. [...]

X. Só com a violação do dever de cuidado, avaliado em função de um padrão médio de comportamento, mediatizado pelas legis artis, é que, independentemente das consequências, mais ou menos graves, para o doente, e numa análise neutra a posteriori, teremos um erro juridicamente relevante, base para um ilícito de natureza pessoal e uma responsabilidade subjetiva, enquanto pressuposto primeiro da responsabilidade civil por atos médicos.

XI. Em sede de distribuição do ónus da prova perante obrigações de meios, incumbe ao doente-paciente lesado, na qualidade de credor, provar a falta de cumprimento do referido dever objetivo de cuidado na atuação técnica como fundamento de ilicitude na responsabilidade contratual médica (art.º 342º n.º 1 do Código Civil.), nele incluindo a obrigação omissiva de não afetar a sua integridade física e saúde.


2. N fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"II. 3.1. O Tribunal a quo cometeu nulidade processual, violando o disposto no art.º 413º do Código de Processo Civil, ao desconsiderar os requisitos e efeitos da confissão feita em articulado, por um litisconsorte voluntário, no caso o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., nos artºs. 54º 55º, 59º, 61º, 75º, 76º, 94º, 96º, 97º, 101º a 106º, 108º, 109º e 118º da contestação? [---]

O Supremo Tribunal de Justiça, no que respeita às decisões sobre a matéria de facto, não pode alterar tais decisões, sendo estas decisões de facto, em regra, irrecorríveis. [...]

A decisão de facto é, pois, da competência das Instâncias, conquanto não seja uma regra absoluta (tenha-se em atenção a previsão do art.º 674º n.º 3 do Código de Processo Civil), pelo que, o Supremo Tribunal de Justiça não pode, nem deve, interferir na decisão de facto, somente importando a respetiva intervenção, quando haja erro de direito.

A Recorrente/Autora/AA insurge-se contra o aresto recorrido, sustentando que a decisão de facto desconsiderou os requisitos e efeitos da confissão feita em articulado, por um litisconsorte voluntário, no caso o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., nos artºs. 54º, 55º, 59º, 61º, 75º, 76º, 94º, 96º, 97º, 101º a 106º, 108º, 109º e 118º da contestação, devendo, por isso, ser alterada a decisão recorrida.

A reclamada impugnação da decisão contende com a alegada violação de lei adjetiva e substantiva civil, designadamente, a violação das regras de direito probatório material, donde, não está arredada a reponderação da decisão de facto, por parte deste Tribunal ad quem, com vista a reconhecer, ou não, o invocado erro de direito. [...]

De harmonia com o disposto no art.º 352º do Código Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

Textua, por sua vez, com interesse para a economia dos autos, o art.º 353º do mesmo diploma legal: “1. A confissão só é eficaz quando feita por pessoa com capacidade e poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira. 2. A confissão feita pelo litisconsorte é eficaz, se o litisconsórcio for voluntário, embora o seu efeito se restrinja ao interesse do confitente; mas não o é, se o litisconsórcio for necessário.”

Segundo o art.º 355º n.º 1 daquele diploma, a confissão pode ser judicial ou extrajudicial, sendo que a confissão judicial é aquela que é feita em juízo e só vale como judicial na ação correspondente (nºs. 2 e 3 do citado art.º 355º) e a confissão extrajudicial é a feita por algum modo diferente da confissão judicial (n.º 4 do citado art.º 355º).

Ademais, decorre do nosso ordenamento jurídico, art.º 356º n.º 1 do Código Civil: “a confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual ou, em qualquer outro acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado”, estabelecendo o n.º 1 do art.º 357º do Código Civil, que: “a declaração confessória deve ser inequívoca, salvo se a lei o dispensar”.

Outrossim, com interesse para o caso trazido a Juízo, estabelece o art.º 360º do Código Civil que a declaração confessória é indivisível e, como tal, tem de ser aceite na íntegra, salvo provando-se a inexatidão dos factos que transcendem a declaração estritamente confessória, sendo que a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente (art.º 358º do Código Civil).

No que respeita à confissão judicial feita nos articulados, sustenta o Professor, Alberto dos Reis, in, Código de Processo Civil, Anotado, página 86, que a mesma “consiste em o réu reconhecer, na contestação, como verdadeiros, factos afirmados pelo autor na petição inicial, ou em o autor reconhecer, na réplica, como verdadeiros, factos afirmados pelo réu na contestação (…)”, importando anotar, todavia, que a confissão feita nos articulados e que, nos termos do disposto no art.º 358º n.º1 do Código Civil, como modalidade de confissão judicial, não se confunde com a simples alegação de um facto feita pelo mandatário da parte em articulado processual.

