"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/03/2025

O despacho liminar nas ações contra a participação pública

 

[Para aceder ao texto clicar em F. Silva Pereira]

Bibliografia (1182)


-- Fink, J., Die Schiedsvereinbarung in der Insolvenz (Duncker & Humblot: Berlin 2025)

-- Weißberg, R., Der unfreiwillig abgeschlossene Prozessvergleich / Zum Schutz vor gerichtsseitigem »unangemessenem Vergleichsdruck« im Zivilprozess (Duncker & Humblot: Berlin 2025)

Jurisprudência 2024 (134)


Competência internacional;
direito interno; Reg. 1215/2012*


1. O sumário de RP 3/6/2024 (1155/23.1T8AVR.P1) é o seguinte:

I - A alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil consagra um dos princípios que rege a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses - o princípio da necessidade -, e a sua aplicação depende da alegação e verificação de que o autor tem dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro ou de que o seu direito só pode tornar-se efetivo por meio de ação proposta em território português. Não tendo sido alegado na petição inicial qualquer facto que sustente qualquer uma dessas hipóteses normativas, não pode o Recorrente pretender a aplicação da referida alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil.

II - A qualificação jurídica que o autor faça da sua pretensão é irrelevante para a fixação da competência do tribunal, que não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação do direito aplicável, devendo a decisão a proferir ter por base o pedido e a causa de pedir invocados, entendendo-se esta como o facto ou conjunto de factos que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido.

III - Tendo o Réu residência em Portugal e tendo o Autor alegado, como fundamento da ação, a celebração com aquele de contratos pelos quais o mesmo estava obrigado a entregar-lhe determinadas quantias em dinheiro, é irrelevante se tais negócios foram celebrados e executados noutro país e se a obrigação pecuniária foi fixada em moeda estrangeira, suportando-se a competência internacional dos tribunais portugueses na remissão que o artigo 62º a) do Código de Processo Civil faz para o artigo 71º, número 1 do mesmo Diploma.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na falta de regulação expressa em instrumentos internacionais, ou de fixação da competência por convenção das partes, o artigo 59º do Código de Processo Civil determina a competência internacional dos tribunais portugueses “(…) quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º, ou quando as partes lhe tenham atribuído competência”.

No caso não existe qualquer tratado ou acordo internacional aplicável e as partes não alegaram a celebração de qualquer convenção com vista à fixação da competência internacional.

A decisão recorrida estribou-se na seguinte afirmação: “Nos termos do art. 59.º do CPC, por regra, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando ocorram os fatores de conexão dos arts. 62.º e 63.º do CPC ou quando lhes seja atribuída convencionalmente competência para dirimir o conflito nos termos do art. 94.º do CPC.

Não foi alegada que tenha sido convencionada esta competência. A aplicação do art. 63.º do CPC está excluída, por não estarmos no domínio dos direitos reais. Também não ocorre qualquer dos fatores de competência do art. 62.º do CPC.”

Tal afirmação, contudo, omite a análise dos concretos fatores de atribuição de competência a que alude o artigo 62º do Código de Processo Civil cuja aplicação foi afastada sem apreciação efetiva do seu teor, que ora deve sere feita.
Estipula o preceito em apreço:

“Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.”

O Recorrente alega em sede de recurso que os factos que servem de causa de pedir foram praticados em diferentes países (Equador, Estados Unidos e Venezuela) e que o “facto que integra a causa de pedir tem única e exclusivamente ligação à Venezuela, nacionalidade de ambas as partes e lugar de residência do autor e do réu à data dos factos. Assim sendo, os tribunais competentes seriam os tribunais Venezuelanos.

Contudo, o direito do autor não pode ser exercido, pelo mesmo, naquele território em virtude da conjuntura do sistema judicial.

Destarte, a Venezuela tem vindo a passar por uma longa e difícil crise política que tem resultado em dificuldades evidentes no acesso a uma justiça efetiva, que permita aos cidadãos daquele país efetivarem os seus direitos.”.

Defende, assim, a aplicação da alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil acima transcrito.

Apenas em sede de recurso, contudo, foram alegados os factos em que o Autor pretende suportar a aplicabilidade da referida alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil. [...]

O argumento ora esgrimido pelo Recorrente suporta-se na alegação de dificuldades de acesso/funcionamento do sistema judicial Venezuelano que não só não estão demonstradas como não foram alegadas no momento próprio: aquando da apresentação da petição inicial.

alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil consagra um dos princípios que rege a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses - o princípio da necessidade -, tem raiz histórica na alínea d) do artigo 65º Código de Processo Civil de 1939 e depende da verificação de que o Autor tem dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro – neste caso na Venezuela, país de que ambas as partes são naturais -, ou de que o seu direito só pode tornar-se efetivo por meio de ação proposta em território português. Não tendo sido alegado qualquer facto que sustente qualquer uma dessas hipóteses, improcede a pretensão do Recorrente de ver aplicada a referida alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil.

Da descrição factual que o Autor fez em sede de petição inicial fica, por igual, absolutamente afastada a aplicabilidade da alínea b) do mesmo preceito que estipula a competência internacional do tribunal quando o facto ou algum dos factos que serve de causa de pedir tenha sido praticado em Portugal. É que o Autor descreve vários negócios celebrados com o Réu e atos alegadamente ilícitos praticados por este na negociação e execução desses negócios nunca alegando que os mesmos ocorreram em Portugal, antes os situando na Venezuela e tendo conexão, ainda, com os Estados Unidos da América e com o Equador.

