"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/08/2025

Bibliografia (1220)


-- Revolidis, I. / Ciantar, M. / Ellul, J., Blockchain for Democratic Justice: Innovating the Service of Judicial Documents to Uphold the Rule of Law, Ledger 10 (2025), 77


04/08/2025

Bibliografia (1219)


-- Woo, M. Y. K. / van Rhee, C. H. (Eds.), Comparative Civil Procedure (Edward Elgar: Cheltenham / Northampton 2025)

31/07/2025

Informação (317)


Interrupção estival


À semelhança do que sucedeu em anos anteriores, o Blog interrompe as publicações regulares durante o mês de Agosto.

Espera-se retomar a normalidade no início do mês de Setembro.

MTS


Bibliografia (1218)


-- Barone, S., La tutela giurisdizionale delle chances illegittimamente perdute (Sapienza Università Editrice: Roma 2023)


30/07/2025

Jurisprudência europeia (TJ) (326)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.º 1215/2012 — Artigo 66.º — Âmbito de aplicação ratione temporis — Ação judicial intentada por um demandante — Emissão de uma injunção de pagamento — Oposição de um requerido a essa injunção que visa a reapreciação do processo em causa — Regulamento (CE) n.º 44/2001 — Artigo 5.º, ponto 3 — Competência em matéria extracontratual — Artigo 6.º, ponto 1 — Pluralidade de requeridos — Artigo 22.º, ponto 1 — Competência exclusiva em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis — Ação que visa o pagamento de uma indemnização pela ocupação sem título contratual de um imóvel situado num Estado‑Membro — Requerido com domicílio noutro Estado‑Membro


TJ 10/7/2025 (C‑99/24 [Chmieka]) decidiu o seguinte:

1) O artigo 66.º, n.º 1 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

para efeitos da determinação da aplicabilidade ratione temporis deste regulamento, se deve considerar que uma ação judicial foi intentada, na aceção desta disposição, na data em que o demandante intentou a sua ação, num processo que foi objeto de uma decisão numa data posterior, e não na data em que o demandado, numa data posterior, deduziu oposição dessa decisão pedindo a reapreciação desse processo.

2) O artigo 5.º, ponto 3, o artigo 6.º, ponto 1, e o artigo 22.º, ponto 1, primeiro parágrafo, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

devem ser interpretados no sentido de que:

– uma ação judicial que visa obter o pagamento de uma indemnização em razão da ocupação sem título contratual de um imóvel após a rescisão de um contrato de arrendamento relativo a esse imóvel, situado num Estado‑Membro diferente do domicílio do demandado em causa, não constitui uma ação «[e]m matéria de direitos reais sobre imóveis» e não está abrangida pelo conceito de «arrendamento de imóveis», na aceção deste artigo 22.º, ponto 1, primeiro parágrafo;
 
– um pedido de indemnização pela ocupação sem título contratual de um imóvel deve ser considerado abrangido pela «matéria extracontratual», na aceção deste artigo 5.º, ponto 3, e

– este artigo 6.º, ponto 1, só é aplicável se, à data da propositura de uma ação pela qual um demandante demandou vários requeridos perante um tribunal de um Estado‑Membro, existir a mesma situação de facto e de direito que torne necessário que todos os pedidos apresentados contra esses requeridos sejam instruídos e julgados simultaneamente para evitar decisões que poderiam ser inconciliáveis se esses pedidos fossem julgados separadamente em diferentes Estados‑Membros.
 

Jurisprudência europeia (TJ) (325)


Procedimiento prejudicial — Artículo 99 del Reglamento de Procedimiento del Tribunal de Justicia — Respuesta que puede deducirse claramente de la jurisprudencia — Cooperación judicial en materia civil — Competencia judicial, reconocimiento y ejecución de resoluciones judiciales en materia civil y mercantil — Reglamento (UE) n.º 1215/2012 — Competencias especiales — Artículo 7, punto 5 — Conceptos de “sucursal”, de “agencia” o de “cualquier otro establecimiento” — Acción de nulidad de contratos de aprovechamiento por turno de bienes inmuebles


TJ 12/6/2025 (15/24, Diamond Resorts Europe Ltd / M. D. et al.) decidiu o seguinte (versão portuguesa não disponível):

El artículo 7, punto 5, del Reglamento (UE) n.º 1215/2012 del Parlamento Europeo y del Consejo, de 12 de diciembre de 2012, relativo a la competencia judicial, el reconocimiento y la ejecución de resoluciones judiciales en materia civil y mercantil,

debe interpretarse en el sentido de que

un litigio que versa sobre una acción de nulidad de contratos de aprovechamiento por turno de bienes inmuebles y de restitución de cantidades indebidamente abonadas en virtud de dichos contratos no puede considerarse un «litigio relativo a la explotación de sucursales, agencias o cualquier otro establecimiento», en el sentido de esa disposición, cuando el consumidor afectado no ha suscrito ninguno de esos contratos con la sucursal de la sociedad cocontratante frente a la que se ejercita la acción, que se encuentra dentro del ámbito territorial del órgano jurisdiccional que conoce del litigio, y ningún otro elemento permite demostrar la implicación de dicha sucursal en las relaciones jurídicas existentes entre ese consumidor y la referida sociedad.

