"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/12/2024

Bibliografia (1166)


-- Andrade Costa, C. F., Competência Judiciária e Tutela Coletiva dos Consumidores na União Europeia (Almedina: Coimbra 2025)


20/12/2024

O superior interesse da criança e a admissibilidade da revista em processos de jurisdição voluntária (2)


Nota de actualização


No post O superior interesse da criança e a admissibilidade da revista em processos de jurisdição voluntária defendeu-se que o superior interesse da criança é um critério normativo e, por isso, um critério cuja aplicação no caso concreto pode ser controlado em recurso de revista interposto para o STJ. Aparentemente sem conhecimento do referido post, o mesmo se concluiu no recente acórdão do STJ de 27/11/2024 (1614/04.5TBESP-E.P1.S1).

MTS

Jurisprudência 2024 (74)


Nulidade da sentença;
excesso de pronúncia


I. O sumário de RL 9/4/2024 (12261/17.1T8LSB.L1-7) é o seguinte:

1 - O julgador não pode condenar em objecto diverso do que se pediu, nem atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, e, em concreto, se o pedido respeita ao reconhecimento do direito de propriedade e restituição relativo a um prédio urbano, não pode o juiz declarar esse direito relativamente a um prédio misto ou a um prédio rústico.

2 - A presunção registal de titularidade decorrente do estatuído no artigo 7º do Código do Registo Predial, onde se estipula que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”, não abrange os elementos da descrição registal, mas apenas o que resulta do facto jurídico inscrito tal como foi registado.

3 A posse que releva para efeitos da usucapião é a posse tal como é definida pelo artigo 1251º do Código Civil, sendo seu elementos integrantes o corpus - a prática de actos materiais sobre a coisa, de modo contínuo e estável - e o animus -vontade ou intenção do autor da prática de tais actos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente aos actos realizados.

4 - Presume-se que quem tem o corpus tem também o animus.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3.2.1. Da nulidade da decisão por excesso de pronúncia

As recorrentes sustentam que a decisão recorrida padece de nulidade porque condenou em quantidade superior e em objecto diverso do pedido, para o que argumentam que as autoras pediram o reconhecimento do seu direito de propriedade incidente sobre o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial – “prédio urbano sito no ..., S/N, freguesia e concelho de Alcochete, distrito de Setúbal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.º .../19971007, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo n.º ... da freguesia de Alcochete” -, sendo que o prédio descrito sob o número ... integra um terreno rústico de regadio de produtos hortícolas inscrito na matriz sob o artigo 26 da secção AC, um prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ... e um prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ..., restringindo-se o pedido das autoras ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ... e, apesar disso, a sentença veio declarar a propriedade da autora/recorrida sobre “metade da metade indivisa” do prédio descrito sob o número ..., incluindo a parte rústica com 35 000 m2 e o urbano inscrito na matriz sob o artigo ... e outra metade dessa metade indivisa como integrante do acervo hereditário de J..., para além de identificar o prédio como omisso na matriz.

Nas suas contra-alegações, as autoras/recorridas defendem que não ocorre a apontada nulidade, porquanto o facto declarado corresponde aos factos B) e C) considerados assentes no despacho saneador, de que aquelas não reclamaram, tendo-se formado caso julgado com força obrigatória no processo, para além de resultar da certidão predial permanente a inscrição registal da aquisição do prédio descrito sob o número ... a favor de J... e mulher, a autora B.

Aquando da prolação do despacho de admissão do recurso, a senhora juíza a quo pronunciou-se sobre a nulidade suscitada, nos seguintes termos (cf. Ref. Elect. 433193754):

“Nulidade da sentença recorrida – art.º 617.º, n.º 1, do Código de Processo Civil:

Entendo que a sentença da qual foi interposto recurso pelo/a(s) réu/ré(s) não padece de qualquer uma das nulidades elencadas no art.º 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, porquanto:
a) A decisão recorrida contém a assinatura da magistrada que a elaborou;
b) A decisão recorrida enuncia os fundamentos de facto e direito que a sustentam;
c) Não existe contradição entre os fundamentos da decisão recorrida, nem ocorre ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível, sendo inequívoco o seu sentido, independentemente da discordância que a parte recorrente ante a mesma manifeste;
d) O tribunal pronunciou-se sobre todas as questões suscitadas pelas partes e não conheceu de questões estranhas ao objecto do processo, independentemente de a parte recorrente concordar ou não com o enquadramento jurídico da decisão posta em crise, o que constitui fundamento de recurso e não causa de nulidade da sentença;
e) A decisão recorrida manteve-se nos limites das pretensões formuladas pelas partes, não tendo condenado em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Ante o exposto, julgo improcedente, por não verificada, a nulidade invocada e mantenho nos seus precisos termos a sentença recorrida.
Notifique.”

Nos termos da alínea e) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, a sentença é nula quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, ou seja, quando não observe os limites impostos pelo art.º 609º, n.º 1 daquele diploma legal.

O princípio do dispositivo, desde logo consagrado no n.º 1 do art.º 3º do CPC, repercute-se na configuração do objecto do processo, mediante a dedução do pedido e da alegação da matéria de facto que serve de fundamento à acção ou à defesa, circunscrevendo o âmbito da decisão final, ou seja, são as partes que ao recorrerem à instância judicial delimitam o objecto do processo, devendo a sentença conter-se nesse objecto.

Assim, “o pedido delimita os poderes do juiz, já que este não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, embora sem prejuízo da aplicação da jurisprudência constante do Assento n.º 4/95 - “o conhecimento oficioso da nulidade de um negócio jurídico não impede que o tribunal condene o réu a restituir o que tenha recebido, se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais” - e do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/01 - “tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do art. 616º do CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo art. 664º do CPC [de 1961]” – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 17.

É, pois, através do pedido que as partes delimitam o thema decidendum, solicitando a tutela pretendida, pelo que a sentença tem de se inserir no âmbito do pedido e da causa de pedir, não podendo o juiz condenar em quantidade superior ou em objecto diverso daquilo que foi pedido.