Resta aferir da aplicabilidade da alínea a) do referido artigo 62º, uma vez que muito embora a sua aplicação não seja defendida em sede de recurso, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito como decorre do disposto no artigo 5º número 3 do Código de Processo Civil.

Este mesmo preceito deve estar presente quando se apreciem os factos alegados na petição inicial para apurar se os mesmos justificariam a competência do tribunal recorrido em razão do território, critério para que remete a alínea a) do artigo 62º do mesmo Diploma.

É que a competência do tribunal deve aferir-se em função da forma como o Autor configura a ação, isto é, da causa de pedir e do pedido, independentemente da qualificação jurídica da causa que o mesmo faça.

A alínea a) do artigo 62 do Código de Processo Civil consagra um dos critérios de fixação de competência internacional, que é o da coincidência “(…) pelo qual se determina a competência internacional dos tribunais portugueses sempre que a ação possa ser proposta em Portugal segundo as regras específicas de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa” [José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 4ª edição, página 154.]

É irrelevante para a apreciação da competência do Tribunal a qualificação jurídica que o Autor fez na petição inicial quando ali esgrime que a responsabilidade do Réu é extracontratual ou, subsidiariamente, que deve decorrer da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa.

A causa de pedir da ação não se define pela qualificação jurídica que dela faz o autor, mas pelo conjunto de factos que alega com vista à procedência da sua pretensão [---] Cabe ao Tribunal decidir, em face dos factos que foram alegados e se venham a provar, qual o enquadramento jurídico da questão que lhe é posta.

Para conhecimento da exceção de incompetência em razão da matéria deve partir-se, assim, da relação jurídica que está controvertida.

Neste caso, a Autora alega que em virtude de negócio celebrado com o Réu este se apropriou:

- de $ 27 467, 50 provenientes da parte dos lucros que cabia ao Réu entregar ao Autor pela venda de automóveis na Venezuela, valor que o mesmo aceitou que aquele investisse com o fito de aumentar o seu valor e lho devolver;

- de $ 82 509 que também lhe entregou com vista a que ele investisse tal valor e lho devolvesse;

- de $ 22 704 que o Réu recebeu de clientes pela venda de mercadoria que ambos adquiriram no Equador para exportar e comercializar na Venezuela; e, ainda,

- alega que desconhece se o mesmo já recebeu o valor de $ 33 756 de mercadorias vendidas e não pagas já que, desde outubro de 2021, o Réu deixou de lhe prestar contas do negócio em comum que mantinham.

Pede que o Réu seja condenando a devolver-lhe a soma destas parcelas alegando que o mesmo, entretanto, se mudou para Portugal e que teve e mantém a intenção de se apropriar dessas quantias eximindo-se da responsabilidade de as entregar ao Autor.

Pede ainda o ressarcimento dos danos não patrimoniais que diz ter sofrido com estas condutas, liquidando tal indemnização em 10 000 €

Do que vai dito resulta manifesto que a obrigação que o Autor imputa ao Réu, de pagamento da quantia total de $ 166 472, 50 que corresponde ao valor de 154 221, 79 €, decorre do incumprimento, por banda deste, do que ambos acordaram em diferentes e sucessivos negócios entre eles celebrados. Estão descritos na petição inicial os acordos pelos quais o Réu estaria obrigado a devolver/entregar tais quantias ao Autor.

Ora, nos termos do artigo 71º, número 1, do Código de Processo Civil, a ação destinada ao cumprimento de obrigação deve ser proposta no domicílio do Réu. Tal norma serve também para a definição da competência internacional dos tribunais portugueses por força da remissão contida no artigo 62º a) do mesmo Diploma [Neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-07-2017, Processo 531/15.8T8LRA.C1.S2].

Independentemente de o Autor entender que o não cumprimento dessas obrigações contratuais decorreu de intenção premeditada e de posterior conduta do Réu que qualifica como criminal por consubstanciar crime de burla, a eventual fonte do direito do Autor à devolução das referidas quantias encontra-se nos contratos que celebrou com o Réu e pelos quais, segundo diz, este estaria obrigado a devolver-lhe/entregar-lhe tais montantes – cfr. artigos 397º e 405º do Código Civil. É, para o caso, irrelevante a qualificação jurídica feita pelo Autor.

Como tal, o Tribunal da área da residência do Réu é internacionalmente competente para a ação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 62 a) e 701º, número 1 do Código de Processo Civil sendo indiferente para o apuramento dessa competência se os negócios de que decorreu a obrigação de entrega dessas quantias foram celebrados e executados noutro país e se as obrigações pecuniárias deles decorrentes foram fixadas em moeda estrangeira como foi ponderado na decisão recorrida, mas que para o caso não releva."


*3. [Comentário] a) Salva toda a devida consideração, o acórdão padece de um erro de direito.

Afirma-se no acórdão que "no caso não existe qualquer tratado ou acordo internacional aplicável e as partes não alegaram a celebração de qualquer convenção com vista à fixação da competência internacional". Trata-se de uma afirmação que não é verdadeira, dado que, estando em causa a competência internacional dos tribunais portugueses, tendo o demandado domicílio em Aveiro e referindo-se a causa a matéria civil ou comercial, teria de se aplicar o Reg. 1215/2012 (art. 1.º e 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012).

Portanto, toda a argumentação da RP sobre a aplicação do direito interno português é totalmente deslocada. Aliás, a solução do caso é muito simples: tendo o demandado domicílio em Portugal, podia ser demandado no tribunal desse mesmo domicílio (art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012). Nem sequer importava discutir a aplicabilidade do disposto no art. 7.º, n.º 1, Reg. 1215/2012, dado que os critérios especiais do Reg. 1215/2012 são sempre alternativos ao critério geral enunciado no seu art. 4.º, n.º 1 (art. 5.º, n.º 1, Reg. 1215/2012).

b) A latere: não se transcreveu a nota 3, dado que na mesma há uma confusão entre autor e obra.