 

Jurisprudência europeia (TJ) (324)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.º 1215/2012 — Competência em matéria de seguros — Artigo 11.º, n.º 1, alínea b) — Artigo 13.º, n.º 2 — Ação intentada pelo lesado diretamente contra o segurador — Conceito de “lesado” — Funcionário vítima de um acidente de viação — Manutenção da remuneração durante o período de incapacidade para o trabalho — Estado‑Membro que atua como entidade patronal sub‑rogada nos direitos de indemnização desse funcionário — Competência do tribunal do lugar em que o requerente tem o seu domicílio — Lugar da sede da entidade administrativa que emprega o referido funcionário


TJ 30/4/2025 (C‑536/23Bundesrepublik Deutschland/Mutua Madrileña Automovilista) decidiu o seguinte:

O artigo 13.o, n.o 2, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, lido em conjugação com o artigo 11.o, n.o 1, alínea b), deste regulamento,

deve ser interpretado no sentido de que:

um Estado‑Membro que atua como entidade patronal sub‑rogada nos direitos de um funcionário que ficou ferido num acidente de viação, cuja remuneração manteve durante o período de incapacidade para o trabalho, pode, na qualidade de «lesado» na aceção deste artigo 13.o, n.o 2, demandar a companhia que cobre a responsabilidade civil resultante da circulação do veículo envolvido nesse acidente não no tribunal do lugar em que esse funcionário tem o seu domicílio, mas no tribunal do lugar da sede da entidade administrativa que emprega o referido funcionário, desde que uma ação direta seja possível.


Jurisprudência 2024 (220)


Procedimento cautelar comum;
comodatário


1. O sumário de RP 25/11/2024 (14750/24.2T8PRT.P1) é o seguinte:

I - Quer o arrendatário quer o comodatário dispõem de pleno acesso à tutela possessória, mesmo de natureza cautelar, que é oponível erga omnes, incluindo perante o senhorio e o comodante.

II - As normas aditadas ao NRAU relativas à proibição de assédio no arrendamento, tendo por propósito ampliar os meios de defesa concedidos ao inquilino, não obstam ao recurso à referida tutela possessória.

III - O arrendatário e o comodatário podem recorrer ao procedimento cautelar comum, caso não estejam verificados os requisitos da restituição provisória da posse, para pôr cobro à ameaça de lesão grave e dificilmente reparável no exercício do seu direito de uso do imóvel.

IV - O fornecimento de energia e de água constituem factores relevantes no gozo de um imóvel cuja ameaça de lesão é susceptível de legitimar o acesso ao referido procedimento cautelar.

V - Não podendo manter-se a decisão que julgou improcedente o pedido cautelar logo após os articulados e existindo factos controvertidos com relevância para o efeito, devem os autos prosseguir em primeira instância para a realização da audiência de tentativa de conciliação e de produção de prova.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] segundo o art. 1037.º [n.º 1] do Código Civil, não obstante convenção em contrário, o locador não pode praticar actos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário, com excepção dos que a lei ou os usos facultem ou o próprio locatário consinta em cada caso, mas não tem obrigação de assegurar esse gozo contra actos de terceiro.

2. O locatário que for privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos pode usar, mesmo contra o locador, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276.º e seguintes.

Por sua vez, o art. 1133.º [n.º 1] do mesmo diploma determina que o comodante deve abster-se de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, mas não é obrigado a assegurar-lhe esse uso.

2. Se este for privado dos seus direitos ou perturbado no exercício deles, pode usar, mesmo contra o comodante, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276.º e seguintes.

O que, aliás, traduz um dos aspectos que justificam para a doutrina dominante a ideia de que, embora o nosso Código Civil tenha adoptado, como princípio geral, a concepção subjectiva da posse, consagrou várias soluções particulares que, em parte, coincidem com a concepção objectiva.

“Não se pense, como referem os autores, que há uma grande diferença prática entre o nosso sistema e os que consagram a concepção objectiva porque o legislador português ampliou a protecção possessória a várias situações de detenção como a do locatário, do parceiro pensador, do comodatário e do depositário” (cfr. A. Santos Justo, Direitos Reais, 8.ª ed., pp. 171, citando igualmente Henrique Mesquita, in Obrigações Reais e Ónus Reais, p. 63; no mesmo sentido, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª ed., p. 6, para quem “a outorga da tutela possessória a várias situações de mera detenção mostra que, no plano das soluções práticas, a diferença entre o sistema jurídico português e os que consagram a concepção objectiva de posse se encontra bastante esbatida”).

Merecendo realce, a este nível, a circunstância de a referida tutela possessória ser reconhecida ao locatário mesmo contra o locador e também ao comodatário mesmo contra o comodante.

Para significar, pois, claramente, que enquanto perdurar a relação de arrendamento ou de comodato, o inquilino e o comodatário têm o direito de exigir a preservação da integralidade dessa relação e do direito exclusivo de se servir do bem erga omnes, incluindo perante senhorio e comodante.