Quanto ao sentido da norma do actual art.º 615º, n.º 1, e), do CPC, mantêm-se válidas as palavras de Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra 1984, pp. 67-68:

“O juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes. […]

Também não pode condenar em objecto diverso do que se pediu, isto é, não pode modificar a qualidade do pedido. Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a prestar um facto; se o pedido respeita à entrega de uma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo).”

Sobre esta questão, escreve Manuel Tomé Gomes, Da Sentença Cívelin O novo processo civil, pp. 370-372 [Caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014 acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf.]

“Também no que respeita à fixação ou condenação em objecto diferente do pedido se tem suscitado dúvidas sobre o alcance prático deste limite, em particular nos casos em que a solução passa por uma qualificação jurídica diversa da sustentada pelo autor ou reconvinte. É o que acontece quando, por exemplo, o autor pede a resolução de um contrato com fundamento em incumprimento, mas em que se verifica que o contrato em crise é nulo por falta de forma; ou quando, por exemplo, o autor instaura uma ação de impugnação pauliana, concluindo, erradamente, pela invalidade (nulidade ou anulabilidade) do negócio impugnado, sendo que o efeito adequado é o da ineficácia relativa, à luz do disposto no artigo 616º, n.º 1 e 4 do CC. Será que o tribunal poderá, na primeira hipótese, declarar a nulidade do contrato e decretar a respetiva consequência restituitória, ao abrigo do disposto nos artigos 286º e 289º do CC, e, na segunda hipótese, decretar a ineficácia do negócio impugnado, dando ainda provimento à pretensão do autor?

[…] se a situação se reconduzir a um mero erro de qualificação jurídica na formulação do pedido, aferido em função do contexto da pretensão, parece que nada obsta a que o tribunal decrete o efeito prático pretendido, ainda que com fundamento em base jurídica diversa.”

Ainda que, como tem vindo a ser entendido, aquilo que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, seja o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado, há que não olvidar que continua a valer a regra do dispositivo, daí que o decretamento de efeito jurídico diverso do especificamente peticionado pressupõe necessariamente uma homogeneidade e equiparação prática entre o objecto do pedido e o objecto da sentença proferida, assentando tal diferença de perspectivas decisivamente e apenas numa questão de configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida.

Assim, o julgador não pode atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, ou seja, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao demandante, por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter, mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos daquilo que este visava – cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-04-2016, processo n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1 [---]

Na sua pronúncia sobre a nulidade em causa, a senhora juíza a quo não se debruçou sobre o específico fundamento invocado, pelo que aquilo que consignou no despacho de admissão do recurso não tem qualquer utilidade para a apreciação da questão.

Importa afastar, desde já, a relevância da argumentação das autoras/recorridas, porquanto, por um lado, não se encontra hoje legalmente prevista ou imposta a enunciação, em sede de prolação do despacho saneador ou fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, dos factos então já tidos por assentes [---], sendo em sede de sentença que o juiz terá de declarar, dentro da matéria definida pelos factos que constituem a causa de pedir e que integram as excepções, aqueles que julga provados ou não provados, pelo que não há hoje “qualquer cristalização da matéria de facto na fase intermédia do processo, ficando relegada para a sentença”, tanto mais que o juiz deve considerar os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução – cf. art.ºs 595º, 596º, 607º, n.º 4 e 5º, n.º 2, b) do CPC; António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pp. 700-701.

Acresce que, mesmo no âmbito da identificação dos factos assentes prevista no CPC de 1961, se entendia que o juiz não estava adstrito à especificação já feita, ou seja, a condensação (especificação e base instrutória) mantinha a função instrumental que apenas visava facilitar a realização do julgamento, não devendo comprometer, por via do caso julgado formal, a sua modificação posterior tendente a restabelecer a correspondência entre a verdade histórica e a emergente do julgamento – cf. Temas de Reforma do Processo Civil, II volume, pp. 143-145.

Por outro lado, os factos consignados sob as alíneas B) e C) e que assim transitaram para a enunciação da matéria de facto provada constante da sentença recorrida apenas reproduzem as informações que se extraem da descrição predial atinente ao prédio número ... e respectivas inscrições, o que, aliás, não foi sequer exactamente reproduzido no ponto I, alínea a) do dispositivo.

Ora, da leitura da petição inicial, e mais exactamente dos factos integradores da causa de pedir nela vertidos e do pedido deduzido a final, parece claro que as autoras não formularam qualquer pretensão no sentido de lhes ser reconhecido o direito de propriedade incidente sobre a globalidade das existências físicas imobiliárias que integram a descrição predial em referência, posto que sempre se reportaram a um prédio urbano (não rústico ou misto), que claramente identificaram como sendo “destinado a habitação, com uma área coberta de 138 m2 e uma área descoberta de 2.662 m2, é constituído por cave com 5 divisões, destinada a garagem e arrumos, por rés-do-chão com 5 salas, cozinha, 2 casas de banho, vestíbulo e corredor” – cf. artigos 2º, 7º, 9º, 13º a 15º, 18º e 27º da petição inicial.

E é relativamente a este prédio, assim identificado e delimitado, que as autoras formulam a sua pretensão de ver reconhecido o seu direito de propriedade, aludindo especificamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ... – cf. artigo 28º da petição inicial e alínea a) do petitório.

Aliás, foi precisamente e apenas relativamente a este prédio que diligenciaram pela junção da respectiva caderneta predial, apresentada com a petição inicial.

De igual modo, foi relativamente a esta realidade física que as rés exerceram o seu direito de defesa, como se afere dos artigos 15º, a 17º, 19º e 20º da contestação, assim como foi especificamente quanto a ela que a ré C deduziu o seu pedido reconvencional.

E também os posteriores requerimentos apresentados pelas partes, na sequência de convite ao aperfeiçoamento, não introduziram nenhuma alteração quanto ao objecto do direito de propriedade que pretendiam fazer valer, reportando-se concretamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ..., sem qualquer tipo de alusão à globalidade do prédio descrito sob o número ..., ou seja, sem que tenha estado em discussão nos autos quer o prédio rústico com a área de 35 000 m2, quer o urbano inscrito na matriz sob o artigo ... – cf. requerimentos das partes de 10 de Abril, 11 de Abril e 4 de Junho de 2018.