Subjacente à declaração confessória feita nos articulados pelo mandatário e que vincula a parte está, como sustenta o Professor Antunes Varela, in, Manual de Processo Civil, 2ª edição, página 548, a ideia de que, estando o mandatário por via de regra em íntimo contacto com a parte sobre a matéria de facto da ação, ele conhece a realidade desta, tendo assim o seu reconhecimento da realidade de um facto desfavorável ao respetivo constituinte, em princípio, a mesma força de convicção que tem a confissão.

Porém, impõe-se também sublinhar a exigência da aceitação do facto confessado pela parte contrária, impeditiva da retirada da confissão ou retratação, a qual tem de ser especificada, o que equivale a dizer, segundo os ensinamentos de Antunes Varela, in, Manual de Processo Civil, 2ª edição, página 555 e Alberto dos Reis, in, Código de Processo Civil, anotado, 4ª edição, Volume I, página 126 e Volume IV, página 113, que a contraparte tem que fazer menção concreta, individualizada, do facto que aceita, não bastando, para esse efeito, aceitação genérica, exigindo-se sempre um mínimo de referência, sem o qual não poderá falar-se em aceitação.

Ora, não distinguimos dos autos, desde logo, que a Autora/AA, notificada da contestação apresentada pelo 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., tivesse feito qualquer referência de aceitação dos factos aí consignados, daí que, desde logo por aqui soçobraria a pretensão da demandante quanto à reclamada declaração confessória.

Todavia, mesmo que assim não entendêssemos, concebendo que a demandante havia declarado aceitação sobre os factos consignados no articulado apresentado pelo 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., sempre haveria que afirmar, assumindo e reconhecendo a orientação sustentada pelo Professor Lebre de Freitas, in, A confissão no direito probatório, Coimbra editora, 1991, páginas 109 e 110, ao defender que “se os efeitos que o facto confessado é idóneo a produzir forem contrários ao interesse de uma pluralidade de sujeitos e subjetivamente incindíveis, a legitimidade para confessar radicará em consequência nessa pluralidade não podendo esses sujeitos isoladamente produzir uma confissão que se traduziria no reconhecimento da realidade de um facto que a todos é desfavorável”, carecer o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. de legitimidade para fazer uma qualquer válida declaração confessória.

Por outro lado, os factos alegados e enunciados supra (artºs. 54º 55º, 59º, 61º, 75º, 76º, 94º, 96º, 97º, 101º a 106º, 108º, 109º e 118º da contestação apresentada) que sustentam, com utilidade, a circunstância de o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. admitir que a Autora foi submetida a uma operação de artroplastia, tendo, posteriormente à mesma, surgido a necessidade de amputação da perna, não equivale a admitir qualquer facto por si praticado que tenha levado a esta segunda cirurgia, não encerram, de todo, o reconhecimento de factos que lhe seja desfavorável e favoreça a parte contrária, impondo-se, outrossim, contextualizar os alegados factos e conjugá-los com aqueloutros que constituem o articulado contestação do 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A..

Assim, convirá sublinhar que nos termos do art.º 358º n.º 1 do Código Civil, reconhecemos, inequivocamente, que a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente.

Dever-se-á, no entanto, ter em consideração o estabelecido no direito substantivo civil quanto à declaração judicial acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus direitos, pois, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexatidão (art.º 360º do Código Civil).

A litigante não pode aproveitar-se de parte das declarações prestadas que eventualmente lhe aproveite, desprezando a narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia dos factos alegadamente confessados ou a modificar ou extinguir os seus direitos, em desconsideração e ofensa à indivisibilidade da confissão, nos termos enunciados pelo direito substantivo civil.

Tenhamos, assim, em atenção, nomeadamente, os artºs 119º a 121º da contestação onde se consignou:

“A 1.ª Ré, por meio do seu corpo clínico de Cirurgia Vascular, adoptou todos os tratamentos recomendados pela doutrina e pela prática médicas para o caso, além de tecnicamente bem ter executado todos os procedimentos.” (art.º 119º).

“A amputação da perna foi necessária tendo em vista que o procedimento de revascularização do seguimento afectado não surtiu efeitos, nem toda a terapêutica instituída e cirurgias realizadas, mesmo sendo tecnicamente as correctas, sobrevindo um quadro de infecção.” (art.º 120º).

“Nenhum dos males que acometeu a Autora decorre de conduta médica imperita, imprudente ou negligente de qualquer dos médicos que compõem o corpo clínico que assistiu a Autora na sequência do reencaminhamento pelo 2.º Réu para a Área de especialidade de Cirurgia Vascular da 1.ª Ré”. (art.º 121º).