Quanto a estes, aliás, tal direito concedido ao inquilino e ao comodatário é ainda reforçado mercê da imposição do dever de cumprimento pontual dos contratos (art. 406.º/1 do Código Civil), por um lado e, por outro, em face da proibição específica da prática de actos por parte do locador e do comodante que impeçam ou perturbem o uso da coisa (arts. 1037.º/1 e 1133.º/1 do CC).

Ora, a propósito da defesa da posse e, nos casos especialmente previstos, também da mera detenção, o Código Civil coloca à disposição do respectivo titular vários meios de reacção face a condutas lesivas.

Entre eles, em primeiro lugar, a designada acção de prevenção, no art. 1276.º, segundo o qual, se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar.

Da mesma forma, através da chamada acção de manutenção, prevista no art. 1278.º/1 do CC, estabelecendo que no caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito.

Prescrevendo ainda o art. 1279.º do CC que sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.

Todavia, mesmo no caso de não existir violência e esbulho, o titular da posse ou da detenção protegida mantém o direito à tutela possessória de natureza cautelar ou provisória visto que, nos termos do art. 379.º do Código de Processo Civil, ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 377.º, é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum.

Devendo igualmente destacar-se que esta norma legal, sendo destinada a completar o elenco dos meios de defesa da posse previstos no Código Civil, é também aplicável, coerentemente com o demais regime possessório, aos casos em que ao mero detentor seja reconhecida por lei a referida tutela.

Neste sentido, refere a doutrina que “apesar de se encontrar inscrita num diploma de natureza adjectiva, estamos face a uma norma de direito substantivo que vem ampliar a tutela possessória prevista no CC”.

De modo que, “tal como sucede com a restituição provisória da posse, também o acesso à tutela cautelar comum, em situações de esbulho ou de turbação, aproveita aos direitos pessoais de gozo anteriormente mencionados, tais como o arrendamento, o contrato-promessa com tradição da coisa, o comodato, o depósito ou a locação financeira” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 2.ª ed., p. 66).

Sendo certo ainda que “a turbação envolve naturalmente a ideia de simples embaraço ou inquietação ao exercício da posse, sem que, em todo o caso, o possuidor seja privado da retenção ou fruição da coisa ou do direito” (cfr. Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 2.ª ed., p. 321).

No mesmo sentido, depõe igualmente a circunstância de se considerar que o art. 1276.º do Código Civil, para o qual remete expressamente o regime de tutela previsto nos arts. 1037.º e 1133.º do mesmo diploma para a locação e para o comodato, traduz uma medida “praticamente incluída no âmbito das providências cautelares não especificadas, a que se refere o artigo 399.º do Código de Processo Civil”, reportada “à possibilidade genérica de se requerer, com base no fundado receio de que outrem cause lesão e dificilmente reparável num direito, que o réu seja intimado para que se abstenha de certa conduta” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. cit., Vol. III, p. 47).

Não é legítimo recusar, pois, nem ao locatário nem ao comodatário, o direito de recorrer às acções defensivas da posse, sem exclusão da tutela cautelar comum, perante actos de turbação ou de ameaça de lesão, embora grave e dificilmente reparável, do seu direito.

Tanto mais que, como defende a doutrina relativamente ao locatário, em lição que, todavia, é também plenamente aplicável ao comodatário, “a lei consente-lhe o recurso às acções possessórias precisamente para que ele logre defender de modo expedito, contra actos de esbulho ou de turbação, a relação de facto em que se encontra com a coisa” (cfr. Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, p. 149).

E muito menos é legítimo recusar nos referidos casos o acesso à tutela possessória com base nas normas que, aditadas pelo legislador em 2019 ao NRAU, para além se reportarem exclusivamente ao arrendamento, tiveram subjacente o propósito de alargar a protecção legal concedida ao inquilino perante comportamentos ilegítimos do senhorio.

Assim, sob a epígrafe “proibição de assédio”, dispõe o art. 13.º-A do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº6/2006 de 27-2, mercê do aditamento promovido pela Lei nº12/2019, de 12-2, que é proibido o assédio no arrendamento ou no subarrendamento, entendendo-se como tal qualquer comportamento ilegítimo do senhorio, de quem o represente ou de terceiro interessado na aquisição ou na comercialização do locado, que, com o objetivo de provocar a desocupação do mesmo, perturbe, constranja ou afete a dignidade do arrendatário, subarrendatário ou das pessoas que com estes residam legitimamente no locado, os sujeite a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do locado.

Como é bom de ver, semelhante protecção concedida ao arrendatário, no sentido de reforçar a posição do contraente mais débil na relação locativa, teve o óbvio intuito de colocar à disposição daquele, novos meios de defesa perante actos ilícitos do senhorio, sem afectar minimamente as formas de tutela que a lei já anteriormente facultava para o mesmo efeito.