MTS

25/03/2025

Jurisprudência uniformizada (73)


Despedimento ilícito;
indemnização; penhorabilidade parcial 


-- Ac. STJ 4/2025, de 25/3, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

A indemnização atribuída ao trabalhador ilicitamente despedido, em substituição da reintegração, é parcialmente impenhorável, nos termos do n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil.

 

Jurisprudência 2024 (133)


Dupla conforme;
"fundamentação essencialmente diferente"

1. O sumário de STJ 25/6/2024 (3619/22.5T8LLE.E1.S1é o seguinte: 

Não constitui fundamentação essencialmente diferente, para efeitos de admissibilidade de recurso de revista, a discrepância entre duas decisões que consiste num mero aditamento frásico na segunda, que em nada prejudica a centralidade argumentativa, antes a reforça, como que «fechando» ex abundante as razões anteriormente expendidas.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Trata-se de saber se o recurso de revista deve ser admitido por inexistir dupla conformidade e, caso tal se não considere, se a alegada interpretação do artigo 671.º, 3 CPC padece de inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso ao direito e de tutela jurisdicional efectiva.

***

A decisão do relator é do seguinte teor:

«AA interpôs recurso de revista normal para este Supremo Tribunal, alegando inexistir dupla conforme, e, subsidiariamente, recurso excepcional.

Afirmou que no caso inexiste “dupla conforme”, porquanto a fundamentação expressa na sentença é essencialmente diversa daquela exarada no acórdão recorrido.

Não tem razão.

Na sentença diz-se que «Por último, no que diz respeito às despesas aprovadas para a manutenção dos elevadores o n.º 4 do artigo 1424.º do Código Civil é claro “Nas despesas dos ascensores só participam os condóminos cujas fracções por eles possam ser servidas.” (sublinhado nosso). Como tal, as fracções A, B e C, situadas na cave e no rés-do-chão do prédio, não sendo servidas pelos elevadores não têm que participar nas ditas despesas, devendo estas ser apenas suportadas pelas fracções que por eles possam ser servidas, in casu, as fracções D, E, F, G, H, I, J e L, e em igual proporção, uma vez que todas têm a mesma permilagem (cfr. factos 2 e 3)».

Por sua vez, o douto acórdão recorrido consigna que «Na verdade, situando-se as frações A, B e C na cave e no rés-do-chão do prédio, não são servidas pelos elevadores, e não sendo o terraço de cobertura e casa das máquinas locais de utilização comum, devem os respetivos condóminos beneficiar de isenção de participar nas despesas de manutenção dos elevadores, como bem se decidiu no sanador-sentença recorrido. Só assim não seria se houvesse algum arrumo no último piso, ou se houvesse neste uma sala de reuniões ou de convívio que pudesse ser usada por todos os condóminos, o que não é o caso».

Sabido é que o requisito de recorribilidade previsto no artigo 671.º, 3 CPC obstativo da dupla conformidade não decorre do facto da decisão confirmatória do segundo grau conter fundamentação diferente; exige-se que seja «essencialmente diferente».

Importa distinguir fundamentação essencialmente diferente de fundamentação diversa.

Uma fundamentação essencialmente diferente pressupõe novidade argumentativa e a consideração de um enquadramento factual e/ou jurídico diferente e decisivo, que se afaste distintivamente da fundamentação da decisão apelada.

Não se verifica esta modalidade de fundamentação quando o tribunal da Relação, mantendo-se no quadro jurídico da decisão recorrida acrescenta argumentos relacionados com a questão decidida que apenas lhe emprestam uma maior solidez.

Foi o que aconteceu no caso sujeito. [...]

 ***

O reclamante entende que não há dupla conforme por as decisões em causa terem fundamentação essencialmente diferente. Acresce que se a interpretação feita na decisão reclamada prevalecer, então estar-se-á diante de uma inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º da CRP.

Não tem razão o reclamante.

AA instaurou acção declarativa, com processo comum, contra Condomínio do Edifício ..., peticionando a anulação de todas as deliberações da Assembleia de Condóminos realizada no dia 29.10.2022.

Alega que o terraço é parte comum do edifício e que, como tal, por todos os condóminos terem o direito de aceder e utilizar o mesmo, as despesas de elevador devem ser repartidas por todos na proporção das respectivas permilagens.

No saneador-sentença julgou-se a acção totalmente improcedente, e, consequentemente, absolveu-se o réu do pedido. [...]

No Enquadramento jurídico da questão que efectuou, o primeiro grau afirmou: «Por último, no que diz respeito às despesas aprovadas para a manutenção dos elevadores o n.º 4 do artigo 1424.º do Código Civil é claro “Nas despesas dos ascensores só participam os condóminos cujas fracções por eles possam ser servidas.” [...]

Como tal, as fracções A, B e C, situadas na cave e no rés-do-chão do prédio, não sendo servidas pelos elevadores não têm que participar nas ditas despesas, devendo estas apenas suportadas pelas fracções que por eles possam ser servidas, in casu, as fracções D, E, F, G, H, I, J e L, e em igual proporção, uma vez que todas têm a mesma permilagem (cfr. factos 2 e 3). Assim sendo, importa concluir que a Assembleia foi regularmente convocada e reunida e nenhuma invalidade ou irregularidade se denota nas deliberações em causa.