Tudo visto, não temos como não acompanhar o segmento do acórdão em escrutínio adiante consignado, onde se evidencia que o Tribunal recorrido tomou em consideração todas as provas produzidas, cumprindo as regras substantivas e adjetivas civis.

Neste particular, respigamos, com utilidade, do aresto em escrutínio: “(…) Nos autos, constata-se que os RR. não confessam quaisquer dos factos mencionados pela apelante, e particularmente, que a causa da amputação da perna da A. tenha sido causada por qualquer acto dos RR., o que se extrai da forma como apresentam a sua versão dos factos alegados pela A..

Isto é, os RR. não reconheceram a realidade exposta pela A., nos termos e para os efeitos do art. 352º do CC, não se podendo concluir pela existência de uma declaração confessória inequívoca como exigido pelo art. 357º do CC.

Saliente-se que a circunstância de os RR. admitirem que a A. foi submetida a uma operação de artroplastia, tendo, posteriormente à mesma, surgido a necessidade de amputação da perna, não equivale a admitir qualquer facto por si praticado que tenha levado a essa operação, não sendo, por isso, possível concluir pela existência de confissão, nos termos e para os efeitos do art. 352º e ss. do CC.

Por outro lado, constata-se que a versão trazida aos autos pela A. foi impugnada pelos RR., seja de forma coincidente, seja de forma parcelar.

(…) No caso vertente, face à situação de litisconsórcio existente, o efeito da eventual confissão sempre se restringiria ao interesse do confitente, não podendo, portanto, produzir efeitos que afectem o interesse de todos os RR..

Do que se vem de expor, decorre que não existe qualquer violação do disposto no art. 413º do CPC, que cumpra sanar, o que redunda na improcedência deste segmento da apelação.”

II. 3.1.1. Tudo visto, concluímos que o acórdão recorrido não se encontra eivado de qualquer nulidade processual, uma vez que, conforme discreteado, não desconsiderou quaisquer regras de direito probatório, ao invés, tomou em consideração todas as provas produzidas, cumprindo as regras substantivas e adjetivas civis aplicáveis."


*3. [Comentário] O decidido no acórdão mostra com clareza o equívoco de que padece o estabelecido no art. 353.º, n.º 2, CC. O que releva não é se o litisconsórcio é voluntário ou necessário, mas antes se ele é parciário (e admite decisões distintas para cada um dos litisconsortes) ou unitário (e não admite decisões diversas para cada um dos litisconsortes.

No caso sub iudice, o litisconsórcio entre os demandados solidários era voluntário (art. 32.º, n.º 2, CC), mas, ainda assim, nenhuma eventual confissão realizada por um deles podia ser oponível ao outro.

Do mesmo equívoco padece o disposto nos art. 35.º, 288.º, n.º 2, e 634.º, n.º 1 e 2, CPC.

MTS

22/01/2025

Apoio à investigação (28)


Obras de Antonio Guarino


Muitas das obras de Antonio Guarino encontram-se em open access no site https://www.antonioguarino.it/ .


Jurisprudência 2024 (89)


Incompetência absoluta;
remessa dos articulados; "oposição justificada"


1. O sumário de STJ 23/4/2024 (51012/18.6YIPRT-E.P1.S1) é o seguinte:

Declarada a incompetência absoluta do tribunal findos os articulados e requerendo o autor, ao abrigo do art. 99 nº 2 CPC, a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta, para que oposição do réu seja justificada não é suficiente a mera alegação genérica, em abstracto, dos fundamentos, sendo necessária a alegação concreta dos fundamentos, ou seja, do dano causado ao direito de defesa.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2.1. – Decretada a incompetência absoluta após os articulados, o art. 105 nº 2 do CPC/1961 determinava o seu aproveitamento desde que “estando as partes de acordo sobre o aproveitamento, o autor requeira a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ser proposta”

O novo CPC de 2013, reforçando as razões subjacentes de economia processual já não exige o agora acordo das partes, pelo que mesmo existindo desacordo a recusa da remessa pressupõe que a oposição do réu seja justificada.

Assim, julgada a incompetência absoluta do tribunal findos os articulados, a lei (art.99 nº2 CPC) confere ao autor o direito de requerer a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta, desde que o réu não ofereça oposição justificada.

Procura-se salvaguardar o equilíbrio entre os interesses do autor, assentes em razões de economia processual a justificar o princípio da utilidade e os interesses do réu, os seus direitos de defesa.

O que significa “oposição justificada”?