Apenas neste sentido, como é claro, deve ser interpretado o segmento inicial do art. 13.º-B/1 do NRAU quando, a propósito da consagração da intimação para tomar as providências nele previstas e do recurso à injunção contra o senhorio para o mesmo fim (regulamentada depois pelo DL n.º 34/2021, de 14-5), ressalva “sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou contraordenacional decorrente dos atos e omissões em que se consubstancie o comportamento previsto no artigo anterior”.

Vale por dizer, assim, que os novos mecanismos de defesa do inquilino foram consagrados sem lhe retirar o acesso às formas de tutela do seu direito que a legislação já oferecia no plano civil, criminal ou contraordenacional, aí se incluindo, naturalmente, a tutela possessória.

Não existindo qualquer evidência ou sequer indício, ademais, que a Lei nº12/2019, de 12-2, ao consagrar a proibição do assédio no arrendamento, tenha passado a recusar ao inquilino o recurso às acções possessórias ou tenha revogado a norma do art. 1037.º/2 do Código Civil.

Na verdade, o art. 13.º-A do NRAU, que aquele diploma legal veio criar, limitou-se a tornar expressamente proibido qualquer comportamento ilegítimo do senhorio que, com o objetivo de provocar a desocupação do imóvel, perturbe, constranja ou afete a dignidade do arrendatário, mas não obrigou os lesados a recorrer aos mecanismos de defesa previstos no art. 13.º-B.

Sinal claro, pois, no sentido de que compete ao inquilino, respeitados que sejam os respectivos requisitos legais, a faculdade de optar entre os diversos meios de tutela, indistintamente de serem os tradicionais ou os mais recentes, que considerarem mais idóneos para a defesa do seu direito.

Importa concluir, por isso, sem hesitações, que ao arrendatário, tal como ao comodatário, naturalmente, face ao disposto nos arts. 1037.º/2 e 1133.º/2 do CC, é legítimo o recurso ao procedimento cautelar comum, caso não estejam verificados os requisitos da restituição provisória da posse, para pôr cobro à ameaça de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito."

Entendimento que, de resto, vem sendo reiteradamente preconizado pela jurisprudência dos tribunais superiores, mesmo depois de 2019.

Assim, segundo o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24/11/2022 (relatado por Joaquim Boavida no processo 2744/22.7T8VNF-A.G1 e disponível na base de dados da Dgsi em linha), “no âmbito de procedimento cautelar de restituição provisória de posse instaurado em 02.05.2022, a existência de um contrato de arrendamento para comércio ou indústria, anterior a um contrato de trespasse de 10.05.1996, pode ser provada por qualquer forma admitida em direito”.

Tal como, na perspectiva recente deste Tribunal da Relação do Porto, “é admissível, em procedimento cautelar comum, a providência de manutenção da posse de imóvel arrendado até à definitiva decisão da questão do direito legal de preferência do arrendatário, a apreciar na ação principal” (cfr. Acórdão de 4/3/2024, da autoria de Eugénia Cunha, no processo 5214/22.0T8MTS-B.P1 e acessível na mesma base de dados).

Ao passo que no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/1/2023, ainda em tema de contrato de arrendamento, se sentenciou que “na falta de violência, a tutela do possuidor pode ser igualmente obtida, mas já no âmbito de um procedimento cautelar comum, desde que verificados os seus pressupostos” (cfr. Acórdão de 26/1/2023, tirado no processo 4683/22.2T8OER e relatado por Inês Moura, pesquisável no mesmo sítio).

O que, aliás, vem esse tribunal manifestando desde longa data, de acordo com a ideia de que “o arrendatário não sendo embora titular de um direito real, pode usar dos meios possessórios previstos na lei, designadamente da providência cautelar de restituição provisória de posse”.

Acrescentando que “a providência de restituição provisória de posse tem a sua justificação na violência cometida pelo esbulhador, visando-se com ela a rápida reposição da situação anterior” e que, “atento este particular aspecto no universo dos procedimentos cautelares, o requerente da providência de restituição provisória de posse não carece de alegar factos demonstrativos da lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, nem do periculum in mora” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/3/2008, referente ao processo 9/2008-8, assinado por Ferreira Lopes e disponível em texto integral na mencionada base de dados).

Da mesma forma, tem sido repetido o entendimento jurisprudencial que erige o fornecimento de energia e de água ao patamar dos factores relevantes de gozo de um imóvel cuja ameaça de lesão é susceptível de legitimar o acesso do arrendatário (e do comodatário) aos meios cautelares.

Como se defendeu no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 22/3/2022 (tirado no processo 1743/21.0T8PVZ.P1-A, relatado por Rui Moreira e acessível também em www.dgsi.pt), “o procedimento cautelar em que se pretenda que o requerido continue a assegurar o fornecimento de energia a um imóvel por si alegadamente arrendado pressupõe um juízo de probabilidade sobre a existência de um direito contratual ao respectivo gozo, como pressuposto do próprio direito ao fornecimento de energia”.