Têm, pois, razão, as recorrentes.

Se as autoras formularam um pedido de reconhecimento do direito de propriedade e restituição de um determinado prédio urbano e sendo esse o prédio cuja ocupação ilícita imputam às rés, não podia o tribunal recorrido declarar tal direito sobre coisa diversa e menos ainda condenar as rés, sendo esse o caso, na restituição de imóvel, ou parte de imóvel, relativamente ao qual não foi alegada qualquer ocupação sem título.

Ocorre, pois, a suscitada nulidade da decisão por condenação em objecto diverso do pedido ou para além do pedido."

[MTS]


19/12/2024

Bibliografia (1165)


-- Maffeo, Vania/Romano, Augusto/Troncone, Pasquale (Eds.), Intelligenza artificiale e processo / Un possibile ruolo nelle fasi iniziali e conclusive dell'accertamento (Giappichelli: Torino 2024)


Jurisprudência 2024 (73)


Juiz; pedido de escusa;
relação de vizinhança


1. O sumário de RL 9/4/2024 (1047/24.7YRLSB-8) (decisão individual) é o seguinte:

O circunstancialismo de ter sido distribuído um processo ao juiz, onde figura uma pessoa, que conhece e que verá regularmente (como os atuais habitantes do prédio onde reside), não poderá, por si só, ser motivo de escusa, já que, não materializa qualquer motivo grave, negando, aliás, o juiz, alguma perturbação na objetividade do respetivo julgamento e, nessa medida, na imparcialidade que é devida pelo julgador.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II. Conhecendo:

Pretende a requerente ser dispensada de intervir nos autos identificados, através do presente pedido de escusa.

Nos termos plasmados no n.º. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.

O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.

O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031)).

Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.

O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.

Efetivamente, não se discute se o juiz irá ou não manter a sua imparcialidade, mas, visa-se, antes, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.

A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.

O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.

Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.

Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.

III. No caso em apreço, a Sra. Juíza vem invocar, essencialmente, que foi vizinha do requerente e da requerida do processo, que coabitaram em andar situado no prédio onde habita a Sra. Juíza, casa onde, presentemente, reside o pai do requerente e a mulher deste, mas que, não teve, nem com os primeiros, nem com os segundos, outra relação que não a de cordialidade, resultante da apontada vizinhança (sendo que, quanto aos requerente/requerida e à criança, desde que deixaram de viver no prédio, não teve outro contacto).

Ora, é dever de um juiz, no exercício das suas funções, ser totalmente objetivo, cumprir a lei, com rigor, imparcialidade e retidão.

Porém, um juiz integra a comunidade onde trabalha e reside, é um cidadão como qualquer outro, pode conviver em sociedade, ter amigos, vizinhos, sem que tal possa de algum modo beliscar a sua capacidade de isenção e de administração da justiça.

O que revela [sic] é a atuação do mesmo no seu ato de julgar. 

Tudo tem de ser transparente, fundamentado e proferido com o maior distanciamento.

O circunstancialismo de lhe ter sido distribuído um processo, onde figura uma pessoa, que conhece e que verá regularmente (como os atuais habitantes do prédio onde reside), não poderá, por si só, ser motivo de escusa, já que, não materializa qualquer motivo grave, negando, aliás, a Sra. Juíza, alguma perturbação na objetividade do respetivo julgamento e, nessa medida, na imparcialidade que é devida pelo julgador.

Os juízes têm que ser intrinsecamente e extrinsecamente independentes e ter a capacidade de distanciamento suficiente para não se deixarem mover por qualquer outro interesse que não o da administração da justiça.

Aliás, a Sra. Juíza não invoca que se possa sentir parcial, mas, tão só, que receia que a sua imparcialidade não possa ser entendida exteriormente.

Mesmo perante a comunidade é importante que os cidadãos confiem nos Magistrados e na forma como desempenham as suas funções, ou seja, será uma ocasião propícia para que a Sra. Juíza revele a sua imparcialidade, criando o respeito e a confiança dos cidadãos, o que só prestigia a Justiça.

Ao julgador é exigível que adote um comportamento irrepreensível, independentemente de quem são os intervenientes processuais. É isso, aliás, o que transparece do cuidado que foi incutido na redação da pretensão que se ajuiza, formulada pela Sra. Juíza.

Os pedidos de escusa pressupõem situações excecionais em que pode questionar-se sobre a imparcialidade devida ao julgador, o que, em face do referido, entendemos não se patentear no caso."

[MTS]

18/12/2024

Jurisprudência 2024 (72)


Inversão do contencioso;
poder jurisdicional; esgotamento


1. O sumário de RP 7/3/2024 (13518/23.8T8PRT.P1) é o seguinte:

I - A decisão que decreta a inversão do contencioso é incindível da correspondente decisão que deferiu a providência cautelar.

II - Com a prolação da decisão que decreta a providência ocorre a extinção do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, pelo que a pronúncia sobre a inversão do contencioso não pode ocorrer em decisão subsequente à decisão de mérito, nomeadamente na decisão que julgue a oposição ao procedimento cautelar.

III - Após a prolação de tal decisão e não tendo sido arguida atempadamente a nulidade por omissão de pronúncia, ficou esgotado o poder jurisdicional do juiz.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Perante o antes exposto, resulta claro ser a seguinte a questão suscitada no presente recurso:

A nulidade da decisão por omissão de pronúncia no que toca ao pedido de inversão do contencioso formulado nos autos pelo requerente ora apelante.

Vejamos, pois da pertinência (ou não) de tal pretensão.

Segundo dispõe o art.º 615º, nº1 alínea d), do CPC, “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento”. (sublinhado nosso)

Decorre de tal norma que o vício que afecta a decisão pode advir de uma omissão (1ª parte da norma) ou de um excesso de pronúncia (2ª parte da norma).

