"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/01/2025

Jurisprudência 2024 (91)


Instituições de crédito; autorização para actividade;
revogação; inutilidade superveniente da lide

1. O sumário de STJ 30/4/2024 (18490/16.8T8LSB.L1.S1-A) é o seguinte:

I- A decisão de revogação da autorização para o exercício da atividade de instituição de crédito, sem qualquer impugnação contenciosa, e consequente requerimento de liquidação, levado a cabo pelo Banco de Portugal produz os efeitos de insolvência.

II- Por força do disposto no artigo 90.º e no n.º 3 do artigo 128.º do CIRE (aplicáveis por força do disposto no n.º 1 e no n.º 2 do artigo 8.º do DL n.º 199/2006, de 25-10), o crédito detido contra um Banco que haja entrado em liquidação deve ser reclamado no respetivo processo de liquidação judicial.

III- Estando pendente ação declarativa para reconhecimento judicial do crédito, deve esta ação extinguir-se por inutilidade superveniente da lide, em conformidade com o decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014, de 8.05.2013.

IV- A aplicação da orientação jurisprudencial mencionada em III não pressupõe que se tenha declarado aberto incidente de qualificação de insolvência com carácter pleno.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"É [...] entendimento pacífico na jurisprudência do STJ, por nós seguido, que revogada a autorização de certa instituição de crédito para o exercício da sua atividade e determinada a liquidação judicial, nos termos do DL n.º 199/2006, de 25.10, tem o credor que se arrogue a titularidade de crédito sobre tal instituição o ónus de o reclamar na liquidação, em conformidade com o disposto nos artigos 90.º e 128.º do CIRE e estando pendente ação declarativa para reconhecimento judicial do crédito, deve esta ação extinguir-se por inutilidade superveniente da lide, em conformidade com o decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014, de 8.05.2013.

Os dois fundamentos específicos em que o Recorrente alicerça a sua discordância relativamente ao decidido pelo Tribunal da Relação: o facto de o pedido por si formulado na ação declarativa não ter índole exclusivamente patrimonial, dado que se discute igualmente nos autos a questão da nulidade do contrato de intermediação financeira e o pedido de indemnização dela decorrente; e a circunstância de não se saber se o património do devedor insolvente será suficiente para responder pelos créditos reclamados uma vez que no despacho de prosseguimento proferido nos termos do artigo 9.º do Decreto - Lei n.º199/2006 não foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, não sendo, como tal, aplicável ao caso o AUJ n.º1/2014, foram detalhadamente analisados pelo acórdão acima citado de 06.11.2018 [Processo n.º 8364/16.2T8LSB-A.L1.S2], relator Lima Gonçalves, que se passa a seguir de perto.

Ao contrário do alegado pelo Recorrente, tanto o pedido deduzido a título principal, como o pedido deduzido a título subsidiário (que apenas seria apreciado no caso de o primeiro não proceder – artigo 554.º, n.º1, do CPC) se reconduzem a uma questão patrimonial, posto que, em qualquer dos casos, o que autor, verdadeiramente, pretende obter é a condenação do Réu BES no pagamento de uma quantia pecuniária a título indemnizatório por danos patrimoniais e não patrimoniais.

Seja por via do instituto da violação dos deveres de informação, de diligência e de lealdade do intermediário financeiro (causa de pedir na qual assenta o pedido principal), seja por via do regime da nulidade do contrato de intermediação financeira por inobservância de forma (causa de pedir em que se alicerça o pedido subsidiário), o que o Autor, ora Recorrente, peticiona é a condenação solidária do BES juntamente com os restantes Réus, no pagamento da quantia € 244 949,836 a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros vencidos ( € 47,518,70) e vincendos, bem como da quantia que se vier a liquidar a título de danos não patrimoniais.

Pelo que, revestindo o efeito jurídico pretendido pelo Recorrente natureza patrimonial, dúvidas não restam que a sua apreciação influi necessária e diretamente na verificação do passivo do BES, consequentemente, na sua liquidação, e daí que, pelos fundamentos atrás referidos, não há qualquer utilidade em prosseguir essa apreciação fora do processo de liquidação judicial em curso.