Expressando-se igualmente na jurisprudência a ideia de que “constitui dano grave e dificilmente reparável para efeitos do art. 362.º, n.º 1, do CPC, o corte do fornecimento de energia eléctrica, sem aviso prévio, pela empresa fornecedora a uma fracção onde está instalado um escritório de advocacia, demonstrando-se que por causa disso a requerente da acção cautelar, advogada, ficou com dificuldades em trabalhar no seu domicílio profissional” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/12/2023, processo 2037/23.2T8CBR-A.C1.S1, relatado por Jorge Arcanjo e disponível em texto integral na página electrónica do DR).

Neste quadro, a decisão recorrida, julgando improcedente a providência logo após os articulados, foi precipitada e não pode manter-se.

E embora se compreenda a importância da preocupação dos tribunais com a celeridade na finalização dos processos, em prol da gestão eficiente da sua actividade, a verdade é que ela não pode negligenciar a exigência, de longe mais importante, do tratamento cuidado que a actuação judicial concede e deve sempre manter na apreciação de direitos essenciais das pessoas e das suas relações mais próximas, inclusivamente para prevenção de formas ilegítimas de acção directa ou até de comportamentos lesivos de bens jurídicos tutelados no direito sancionatório público, sendo fácil perceber a relevância que as acções possessórias podem assumir na prevenção de conflitos de maior gravidade e sendo certo que, à luz dos arts. 20.º/4 da Constituição e 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a obtenção de uma decisão em prazo razoável é instrumental do julgamento equitativo dos direitos e obrigações individuais.

Impõe-se, assim, face a todos os fundamentos acima alinhados, decidir o prosseguimento dos autos em primeira instância, para avaliação ponderada sobre a procedência das providências requeridas, em audiência de tentativa de conciliação e produção de prova, e porque existem ainda factos controvertidos com relevância para o efeito, como sucede com a existência do arrendamento, o prazo de vigência do comodato e a seriedade da ameaça da interrupção do fornecimento de luz e de água ao local onde vivem os requerentes."

[MTS]

29/07/2025

Bibliografia (1217)


-- Garlati, L.Prove legali e intimo convincimento. Strade parallele o inevitabile intreccio? Note a margine di Taking the Evolution of the Standards of Proof for a Criminal Conviction Seriously di Jacopo Della Torre, Qf 9 (2025), 1-13

-- Roberts, P.Standards and Methods of Proof: An English Perspective on Della Torre’s Comparative Legal History, Qf 9 (2025), 1-15

-- Tuzet, G., The BARD Standard: From Historical Sources to New Challenges. A Comment on Della Torre, Qf 9 (2025), 1-10


Jurisprudência 2024 (219)


Divórcio sem consentimento; 
casa de morada de família; atribuição provisória


1. O sumário de STJ 26/11/2024 (4188/22.1T8VIS-B.C1.S1) é o seguinte:

I - Os critérios legais para decidir da atribuição provisória da casa de morada de família (art. 931.º, n.º 7, do CPC), bem comum dos cônjuges, até à sua venda ou partilha, nos casos de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, convertido em mútuo consentimento, são os mesmos que regem a decisão quanto ao destino da casa de morada de família, nos termos conjugados dos arts. 1793.º e 1105.º, ambos do CC.

II - Estes critérios fundamentam-se na ponderação de um conjunto de fatores, como as necessidades dos cônjuges, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes, entre os quais a jurisprudência inclui, para além dos rendimentos de cada um deles, o estado de saúde dos cônjuges, a idade, a possibilidade de arranjar trabalho, a (im)possibilidade de um dos cônjuges dispor de outra casa em que possa residir sem beneficiar da mera tolerância de terceiros e o comportamento pretérito daqueles no que diz respeito ao cumprimento dos seus deveres conjugais (ac. do STJ de 17-12-2019, proferido no proc. n.º 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1).

III - O conceito de necessidade assume-se como um conceito amplo que inclui não só aspetos materiais e financeiros, como também as necessidades psíquicas de estabilidade e de segurança das vítimas de violência doméstica.

IV - In casu, a autora padece de depressão recorrente e foi vítima de violência doméstica durante 50 anos, conforme consta da acusação do MP e de sentença de condenação transitada em julgado.

V - A cônjuge-mulher, em virtude da sua maior vulnerabilidade económica e psíquica, tem o direito de residir naquela que sempre foi a sua casa de morada de família, contribuindo a circunstância de ter sido vítima de violência doméstica para tornar mais inequívoca e óbvia a sua maior fragilidade e necessidade.

VI - A unidade do sistema jurídico impõe que o direito penal e o direito da família não sejam vistos como compartimentos estanques e que existam vasos comunicantes entre estes ramos do direito porque se dirigem a regular a mesma realidade - a vida de uma família com história de violência doméstica.

VII - Não faz sentido que no processo-crime a vítima de violência doméstica seja protegida por ser o sujeito mais frágil e que o processo cível atribua o estatuto de cônjuge mais necessitado ao agressor, adjudicando-lhe o direito de residir na casa de morada de família até à venda ou partilha.

VIII - O direito, como um todo, não pode tolerar a consolidação de uma situação de facto que teve origem na prática de um crime contra as pessoas com a gravidade da violência doméstica.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"8. Regressemos aos factos do caso.