É consabido que tal preceito deve ser articulado com o nº 2 no art.º 608º do CPC, onde se dispõe que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo não se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” (sublinhado nosso)

Nestes termos, impõe-se ao julgador um duplo ónus, o primeiro (o que está aqui em causa) que se traduz no dever de resolver todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação pelas partes (salvo aquelas cuja decisão vier a ficar prejudicada pela solução dada antes a outras), e o segundo (que aqui não está em causa) que se traduz no dever de não ir além do conhecimento dessas questões suscitadas pelas partes (a não ser que a lei lhe permita ou imponha o seu conhecimento oficioso).

É aceite por todos que o conceito de “questões”, a que se refere o legislador, deve somente ser aferido em função directa do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes. Pode ainda decorrer da matéria de excepção que formulada leve à improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial.

Ou seja, para este efeito estão apenas em causa as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as excepções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos, como já acima deixámos referido, os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica aduzidos pelas partes (neste sentido cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. Ed., Almedina, págs. 713/714 e 737 e Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª. Ed. Actualizada, Almedina, pág.136.).

Perante o acabado de expor, no caso resulta evidente o seguinte:

No artigo 369º, nº 1, do CPC está previsto que, mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, possa dispensar o requerente do ónus de propositura da acção principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.

A este propósito, resulta evidente que tal norma define de modo expresso e no que respeita ao momento em que deve ser decretada a inversão do contencioso, o seguinte: que tal decisão “tem de ocorrer em simultâneo com a decisão que julgue o procedimento cautelar, mesmo nos casos em que não haja contraditório prévio” (neste sentido cf. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág.433).

Estamos, pois, perante uma exigência legal de natureza imperativa e preclusiva, da qual depende a possibilidade de impugnação da decisão que tenha invertido o contencioso.

É aliás o que decorre do confronto entre o disposto no nº 1 do artigo 372.º do CPC e o disposto no nº 2 do mesmo dispositivo, dos quais resulta que, nos casos em que a providência tenha sido decretada sem audiência prévia do requerido, este deve cumular a impugnação da decisão que tenha invertido o contencioso com os meios de defesa previstos para a decisão proferida sobre a providência, no caso, o recurso ou a oposição, a deduzir na sequência da notificação prevista no nº 6 do artigo 366.º do CPC.

A este propósito referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa (ob. cit., notas 9 e 10 ao art.º 369, a pág.433), o seguinte: “Nos casos em que a providência (com inversão do contencioso) tenha sido decretada sem audiência prévia, o requerido, uma vez notificado (art.º 366º, nº6) para o exercício do contraditório quanto à providência, seja por via de recurso, seja por via de oposição (art.º 372º, nº1), deve cumular aí os argumentos contra a inversão do contencioso (art.º 372º, nº2).

(…) A decisão que indefira a inversão do contencioso é irrecorrível. A que defira é impugnável com o recurso que eventualmente venha a ser interposto da decisão sobre a providência, verificados os pressupostos gerais”.

Nestes termos, resulta pois claro que não se mostra legalmente admissível a prolação de decisão de inversão do contencioso após o trânsito em julgado da decisão que decretou a providência, já que o requerido ficaria impedido de a impugnar nesse momento nos termos e para os efeitos previstos no supra citado artigo 372.º do CPC.

Nos autos o que se verifica é o seguinte:

Na parte final da decisão que decretou a providência, proferida em 24.08.2023, foi, além do mais, ordenada a notificação da requerida para, querendo, recorrer ou deduzir oposição, nos termos do artigo 372º, nº 1, alíneas a) e b), do CPC.

É certo que, não tendo sido proferida qualquer decisão referente ao pedido de inversão do contencioso, a mesma requerida não foi também notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 369º, nº 2 do CPC.

Ora já vimos todos que a lei manda expressamente estender à decisão que tenha invertido o contencioso os meios de impugnação previstos para o decretamento da providência, pelo que, tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, a oposição prevista no artigo 369º, nº 2, do CPC não se destina ao contraditório do requerido sobre o pedido de inversão do contencioso, antes pressupondo que já tenha sido proferida uma decisão que aprecie o pedido de inversão do contencioso.

Ou seja e como se refere, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.04.2016, no processo 436/15.2T8EPS-A.G1, relatado pela Desembargador Francisca Mendes, em www.dgsi.pt: “Se tivesse sido decretada a inversão do contencioso, os requeridos poderiam ter impugnado tal decisão que poderia ser revogada ou mantida (art.º 372º, nº3 do CPC).

Após a prolação da sentença e não tendo sido arguida a nulidade por omissão de pronúncia, ficou esgotado o poder jurisdicional do juiz (art.º 613º, nº1 do CPC)”.

Face ao exposto, no caso dos autos, não podia o Tribunal “a quo” na decisão que julgou a oposição à providência e que foi proferida em 23.10.2023, pronunciar-se sobre o pedido de inversão do contencioso formulado pelo requerente.

Por isso, resulta evidente que a mesma decisão não padece do vício da omissão de pronúncia que agora foi invocado pelo requerente/apelante neste seu recurso ao qual deve pois ser negado provimento."

[MTS]

17/12/2024

Jurisprudência 2024 (71)


Recurso para uniformização de jurisprudência;
oposição de julgados; excepção de caso julgado*


1. O sumário de STJ 19/3/2024 (3158/11.0TJVNF-N.G1-A.S1-A) é o seguinte:

I- Para se aferir da admissibilidade do recurso de Uniformização de Jurisprudência é necessário que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada contradição assuma carácter determinante fundamental para a solução do caso, devendo integrar a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto.

II- Não existe contradição jurisprudencial quando apesar de acórdão recorrido e o acórdão fundamento decidirem questões relativas à exceção do caso julgado, no acórdão fundamento a exceção foi julgada procedente, com fundamento na identidade de pedidos entre a anterior e a posterior ação e no acórdão recorrido, foi julgada não verificada a exceção por se ter decidido que os factos considerados provados nos fundamentos da sentença proferida em primeiro lugar não podiam isoladamente considerar-se cobertos pela eficácia do caso julgado.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os Recorrentes/ reclamantes sustentam que a contradição jurisprudencial se verifica com a seguinte argumentação:

O acórdão fundamento decidiu a questão posta nos seguintes termos (processo n.º 1565/15.8VFR-A.S1):

“A função negativa (do caso julgado material) opera por via da “exceção dilatória do caso julgado” pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos de pedido e de causa de pedir.