De seguida, no citado acórdão, rebatendo a argumentação do Recorrente que são repetidas na alegação e conclusões do presente processo, consta:

Por outro lado, e no que tange ao invocado facto de o Tribunal responsável pelo processo de insolvência do FF se limitar a verificar e a reconhecer créditos do insolvente, sem que lhe caiba conhecer e julgar acerca da constituição da obrigação de prestar, trata-se de afirmação que não se encontra fundamentada e cujo sentido não se alcança, sobretudo, tendo em consideração que, conforme decorre expressamente do artigo 128.º, n.º5, do CIRE, a verificação tem por objeto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento .

Refira-se, aliás, que, no AUJ n.º1/2014, o Supremo Tribunal de Justiça apreciou idêntica questão, tendo concluído que a jurisdição conferida ao Tribunal/decisor da insolvência tem necessariamente implícita, nesse conspecto, uma verdadeira extensão da sua competência material, dado que, mercê do carácter universal e pleno da reclamação de créditos, aquele Tribunal absorve as competências materiais dos Tribunais onde os processos pendentes corriam termos, passando o juiz da insolvência a ter competência material superveniente para decidir os litígios emergentes desses processos e para, em caso de impugnação, verificar a natureza, a proveniência e o montantes dos créditos em causa, bem como dos respetivos juros (…).

E daí que, transpondo essas considerações para o caso dos autos, seja de concluir que o Tribunal do Comércio, encarregue da liquidação do BES, estenderá a sua competência, caso o crédito do recorrente seja impugnado, à apreciação do litígio emergente do presente processo no que àquele Banco concerne e, em concreto, à existência, natureza, proveniência e montante do crédito reclamado, sem que se vislumbre que exista qualquer impedimento nesse particular.

Invoca, por fim, o recorrente, na derradeira tentativa de afastar a aplicabilidade do AUJ n.º1/2014 ao caso, que, não tendo sido declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno no despacho de prosseguimento proferido nos termos do artigo 9.º do Decreto - Lei n.º199/2006, não é possível determinar se o património do devedor será suficiente para responder pelos créditos reclamados e se estão assegurados os direitos dos credores do insolvente, ao que acresce o facto de a proposta da Ex.ma Senhora Procuradora Geral Adjunta sobre a qual recaiu o referido AUJ pressupor que assim tivesse sucedido.

Crê-se, todavia, mais uma vez, que não lhe assiste razão.

Para melhor compreensão da questão e da concernente solução, cumpre referir, antes de mais, que, apesar de a qualificação da insolvência revestir, na versão inicial do CIRE (constante do Decreto - Lei n.º53/2004, de 18 de março), um inequívoco carácter obrigatório, implicando a forçosa instauração do incidente para esse efeito, tal obrigatoriedade foi eliminada pela reforma levada a cabo pela Lei n.º 16/2014, de 20 de abril.

Essa alteração ficou, desde logo, expressa na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º39/XII, da qual constava precisamente que outra das novidades consiste na transformação do actual incidente de qualificação de carácter obrigatório num incidente cuja tramitação só terá de ser iniciada nas situações em que haja indícios carreados para o processo de que a insolvência foi criada de forma culposa pelo devedor ou pelos seus administradores de direito ou de facto, quando se trate de pessoa colectiva (artigos 36.º, 39.º, 188.º, 232.º e 233.º).

Extrai-se, assim, do exposto que, tendo o incidente de qualificação da insolvência deixado de ter carácter obrigatório, não está o juiz obrigado a declará-lo aberto quando profere sentença e muito menos o terá de fazer quando não é ele que declara a insolvência e se limita a proferir, como sucede neste caso, um despacho de prosseguimento do processo de liquidação judicial de uma instituição de crédito, processo esse requerido pelo Banco de Portugal por força de imposição legal nesse sentido, na sequência da revogação da autorização para o exercício da atividade bancária deliberada pelo BCE (…).