Em primeiro lugar, importa averiguar de forma comparativa a situação patrimonial de cada um dos cônjuges.

A autora aufere uma pensão de reforma de 329, 15 euros mensais (facto provado n.º 10) e o réu tem um rendimento superior a 400 euros a que acresce um valor não apurado de rendimento proveniente de uma atividade empresarial ligada à venda de lenha (facto provado n.º 11).

A autora padece de uma depressão recorrente (facto provado n.º 24).

Após a saída da casa de morada de família, para fugir a ameaças de morte (facto provado n.º 38), a recorrente foi viver para um apartamento de tipologia T1, bem comum dos cônjuges, que estes tinham arrendado à filha (factos provados n.º 5 e 6), enquanto o réu continuou a residir na casa de morada de família cuja atribuição está agora em disputa (facto provado n.º 3).

Abrangendo o conceito de necessidade, em primeiro lugar, os rendimentos líquidos mensais dos cônjuges, temos que, apesar de ambos os cônjuges terem rendimentos baixos, a autora/recorrente apresenta uma situação deficitária na medida em que apenas aufere uma pensão de 329,15 euros, enquanto o réu beneficia de rendimentos superiores a 400 euros, a que acresce um rendimento não apurado decorrente de uma atividade empresarial. São ambos pessoas idosas e a autora padece de uma depressão recorrente e foi vítima de violência doméstica durante a constância de um casamento longo (celebrado em ... – facto provado n.º 1). Nos termos da matéria de facto provada, desde o início do casamento que o réu era agressivo com a mulher e que a maltratava física e psicologicamente, inclusive durante a gravidez, para além de lhe bater com um cinto e de a ameaçar várias vezes de morte, tendo sido uma dessas ameaças que a forçou a sair de casa (factos provados n.º 25 e 26).

Nesta factualidade, não procede o entendimento de que o marido se encontra numa situação de maior necessidade do que a autora no que à utilização da casa de morada de família diz respeito. Pelo contrário, mesmo no que se reporta estritamente à situação patrimonial, está provado que a autora aufere menor rendimento mensal (uma pensão de 329, 15 euros), uma vez que o marido ainda tem capacidade de ganho, pois exerce uma atividade empresarial. Por outro lado, o imóvel comum, arrendado à filha, e onde a mãe provisoriamente se encontra alojada (factos provados n.º 5, 6 e 9), não pode ser usado para dizer que a situação patrimonial da autora é melhor. Se o imóvel é bem comum do casal, tanto a mulher como o marido podem habitá-lo, podendo o aqui réu solicitar a denúncia desse contrato de arrendamento (que aliás a filha, entretanto, denunciou com efeitos a janeiro de 2023) para habitar o imóvel, sem depender da boa vontade da filha.

Assim sendo, a situação de necessidade da autora é superior à do réu, quer no plano económico, porque aufere de menores rendimentos, quer no plano psicológico, porque foi vítima de violência doméstica durante cerca de 50 anos e padece de uma depressão recorrente.

Resta analisar, para balancear as posições de ambos os cônjuges, o argumento pragmático em que se baseou a sentença e o acórdão recorrido, segundo o qual, residindo a autora com a filha num apartamento, bem comum do casal, a sua necessidade de habitação estava resolvida, precisando o marido de viver na casa de morada da família porque não se relacionava com a filha a quem o casal tinha arrendado o imóvel.

Ora, este argumento prova demais. Desde logo, porque, como vimos, a casa em que vive a autora é de ambos os cônjuges e qualquer um deles pode viver nela, podendo até o réu rescindir o contrato de arrendamento celebrado com a filha, caso necessite da casa para habitação própria.

Mas vejamos os factos com mais pormenor.

A autora vive numa casa, bem comum do casal, que está arrendada à filha (facto provado n.º 6) e que, portanto, ocupa por tolerância da filha, sem título para tal. Na verdade, a filha é que tem, legalmente, o gozo exclusivo do imóvel. Por outro lado, este imóvel, segundo a factualidade provada, não tem condições para que nele vivam duas pessoas, tendo a filha passado a dormir num colchão na sala para que a mãe possa ocupar o quarto (facto provado n.º 9). Se bem que o interesse da filha, por ser maior de idade e independente financeiramente, não tenha de ser ponderado nesta decisão, compreende-se que a autora não queira colocar a filha nesta situação e que queira viver numa casa mais espaçosa e com melhores condições.

A autora, devido à circunstância de ter menos rendimentos e menor possibilidade de os obter, pois vive de uma pensão de reforma situada no mínimo da escala, enquanto o réu exerce uma atividade empresarial, está mais necessitada da casa de morada de família, não lhe sendo exigível, após ter sido vítima de violência doméstica durante 50 anos, que viva em condições precárias na casa arrendada a uma filha, por mera tolerância desta. Aliás, tendo a filha procedido à declaração de denúncia do contrato de arrendamento com efeitos a janeiro de 2023 (facto provado n.º 12), nada impedirá o réu de utilizar esta casa para sua habitação, não dependendo essa possibilidade do relacionamento com a filha, como entendeu a sentença. Por outras palavras, se essa casa é bem comum do casal, tanto entra na determinação do grau de necessidade da mulher, como do marido. A proximidade maior que a mulher tem em relação a este bem resulta de mera tolerância da filha, arrendatária do imóvel e a única que tem o poder de o fruir, por força desse contrato, entretanto já denunciado pela prórpia arrendatária.