A oposição considera-se justificada quando a remessa seja susceptível de implicar prejuízo para a defesa do réu, ou seja, se das razões alegadas se evidenciar que não se defendeu devidamente na instância extinta e poderá ampliar a sua defesa na nova instância (cf., por ex.Ac STJ de 15/1/2019 (proc nº 1021/16.), Ac STJ de 2/6/2020 ( proc nº 937/16 ), disponíveis em www dgsi.pt)

Coloca-se a questão de saber se para a justificação da oposição da remessa é suficiente a mera alegação genérica, em abstracto, dos fundamentos ou se é necessário a alegação concreta dos fundamentos, ou seja, do dano causado ao direito de defesa.

Dado que, perante a oposição, o tribunal terá de fazer um juízo de ponderação, em face dos interesses em confronto, o réu deve concretizar as razões pelas quais se opõe, o que ressalta tanto da interpretação literal (“oposição justificada”), como da ratio legis .

Por isso, não bastando a mera oposição, exige-se que seja “justificada”, logo incide sobre o réu o ónus de alegação das razões concretas, pois só assim se pode aferir, ainda que perfunctoriamente, da diminuição das garantias de defesa.

Neste contexto, o critério seguindo no Ac RP de 27/3/2023 ( proc nº 30/22), em www dgsi.pt, é o que melhor traduz a ratio legis – “ A necessidade de justificação da oposição à remessa para o tribunal competente aponta no sentido da necessidade de uma fundamentação, ainda que com um menor grau de exigência, segurança e certeza do que a requerida em sede de fundamentação de qualquer pretensão em geral, porventura com um grau de exigência similar ao da necessidade de justificação do receio de lesão do direito acautelado no domínio dos procedimentos cautelares (veja-se o nº 1 do artigo 365º do Código de Processo Civil). Por isso, ainda que não se requeira uma comprovação segura e cabal das razões ou dos motivos invocados para justificar a oposição à remessa do processo ao tribunal materialmente competente, a nosso ver, devem ser invocados motivos concretos para justificar a oposição e os mesmos devem ser verosímeis”.

Também no Ac RG de 16/1/2020 (proc nº 4140/16), em www dgsi.pt, decidiu que “o tribunal, para julgar da relevância dos fundamentos no sentido da diminuição das garantias de defesa terá de conhecer, em concreto, dos meios de defesa que os oponentes apresentariam no novo tribunal, que não puderam usar no tribunal declarado incompetente. Não basta alegar as possibilidades de defesa, em abstrato, atenta a natureza do processo administrativo, como o fizeram os recorrentes”, e no Ac RG de 9/11/2023 (proc nº 9554/23), em www dgsi.pt, “Não constitui oposição justificada a invocação, apenas de forma genérica, de “meios” e “questões”, adjetivas ou substantivas, próprios da jurisdição competente, que não foram utilizados / invocados, sem que estejam sequer identificados.”

2.2. - Na situação dos autos, a Ré, para fundamentar a oposição, alegou ficar impedida de usar os meios de defesa que poderia prevalecer-se se a acção tivesse sido instaurada no tribunal competente, ou seja, impedida de recorrer à materialidade jurídica, adjectiva ou substantiva, própria da jurisdição administrativa.

Assim, não pôde invocar questões próprias e específicas do quadro normativo que rege os contratos públicos que dispõem de um regime próprio sobre a fase da formação, execução, validade e invalidade. Por outro lado, também não pôde invocar o interesse público.

No entanto, trata-se de uma alegação genérica, não concretizada, e sem a indispensável concretização não é possível a formulação do juízo de ponderação.

Se as simples diferenças de tramitação processual e a natureza das normas de direito público relevassem em abstracto, então sempre que a competência material fosse deferida à jurisdição administrativa nunca se poderia aplicar a remessa ou a oposição seria sempre justificada, o que contraria a finalidade do regime do novo Código de Processo Civil sobre os efeitos da incompetência.

Procede a revista, revogando-se o acórdão recorrido, julgar injustificada a oposição e ordenar a remessa do processo ao tribunal competente."

[MTS]

21/01/2025

Jurisprudência 2024 (88)


Recurso de revisão;
tribunal competente; competência funcional


1. O sumário de RE 11/4/2024 (1859/20.0T8STR-J.E1) é o seguinte:

Nos termos do artigo 697.º, n.º 1, do C.P.C., o recurso extraordinário de revisão deve ser interposto no tribunal que proferiu a decisão a rever, que é o Tribunal da Relação nos casos em que este confirmou uma sentença do Tribunal de 1.ª instância.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Nos termos do artigo 627.º, n.º 2, do CPC, o recurso de revisão integra a categoria dos recursos extraordinários, encontrando-se regulado nos artigos 696.º a 702.º do mesmo corpo de normas.