Conforme decorre da exposição de motivos a que se fez referência e das normas que regulam esta matéria, o aludido incidente destina-se a qualificar a insolvência como culposa ou fortuita, podendo assumir carácter pleno ou limitado, sendo que este último apenas se aplica nos casos previstos nos artigos 39.º, n.º1, e 232.º, n.º 5, do CIRE, isto é, quando o juiz oficiosamente ou, por indicação do administrador da insolvência, conclua que o património do devedor não é sequer presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa, não se justificando, por isso, que o processo prossiga para as fases da verificação de créditos e de liquidação que, em circunstâncias normais, teriam lugar (artigos 185.º, 188.º, e 191.º, do mesmo Código).

Nessa medida, afigura-se que se tal declaração, com carácter limitado, tivesse sido incluída no despacho de prosseguimento seria até manifestamente contrária ao fim e à natureza do processo de liquidação judicial, bem como à decisão do BCE que, ao ter revogado a autorização a que acima se fez referência, provocou a dissolução do Banco Réu e a sua entrada em liquidação, sendo essa decisão que equivale à declaração de insolvência.

Neste particular, importa sublinhar que não se está perante um verdadeiro processo de insolvência, mas antes perante um processo de liquidação judicial que obedece a normas próprias (Decreto - Lei n.º199/2006) e que apenas será regulado pelas normas do CIRE onde aquele for omisso e desde que essas normas sejam compatíveis com a natureza do processo.

E compreende-se que assim seja dado que, exercendo as instituições de crédito funções essenciais no âmbito do sistema bancário e do desenvolvimento económico e financeiro e estando a sua atividade sujeita a supervisão, desde cedo se concluiu que se impunha a sua sujeição a um enquadramento legal diferenciado precisamente por o regime do CIRE não se mostrar suficientemente adequado às ditas peculiaridades (artigo 2.º, n.º 2, al. b), do CIRE).

É verdade que a aplicação do CIRE às instituições de crédito não está totalmente excluída, contudo, trata-se de uma aplicação que rege apenas para os casos omissos e que opera de forma condicionada, na medida em que serão aplicáveis ao processo de liquidação judicial das referidas instituições as disposições que não sejam incompatíveis com o regime específico pelo qual o mesmo se regula (…)

Do exposto resulta que a hipótese aventada pelo recorrente – de vir a ser declarada aberto o incidente de qualificação de insolvência com carácter limitado por insuficiência do património do devedor para satisfação das custas do processo – para além de carecer de sentido, sempre seria incompatível com a natureza e com o fim do processo de liquidação judicial, com a intervenção e com as competências que o Banco de Portugal, enquanto entidade de supervisão, exerce nesse âmbito (artigos 10.º a 14.º do citado Decreto - Lei n.º199/2006) e bem assim com a deliberação do BCE de revogação da autorização para a atividade bancária do BES.

Repare-se que, por força dessa deliberação, o Banco Réu ficou impedido de exercer a sua atividade, com a sua consequente dissolução, e daí que não se afigure possível que este pudesse recuperar o direito de dispor dos seus bens e de gerir livremente os seus negócios, sendo que este é um dos efeitos decorrentes do encerramento do processo por insuficiência da massa (artigos 39.º, n.ºs 1 e 7, 232.º, e 233.º, n.º 1, do CIRE).

Sublinhe-se, aliás, que no despacho de prosseguimento do processo de liquidação judicial proferido nos termos do artigo 9.º, n.º 2, do Decreto - Lei n.º 199/2006, foi, desde logo, fixado prazo para a reclamação de créditos, o que afastou, por si só, o carácter limitado do incidente em questão (artigo 39.º, n.º 7, als. a) e b), do CIRE).

Seja como for, o que importa reter, no que concerne à aplicabilidade do AUJ n.º1/2014 ao caso, é que o segmento uniformizador no qual ele culminou, contrariamente ao que o Recorrente pretende fazer crer, não restringe a aplicação do entendimento que aí foi adotado às hipóteses em que o incidente tenha sido, desde logo, declarado aberto, com carácter pleno e, dilucidando os fundamentos que conduziram à já apontada uniformização de jurisprudência, também não se encontra qualquer restrição nesse sentido.