Assim, a cônjuge-mulher, autora na presente ação, em virtude da sua maior vulnerabilidade económica e psíquica, tem o direito, por ser mais carenciada e ter uma saúde psíquica frágil (padece de depressão recorrente), de residir naquela que sempre foi a sua casa de morada de família, contribuindo a circunstância de ter sido vítima de violência doméstica para tornar mais inequívoca e óbvia a sua maior fragilidade e necessidade enquanto cônjuge mais fraco que carece de proteção.

O conceito de necessidade é assim um conceito amplo que inclui não só aspetos materiais e financeiros, como também as necessidades psíquicas resultantes de a autora padecer de depressão recorrente e de ter sido durante 50 anos vítima de violência doméstica.

No presente caso, a necessidade da autora, no plano material, é ligeiramente superior em relação à necessidade do marido, e, ainda que assim não se avaliassem os factos, a circunstância de ser vítima de violência doméstica – tipo legal de crime integrado no conceito de criminalidade violenta e que as Nações Unidas consideram ser equivalente à tortura ( cfr. a Declaração de 24 de janeiro de 2008 do Comité das Nações Unidas contra a tortura a propósito o âmbito das obrigações e responsabilidades do Estado no domínio do artigo 2.º da Convenção contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes) – cria só por si uma situação de maior necessidade. Com efeito, tem de se considerar, na operação subsunção dos factos na norma, não só as necessidades materiais, mas também as necessidades psíquicas de estabilidade, conforto e segurança, que sempre serão mais bem garantidas pela ocupação da casa de morada de família.

A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, de 11 de maio de 2011, conhecida por Convenção de Istambul, foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, constituindo um marco na consciencialização de que a violência de género e a violência doméstica constituem uma grave e intolerável violação dos direitos humanos fundamentais e do princípio da igualdade entre homens e mulheres. Esta Convenção, que integra o direito interno por força do artigo 8.º, n.º 2, da CRP, impõe aos Estados o dever positivo de proteção das vítimas de violência doméstica e a garantia dos seus direitos humanos fundamentais, não só em matéria criminal, mas também em matéria cível (direitos familiares pessoais e patrimoniais), devendo as normas do Código Civil ser objeto de uma interpretação conforme aos objetivos desta Convenção. A mesma orientação tinha já sido adotada pela Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que consagra medidas de proteção e assistência às vítimas de violência doméstica, adotando uma perspetiva interdisciplinar que cruza vários ramos do direito, como o direito à saúde, à segurança social, à habitação e à estabilidade de emprego.

Tem-se reconhecido que o sistema de proteção que obriga as mulheres vítimas de violência doméstica a sair de casa assume uma repercussão negativa na recuperação psicológica das vítimas em relação aos traumas vividos, bem como cria ruturas no seu projeto de vida. Para fazer face a este resultado, as ordens jurídicas europeias têm evoluído progressivamente de um sistema centrado na retirada da vítima da sua residência para o afastamento do agressor da casa de morada de família, permitindo a proteção da estabilidade da vida das vítimas num momento em que ela está particularmente posta em causa: a denúncia do crime e o pedido de divórcio. Em consequência, a Lei n.º 57/2021, de 16 de agosto, veio alargar a proteção das vítimas de violência doméstica, ampliando a medida de coação prevista no artigo 31.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, de forma a incluir não só a obrigação de o arguido «Não permanecer nem se aproximar da residência onde o crime tenha sido cometido, onde habite a vítima ou que seja casa de morada da família», mas também a possibilidade de impor ao arguido da obrigação de a abandonar”», estipulando o n.º 2 do preceito que o ali disposto mantém a sua relevância mesmo nos casos em que a vítima tenha abandonado a residência em razão da prática ou de ameaça séria do cometimento do crime de violência doméstica.

Embora não estejamos perante um processo-crime, a unidade do sistema jurídico impõe que o direito penal e o direito da família não sejam vistos como compartimentos estanques e que, pelo contrário, existam vasos comunicantes entre estes ramos do direito porque se dirigem a regular a mesma realidade – a vida de uma família com história de violência doméstica. As normas jurídicas não existem isoladamente umas das outras e o processo de aplicação do direito deve preservar a coerência e a unidade da ordem jurídica. Não faz sentido que no processo-crime a vítima de violência doméstica seja protegida por ser o sujeito mais frágil e que o processo cível atribua esse estatuto de necessidade ao agressor e retire a proteção devida à vítima, que, no caso vertente, até aufere rendimentos inferiores aos do marido.

O Direito, como um todo, não pode tolerar a consolidação de uma situação de facto que teve origem na prática de um crime contra as pessoas com a gravidade da violência doméstica."