De acordo com o artigo 696.º do CPC:

«A decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando:

a) Outra sentença transitada em julgado tenha dado como provado que a decisão resulta de crime praticado pelo juiz no exercício das suas funções;

b) Se verifique a falsidade de documento ou ato judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objeto de discussão no processo em que foi proferida;

c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;

d) Se verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transação em que a decisão se fundou;

e) Tendo corrido o processo à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que:

i) Faltou a citação ou que é nula a citação feita;

ii) O réu não teve conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável;

iii) O réu não pode apresentar a contestação por motivo de força maior;

f) Seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português;

g) O litígio assente sobre ato simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 612.º, por se não ter apercebido da fraude.

h) Seja suscetível de originar a responsabilidade civil do Estado por danos emergentes do exercício da função jurisdicional, verificando-se o disposto no artigo seguinte.»

Prescrevendo o artigo 697.º, n.º 1, que:

«1 - O recurso é interposto no tribunal que proferiu a decisão a rever.»

A decisão a rever é a que conhece material e definitivamente do mérito da causa.

Nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem-se afirmado no sentido propugnado na decisão ora em recurso.

Assim:

“No recurso extraordinário de revisão, o poder decisório cabe ao Tribunal que proferiu a decisão. Esse recurso é interposto para o mesmo – e no – Tribunal que proferiu a decisão cuja revisão é pedida.

Verifica-se a incompetência absoluta, em razão da hierarquia, do Tribunal de 1ª Instância para apreciar o pedido de revisão quando da decisão a rever houve recurso para o TR.”

– Ac. do STJ de 16-11-2023, P. 11293/19.0T8SNT-B.L1.S1 (Maria João Vaz Tomé), in www.dgsi.t.

“1. Nos termos do art.º 697.º n.º 1 do C.P.C., o recurso extraordinário de revisão deve ser interposto no tribunal que proferiu a decisão a rever, que é o Tribunal da Relação nos casos em que este confirmou uma sentença do Tribunal de 1.ª instância.”

- Ac. do STJ de 05-09-2023, P. 45/16.9T8VLC.P1-A.S1 (Jorge Leal), no mesmo site.

“I - Por princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, não se permita nova discussão do litígio; situações existem, contudo, em que a necessidade de segurança ou de certeza e as exigências da justiça conflituam de tal forma que o princípio da intangibilidade do caso julgado tem de ceder.

II - O meio processual adequado para esse efeito é o recurso extraordinário de revisão, o qual se comporta estruturalmente como uma ação destinada a fazer ressurgir a instância que o caso julgado extinguiu (fase rescindente) e a reabrir a instância anterior (fase rescisória).

III - Tendo a sentença proferida em 1.ª instância sido impugnada e tendo a Relação proferido acórdão confirmatório da mesma, apreciando definitivamente a questão de facto e de direito controvertida, é à Relação que cabe conhecer do recurso extraordinário de revisão por ter proferido a decisão a rever (artigo 697.º, n.º 1, do CPC).

- Ac. do STJ de 19-10-2017, Proc. n.º 181/09.8TBAVV-A.G1.S1 (Fernanda Isabel Pereira), no mesmo sítio.

Em interessante acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24-09-2020, Proc. 2859/15.8T8VCT.G2-A (Maria João Matos) pode ler-se na fundamentação, que pela sua completude nos permitimos reproduzir:

“O recurso é interposto no tribunal que proferiu a decisão a rever (artigo 697.º, n.º 1, do CPC).

Logo, a regra é a de que a competência se defere ao tribunal onde se verificou a anomalia da decisão a rever.

Contudo, nos casos em que a sentença proferida em 1.ª instância tenha sido alvo de recurso (o que é, precisamente, o caso dos autos) discute-se qual o tribunal competente para a rever, se aquele que primeiro a proferiu, se o Tribunal superior que sobre ela se pronunciou depois.

Precisa-se, porém, que a situação só suscita dúvidas no caso de decisões confirmativas da original, uma vez que, «se o autor perdeu em 1.ª instância, mas triunfou na Relação, a decisão a rever é a decisão revogatória e, por isso, a Relação é competente para a revisão. O mesmo acontece, mutatis mutandis, no caso do Supremo ter reconhecido razão ao autor que perdera n.º 1 e 2.º graus. Neste caso, é claro que o tribunal competente para a revisão é o Supremo» (Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos (Regime do Decreto-Lei n.º 303/2007), Quid Juris, pág. 361).

Assim, nas situações em que a decisão do tribunal superior haja confirmado o prévio juízo da 1.ª instância, a resposta àquela questão dependerá do entendimento que se professe relativamente à natureza da decisão de recurso confirmatória, isto é, se se considera a mesma como sobrepondo-se e absorvendo a sentença prévia (nesta radicando a fonte de caso julgado e de exequibilidade), ou apenas como um seu aditamento, confirmativo.

