1. A parte dispositiva de uma decisão proferida em 1.ª instância é a seguinte:
"A) Julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:
a) Condeno a 1.ª Ré BB a pagar ao Autor AA a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), correspondente ao valor da franquia;b) Condeno a 2.ª Ré EMP01... COMPANY SE, SUCURSAL EM ..., a pagar ao Autor AA a quantia de € 27.152,50 (vinte e sete mil, cento e cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos em consequência da actuação ilícita da 1.ª Ré ao abrigo do contrato de mandato celebrado entre esta e aquele, acrescida de juros de mora à taxa legal contados da data da citação até efectivo e integral pagamento;c) Declaro que o Autor AA sofreu danos não patrimoniais no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros) em consequência da actuação ilícita da 1.ª Ré ao abrigo do contrato de mandato celebrado entre esta e aquele e, por decorrência, condeno a 2.ª Ré EMP01... COMPANY SE, SUCURSAL EM ... a pagar-lhe os juros de mora à taxa legal calculados sobre essa importância de € 5.000,00 (cinco mil euros), contados da data da presente sentença até efectivo e integral pagamento;d) Absolvo as Rés do demais contra si peticionado pelo Autor;
B) Declaro que não há fundamento para a condenação do Autor e das Rés por litigância de má fé."
A decisão que consta da al. c) da letra A ("Declaro que o Autor AA sofreu danos não patrimoniais no valor de € 5.000,00 [...] e, por decorrência, condeno a 2.ª Ré [...] a pagar-lhe os juros de mora à taxa legal calculados sobre essa importância de € 5.000,00" [...], contados da data da presente sentença até efectivo e integral pagamento") não é, pelo menos para alguém que está fora do processo, facilmente compreensível. Seja como for, o que se pode dizer quanto ao recurso desta decisão é o mesmo que se vai dizer quanto ao recurso interposto da decisão que consta da al. a) da mesma letra A.
2. a) Da sentença da 1.ª instância foi interposto recurso de apelação tanto pela 1.ª Ré, como pela 2.ª Ré. O recurso interposto pela 1.ª Ré foi objecto de uma decisão singular do Relator. Contra esta decisão foi deduzida reclamação para a conferência. No acórdão que foi proferido na sequência da reclamação escreveu-se o seguinte:
"[...] A 1.ª ré interpôs recurso de apelação da sentença, sem indicar o respectivo valor, constando do respectivo requerimento o seguinte:
“BB, identificada nos autos, não se conformando com a sentença de fls., em que a condenou a pagar ao A. a quantia de 5.000,00 Euros, correspondente ao valor da franquia, e a 2.ª RÉ., ao pagamento das quantias aí mencionadas, em a), b) e c), em consequência da actuação ilícita da 1.ª RÉ., ao abrigo do contrato de mandato celebrado entre esta e aquele, acrescidas de juros, vem da mesma interpor recurso para o Tribunal da Relação [...], o qual é de Apelação, subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.Assim, porque está em tempo e tem legitimidade para tal deve o mesmo ser recebido e processado em seus regulares termos.”
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, em 22.02.2024, foi proferido despacho ao abrigo do disposto no art.º 652, nº 1, al. b), do NCPC, nos seguintes termos:
“Analisados os autos a fim de preparar a elaboração de projecto de acórdão, constatamos que foi fixado à causa o valor de € 72.798,17, por despacho datado de 27.02.2020, que não mereceu qualquer impugnação.Foi proferida sentença a julgar parcialmente procedente a acção e a condenar, para além do mais, a 1.ª ré BB a pagar ao autor a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros).Esta ré veio interpor recurso da sentença, mas não fez qualquer referência no requerimento de interposição de recurso ao valor da sucumbência, para efeitos do disposto no art.º 12.º, n.º 2, do RCP, e apenas comprovou o pagamento de € 102,00 de taxa de justiça.Ou seja, procedeu ao pagamento de um valor inferior ao da taxa de justiça devida pela interposição de recurso, atento o valor fixado à causa. [...]