Objetivamente, a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença; porém, estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente logico da parte dispositiva do julgado.”

A decisão recorrida (processo n.º 3158/11.0TJVNF-N.G1-A.S1, de 11-07-2023), por sua vez, determinou que:

“O caso julgado abrange toda a parte decisória do despacho/sentença, mas sendo a decisão a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado incide sobre tal silogismo no seu todo, isto é o caso julgado incide sobre a decisão como a conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão (…)” mas “os fundamentos de facto da sentença quando autonomizados da mesma não adquirem valor de caso julgado”

Assim “a pretendida factualidade, enquanto fundamentação de facto, autonomizada da sentença proferida no apenso E (…) não adquire, conforme o exposto o valor de caso julgado, pelo que não se mostra desenhada a existência de violação de caso julgado passível de constituir fundamento para a admissão do recurso”.

Considerando o atrás exposto sobre os requisitos da admissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência no sentido de que a questão fundamental de direito em que assenta a contradição deve assumir caracter determinante para a solução do caso, ou seja, deve integrar a verdadeira ratio decidiendi e no caso presente, não se verifica, essa contradição fundamental.

Na verdade, no acórdão fundamento consta, no sumário:

“A função negativa (do caso julgado material) opera por via da “exceção dilatória do caso julgado” pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos de pedido e de causa de pedir.

Objetivamente, a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença; porém, estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente logico da parte dispositiva do julgado.”

Nas considerações gerais, sobre o caso julgado como exceção ( função negativa) e autoridade ( função positiva) para além do mais, sobre os limites objetivos do caso julgado, consta o seguinte:

“Quanto ao âmbito objetivo do caso julgado (respetivos limites objetivos), no que respeita à determinação do quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal e que recebe o valor da indiscutibilidade do caso julgado, durante algum tempo foi dominante o entendimento de que a eficácia do caso julgado apenas abrangia a decisão contida na parte final da sentença, ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na pretensão reconvencional e limitada através da respetiva causa de pedir ("conceção restrita do caso julgado").

Atualmente, a posição jurisprudencial predominante reconhece, na esteira da doutrina defendida por Vaz Serra (cfr. R.L.J. ano 110º, p. 232) - embora sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objetivos da sentença / a toda a matéria apreciada, incluindo os fundamentos da decisão ("tese ampla") -, que, apesar da eficácia do caso julgado material incidir nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, a mesma alcança também a decisão daquelas questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado (isto é, os fundamentos e as questões incidentais ou de defesa que entronquem na decisão do pleito enquanto limites objetivos dessa decisão), em homenagem à economia processual e à estabilidade e certeza das relações jurídicas.”

No entanto, estas considerações traduzem argumentos laterais e suplementares, sendo irrelevantes para a solução do acórdão fundamento, que como resulta da transcrição supra se limitou a decidir a questão de saber se havia identidade de pedidos entre a anterior ação e a ação posterior.

Por outro lado, no acórdão recorrido o cerne da fundamentação consistiu em ter-se decidido que a sentença proferida na ação de verificação de créditos, não tinha força de caso julgado relativamente aos factos nela julgados provados e, por isso, não se verificava a exceção do caso julgado, no pressuposto que o acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo principal de insolvência não estava obrigado a atender à factualidade julgada provada na anterior decisão.

Assim, apesar de ambos os acórdãos se terem movido no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica (exceção/autoridade do caso julgado), no acórdão fundamento a questão foi decidida, com fundamento na identidade de pedidos entre a anterior e a posterior ação e no acórdão recorrido, por se ter decidido que os factos considerados provados nos fundamentos da sentença de verificação de créditos não podiam isoladamente considerar-se cobertos pela eficácia do caso julgado.

A questão fundamental de direito decidida nos acórdãos é, pois, distinta.

Os Reclamantes argumentam contra a decisão reclamada por nela constar a referência a “ factos automatizados”, sustentando não ter qualquer fundamento a distinção entre factos automatizados e não automatizados.

No entanto, como se referiu, a fundamentação determinante do acórdão recorrido em que se baseou o não conhecimento da revista por eles interposta, foi ter considerado que os factos julgados provados na sentença da ação de verificação de créditos não tinham eficácia de caso julgado.

Por outro lado, o conceito de “ factos automatizados” com referência à exceção do caso julgado, é utilizado na doutrina , nomeadamente por Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil (2ª edição), pág. 580, onde consta: “ os fundamentos de facto não adquirem quando automatizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado” e ainda Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, vol.II, pág. 636), que afirma: “ Os factos dados como provados como assentes na fundamentação da sentença não devem, contudo, ( uti singuli, isto é autonomizados da decisão de que são pressuposto), como abrangidos pelo caso julgado.”

Os Reclamantes sustentam ainda que no caso decidido pelo acórdão recorrido, não existem “factos automatizados” porque a primeira e a segunda decisões foram proferidas no mesmo processo (na ação de verificação de créditos e no processo principal de insolvência). Referem ainda que foram utilizados conceitos como “questões preliminares e instrumentais” e valor extraprocessual das provas, inexplicáveis e sem fundamento,

Defendem ainda que a segunda decisão ( acórdão da Relação de Guimarães) proferida no processo de insolvência, devia ter sido desconsiderada por violação do caso julgado formal, da sentença proferida na ação de verificação de créditos, do mesmo processo de insolvência.

No entanto, estes argumentos são irrelevantes, por se limitarem a manifestar o inconformismo dos Recorrentes/reclamantes com o acórdão recorrido.

Ora o objeto da presente reclamação cinge-se à questão de saber se há contradição jurisprudencial entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, que justifique a admissibilidade do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, não para se apreciar se no acórdão recorrido foi indevidamente decidido não se verificar a exceção do caso julgado.

Por último, importa referir, que do acórdão fundamento não resulta qualquer referência ainda que como mero argumento lateral ou obtier dictum que a eficácia do caso julgado abrangia a factualidade julgada provada na primeira ação, até porque não estava em causa haver identidade de causas de pedir entre a ação anterior e a posterior.