Pelo exposto, a acção terá de improceder».

Interposto recurso, a Relação deixou inalterada a matéria de facto e confirmou por unanimidade a decisão recorrida.

Para tanto argumentou: «No caso concreto a questão prende-se essencialmente com a melhor interpretação a conferir ao normativo constante do nº 4 do preceito acabado de transcrever [artigo 1424.º CC, a especificação é nossa].

Segundo o recorrente os titulares das frações A, B e C, estão obrigadas a contribuir proporcionalmente para as despesas de fruição e conservação do elevador e de todos os espaços comuns, por disporem de acesso ao edifício através das suas escadas interiores e elevador, designadamente, à casa das máquinas e terraço de cobertura que diz serem espaços comuns.

Na sentença recorrida entendeu-se que as referidas frações, situadas na cave e no rés-do-chão do prédio, não sendo servidas pelos elevadores não têm que participar nas ditas despesas, devendo estas ser suportadas apenas pelas frações que por eles possam ser servidas.

Vejamos, pois, de que lado está a razão».

Depois de mencionar alguma jurisprudência, a Relação argumenta: «A jurisprudência de que se socorre o recorrente, com vista a demonstrar o desacerto da decisão recorrida, tinha subjacente uma outra realidade, pois estava aí em causa uma sala de convívio ou arrecadação geral, o que é coisa bem diferente de uma casa das máquinas ou de terraço da cobertura, como sucede in casu.

Como bem aduz o recorrido na resposta ao recurso, «[e]stas duas componentes existem em quase todos os prédios e não são de utilização comum dos condóminos conforme ficou decidido na assembleia de condóminos. (…). Um terraço de cobertura e casa das máquinas não tem a mesma utilização que uma sala de convívio ou uma arrecadação geral. Por esse motivo no caso em concreto todos os condóminos decidiram na não comparticipação nas despesas dos elevadores às frações da cave e Rés do chão».

Na verdade, situando-se as frações A, B e C na cave e no rés-do-chão do prédio, não são servidas pelos elevadores, e não sendo o terraço de cobertura e casa das máquinas locais de utilização comum, devem os respetivos condóminos beneficiar de isenção de participar nas despesas de manutenção dos elevadores, como bem se decidiu no sanador-sentença recorrido.

Só assim não seria se houvesse algum arrumo no último piso, ou se houvesse neste uma sala de reuniões ou de convívio que pudesse ser usada por todos os condóminos, o que não é o caso.

Por conseguinte, improcede o recurso».

Não se compreende como, diante das duas argumentações, se pode ver a discrepância de que fala o reclamante, sendo certo que ambas apresentam a mesma motivação nuclear. O que as distingue é um mero aditamento frásico na segunda, que em nada prejudica a centralidade argumentativa, antes a reforça, como que «fechando» ex abundante as razões anteriormente expendidas.

No sumário do acórdão deve pôr-se a tónica no ponto II, a saber: «II – Devem ficar isentos de contribuir para as despesas de manutenção e conservação dos elevadores os condóminos cujas frações não são (nem podem ser) servidas por eles como os do rés-do-chão e cave».

O ponto III, pode dividir-se em duas partes: a primeira, constituída pelo segmento «Esses condóminos só não devem beneficiar de tal isenção se possuírem algum arrumo no último piso, ou se houver neste um terraço, sala de reuniões ou de convívio que possa ser usada por todos os condóminos» - meramente teórica; uma segunda parte - «o que não se verifica tratando-se apenas de um terraço de cobertura e da casa das máquinas, os quais existem em quase todos os prédios e não são de utilização comum dos condóminos» - essa sim aplicável ao caso.

De resto, no caso sujeito, não está em causa a mera interpretação da proposição normativa constante do número 4 do artigo 1424.º CC, mas a aplicação ao caso concreto da norma daquela interpretação resultante, operação que nesta não se esgota, já que inclui ao lado da interpretação propriamente dita, a apreciação dos factos da causa, a qualificação da factispécie concreta pertinente á situação e a decisão da controvérsia, com a adequada fundamentação.

É a esta fundamentação que o legislador manda atender para se apurar a dupla conformidade, que, naturalmente, não se pode analisar isoladamente, sem conexão com os restantes elementos da operação aplicativa.

A fundamentação exprime as razões de decidir, o percurso argumentativo seguido pelo julgamento de facto e de direito, condição necessária para que o dispositivo não pareça um simples exercício de autoridade.

Pode, pois, concluir-se que existe in casu dupla conformidade. [...]

***

Pelo exposto, acordamos em indeferir a reclamação, e, consequentemente, em confirmar a decisão do relator."

[MTS]

24/03/2025

Citações e notificações eletrónicas no âmbito de processos judiciais

 
[Para aceder ao texto clicar em J. H. Delgado de Carvalho]



Jurisprudência 2024 (132)


Processos de jurisdição voluntária;
princípio da cooperação do tribunal


I. O sumário de RE 23/5/2024 (537/23.3T8BJA-A.E1) é o seguinte:

1 – O dever de gestão processual e o princípio da cooperação impõem que o tribunal auxilie a parte na obtenção da legalização de documento quando a parte invoque dificuldades na remoção de obstáculos que encontrou no cumprimento de um ónus que lhe foi imposto pelo próprio tribunal.