Para além deste juízo, há quem defenda que o recurso de revisão só deverá ser conhecido no tribunal superior se a anomalia respeitar a vício ocorrido nesse contexto. E invoca-se a identidade do juiz nas fases rescindente e rescisória. Logo, situações de erro de facto ou de procedimento processual ocorridos na 1.ª instância implicarão que seja aí que tenha lugar a revisão, compreendendo-se por isso que, quando se trate de recurso de revisão fundado em documento superveniente essencial, seja quase sempre aí requerida.

Veio, porém, a jurisprudência do STJ defender, progressiva e maioritariamente, que, «muito embora se possa sustentar a alusão ao trânsito em julgado como um pressuposto da revisão (só são suscetíveis de revisão as decisões transitadas em julgado…) e não a atribuição de competência, não pode negar-se que, pelo menos indiretamente e tendo em conta o disposto no artigo 772.º, n.º 1, CPC [artigo 697.º, n.º 1, do atual CPC] – que prescreve que o recurso de revisão “é interposto no tribunal que proferiu a decisão a rever” –, dela resulta que, em regra, a instância competente para apreciar o recurso de revisão é a que proferiu, em último grau, a decisão a rever.

(…) O recurso de revisão, quando estiverem em causa decisões (ou acórdãos) confirmatórios de decisões (ou acórdãos) de tribunais inferiores, deve, portanto, ser apreciado pelo tribunal (superior) que proferiu aquelas e não pelo tribunal (inferior) que proferiu estas; neste sentido, os Acórdãos do STJ de 01-07-1969, BMJ 189, pág. 214 e de 17-12-1992, BMJ 422, pág. 330)».

Compreende-se que assim seja, já «que, em caso de recurso, as decisões ou acórdãos transitados em julgado são sempre os proferidos pelos tribunais superiores (Relação ou STJ) que apreciaram decisões de instâncias inferiores; estas, bem como as da Relação que foram impugnadas em recurso perante o STJ, não transitaram em julgado»; e, assim, «não tem sentido, deferir à 1ª instância a competência para a revisão de acórdão proferido pela Relação ou pelo STJ».

Logo, os «tribunais superiores têm (…) competência para conhecer do recurso de revisão quando for sua a decisão a rever» (Ac. do STJ, de 19.09.2013, Fernando Bento, Processo n.º 663/09.1TVLSB).

A doutrina atual inclina-se no mesmo sentido, nomeadamente quando afirma que do artigo 697.º, n.º 1, do CPC «decorre que a competência para a apreciação do recurso de revisão pode pertencer ao tribunal de 1ª instância, à Relação ou ao Supremo Tribunal de Justiça. Tudo depende do órgão jurisdicional que proferiu a decisão transitada em julgado» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, pág. 408).»

Sendo também este o nosso entendimento."

[MTS]


Bibliografia (Índices de revistas) (240)



RDP

-- RDP 79 (2024-4)


20/01/2025

Bibliografia (1171)


-- Marques da Silva, M. F., As repercussões do processo de insolvência na obrigação de prestar alimentos. J. o. 2024.09

-- Núncio, T., Processo Civil: os novos meios de prova vindos da Reforma de 2013, J.o. 2024.11

-- Vitorelli, E. / Fernandez, E., Tribunais e litígios estruturais (uma abordagem transnacional a partir do caso AIMA), J.o. 2024.10


A taxa de justiça atinente ao recurso relativo a uma ação apensada nos termos do artigo 267.º, n.º 1, do CPC

 


[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]


Jurisprudência 2024 (87)


Processo de inventário; relação de bens;
doação de bens comuns; colação


1. O sumário de RG 18/4/2024 (114/20.0T8ALJ-A.G1) é o seguinte:

Em sede de inventário para partilha de herança aberta por óbito dos membros de um casal cujo casamento se regia pelo regime de comunhão geral de bens, os móveis comuns doados por um sem o consentimento do outro a um dos filhos de ambos, sem que tenha sido invocada a anulabilidade do ato nos termos do artigo 1687º, nº 1 do Código Civil, devem ser relacionados como bens doados ao respetivo herdeiro legitimário.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Apenas está em causa a relacionação dos bens móveis objeto da doação a que se refere o ponto 11 da matéria de facto provada, discutindo-se em primeira linha a validade da doação de bens móveis efetuada pelo inventariado a um seu filho.

Os inventariados eram casados entre si, segundo o regime de comunhão geral de bens e por isso os bens móveis consideram-se comuns (artigo 1732º do Código Civil).

