"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/01/2025

Jurisprudência 2024 (90)


Confissão judicial;
legitimidade para confessar; indivisibilidade da confissão*

1. O sumário de STJ 2/5/2024 (2313/14.5T8LSB.L1.S1) é, na parte agora relevante, a seguinte: 

I. A confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

II. A confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados ou em qualquer outro ato do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado, sendo que a declaração confessória deve ser inequívoca, salvo se a lei o dispensar, outrossim, a contraparte tem que fazer menção concreta, individualizada, do facto que aceita, não bastando, para esse efeito, aceitação genérica, exigindo-se sempre um mínimo de referência, sem o qual não poderá falar-se em aceitação.

III. Se os efeitos que o facto confessado é idóneo a produzir forem contrários ao interesse de uma pluralidade de sujeitos e subjetivamente incindíveis, a legitimidade para confessar radicará em consequência nessa pluralidade não podendo esses sujeitos isoladamente produzir uma confissão que se traduziria no reconhecimento da realidade de um facto que a todos é desfavorável.

IV. A litigante não pode aproveitar-se de parte das declarações prestadas que eventualmente lhe aproveite, desprezando a narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia dos factos alegadamente confessados ou a modificar ou extinguir os seus direitos, em desconsideração e ofensa à indivisibilidade da confissão.

V. Estando em causa a responsabilização solidária dos demandados, enquanto responsabilidade civil por atos médicos, um enquanto Hospital, e outro enquanto médico da demandante e autor da operação cirúrgica que alegadamente veio a desencadear os danos físico-emocionais, importa ter pressente que estas situações encerram relações jurídicas que envolve o contrato de prestação de serviços médicos privados, tipologia cuja natureza se pode distinguir em um dos seguintes termos:

(i) contrato total, que é “um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confeção de alimentos)”;

(ii) contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional), que corresponde a “um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações)”;

(iii) contrato dividido, que é aquele em que “a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (atos médicos).”

VI. Saber se houve cumprimento defeituoso dos contratos de prestação de serviços médico-cirúrgicos, responsabilidade civil por atos médicos, importa reconhecermos estar em causa uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, sendo que a orientação consolidada neste Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, mais favorável ao lesado. [...]

X. Só com a violação do dever de cuidado, avaliado em função de um padrão médio de comportamento, mediatizado pelas legis artis, é que, independentemente das consequências, mais ou menos graves, para o doente, e numa análise neutra a posteriori, teremos um erro juridicamente relevante, base para um ilícito de natureza pessoal e uma responsabilidade subjetiva, enquanto pressuposto primeiro da responsabilidade civil por atos médicos.

XI. Em sede de distribuição do ónus da prova perante obrigações de meios, incumbe ao doente-paciente lesado, na qualidade de credor, provar a falta de cumprimento do referido dever objetivo de cuidado na atuação técnica como fundamento de ilicitude na responsabilidade contratual médica (art.º 342º n.º 1 do Código Civil.), nele incluindo a obrigação omissiva de não afetar a sua integridade física e saúde.


2. N fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"II. 3.1. O Tribunal a quo cometeu nulidade processual, violando o disposto no art.º 413º do Código de Processo Civil, ao desconsiderar os requisitos e efeitos da confissão feita em articulado, por um litisconsorte voluntário, no caso o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., nos artºs. 54º 55º, 59º, 61º, 75º, 76º, 94º, 96º, 97º, 101º a 106º, 108º, 109º e 118º da contestação? [---]

O Supremo Tribunal de Justiça, no que respeita às decisões sobre a matéria de facto, não pode alterar tais decisões, sendo estas decisões de facto, em regra, irrecorríveis. [...]

A decisão de facto é, pois, da competência das Instâncias, conquanto não seja uma regra absoluta (tenha-se em atenção a previsão do art.º 674º n.º 3 do Código de Processo Civil), pelo que, o Supremo Tribunal de Justiça não pode, nem deve, interferir na decisão de facto, somente importando a respetiva intervenção, quando haja erro de direito.

A Recorrente/Autora/AA insurge-se contra o aresto recorrido, sustentando que a decisão de facto desconsiderou os requisitos e efeitos da confissão feita em articulado, por um litisconsorte voluntário, no caso o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., nos artºs. 54º, 55º, 59º, 61º, 75º, 76º, 94º, 96º, 97º, 101º a 106º, 108º, 109º e 118º da contestação, devendo, por isso, ser alterada a decisão recorrida.

A reclamada impugnação da decisão contende com a alegada violação de lei adjetiva e substantiva civil, designadamente, a violação das regras de direito probatório material, donde, não está arredada a reponderação da decisão de facto, por parte deste Tribunal ad quem, com vista a reconhecer, ou não, o invocado erro de direito. [...]