[MTS]


28/07/2025

Jurisprudência 2024 (218)


Processos de jurisdição voluntária;
recurso de revista; critérios normativos


1. O sumário de STJ 27/11/2024 (1614/04.5TBESP-E.P1.S1) é o seguinte:

I - Nos processos de jurisdição voluntária, justifica-se a supressão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça estabelecida no art.º 988.º n.º2 do CPC, face ao facto de as decisões se nortearem por citérios de conveniência e oportunidade, sobrepondo-se aos critérios de legalidade estrita.

II - Porém, quando a impugnação da decisão tem em vista a interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se baseou tal decisão, é admissível o recurso de revista.

III - Assim, haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito da revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária de forma casuística, em função dos respetivos fundamentos de impugnação.

IV - Sempre que os factos demonstrem a falta de capacidade dos progenitores para assumir plenamente as suas responsabilidades parentais, é de concluir que não existem ou que estão seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação em conformidade com o que dispõe o art.º 1978.º do Código Civil.

V - Para se aferir da existência ou do não comprometimento sério dos “vínculos afectivos próprios da filiação” para os efeitos da norma do artigo 1978.º do CC não basta ver se existe uma ligação afectiva entre os progenitores e a criança; é necessário ainda que essa ligação afectiva se concretize em actos que demonstrem aptidão dos progenitores para exercerem plenamente as suas responsabilidades parentais.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

1 - O MINISTÉRIO PÚBLICO invocou a inadmissibilidade do recurso com fundamento no disposto no art.º 988.º, nº 2 do CPC, sendo certo que, no seu entender, a decisão recorrida, no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, assentou em critérios de conveniência e de oportunidade.

Quid juris?

O presente recurso de revista vem interposto no âmbito de um processo de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo que efectivamente se integra na categoria dos processos de jurisdição voluntária, sujeitos à disciplina prevista nos artigos 986.º a 988.º do CPC.1

Dispõe o n.º 2 do art.º 988.º que “Das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.

Na verdade, nos processos de jurisdição voluntária, “o predomínio da oficiosidade do juiz sobre a atividade dispositiva das partes, norteado por critérios de conveniência e oportunidade em função das especificidades de cada caso, sobrepondo-se aos critérios de legalidade estrita, justifica a supressão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça estabelecida no artigo 988.º, n.º 2, do CPC, vocacionado como está, essencialmente, para a sindicância da violação da lei substantiva ou processual, nos termos do artigo 674.º do CPC.”, como é dito no acórdão deste STJ de 30-05-2019 [Processo 5189/17.7T8GMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt]

No entanto, “na interpretação daquela restrição de recorribilidade, importa ter em linha de conta que, em muitos casos, a impugnação por via recursória não se circunscreve aos juízos de oportunidade ou de conveniência adotados pelas instâncias, mas questiona a própria interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se baliza tal decisão." [Processo 5189/17.7T8GMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt]

Assim, conclui o citado acórdão que aqui subscrevemos “haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito da revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária de forma casuística, em função dos respetivos fundamentos de impugnação, [---] e não com base na mera qualificação abstrata de “resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade”.

Ora, no presente caso, analisando as conclusões formuladas no presente recurso, verifica-se que a Recorrente aponta ao acórdão recorrido erros de interpretação e de aplicação de diversas normas legais constantes dos artigos 3º, 4º, al. a), e) e h) ,34º, 35º, nº 1 al. g), 35º, 38-Aº, 58.º, n.º1 a), d), i) todos da LPCJP, o artº1978º, nº1, do Código Civil, o art.º 36º nº 6º, 67º e 69º da CRP, bem como o art.º 3º nº 1 e o artº 9.º § 1 da Convenção sobre os Direitos das Crianças, da Organização das Nações Unidas de 20/11/89, publicada em D.R., Is., de 12/9/90.

Pode, assim, concluir-se que, neste caso, o recurso não tem como objectivo impugnar juízos de oportunidade ou de conveniência, mas sim questionar a interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se balizou a decisão recorrida.

Nesta conformidade, o recurso é admissível, nos termos do disposto no art.º 674.º n.º 1 a) e cabe na previsão do art.º 671.º n.º 1. [Assim entendido igualmente no Acórdão de 16-03-2017, proferido nesta secção, no âmbito do Processo n.º1203/12.0TMPRT-B.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt]

[MTS]


26/07/2025

Bibliografia (1216)


-- Beuth, F., Das Kollektiv und sein Repräsentant / Zum rechtlichen Verhältnis von Verband und Verbraucher:innen bei der Verbandsabhilfeklage (Duncker & Humblot: Berlin 2025)

-- Joecker, G., Richterliche Folgenberücksichtigung / Eine Untersuchung der praktischen Entscheidungsfindung und -begründung unter Berücksichtigung von Folgen im Zivilprozess (Duncker & Humblot: Berlin 2025)

-- Stachow, J. J., Die vertragliche Absicherung des Schiedsverfahrens (Duncker & Humblot: Berlin 2025)