A sentença considerou que, porque à data da doação efetuada pelo inventariado, a inventariada ainda era viva e estes eram casados no regime da comunhão geral de bens, o ato carecia da intervenção daquela, pelo que o doador era desprovido de legitimidade para a prática desse ato sem tal consentimento. Recorrendo ao acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 12.10.2021, no processo 3890/17.4T8FNC.L1-7, aplicou ao caso o regime das doações de bens alheios. Nesse acórdão afirmou-se que “vigorando quanto a atos de disposição unilateral do património comum o disposto nos artigos 1682º e 1687º do Código Civil, e nas relações internas o princípio da indivisibilidade do património comum até à cessação dos efeitos do casamento e consequente partilha conforme ao disposto no artigo 1688º do Código Civil, tal não contende, nem comporta limitação à situação em que, o cônjuge desautorizado e lesado pelo ato de disposição do consorte sobre o património comum, pretenda que o património comum seja restituído/restaurado pelos terceiros beneficiados e conheceu dessa nulidade oficiosamente.”

É certo que este tema tem exigido “atenção na casuística de situações geradas pela complexidade da vida atual, e da evolução do paradigma dos poderes e deveres de cada cônjuge relativamente à gestão e disposição do património conjugal, as quais nem sempre surgem com resposta clara no ordenamento jurídico“, como se escreveu nesse acórdão.

Com efeito,  as atuais conceções sociais aceitam com maior dificuldade a sobrevalorização do casal como entidade cujo respeito justifica a indefesa prática dos direitos do cônjuge cujo consentimento foi postergado, obrigando-o a ter que esperar pelo final do casamento para efetivar o seu direito, embora o casamento crie um regime especial para as relações patrimoniais dos cônjuges, porque se pretende agora já não (tanto ou só) a defesa da ideia de família fundada pelo casamento, mas a realização pessoal no seu projeto, pela evolução do respeito pela autonomia de cada ser humano e da tutela da sua personalidade (mesmo que unido a outro pelo casamento).

E assim, tal acórdão encontrou uma solução para “a situação, em que um dos cônjuges atuou em violação dos limites legais estabelecidos para a administração e alienação gratuita dos bens que integram o património comum, que o outro cônjuge não consentiu, nem aceita, pretendendo restaurar o património comum à situação anterior”, entendendo que “o enquadramento sancionatório específico previsto no artigo 1687º do Código Civil aplicável na relação interna dos esposados (e seus herdeiros), não excluiu, nem contende, com as relações emergentes entre o cônjuge defraudado e os terceiros que, beneficiaram gratuitamente do património comum do casal, mediante ato de disposição unilateral ilegítimo pelo outro consorte”. Este problema não se levanta no presente caso, em que não está em causa a posição do cônjuge, nem de terceiros, mas em que se discute apenas a situação entre os herdeiros de ambos os cônjuges, já falecidos.

Vejamos o regime que se aplica à nossa situação (agora que assentámos que inexiste paralelo a atender entre a situação destes autos e o acórdão em que se fundou a sentença).

A regra encontra-se prevista no artigo 1682º do Código Civil: quando estão em causa bens móveis quem administra pode dispor; se a administração couber aos dois cônjuges a alienação ou oneração carece do consentimento de ambos, salvo se se tratar de ato de administração ordinária.

Fora dos casos específicos tratados no artigo 1678º nº 2 do Código Civil, cada um dos cônjuges tem legitimidade para a prática de atos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal e os restantes atos de administração só podem ser praticados com o consentimento de ambos os cônjuges.

De mais relevante importa atentar que cada um do cônjuges tem a administração dos seus bens próprios e ainda dos proventos que receba pelo seu trabalho e dos bens móveis próprios do outro cônjuge ou comuns, por ele exclusivamente utilizados como instrumento de trabalho, dos bens próprios do outro cônjuge, se este se encontrar impossibilitado de exercer a administração por se achar em lugar remoto ou não sabido ou por qualquer outro motivo, e desde que não tenha sido conferida procuração bastante para administração desses bens e dos bens próprios do outro cônjuge se este lhe conferir por mandato esse poder, nos termos do artigo 1678º nº 1 e 2 do Código Civil.

Também carece de ambos os cônjuges a alienação ou oneração de móveis utilizados conjuntamente por ambos os cônjuges na vida do lar ou como instrumento comum de trabalho e os móveis pertencentes exclusivamente ao cônjuge que os não administra, exceto se tal alienação se traduzir num ato de mera administração ordinária (nº 3 do artigo 1682º do Código Civil).

Dispõe o nº 4 deste artigo 1682º do Código Civil que quando um dos cônjuges, sem consentimento do outro, alienar ou onerar, por negócio gratuito, móveis comuns de que tem a administração, será o valor dos bens alheados ou a diminuição de valor dos onerados levado em conta na sua meação, salvo tratando-se de doação remuneratória ou de donativo conforme aos usos sociais.