Continuamos, pois, a entender que o pressuposto da identidade da questão fundamental de direito, dirimida nos acórdãos recorrido e fundamento, se não verifica."

*3. [Comentário] Talvez se pudesse ter concluído que entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento não há verdadeira oposição:

-- No acórdão recorrido, entende-se (bem) que não há caso julgado sobre factos quando estes sejam autonomizados do silogismo judiciário que integram;

-- No acórdão-fundamento, entende-se (também bem) que o caso julgado se estende "à decisão das questões preliminares que constituam antecedente logico da parte dispositiva do julgado.”

Quer dizer: em ambos os acórdãos considera-se que os factos apurados na acção só são vinculativos fora do processo enquanto integrantes do silogismo judiciário no qual foram utilizados. Por exemplo: se um contrato é nulo por se terem apurado determinados factos, estes factos não podem ser questionados quando numa outra acção se alega, com autoridade de caso julgado, a nulidade desse negócio.

MTS


Bibliografia (1164)


-- Januszkiewicz, M., Vertrag und Delikt in der europäischen Zuständigkeitsordnung (Mohr: Tübingen 2025)

-- Kist, J. A., Die Rolle des Richters im Zivilprozess / Eine rechtsvergleichende Betrachtung ausgehend vom Zustand der Justiz (Mohr: Tübingen 2024)


16/12/2024

Jurisprudência 2024 (70)


Acórdão da Relação; omissão de pronúncia;
poderes do STJ*


1. O sumário de STJ 4/4/2024 (2151/22.1T8PRT-A.P1.S1) é o seguinte:

O disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 684.º do Código de Processo Civil exclui do regime do recurso de revista a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de questões (indevidamente) não apreciadas pela Relação, causando a sua nulidade por omissão de pronúncia.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3. Das conclusões das alegações da recorrente resulta que o objecto do recurso, interposto como revista excepcional, comporta as seguintes questões:

– Nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia;

– Critério a seguir para a determinação do montante pelo qual responde cada uma das fracções AE e R, abrangidas pela hipoteca, e sua aplicação.

O presente recurso de revista excepcional é interposto no âmbito de uns embargos de executado; a sua admissibilidade afere-se, assim, pelas regras gerais de admissibilidade da revista, como decorre do artigo 854.º do Código de Processo Civil.

Sendo interposto de um acórdão da Relação que conheceu do mérito da causa, encontra-se preenchida a previsão do n.º 1 do artigo 671.º do mesmo Código; mas tendo o acórdão recorrido confirmado a sentença, sem voto de vencido, coloca-se a questão de saber se ocorre a dupla conformidade de decisões das instâncias, simultaneamente um obstáculo à admissibilidade de revista por via “normal” (n.º 3 do artigo 671.º) e pressuposto de admissibilidade de revista excepcional (citado n.º 3 do artigo 671.º e artigo 672.º do Código de Processo Civil).

Transpondo para o presente recurso o critério de aferição da dupla conformidade aprovado pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/2022, de 20 de Setembro de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 545/23.2TBLSD.P1.S1-A, e conjugando-o com o n.º 4 do artigo 635.º do Código de Processo Civil, do qual resulta que as conclusões do recurso delimitam o seu objecto, verifica-se que o objecto do presente recurso coincide com a questão que a recorrente alega que o acórdão recorrido deixou indevidamente de conhecer, o que obriga, desde logo, a interpretá-lo e a verificar se esse não conhecimento provoca a sua nulidade ou se, tal como o segundo acórdão do Tribunal da Relação do Porto entendeu, respeita apenas à não apreciação de um argumento relativo à questão da divisibilidade/indivisibilidade da hipoteca. Ou se, ainda que se trate de questão a conhecer, se pode considerar-se incluída na confirmação da decisão recorrida com que o acórdão recorrido da Relação termina; e, sendo afirmativa a resposta, se essa confirmação se deve estender à fundamentação adoptada na sentença, uma vez que o Código de Processo Civil de 2013 veio considerar só ocorrer dupla conforme se a fundamentação seguida pela Relação não for essencialmente diferente da que a sentença apresentou.

Ora, da respectiva interpretação, tendo como elemento essencial a delimitação do objecto da apelação interposta pela embargada, resulta que o acórdão recorrido considerou não o integrar a questão que constitui o objecto da presente revista – como, aliás, o segundo acórdão da Relação confirma.

Diverge-se do acórdão recorrido quanto ao entendimento de que a não apreciação das conclusões 19.º e 20.º das alegações corresponda apenas à não apreciação de argumentos, sem consequência no plano da validade do acórdão recorrido; a divergência manifestada pela então apelante quanto ao critério de determinação do montante pelo qual respondem as fracções em causa nesta execução não pode ser considerada um argumento relativo à questão da divisibilidade/indivisibilidade da hipoteca a que os autos respeitam. E considera-se, ainda, que essa não apreciação provoca efectivamente a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia – e não, apenas, por falta de fundamentação; note-se, aliás, que, se assim fosse, sempre seria impossível concluir pela inexistência de fundamentação essencialmente diferente e, portanto, pela verificação da dupla conforme, uma vez que o acórdão recorrido nada diz sobre a razão pela qual estaria a confirmar o critério de determinação do montante pelo qual responderiam as fracções em causa nestes autos, uma vez assente a divisibilidade da hipoteca (cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Setembro de 2023, www.dgsi.pt, proc. n.º 1119/11.8TBALQ.L1.S1, quando entende que “não ocorre ‘dupla conforme’ se a Relação, limitando-se no seu dispositivo a confirmar a sentença da 1.ª instância, omite a análise da questão subjacente” ou de 21 de Janeiro de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 268/12.0TBMGD-A.G1.S1, que decidiu no sentido de, por falta de termo de comparação, não se poder dizer se há ou não fundamentação essencialmente diferente entre as decisões das instâncias quando a Relação, julgando nula a sentença, se substituiu ao tribunal recorrido e conheceu do objecto da apelação, nos termos do disposto o artigo 665.º do Código de Processo Civil).

