Processo de inventário; relação de bens;
doação de bens comuns; colação
1. O sumário de RG 18/4/2024 (114/20.0T8ALJ-A.G1) é o seguinte:
Em sede de inventário para partilha de herança aberta por óbito dos membros de um casal cujo casamento se regia pelo regime de comunhão geral de bens, os móveis comuns doados por um sem o consentimento do outro a um dos filhos de ambos, sem que tenha sido invocada a anulabilidade do ato nos termos do artigo 1687º, nº 1 do Código Civil, devem ser relacionados como bens doados ao respetivo herdeiro legitimário.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Apenas está em causa a relacionação dos bens móveis objeto da doação a que se refere o ponto 11 da matéria de facto provada, discutindo-se em primeira linha a validade da doação de bens móveis efetuada pelo inventariado a um seu filho.
Os inventariados eram casados entre si, segundo o regime de comunhão geral de bens e por isso os bens móveis consideram-se comuns (artigo 1732º do Código Civil).
A sentença considerou que, porque à data da doação efetuada pelo inventariado, a inventariada ainda era viva e estes eram casados no regime da comunhão geral de bens, o ato carecia da intervenção daquela, pelo que o doador era desprovido de legitimidade para a prática desse ato sem tal consentimento. Recorrendo ao acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 12.10.2021, no processo 3890/17.4T8FNC.L1-7, aplicou ao caso o regime das doações de bens alheios. Nesse acórdão afirmou-se que “vigorando quanto a atos de disposição unilateral do património comum o disposto nos artigos 1682º e 1687º do Código Civil, e nas relações internas o princípio da indivisibilidade do património comum até à cessação dos efeitos do casamento e consequente partilha conforme ao disposto no artigo 1688º do Código Civil, tal não contende, nem comporta limitação à situação em que, o cônjuge desautorizado e lesado pelo ato de disposição do consorte sobre o património comum, pretenda que o património comum seja restituído/restaurado pelos terceiros beneficiados e conheceu dessa nulidade oficiosamente.”
É certo que este tema tem exigido “atenção na casuística de situações geradas pela complexidade da vida atual, e da evolução do paradigma dos poderes e deveres de cada cônjuge relativamente à gestão e disposição do património conjugal, as quais nem sempre surgem com resposta clara no ordenamento jurídico“, como se escreveu nesse acórdão.
Com efeito, as atuais conceções sociais aceitam com maior dificuldade a sobrevalorização do casal como entidade cujo respeito justifica a indefesa prática dos direitos do cônjuge cujo consentimento foi postergado, obrigando-o a ter que esperar pelo final do casamento para efetivar o seu direito, embora o casamento crie um regime especial para as relações patrimoniais dos cônjuges, porque se pretende agora já não (tanto ou só) a defesa da ideia de família fundada pelo casamento, mas a realização pessoal no seu projeto, pela evolução do respeito pela autonomia de cada ser humano e da tutela da sua personalidade (mesmo que unido a outro pelo casamento).
E assim, tal acórdão encontrou uma solução para “a situação, em que um dos cônjuges atuou em violação dos limites legais estabelecidos para a administração e alienação gratuita dos bens que integram o património comum, que o outro cônjuge não consentiu, nem aceita, pretendendo restaurar o património comum à situação anterior”, entendendo que “o enquadramento sancionatório específico previsto no artigo 1687º do Código Civil aplicável na relação interna dos esposados (e seus herdeiros), não excluiu, nem contende, com as relações emergentes entre o cônjuge defraudado e os terceiros que, beneficiaram gratuitamente do património comum do casal, mediante ato de disposição unilateral ilegítimo pelo outro consorte”. Este problema não se levanta no presente caso, em que não está em causa a posição do cônjuge, nem de terceiros, mas em que se discute apenas a situação entre os herdeiros de ambos os cônjuges, já falecidos.
Vejamos o regime que se aplica à nossa situação (agora que assentámos que inexiste paralelo a atender entre a situação destes autos e o acórdão em que se fundou a sentença).
A regra encontra-se prevista no artigo 1682º do Código Civil: quando estão em causa bens móveis quem administra pode dispor; se a administração couber aos dois cônjuges a alienação ou oneração carece do consentimento de ambos, salvo se se tratar de ato de administração ordinária.
Fora dos casos específicos tratados no artigo 1678º nº 2 do Código Civil, cada um dos cônjuges tem legitimidade para a prática de atos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal e os restantes atos de administração só podem ser praticados com o consentimento de ambos os cônjuges.
De mais relevante importa atentar que cada um do cônjuges tem a administração dos seus bens próprios e ainda dos proventos que receba pelo seu trabalho e dos bens móveis próprios do outro cônjuge ou comuns, por ele exclusivamente utilizados como instrumento de trabalho, dos bens próprios do outro cônjuge, se este se encontrar impossibilitado de exercer a administração por se achar em lugar remoto ou não sabido ou por qualquer outro motivo, e desde que não tenha sido conferida procuração bastante para administração desses bens e dos bens próprios do outro cônjuge se este lhe conferir por mandato esse poder, nos termos do artigo 1678º nº 1 e 2 do Código Civil.