De harmonia com o disposto no art.º 352º do Código Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

Textua, por sua vez, com interesse para a economia dos autos, o art.º 353º do mesmo diploma legal: “1. A confissão só é eficaz quando feita por pessoa com capacidade e poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira. 2. A confissão feita pelo litisconsorte é eficaz, se o litisconsórcio for voluntário, embora o seu efeito se restrinja ao interesse do confitente; mas não o é, se o litisconsórcio for necessário.”

Segundo o art.º 355º n.º 1 daquele diploma, a confissão pode ser judicial ou extrajudicial, sendo que a confissão judicial é aquela que é feita em juízo e só vale como judicial na ação correspondente (nºs. 2 e 3 do citado art.º 355º) e a confissão extrajudicial é a feita por algum modo diferente da confissão judicial (n.º 4 do citado art.º 355º).

Ademais, decorre do nosso ordenamento jurídico, art.º 356º n.º 1 do Código Civil: “a confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual ou, em qualquer outro acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado”, estabelecendo o n.º 1 do art.º 357º do Código Civil, que: “a declaração confessória deve ser inequívoca, salvo se a lei o dispensar”.

Outrossim, com interesse para o caso trazido a Juízo, estabelece o art.º 360º do Código Civil que a declaração confessória é indivisível e, como tal, tem de ser aceite na íntegra, salvo provando-se a inexatidão dos factos que transcendem a declaração estritamente confessória, sendo que a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente (art.º 358º do Código Civil).

No que respeita à confissão judicial feita nos articulados, sustenta o Professor, Alberto dos Reis, in, Código de Processo Civil, Anotado, página 86, que a mesma “consiste em o réu reconhecer, na contestação, como verdadeiros, factos afirmados pelo autor na petição inicial, ou em o autor reconhecer, na réplica, como verdadeiros, factos afirmados pelo réu na contestação (…)”, importando anotar, todavia, que a confissão feita nos articulados e que, nos termos do disposto no art.º 358º n.º1 do Código Civil, como modalidade de confissão judicial, não se confunde com a simples alegação de um facto feita pelo mandatário da parte em articulado processual.

Subjacente à declaração confessória feita nos articulados pelo mandatário e que vincula a parte está, como sustenta o Professor Antunes Varela, in, Manual de Processo Civil, 2ª edição, página 548, a ideia de que, estando o mandatário por via de regra em íntimo contacto com a parte sobre a matéria de facto da ação, ele conhece a realidade desta, tendo assim o seu reconhecimento da realidade de um facto desfavorável ao respetivo constituinte, em princípio, a mesma força de convicção que tem a confissão.

Porém, impõe-se também sublinhar a exigência da aceitação do facto confessado pela parte contrária, impeditiva da retirada da confissão ou retratação, a qual tem de ser especificada, o que equivale a dizer, segundo os ensinamentos de Antunes Varela, in, Manual de Processo Civil, 2ª edição, página 555 e Alberto dos Reis, in, Código de Processo Civil, anotado, 4ª edição, Volume I, página 126 e Volume IV, página 113, que a contraparte tem que fazer menção concreta, individualizada, do facto que aceita, não bastando, para esse efeito, aceitação genérica, exigindo-se sempre um mínimo de referência, sem o qual não poderá falar-se em aceitação.

Ora, não distinguimos dos autos, desde logo, que a Autora/AA, notificada da contestação apresentada pelo 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., tivesse feito qualquer referência de aceitação dos factos aí consignados, daí que, desde logo por aqui soçobraria a pretensão da demandante quanto à reclamada declaração confessória.

Todavia, mesmo que assim não entendêssemos, concebendo que a demandante havia declarado aceitação sobre os factos consignados no articulado apresentado pelo 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A., sempre haveria que afirmar, assumindo e reconhecendo a orientação sustentada pelo Professor Lebre de Freitas, in, A confissão no direito probatório, Coimbra editora, 1991, páginas 109 e 110, ao defender que “se os efeitos que o facto confessado é idóneo a produzir forem contrários ao interesse de uma pluralidade de sujeitos e subjetivamente incindíveis, a legitimidade para confessar radicará em consequência nessa pluralidade não podendo esses sujeitos isoladamente produzir uma confissão que se traduziria no reconhecimento da realidade de um facto que a todos é desfavorável”, carecer o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. de legitimidade para fazer uma qualquer válida declaração confessória.

Por outro lado, os factos alegados e enunciados supra (artºs. 54º 55º, 59º, 61º, 75º, 76º, 94º, 96º, 97º, 101º a 106º, 108º, 109º e 118º da contestação apresentada) que sustentam, com utilidade, a circunstância de o 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A. admitir que a Autora foi submetida a uma operação de artroplastia, tendo, posteriormente à mesma, surgido a necessidade de amputação da perna, não equivale a admitir qualquer facto por si praticado que tenha levado a esta segunda cirurgia, não encerram, de todo, o reconhecimento de factos que lhe seja desfavorável e favoreça a parte contrária, impondo-se, outrossim, contextualizar os alegados factos e conjugá-los com aqueloutros que constituem o articulado contestação do 1º Réu, Hospital dos Lusíadas S.A..