O artigo 1687º do Código Civil contém as sanções para a prática dos atos de alienação sem o devido consentimento do cônjuge: a alienação ou oneração de móveis comuns sem o necessário consentimento são anuláveis a requerimento do cônjuge que não o deu ou dos seus herdeiros, o qual pode ser exercido nos seis meses subsequentes à data em que o requerente teve conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos três anos sobre a sua celebração. Decorrido esse período o ato torna-se definitivamente válido. No entanto, a anulabilidade não pode ser oposta ao adquirente de boa-fé, se for de bem móvel não sujeito a registo.

À alienação ou oneração de bens próprios do outro cônjuge, feita sem legitimidade, são aplicáveis as regras relativas à alienação de coisa alheia.

Do exposto resulta que as regras relativas à alienação de coisa alheia apenas se aplicam diretamente aos casos em que foi efetuada a alienação de bens próprios do outro cônjuge sem o devido consentimento, não aos bens comuns.

Assim, não havendo dúvidas que os bens móveis descritos no ponto 11 da matéria de facto provada eram bens comuns do casal, atento o regime de casamento que os unia e o disposto no artigo 1732º e 1725º do Código Civil, o que é aceite por todos, a sua doação a um só herdeiro constitui um ato de disposição, que necessitava do consentimento do cônjuge não doador, mas por faltar tal consentimento, o ato era anulável, nos termos do artigo 1687º, nº 1 do Código Civil.

O contrário do que sucede com a nulidade, a anulabilidade não é de conhecimento oficioso, e tem que ser invocada pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, como decorre claro dos artigos 286º e 287º,1 Código Civil.

Assim, por um lado, não podia a sentença recorrida conhecer da mesma oficiosamente e por outro concluir pela verificação de uma nulidade ou, sequer, da anulabilidade, que não foram suscitadas. Não se presume a vontade nessa invocação: a preterição da vontade do progenitor por não constar do ato um consentimento da progenitora não se presume com a simples afirmação que se desconhece a doação.

Desta forma, não se pode concluir pela nulidade da doação, atendendo-se nos autos aos seus efeitos translativos da propriedade para o donatário (artigo 940º do Código Civil), havendo que proceder o recurso.

Mas tal não significa que os bens doados não devam ser relacionados, tão só, como escreve nas alegações o Recorrente que “não deverão, por isso, ser relacionados pelo cabeça de casal como bens da herança dos inventariados”.

Isto por virtude do instituto da colação: “os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, par a igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este” diz-nos artigo 2104º). Há que conhecer as liberalidades já recebidas do autor da herança para compor a legítima na parte em que os herdeiros têm de receber uma parte igual.

Referindo-se a doações a herdeiros legitimários: “Não obstante as coisas doadas não integrarem o acervo hereditário devem, no processo de inventário, havendo herdeiros legitimários, ser objeto de relacionação, com o objetivo de lhes ser fixada a natureza, qualidades e valor, para efeitos de cálculo das legítimas e com vista à sua integralidade, com eventual redução, por inoficiosidade, ou à mera igualação da partilha”, sumariou-se no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães em 06/14/2018, no processo 156/07.1TBMDR.G1.

A relação do acervo patrimonial a partilhar, ainda que a administração não pertença ao cabeça-de-casal, é acompanhada dos documentos comprovativos da sua situação no registo ou na matriz (n.º 3, al. c)). Em especial, devem ser relacionados os bens legados e, se existirem herdeiros legitimários, os bens doados, com o objetivo de lhes ser fixada a natureza e o valor, para efeitos de cálculo da legítima e de eventual redução por inoficiosidade (cf. arts. 2168.º ss. CC; arts. 1118.ºs.), bem como para igualação da partilha, através da respetiva conferência (art. 2174.º CC)”, escrevem Miguel Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Torres em “O Novo Regime Do Processo De Inventário E Outras Alterações Na Legislação Processual Civil”, Almedina 2020, a pág. 62.

A relacionação de bens no inventário alcança todos os bens móveis, imóveis, semoventes, direitos e ações, créditos e dívidas do autor da herança que desta não devam excetuar-se, inclusive, havendo herdeiros legitimários, os bens doados, compreendendo aquela genérica atribuição as benfeitorias, também o dizia Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 4ª edição, volume I, Almedina, pág 429 e seguintes.

Temos em que se entende que os bens doados referidos no ponto 11 da matéria de facto provada têm que ser relacionados não como bens da herança, mas como bens doados ao herdeiro legitimário GG."

[MTS]