2 – Também na perspectiva da natureza do processo – jurisdição voluntária – e dos princípios que o regem, nomeadamente o princípio do inquisitório, impunha-se ao tribunal a quo providenciar pela obtenção do documento autenticado com apostilha, autenticação que o julgador julgou necessária para o prosseguimento da ação, em face da impossibilidade de a parte o conseguir obter pelos próprios meios e no interesse do menor (aqui representado pelo Ministério Público), interesse que coincide com uma rápida e eficaz definição do exercício das responsabilidades parentais relativamente a ele em face da separação dos seus progenitores.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Está em causa no presente recurso um despacho proferido pelo tribunal de primeira instância que indeferiu um requerimento do Ministério Público no sentido de se obter o assento de nascimento do menor em causa nos autos autenticado com apostila de Haia através da emissão de carta rogatória dirigida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Índia e a remeter por via diplomática (através do Ministério dos Negócios Estrangeiros).

Requerimento que surge após uma longa sequência de atos processuais que se iniciaram com um despacho proferido pelo julgador a quo no qual se entendeu que o assento de nascimento do menor que se encontra junto aos autos «não cumpre os requisitos legais de validade e eficácia na ordem jurídica portuguesa» pelo facto de não estar apostilado pela entidade competente o que é «imperativamente exigido pela Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros concluída em Haia em 5 de outubro de 1961» (sic).

O assento de nascimento em causa nos autos – um documento autêntico - proveio de um país estrangeiro que não da União Europeia, a saber, da Índia, o qual é aderente da Convenção de Haia de 5 de outubro de 1961; por conseguinte, a legalização de documentos provenientes daquele pais, quando exigível, é feita por apostilha nos termos do artigo 3.º daquela Convenção.

Pese embora o presente recurso não seja sobre a decisão que julgou da necessidade de legalização do referido documento, sempre se dirá o seguinte: o assento de nascimento do menor (…) destina-se a provar, no âmbito da ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais, nomeadamente, a data de nascimento do menor e a sua filiação; de acordo com o disposto no artigo 365.º do Código Civil [---], a legalização de documentos passados no estrangeiro não é indispensável para que eles façam prova em Portugal; apenas se houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade, ou da autenticidade do reconhecimento, é que pode ser exigida a sua legalização, nos termos do artigo 440.º do CPC – neste sentido, vide Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º. 3.ª edição, pág. 259. Também em anotação ao artigo 365.º do Código Civil escreveram Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 324.]: «A obrigatoriedade da legalização dos documentos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, foi, em princípio, abolida. Os tribunais, como quaisquer repartições públicas, devem, pois, atribuir a esses documentos todo o seu valor probatório, independentemente de legalização. Esta, porém, pode tornar-se obrigatória, se vierem a suscitar-se dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento». E na jurisprudência, veja-se por todos o Ac. RL de 01.02.2011, processo n.º 987/10.5YPLSB-1, consultável em www.dgsi.pt. No caso, não resulta dos autos que se tivessem suscitado dúvidas, nomeadamente ao julgador a quo, sobre a autenticidade do documento em causa no presente recurso, isto é, dúvidas sobre a autoria do mesmo (assinatura e poderes de quem o elaborou e assinou).

Como se assinalou supra o presente recurso não versa sobre a decisão que julgou ser necessária a legalização do assento de nascimento do menor, mas sobre a decisão que indeferiu o pedido de obtenção do referido documento autenticado com apostila de Haia através da emissão de carta rogatória dirigida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Índia e a remeter por via diplomática (através do Ministério dos Negócios Estrangeiros).

Pedido que foi apresentado pelo Ministério Público (que aqui representa o menor – artigo 4.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 68/2019, de 27/08) em face das dificuldades invocadas pela requerente da ação (mãe do menor) em providenciar, ela própria e pelos seus meios (que aparentemente não possui) pela obtenção da legalização do referido documento. Pedido que foi, ao que julgamos, realizado ao abrigo da Convenção de Haia de 18 de março de 1970 sobre Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial e da qual Portugal e a Índia são partes.

Nos termos do disposto no artigo 17.º/2, da Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro que aprovou o regime geral do processo tutelar cível «compete especialmente ao Ministério Público instruir e decidir os processos de averiguação oficiosa, representar as crianças em juízo, intentando ações em seu nome, requerendo ações de regulação e a defesas dos seus direitos e usando de quaisquer meios judiciários necessários à defesa dos seus direitos e superior interesse, sem prejuízo das demais funções que estão atribuídas por lei».

Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a partir da propositura da ação cabe ao juiz providenciar pelo andamento regular e célere do processo, sem prejuízo de preceitos especiais imporem às partes o ónus de impulso subsequente, mediante a prática de atos determinados cuja omissão impeça o prosseguimento da causa – assim, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 1996, pág. 123. É o chamado dever de gestão processual que tem como objetivo primacial uma rápida e justa resolução do litígio.

Dispõe também o artigo 7.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Civil, epigrafado Princípio da cooperação, que:

«1 – Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
(…)
4 – Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo» [...].

Diz-nos Paulo Pimenta [Processo Civil Declarativo, 3.ª Edição, Almedina, págs. 30-31.] que «o princípio da cooperação assume particular importância na conceção moderna do processo civil, que passa a ser visto como uma comunidade de trabalho, assim se apelando ao contributo de todos os intervenientes processuais na realização dos fins do processo e responsabilizando-os pelos resultados obtidos. A efetiva concretização deste princípio implica determinados deveres processuais (de cooperação), tanto para as partes e seus mandatários, como para o juiz, havendo todos de colaborar entre si, desse modo contribuindo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio, tal como estabelece o n.º 1 do artigo 7.º».