Tendo em conta o objecto da revista e o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 684.º do Código de Processo Civil, que exclui do regime do recurso de revista a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de questões (indevidamente) não apreciadas pela Relação, causando a sua nulidade por omissão de pronúncia – o mesmo sucedendo, aliás, quando se trata de nulidade por falta de fundamentação –, cumpre concluir pela anulação do acórdão recorrido e determinar o envio do processo ao Tribunal da Relação do Porto para que aprecie a questão que lhe foi colocada nas conclusões 19.ª e 20.ª das alegações da apelação interposta pela embargada.

Só após essa apreciação será possível saber se ocorre ou não dupla conforme entre as decisões das instâncias e, portanto, se é ou não caso de remeter o processo à Formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.

Também só nessa altura se poderá apreciar o pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, formulado pela recorrente.

4. Nestes termos, anula-se o acórdão recorrido e determina-se o envio do processo ao Tribunal da Relação do Porto para que para que aprecie a questão que lhe foi colocada nas conclusões 19.ª e 20.ª das alegações da apelação interposta pela embargada."


*3. [Comentário] Não há nada a assinalar à decisão do STJ, mas talvez se possa referir que o sumário do acórdão é um pouco dúbio, dado que parece dar a entender que o STJ não pode conhecer de uma omissão de pronúncia ocorrida num acórdão da Relação.

MTS

13/12/2024

Bibliografia (1162)


-- Mauch, Anna-Kathrin, Reformbedarf beim Prozessvergleich / Regelungsdefizite de lege lata und Entwicklungsperspektiven de lege ferenda (Gieseking: Bielefeld 2024)

-- Löhnig, Martin (Ed.), Varieties of Social Civil Procedure / The Reform of Civil Procedure Law in Central Europe in the Interwar Period (Duncker & Humblot: Berlin 2024)


Jurisprudência 2024 (69)


Procedimento de injunção;
título executivo; oposição


1. O sumário de RE 7/3/2024 (1610/23.3T8ENT-A.E1) ) é o seguinte:

I – A fundamentação de facto do despacho de indeferimento liminar deve ter-se por realizada com a menção das razões que justificam o indeferimento.

II – Após as alterações da Lei n.º 117/2019, de 13/9 ao artigo 857.º, n.º 1, do CPC e ao regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1/9, com aplicação aos procedimentos de injunção iniciados após 1/1/2020, a impugnação dos factos constitutivos da causa de pedir do requerimento de injunção, ao qual não foi deduzida oposição e se verifica a regular notificação do requerido / executado, não constitui fundamento de oposição à execução baseada em requerimento de injunção dotado de fórmula executória.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2.2. Se o título dado à execução – requerimento de injunção dotado de fórmula executória – permite à executada impugnar, nos embargos à execução, a existência da dívida cujo pagamento lhe é coercivamente exigido

O regime da oposição à execução baseada em requerimento de injunção tem assento no 857.º do CPC, cujo n.º 1, na versão originária aprovada pela Lei n.º 41/2013, de 26/6, previa:

Se a execução se fundar em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, apenas podem ser alegados os fundamentos de embargos previstos no artigo 729.º, com as devidas adaptações, sem prejuízo do disposto nos números seguintes”.

Esta norma foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 264/2015 [---], “quando interpretada «no sentido de limitar os fundamentos de oposição à execução instaurada com base em requerimentos de injunção à qual foi aposta a fórmula executória», por violação do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”.

Por efeito desta declaração, a doutrina [Rui Pinto, CPC anotado, vol. II, pág. 746 (cit. por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, CPC anotado, 2ª ed. Vol. II, pág. 295).] e a jurisprudência [V.g. Acórdão da Relação de Lisboa de 1/6/2017 (proc. 17633/13.8YYLSB-A.L2-2), em www.dgsi.pt], passou a considerar que, para além dos fundamentos de embargos previstos no artigo 729.º do CPC, a oposição à execução baseada em requerimento de injunção poderia fundar-se em quaisquer outros meios de defesa que o executado pudesse invocar no processo de declaração, de acordo com o artigo 731.º do CPC.

Este paradigma foi alterado por intervenção legislativa.

A Lei n.º 117/2019, de 13/9, procedeu à oitava alteração do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26/6, designadamente, em matéria de processo executivo e alterou também o Decreto-Lei n.º 269/98, de 1/9, relativo ao regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior (actualmente) a € 15.000,00.

No regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98 foi designadamente alterado o conteúdo da notificação, passando a alínea b) do artigo 13.º a prever que a notificação deve conter a indicação do prazo para a oposição e a respetiva forma de contagem, bem como da preclusão resultante da falta de tempestiva dedução de oposição, nos termos previstos no artigo 14.º-A e aditado o artigo 14.º-A, com a epígrafe efeito cominatório da falta de dedução da oposição, no qual se prevê:

1 - Se o requerido, pessoalmente notificado por alguma das formas previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 225.º do Código de Processo Civil e devidamente advertido do efeito cominatório estabelecido no presente artigo, não deduzir oposição, ficam precludidos os meios de defesa que nela poderiam ter sido invocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - A preclusão prevista no número anterior não abrange:
a) A alegação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso;
b) A alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no artigo 729.º do Código de Processo Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção;
c) A invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas;
d) Qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente”.

No Código de Processo Civil foi alterado, designadamente, o n.º 1 do artigo 857.º, o qual passou a vigorar com a seguinte redacção:

1 - Se a execução se fundar em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, para além dos fundamentos previstos no artigo 729.º, aplicados com as devidas adaptações, podem invocar-se nos embargos os meios de defesa que não devam considerar-se precludidos, nos termos do artigo 14.º-A do regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na sua redação atual”.

Os nºs 2 e 3 do artigo 857.º do CPC, inalterados, dispõem respetivamente:

2 - Verificando-se justo impedimento à dedução de oposição ao requerimento de injunção, tempestivamente declarado perante a secretaria de injunção, nos termos previstos no artigo 140.º, podem ainda ser alegados os fundamentos previstos no artigo 731.º; nesse caso, o juiz receberá os embargos, se julgar verificado o impedimento e tempestiva a sua declaração.
3 - Independentemente de justo impedimento, o executado é ainda admitido a deduzir oposição à execução com fundamento:
a) Em questão de conhecimento oficioso que determine a improcedência, total ou parcial, do requerimento de injunção;
b) Na ocorrência, de forma evidente, no procedimento de injunção de exceções dilatórias de conhecimento oficioso”.