Nessa medida, relevando apenas o aludido segmento uniformizador – que é o que foi tirado pelo Pleno das Secções Cíveis –, é evidente que não há que chamar à colação a “proposta” do Ministério Público, sobretudo quando esta, constituindo um mero parecer sobre a questão que originou a necessidade de uniformização, na parte especificamente atinente àquele segmento, nem sequer vingou, tendo antes vingado uma fórmula suficientemente abrangente que não faz depender a aplicabilidade do entendimento aí fixado da declaração ou não da abertura do incidente de qualificação da insolvência (artigo 687.º, n.º 1, do Código de Processo Civil aplicável ex vi artigo 695.º, n.º1, do mesmo diploma).

Esta conclusão não é, de modo algum, afastada pelo acórdão da Relação do Porto de 15-04-2013 que o Recorrente invoca em abono da sua tese, dado que a situação aí apreciada não tem qualquer paralelismo ou similitude com o caso retratado nos autos.

Na verdade, tal aresto debruçou-se sobre um caso muito particular em que à data em que foi declarada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide já há muito que tinha transitado a sentença de insolvência, aí proferida ao abrigo do disposto no artigo 39.º, n.º 1, do CIRE, sem que tivesse sido requerido o seu complemento, mostrando-se, por isso, o processo findo.

Ou seja, nesse caso, por não se terem produzido quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de insolvência e não ter tido sequer lugar a fase da reclamação de créditos e nem, decorrentemente, a da liquidação, o credor estava, naturalmente, impedido de fazer valer o seu alegado direito no âmbito do processo de insolvência (nessa altura, já findo) e daí que não se pudesse concluir pela inutilidade do prosseguimento da lide (artigos 39.º, n.ºs 1, 2 e 7, do CIRE).

Nada disso sucedendo, porém, no caso ajuizado, a solução que se impõe é naturalmente a inversa, isto é, a da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide no que concerne ao Réu BES, sendo irrelevante para o caso que o incidente de qualificação de insolvência não tenha sido expressamente declarado aberto com carácter pleno aquando do despacho de prosseguimento da liquidação judicial: quer porque tal declaração deixou de ser obrigatória, quer porque o entendimento fixado, para efeitos de uniformização de jurisprudência, no AUJ n.º1/2014 não está dependente de uma tal declaração (vejam-se, no sentido exposto, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22/05/2018, e de 19/06/2018, consultável in www.dgsi.pt).

É de referir, por último, que a solução da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, contrariamente ao aflorado pelo Recorrente nas conclusões da sua alegação recursória, não é violadora de quaisquer direitos e interesses constitucionalmente consagrados, designadamente do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º do CRP).

A verificação de créditos, que se estrutura como verdadeira ação declarativa, com as garantias a ela inerentes, assegura aos credores a defesa dos seus interesses, os quais, por razões de ordem prática, são concentrados no processo de insolvência.

Pelo que, permitindo a vocação universal do processo de insolvência (ou, mais rigorosamente, do processo de liquidação judicial) apreciar, no âmbito do aludido apenso de verificação de créditos, os factos e as razões de direito em que se ancora o alegado direito que o Recorrente pretende fazer valer, em nada fica cerceado o seu direito de acesso aos Tribunais, que se encontra constitucionalmente consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da CRP (assim se decidiu no AUJ n.º 1/2014, bem como no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/11/2017, consultável em www.dgsi.pt).”

É, pois, de concluir que , por força da doutrina emergente do AUJ n.º1/2014 que tem plena aplicação na presente ação, que se destina a fazer valer um alegado direito de crédito, nenhuma utilidade tem o prosseguimento da lide após a revogação da autorização da atividade bancária do réu BES, equivalente à declaração da insolvência, bem como à prolação do despacho de prosseguimento da sua liquidação judicial, uma vez que o Recorrente não está dispensado de reclamar o seu crédito no dito processo de liquidação e, por outro lado, sempre estaria impedido de executar qualquer sentença que viesse a obter, ainda que o resultado da demanda lhe fosse favorável."

Estando assente que a pretensão do Recorrente, no que concerne ao réu BES, apenas pode encontrar satisfação no âmbito do processo de liquidação judicial em curso, na presente ação impõe-se a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide (artigo 277.º, alínea e), do CPC), tal como foi decidido no acórdão recorrido."

[MTS]