Também sobre o princípio da cooperação escreveu Teixeira de Sousa [Omissão do dever de cooperação do tribunal: que consequências?, in www.academia.edu] o seguinte: «O dever de cooperação do tribunal (trata-se, na realidade, de um poder-dever ou de um dever funcional) destina-se a incrementar a eficiência do processo, a assegurar a igualdade de oportunidades das partes e a promover a descoberta da verdade. Este dever de colaboração do tribunal é uma “forma de expressão de um processo civil dialógico”, no qual o tribunal, não só dirige ativamente o processo e providencia pelo seu andamento célere (cfr. artigo 6.º, n.º 1), como também dialoga com as partes e ainda participa da aquisição de matéria de facto e de direito para o proferimento da decisão. O dever de cooperação do tribunal prossegue uma finalidade estabelecida pela lei: esse dever destina-se, como se refere no artigo 7.º, n.º 1, a alcançar a justa composição do litígio, o que demonstra que o dever de cooperação está ao serviço da obtenção de uma justa composição do litígio. Isto significa que, estando o processo na disponibilidade das partes e, por isso, não podendo o tribunal substituir-se às partes na definição do seu objeto e na prática de atos processuais, o dever de cooperação tem essencialmente uma função assistencial das partes (mesmo da parte revel). Neste enquadramento, o dever se cooperação não pode ser confundido com um poder discricionário do tribunal: não se trata de atribuir ao tribunal um poder para o mesmo utilizar quando entender e como entender, mas de impor ao tribunal um dever de auxílio das partes para que seja atingida a justa composição do litígio». Adianta, ainda, este autor que o poder-dever de cooperação desdobra-se em vários deveres, a saber, o dever de inquisitoriedade (artigos 411.º e 986.º/2, do CPC), o dever de prevenção ou de advertência, o qual assume especial relevo nos processos subordinados à inquisitoriedade judiciária, como o são os processos de jurisdição voluntária (artigo 986.º, n.º 2), o dever de esclarecimento, o qual é indispensável para que o tribunal possa interpretar devidamente as alegações, os pedidos e as posições das partes, o dever de consulta das partes quando sempre que pretenda conhecer (oficiosamente) de matéria de facto ou de direito sobre a qual aquelas não tenham tido a possibilidade de se pronunciarem (cfr. artigo 3.º, n.º 3), visando este dever obviar às chamadas “decisões-surpresa”, isto é, às decisões com fundamentos de facto ou de direito inesperados para as partes e o dever de auxílio das partes, o qual implica que o tribunal auxilie as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento dos seus ónus ou deveres processuais (cfr. artigo 7.º, n.º 4). Em outro passo afirma o mesmo autor que: «Os deveres de inquisitoriedade, de prevenção, de esclarecimento, de consulta e de auxílio não contrariam o princípio da imparcialidade do juiz (cfr. artigos 115.º e 119.º) se essa colaboração tiver um carácter complementar ou corretor da atividade da parte. O juiz não perde a sua imparcialidade pela circunstância de colaborar com qualquer das partes na remoção de incoerências, obscuridades, ambiguidades ou lacunas nas suas peças, na aclaração das questões por elas suscitadas ou na concretização de um pedido genérico (cfr. artigo 556.º, n.º 1), mesmo que essa colaboração se traduza, na prática, na diminuição das hipóteses de ganho de causa pela contra-parte. O que é indispensável é que a colaboração do juiz seja realizada sem quebra da sua imparcialidade, isto é, seja fornecida a ambas as partes, em caso de necessidade, de forma igual. Aliás, o exercício da função assistencial do tribunal é indispensável para que o juiz tome uma decisão com conhecimento de todos os dados relevantes. (…) O dever de cooperação cumpre uma função assistencial das partes, pois que visa garantir que estas exercem adequadamente os poderes correspondentes ao princípio dispositivo, tanto no que respeita à matéria de facto e de direito, como no que se refere ao pedido. (…) Da função assistencial que é inerente ao dever de cooperação do tribunal decorrem ainda algumas outras consequências. Assim, são irrelevantes os motivos pelos quais a parte exerceu deficientemente ou mesmo omitiu o exercício de um desses poderes: o tribunal não tem de se preocupar com a circunstância de essa deficiência ou omissão se ficar a dever a uma eventual negligência da parte, dado que, mesmo que esta exista, o tribunal tem o dever de exercer a sua função assistencial. Dessa função decorre ainda que o dever de cooperação do tribunal deve ser exercido perante qualquer das partes, sem atender se, no processo pendente, ela é uma parte “forte” ou uma parte “fraca”. Também se pode perguntar se o dever de colaboração do tribunal deve ser observado quando a parte esteja representada por advogado. Deve entender-se que a representação por advogado não dispensa o tribunal de colaborar com as partes, embora a ausência dessa representação deva aumentar a diligência do tribunal no cumprimento do dever de colaboração. (…)» [...]