Também carece de ambos os cônjuges a alienação ou oneração de móveis utilizados conjuntamente por ambos os cônjuges na vida do lar ou como instrumento comum de trabalho e os móveis pertencentes exclusivamente ao cônjuge que os não administra, exceto se tal alienação se traduzir num ato de mera administração ordinária (nº 3 do artigo 1682º do Código Civil).
Dispõe o nº 4 deste artigo 1682º do Código Civil que quando um dos cônjuges, sem consentimento do outro, alienar ou onerar, por negócio gratuito, móveis comuns de que tem a administração, será o valor dos bens alheados ou a diminuição de valor dos onerados levado em conta na sua meação, salvo tratando-se de doação remuneratória ou de donativo conforme aos usos sociais.
O artigo 1687º do Código Civil contém as sanções para a prática dos atos de alienação sem o devido consentimento do cônjuge: a alienação ou oneração de móveis comuns sem o necessário consentimento são anuláveis a requerimento do cônjuge que não o deu ou dos seus herdeiros, o qual pode ser exercido nos seis meses subsequentes à data em que o requerente teve conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos três anos sobre a sua celebração. Decorrido esse período o ato torna-se definitivamente válido. No entanto, a anulabilidade não pode ser oposta ao adquirente de boa-fé, se for de bem móvel não sujeito a registo.
À alienação ou oneração de bens próprios do outro cônjuge, feita sem legitimidade, são aplicáveis as regras relativas à alienação de coisa alheia.
Do exposto resulta que as regras relativas à alienação de coisa alheia apenas se aplicam diretamente aos casos em que foi efetuada a alienação de bens próprios do outro cônjuge sem o devido consentimento, não aos bens comuns.
Assim, não havendo dúvidas que os bens móveis descritos no ponto 11 da matéria de facto provada eram bens comuns do casal, atento o regime de casamento que os unia e o disposto no artigo 1732º e 1725º do Código Civil, o que é aceite por todos, a sua doação a um só herdeiro constitui um ato de disposição, que necessitava do consentimento do cônjuge não doador, mas por faltar tal consentimento, o ato era anulável, nos termos do artigo 1687º, nº 1 do Código Civil.
O contrário do que sucede com a nulidade, a anulabilidade não é de conhecimento oficioso, e tem que ser invocada pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, como decorre claro dos artigos 286º e 287º,1 Código Civil.
Assim, por um lado, não podia a sentença recorrida conhecer da mesma oficiosamente e por outro concluir pela verificação de uma nulidade ou, sequer, da anulabilidade, que não foram suscitadas. Não se presume a vontade nessa invocação: a preterição da vontade do progenitor por não constar do ato um consentimento da progenitora não se presume com a simples afirmação que se desconhece a doação.
Desta forma, não se pode concluir pela nulidade da doação, atendendo-se nos autos aos seus efeitos translativos da propriedade para o donatário (artigo 940º do Código Civil), havendo que proceder o recurso.
Mas tal não significa que os bens doados não devam ser relacionados, tão só, como escreve nas alegações o Recorrente que “não deverão, por isso, ser relacionados pelo cabeça de casal como bens da herança dos inventariados”.
Isto por virtude do instituto da colação: “os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, par a igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este” diz-nos artigo 2104º). Há que conhecer as liberalidades já recebidas do autor da herança para compor a legítima na parte em que os herdeiros têm de receber uma parte igual.
Referindo-se a doações a herdeiros legitimários: “Não obstante as coisas doadas não integrarem o acervo hereditário devem, no processo de inventário, havendo herdeiros legitimários, ser objeto de relacionação, com o objetivo de lhes ser fixada a natureza, qualidades e valor, para efeitos de cálculo das legítimas e com vista à sua integralidade, com eventual redução, por inoficiosidade, ou à mera igualação da partilha”, sumariou-se no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães em 06/14/2018, no processo 156/07.1TBMDR.G1.
“A relação do acervo patrimonial a partilhar, ainda que a administração não pertença ao cabeça-de-casal, é acompanhada dos documentos comprovativos da sua situação no registo ou na matriz (n.º 3, al. c)). Em especial, devem ser relacionados os bens legados e, se existirem herdeiros legitimários, os bens doados, com o objetivo de lhes ser fixada a natureza e o valor, para efeitos de cálculo da legítima e de eventual redução por inoficiosidade (cf. arts. 2168.º ss. CC; arts. 1118.ºs.), bem como para igualação da partilha, através da respetiva conferência (art. 2174.º CC)”, escrevem Miguel Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Torres em “O Novo Regime Do Processo De Inventário E Outras Alterações Na Legislação Processual Civil”, Almedina 2020, a pág. 62.
A relacionação de bens no inventário alcança todos os bens móveis, imóveis, semoventes, direitos e ações, créditos e dívidas do autor da herança que desta não devam excetuar-se, inclusive, havendo herdeiros legitimários, os bens doados, compreendendo aquela genérica atribuição as benfeitorias, também o dizia Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 4ª edição, volume I, Almedina, pág 429 e seguintes.
Temos em que se entende que os bens doados referidos no ponto 11 da matéria de facto provada têm que ser relacionados não como bens da herança, mas como bens doados ao herdeiro legitimário GG."
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