Isto posto, necessário é concluir que a 1.ª ré não pagou a taxa de justiça devida pelo recurso no momento definido, pois o pagamento de um valor inferior ao devido equivale à falta de comprovação do pagamento, conforme determina o n.º 2 do art.º 145.º do NCPC.E, assim sendo, previamente à admissão do recurso, deveria ter sido cumprido – ou sido ordenado o cumprimento – do disposto previsto no supra citado art.º 641º, n.º 1, do NCPC, o que manifestamente não foi feito.De todo o modo, tendo em consideração que a decisão que admitiu o recurso não nos vincula (cfr. art.º 641.º, n.º 5, do NCPC), impõe-se, pois, ordenar agora, nesta sede e antes de mais, que a secretaria notifique a 1.ª ré para, em 10 dias, efectuar o pagamento omitido, acrescido de multa de igual montante, mas não superior a 1 Uc nem superior a 5 Uc.Pelo exposto, e ao abrigo das normas citadas e do disposto no art.º 652º, nº 1, als. b) e d), do NCPC, ordena-se a notificação da aludida recorrente (1.ª ré) nos termos e para os efeitos previstos no art.º 642.º, n.º 1, do mesmo compêndio legal.Notifique.”
Regularmente notificada, veio a 1.ª ré/recorrente reclamar do aludido despacho, requerendo a reforma do mesmo, a decidir em conferência [...].
b) Decidindo em conferência a reclamação apresentada pela 1.ª Ré, a Relação pronunciou-se, no acórdão acima referido, no seguinte sentido:
"Como já delimitamos, a única questão que importa agora conhecer é a de saber se o disposto no art.º 642.º, n.º 1, do NCPC foi devidamente aplicado no caso, averiguando previamente das consequências da falta de indicação do valor do recurso pela ré/recorrente BB.A reclamante, embora reconhecendo que, aquando da interposição do recurso e da apresentação das alegações, não procedeu à indicação do valor da sucumbência, defende não só que o podia fazer posteriormente, mas também que deveria ter sido notificada para tal.
Mais defende que o valor da sucumbência a ter em consideração é o valor de € 5.000,00, tendo liquidado correctamente a taxa de justiça devida pela interposição do recurso, ou caso assim não se entenda, dever-se-á ter em consideração para tal efeito o valor de € 32.152,50, indicado pela co-ré no respectivo recurso. [...]Ora, no caso, a recorrente, ora reclamante, no requerimento de interposição de recurso exarou que pretendia interpor recurso da sentença que julgou parcialmente procedente a acção e condenou as rés em determinadas quantias, pugnando pela absolvição das rés das quantias em quem foram condenadas.Daqui decorre evidente que, se por um lado, a recorrente não pretende impugnar a sentença apenas relativamente à parte em que foi condenada na quantia de € 5.000,00, por outro, esta tomada de posição será suficiente para delimitar o valor da sucumbência -- e, portanto, do recurso -- no valor global das quantias em que as rés foram condenadas, ou seja, no montante de € 32.152,50, como a própria reclamante acaba por admitir (cfr. artigos 6.º, 7.º e 12.º da reclamação em apreço).Com efeito, como vimos, a mesma não se limitou a pedir a revogação da sentença na parte em que a condenou, tendo pugnado pela revogação integral da sentença e pedido a absolvição de ambas as rés (diga-se, aliás, que a ré/reclamante tem evidente interesse em pugnar pela absolvição da ré seguradora, visto que a condenação desta tem como fundamento a conduta ilícita daquela).E, assim sendo, forçoso é assentar, como se fez no despacho ora em crise, que a recorrente em causa liquidou a taxa de justiça devida pela interposição do recurso em montante inferior ao devido, sendo aplicável ao caso o disposto no art.º 642.º, n.º 1, do NCPC, conforme também ali determinado e pelas razões aí expressas que nos escusamos de repetir.Todavia, à luz dos princípios da proporcionalidade e da justiça processual e material, considera-se ajustado que, no caso, seja tomado em consideração não o valor da acção, mas apenas o valor de € 32.152,50, para efeitos de fixação do valor do recurso, a que corresponde a taxa de justiça de apenas € 306,00.Destarte e sem necessidade de outros considerandos, procede a reclamação, mas tão só nesta medida e, em consequência, determina-se que se proceda a nova liquidação da taxa de justiça e consequente emissão de guia, atendendo ao referido valor do recurso, no montante de € 32.152,50."
3. Salvo o devido respeito, o acórdão da Relação não prima pela felicidade.
A parte recorrente (1.ª Ré) foi condenada a pagar € 5.000, mas a Relação acabou por atribuir ao recurso por ela interposto o valor de € 32.152,50. Importa perceber como se chegou a esta conclusão.
4. A justificação adiantada pela Relação para que o recurso de uma parte que foi condenada a pagar € 5.000 tenha afinal o valor de € 32.152,50 foi a de que "a recorrente não pretende impugnar a sentença apenas relativamente à parte em que foi condenada na quantia de € 5.000,00", ou seja, também pretende impugnar as condenações da 2.ª Ré.