Revertendo agora ao caso em apreço, julgamos que decorre do exposto supra que o despacho sob recurso viola o dever de cooperação do tribunal enquanto dever de colaborar com a parte na remoção de obstáculos que aquela encontrou no cumprimento de um ónus que lhe foi imposto pelo próprio tribunal, a saber, o de juntar aos autos uma certidão do assento de nascimento do filho autenticada com a apostilha de Haia, dever, como dissemos, expressamente consagrado no artigo 7.º, n.º 4, do Código de Processo Civil. O tribunal tem o dever de auxiliar a parte na obtenção da legalização do documento tanto mais que não é sequer posto em causa nos autos que a mãe do menor não consegue providenciar pela mesmas através de meios próprios. E negando esse auxílio o tribunal a quo não só violou aquele dever como concorreu para uma menor eficiência da resposta judiciária à pretensão da requerente, ou seja, a uma decisão de mérito em tempo razoável como lhe impunha também o dever de gestão processual consagrado no artigo 6.º/1, do Código de Processo Civil. Ainda numa outra perspetiva dir-se-á que a presente ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais tem natureza de jurisdição voluntária (artigo 12.º da Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro, que aprovou o regime geral do processo tutelar cível), sendo-lhe, por isso, aplicável o disposto nos artigos 986.º a 988.º do Código de Processo Civil. Logo, as decisões nela proferidas são tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade, o que significa que neste processo as decisões podem ser fundamentadas num critério não normativo. Consequentemente, rege aqui o princípio do inquisitório quanto ao objeto do processo, o que significa que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admitidas as provas que o juiz considere necessárias (artigo 986.º/2, do CPC). Assim sendo, vistas as coisas na perspetiva da natureza do processo em causa e dos princípios que o regem, impunha-se ao tribunal a quo providenciar pela obtenção do documento autenticado com apostilha, autenticação que o julgador julgou necessária para o prosseguimento da ação, em face da impossibilidade de a parte (mãe do menor e requerente dos autos) o conseguir obter pelos próprios meios e no interesse do menor (aqui representado pelo Ministério Público), interesse que coincide com uma rápida e eficaz definição do exercício das responsabilidades parentais relativamente a ele em face da separação dos seus progenitores."

[MTS]

21/03/2025

Bibliografia (1181)


-- Fossati, C., Illeciti commessi dall’intelligenza artificiale: aspetti di giurisdizione e legge applicabile nel quadro normativo dell’Unione europea, Freedom, Security & Justice 2025/1, 281

-- Marino, S., Cross border private enforcement of EU competition law: in quest of localisation, Freedom, Security & Justice 2025/1, 111


Jurisprudência 2024 (131)


Acção de divórcio;
causa de pedir; constituição*


1. O sumário de RE 6/6/2024 (7536/22.0T8SNT.E1) é o seguinte:

I – Na separação de facto por um ano consecutivo releva o tempo decorrido entre a propositura da ação e a prolação da decisão.

II – A proposição de ação de divórcio constitui manifestação inequívoca do propósito do autor de não restabelecer a vida em comum com o seu cônjuge.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A presente ação de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges funda-se, de acordo com a causa de pedir, na separação de facto do casal desde janeiro de 2021, tendo cessado qualquer comunhão de vida entre ambos e, na intenção da Autora em não mais reestabelecer a vida em comum.

Dispõe o artigo 1781.º do Código Civil, a propósito da rutura do casamento, que:

«São fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:
a) A separação de facto por um ano consecutivo;
b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;
c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;
d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento.»

Segundo o artigo 1782.º, n.º 1, do Código Civil:

«Entende-se que há separação de facto, para efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer».

No caso vertente estão em causa os fundamentos previstos nas alíneas a) e d) do citado artigo 1781.º.

Quanto à alínea a) importa considerar que:

O divórcio em razão da separação de facto pressupõe:

- A inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges durante um ano seguido (elemento objetivo);
- A intenção, de ambos ou de um dos cônjuges, durante tal lapso de tempo, em não restabelecer a comunhão (elemento subjetivo).

Naquele prazo de um ano inclui-se o lapso de tempo decorrido até ao final da audiência de discussão e julgamento (nesse sentido, entre outros, os Acórdãos do TRL de 28-04-2022, P. 2271/20.7T8BRR.L1-2, e do TRC de 18-01-2022, P. 373/20.9T8ACB.C1, in www.dgsi.pt).

Como refere Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, edição de 2020, página 277, em destaque no citado Acórdão do P. 2271/20.7T8BRR.L1-2 «[e]xige-se, em primeiro lugar, a separação de facto dos cônjuges, integrada por dois elementos, um objetivo e outro subjetivo. O elemento objetivo é a falta de vida em comum dos cônjuges, que passam a ter residências diferentes» sendo que a esse elemento «há de (…) acrescer um elemento subjetivo, que lhe dá forma e sentido. Tal elemento subjetivo consiste numa disposição interior ou, como diz o art. 1782.º, num “propósito”, da parte de ambos os cônjuges ou de um deles, de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial.

É necessário que o propósito de não restabelecer a comunhão exista desde a data em que a separação teve início, e que se mantenha durante um ano consecutivo».

Embora, a jurisprudência se divida na consideração do respetivo termo final, cremos ser necessário, tão-somente, que o prazo de um ano ocorra à data da produção de prova realizada na audiência de discussão e julgamento, por ser essa a interpretação que melhor corresponde ao princípio da atualidade da decisão consagrado no artigo 611.º, n.º 1, do CPC, o qual dispõe que «(….) deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão».

No presente caso, importa considerar:

A presente ação foi proposta em 30-04-2022.

Na mesma, a Autora alegou a separação de facto.

A Autora e o Réu vivem respetivamente em Sintra e Loulé.

A audiência de julgamento ocorreu em 25-10-2023.

Ainda que demonstrado não esteja outro período temporal, antecedente, a separação de facto entre os cônjuges perdurou ininterruptamente durante mais de um ano à data do julgamento, tendo a Autora/recorrente o propósito de não restabelecer a comunhão conjugal com o Réu/recorrido.

Em consequência, está demonstrado o fundamento de divórcio previsto na alínea a) do artigo 1781.º do Código Civil: a) A separação de facto por um ano consecutivo.

Importa ainda considerar:

A proposição de ação de divórcio constitui uma manifestação inequívoca do propósito da Autora de não restabelecer a vida em comum com o seu cônjuge.