Assim, convirá sublinhar que nos termos do art.º 358º n.º 1 do Código Civil, reconhecemos, inequivocamente, que a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente.

Dever-se-á, no entanto, ter em consideração o estabelecido no direito substantivo civil quanto à declaração judicial acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus direitos, pois, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexatidão (art.º 360º do Código Civil).

A litigante não pode aproveitar-se de parte das declarações prestadas que eventualmente lhe aproveite, desprezando a narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia dos factos alegadamente confessados ou a modificar ou extinguir os seus direitos, em desconsideração e ofensa à indivisibilidade da confissão, nos termos enunciados pelo direito substantivo civil.

Tenhamos, assim, em atenção, nomeadamente, os artºs 119º a 121º da contestação onde se consignou:

“A 1.ª Ré, por meio do seu corpo clínico de Cirurgia Vascular, adoptou todos os tratamentos recomendados pela doutrina e pela prática médicas para o caso, além de tecnicamente bem ter executado todos os procedimentos.” (art.º 119º).

“A amputação da perna foi necessária tendo em vista que o procedimento de revascularização do seguimento afectado não surtiu efeitos, nem toda a terapêutica instituída e cirurgias realizadas, mesmo sendo tecnicamente as correctas, sobrevindo um quadro de infecção.” (art.º 120º).

“Nenhum dos males que acometeu a Autora decorre de conduta médica imperita, imprudente ou negligente de qualquer dos médicos que compõem o corpo clínico que assistiu a Autora na sequência do reencaminhamento pelo 2.º Réu para a Área de especialidade de Cirurgia Vascular da 1.ª Ré”. (art.º 121º).

Tudo visto, não temos como não acompanhar o segmento do acórdão em escrutínio adiante consignado, onde se evidencia que o Tribunal recorrido tomou em consideração todas as provas produzidas, cumprindo as regras substantivas e adjetivas civis.

Neste particular, respigamos, com utilidade, do aresto em escrutínio: “(…) Nos autos, constata-se que os RR. não confessam quaisquer dos factos mencionados pela apelante, e particularmente, que a causa da amputação da perna da A. tenha sido causada por qualquer acto dos RR., o que se extrai da forma como apresentam a sua versão dos factos alegados pela A..

Isto é, os RR. não reconheceram a realidade exposta pela A., nos termos e para os efeitos do art. 352º do CC, não se podendo concluir pela existência de uma declaração confessória inequívoca como exigido pelo art. 357º do CC.

Saliente-se que a circunstância de os RR. admitirem que a A. foi submetida a uma operação de artroplastia, tendo, posteriormente à mesma, surgido a necessidade de amputação da perna, não equivale a admitir qualquer facto por si praticado que tenha levado a essa operação, não sendo, por isso, possível concluir pela existência de confissão, nos termos e para os efeitos do art. 352º e ss. do CC.

Por outro lado, constata-se que a versão trazida aos autos pela A. foi impugnada pelos RR., seja de forma coincidente, seja de forma parcelar.

(…) No caso vertente, face à situação de litisconsórcio existente, o efeito da eventual confissão sempre se restringiria ao interesse do confitente, não podendo, portanto, produzir efeitos que afectem o interesse de todos os RR..

Do que se vem de expor, decorre que não existe qualquer violação do disposto no art. 413º do CPC, que cumpra sanar, o que redunda na improcedência deste segmento da apelação.”

II. 3.1.1. Tudo visto, concluímos que o acórdão recorrido não se encontra eivado de qualquer nulidade processual, uma vez que, conforme discreteado, não desconsiderou quaisquer regras de direito probatório, ao invés, tomou em consideração todas as provas produzidas, cumprindo as regras substantivas e adjetivas civis aplicáveis."


*3. [Comentário] O decidido no acórdão mostra com clareza o equívoco de que padece o estabelecido no art. 353.º, n.º 2, CC. O que releva não é se o litisconsórcio é voluntário ou necessário, mas antes se ele é parciário (e admite decisões distintas para cada um dos litisconsortes) ou unitário (e não admite decisões diversas para cada um dos litisconsortes.

No caso sub iudice, o litisconsórcio entre os demandados solidários era voluntário (art. 32.º, n.º 2, CC), mas, ainda assim, nenhuma eventual confissão realizada por um deles podia ser oponível ao outro.

Do mesmo equívoco padece o disposto nos art. 35.º, 288.º, n.º 2, e 634.º, n.º 1 e 2, CPC.

MTS