Diferentemente do que parece entender a Relação, a possibilidade de um recorrente impugnar condenações de outras partes não é nada evidente. Bem muito pelo contrário, dado que a parte tem legitimidade para recorrer de uma decisão que lhe é desfavorável (art. 631.º, n.º 1, CPC), mas só em certas situações tem legitimidade para impugnar decisões desfavoráveis a outras partes (art. 631.º, n.º 2, CPC).
Segundo parece, a Relação aplicou, embora sem o citar, o art. 631.º, n.º 2, CPC, dado que afirmou que "a ré/reclamante tem evidente interesse em pugnar pela absolvição da ré seguradora, visto que a condenação desta tem como fundamento a conduta ilícita daquela". Ter-se-ia exigido algo mais da Relação sobre este ponto.
5. a) Sempre que se afere o valor do recurso tem de se considerar o montante na qual a parte recorrente ficou vencida. Quando a parte foi condenada, o valor do recurso é, naturalmente, o montante no qual a parte recorrente foi condenada.
A este propósito cabe referir que não se pode assegurar que a Relação não tenha caído num equívoco. Segundo se percebe, a Relação aceita que o recurso possa ter um valor global correspondente à soma das diferentes condenações das partes, pelo que, como este valor é, no caso sub iudice, superior à alçada da 1.ª instância e ao valor mínimo da sucumbência, nada impede a admissibilidade dos vários recursos interpostos pela 1.ª Ré.
Ora, é preciso não esquecer que, como resulta da decisão de 1.ª instância acima transcrita, foram formulados pelo Autor três pedidos: um deles foi deduzido contra a 1.ª Ré e dois outros contra a 2.ª Ré (pressupondo que a decisão que consta da al. c) da letra A corresponde a um pedido do Autor). Isto significa que a acção contém uma coligação passiva (que, como se sabe, é uma cumulação objectiva repartida por uma cumulação subjectiva).
Nas situações de cumulação de pedidos, a pronúncia do tribunal é separada em relação a cada um daqueles pedidos e, por isso, também o recurso interposto dessa pronúncia é separado da impugnação de outras decisões. A decisões separadas correspondem necessariamente recursos separados, pois que os fundamentos da impugnação são sempre específicos para cada uma das decisões e o controlo a realizar pelo tribunal ad quem também é específico para cada uma das decisões impugnadas. Aliás, seria absurdo que o recorrente pudesse utilizar o valor de um dos pedidos cumulados (podendo, em última análise, nem sequer impugnar a decisão sobre ele) para recorrer da decisão sobre um pedido que, em si mesma, não satisfaz as condições constantes do art. 629.º, n.º 1, CPC.
Nos casos de cumulação de pedidos (conjugada, ou não, com a coligação), o que é correcto é que a recorribilidade seja apreciada separadamente para cada um dos pedidos formulados e decididos pelo tribunal a quo. Pode recorrer-se de todas as decisões, mas também se pode recorrer apenas de uma ou de algumas delas. Sendo assim, não é aceitável que a apelação interposta pela 1.ª Ré tenha um valor global resultante da soma das condenações pronunciadas pelo tribunal de 1.ª instância.
Nos casos de cumulação de pedidos (conjugada, ou não, com a coligação), o que é correcto é que a recorribilidade seja apreciada separadamente para cada um dos pedidos formulados e decididos pelo tribunal a quo. Pode recorrer-se de todas as decisões, mas também se pode recorrer apenas de uma ou de algumas delas. Sendo assim, não é aceitável que a apelação interposta pela 1.ª Ré tenha um valor global resultante da soma das condenações pronunciadas pelo tribunal de 1.ª instância.
b) Sendo assim, pode concluir-se o seguinte:
-- A condenação da 1.ª Ré em € 5.000 não admite recurso, dado que não se cumpre o disposto no art. 629.º, n.º 1, CPC (recordando-se que o valor da alçada dos tribunais de 1.ª instância é precisamente de € 5.000: art. 44.º, n.º 1, LOSJ));
-- O mesmo há que concluir quanto ao recurso da (algo enigmática) decisão que consta da al. c) da letra A, dado que o montante que pode ser considerado desfavorável à 2.ª Ré não excede os € 5.000 (como é claro, a condenação em juros nunca releva para a aferição da recorribilidade da decisão);
-- A única decisão que era recorrível era aquela que condenou a 2.ª Ré a pagar ao Autor a quantia de € 27.152,50.
6. Do exposto resulta que, a pressupor-se que a 1.ª Ré tinha legitimidade para recorrer, ao único recurso por ela interposto que podia ser considerado admissível só poderia ser atribuído o valor de € 27.152,50.
MTS