Superada a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 857.º do CPC, com as alterações legislativas efectuadas pela Lei n.º 117/19 no Código de Processo Civil e no DL n.º 269/98 [---], os fundamentos de oposição à execução baseada em requerimento de injunção ao qual foi aposta fórmula executória, aplicáveis a procedimentos de injunção iniciados após 1/1/2020 (artigos 11.º e 15.º da Lei n.º 117/19, de 13/9) podem enumerar-se assim:

i) os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença (artigo 729.º do CPC), aplicados com as devidas adaptações, como já sucedia na redação originária;

ii) o uso indevido do procedimento de injunção [artigo 14.º-A, n.º 2, alínea a), do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98];

iii) a ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso [artigo 14.º-A, n.º 2, alínea a), do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98];

iv) a existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas [artigo 14.º-A, n.º 2, alínea c), do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98];

v) qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente [artigo 14.º-A, n.º 2, alínea d), do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98];

vi) quaisquer outros fundamentos que possam ser invocados como defesa no processo de declaração, em caso de justo impedimento à dedução de oposição ao requerimento de injunção, tempestivamente declarado perante a secretaria de injunção, nos termos previstos no artigo 140.º (n.º 2 do artigo 857.º do CPC).

Os fundamentos previstos no n.º 3 do artigo 857.º do CPC estão em concurso aparente com os fundamentos de oposição invocáveis ao abrigo das alíneas a), segunda parte, e d) do n.º 2 do supra indicado artigo 14.º-A, constituindo repetição deles [Neste sentido, Lurdes Varregoso Mesquita, Algumas notas à Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro – alterações aos embargos de executado e outras conexas, Julgar Online, Abril de 2020.]

À luz destes considerandos, vejamos o caso dos autos.

O requerimento de injunção ao qual foi aposto fórmula executória deu entrada no Balcão Nacional de Injunções em 10/03/2023 e, assim, iniciado o procedimento após 1/1/2020 tem aplicação a norma do artigo 857.º do CPC, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 117/19, de 13/9 como, aliás, se afirma no recurso [ccls 19ª a 21ª].

Resta verificar se os fundamentos de oposição expressos na petição de embargos se ajustam a algum dos fundamentos enunciados.

Adiantando, a resposta é negativa, se bem vemos.

A Executada defendeu-se nos embargos impugnando a existência da dívida causal do pedido formulado no requerimento de injunção; a Requerente no procedimento de injunção – exequente e ora recorrida – havia alegado a falta de pagamento de uma factura emitida em 4/9/2016, ao abrigo de um acordo de parceria comercial celebrado com a Executada em 1/1/2019 e esta argumenta que a sua constituição teve lugar em 10/1/2019 daqui retirando que não celebrou, não podia ter celebrado, o alegado acordo em data anterior à sua constituição e que o pagamento da factura, emitida ao abrigo dum acordo que não celebrou e em data anterior à sua constituição, não lhe é exigível.

Defesa dirigida, toda ela como decorre do enunciado, a destruir a causa da dívida, por via da impugnação dos factos que a constituem, tal como alegados pela Exequente enquanto requerente no processo de injunção e, assim, reportada ao processo de formação do título e não à inexistência do título ou à inexigibilidade da obrigação exequenda, como se alega e adjetiva na petição de embargos.

Entre parêntesis cabe reafirmar que o requerimento executivo se mostra instruído com um requerimento de injunção dotado de fórmula executória, o que revela bem que o título existe, aliás, a defesa configurada nos embargos – impugnação dos factos constitutivos do requerimento de injunção – tem como pressuposto a existência do título, se este não existisse desnecessária seria a impugnação dos factos que originaram a sua formação e cumpre caraterizar a obrigação exequenda como exigível, qualificação que resulta de não se configurar quanto a ela qualquer causa de inexigibilidade, nem a Executada o alega, isto é, não se trata de obrigação com prazo certo que ainda não decorreu [artigo 799.º do Código Civil (CC)], de obrigação de prazo incerto a fixar pelo tribunal (artigo 772.º, n.º 2, do CC), de obrigação sujeita a condição suspensiva que ainda não se verificou (artigos 270.º do CC e 715.º, n.º 1, do CPC) ou de obrigação sinalagmática a que falta a contraprestação do credor (artigo 428.º do CC) [Lebre de Freitas, A Ação Executiva, 7ª ed., pág. 101.], de tudo resultando a demonstração, a nosso ver e ao invés do sustentado pela Executada, que a execução está provida de título e a obrigação exequenda é exigível.

Prosseguindo, a impugnação dos factos constitutivos da causa de pedir do requerimento de injunção, por excluída dos fundamentos de oposição à execução, constitui matéria de defesa precludida com a falta de oposição do requerido na injunção, desde que regularmente notificado no procedimento, como prevêem e exigem os artigos 13.º e 14.º-A do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98.

A tese da Executada segundo a qual na oposição à execução baseada em requerimento de injunção é admissível invocar, para além dos fundamentos de oposição previstos para a execução baseada em sentença, quaisquer outros que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração [ccls 12ª a 18ª], repristina um regime transposto pelas alterações introduzidas a pela Lei n.º 117/2019, de 13/9 ao artigo 857.º, n.º 1, do CPC e ao regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1/9, sem aplicação aos procedimentos de injunção iniciados após 1/1/2020, como no caso se verifica.

A impugnação dos factos constitutivos da causa de pedir do requerimento de injunção não se ajusta aos fundamentos de oposição à execução baseada em requerimento de injunção dotado de fórmula executória e sendo esta a natureza da defesa configurada pela executada os embargos não merecem ser admitidos (artigo 732.º, n.º 1, alínea b), ex vi do disposto no artigo 551.º, n.º 3, do CPC)."

[MTS]