Com efeito, o “propósito” de um ou de ambos os cônjuges de não restabelecer a vida em comum pode ser afirmado ou exteriorizado de forma expressa ou tácita, e o “simples facto de o autor intentar a ação de divórcio demonstra, só por si, o propósito de não reatamento da sociedade conjugal, já que traduz uma manifestação nesse sentido” – vide Acórdãos do STJ de 5/7/2001, Col. Jur. STJ, 2001, T-II, pág. 164; e de 11/7/2006, Col. Jur., STJ, 2006, T-II, pág. 157, referidos no Acórdão do STJ de 25-05-2023, Proc. 1950/20.3T8VFR.P1.S1, in www.dgsi.pt, que defende idêntica posição.

Como neste acórdão se alega, «não oferece dúvida que o animus de não restabelecimento da vivência matrimonial é elemento essencial para se julgar verificado este fundamento de divórcio. No entanto, que outro facto mais inequívoco deste animus de não restabelecimento da vida matrimonial existe, que a própria interposição de pedido de divórcio? É, pois, este pedido que revela que a rutura conjugal é definitiva e irreversível, consubstanciado na intenção de um dos cônjuges de dissolver o aludido vínculo».

Por outro lado, no contexto da causa de pedir enunciada na alínea d) do artigo 1781.º do CC – «quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento», a cláusula geral e objetiva da rutura definitiva do casamento – enquanto fundamento de divórcio, não exige, para a sua verificação, qualquer duração mínima, como sucede com as restantes causas que impõem um ano de permanência (cfr. Ac. STJ de 03-10-2023, Proc. 2610/10.9TMPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt).

Estão, pois, demonstrados os dois fundamentos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, previstos no artigo 1781.º do Código Civil: a) A separação de facto por um ano consecutivo e d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento."

*3. [Comentário] Com a devida consideração, discorda-se completamente do entendimento de que o prazo de separação de um ano entre os cônjuges se pode completar durante a pendência da acção de divórcio. Como é claro, a causa de pedir de qualquer acção nunca se pode constituir durante a pendência da acção; certamente nunca ninguém pensou que o prazo de usucapião se pode completar durante a pendência da acção de reivindicação. Para maiores desenvolvimentos clicar aqui.

MTS

20/03/2025

Paper (522)


-- Garrett, Brandon L., Artificial Intelligence and Procedural Due Process (SSRN 03.2025)

Jurisprudência 2024 (130)


Revisão de sentença estrangeira;
alimentos devidos a filhos


1. O sumário de RL 6/6/2024 (3322/23.9YRLSB-2) é o seguinte:

Uma decisão judicial estrangeira que aprova um projecto de decisão consentida constante de um anexo, que contem uma decisão de pagamentos periódicos aos filhos, tornada eficaz por uma sentença de divórcio estrangeira, deve ser revista e confirmada (para poder ser executada), apesar de regular apenas parte das questões que em Portugal são abrangidas pela regulação do exercício das responsabilidades parentais.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O requerido deu-se como citado a 14/02/2024 [em requerimento de 21/02/2024] e veio deduzir oposição a 04/04/2024, que este TRL sintetiza do modo que segue:

Nela começou por levantar a questão prévia da inexistência do certificação da tradução, nos termos devidos, e do compromisso de honra do tradutor (tendo em conta os termos da Portaria 657-B/2006 de 29/06, do DL 76-A/2006, de 29/03, dos pareceres n.ºs E-08/06 e E-13/06 da Ordem dos Advogados e 172 e seguintes do Código do Notariado), até porque a tradução ora apresentada não se encontra fielmente traduzida; depois aceitou como verdadeira a matéria alegada nos artigos 1, 2 e 5 da PI e impugnou a matéria alegada nos restantes artigos da PI, por simples desconhecimento e não ser sua obrigação de os conhecer; ou por não corresponderem à verdade; ou se encontrarem irremediavelmente desvirtuados; ou quanto aos efeitos que a requerente pretende fazer valer; ou por se tratar de matéria conclusiva ou de direito, e os documentos juntos no que respeita à matéria ora impugnada e as conclusões que deles se pretendem extrair (até porque tal versão se figura falseada e incorrecta). Por fim, diz, em síntese, que pela sentença invocada pela requerente foi decretado somente o divórcio entre ela e o requerido (demonstra o averbamento do divórcio decretado na sentença do UK ao seu assento de nascimento - docs.1 e 2), nunca foi feita a regulação das responsabilidades parentais dos menores e fixada uma pensão de alimentos. Caso assim não fosse, e admitindo que, efectivamente, tivesse a regulação sido efectuada em Inglaterra, qual seria a lógica de o requerido requerer a regulação das responsabilidades parentais, no Juízo de Família e Menores de G, como o fez? E porque é que em sede de conferência realizada nesse processo, chegaram as partes a acordo quanto a vários pontos da regulação, excepto, quanto ao valor a pagar dos alimentos devidos aos menores (conforme doc.4)? No entanto, foi acordado o pagamento das despesas extras. Se efectivamente estivesse regulado a pensão de alimentos, iria o requerido intentar uma acção para regular esse ponto e se sujeitar a acrescer despesas extras? (acrescer despesas extras, porque este benefício já comporta todas as despesas; o requerido paga esse valor e nada mais tem a pagar, com base no cálculo simulado no site oficial do governo your child maintenance). Assim, deverá a presente revisão de sentença estrangeira ser julgado totalmente improcedente. [...]

As observações feitas pelo requerido relativamente ao direito de família do Reino Unido não fazem referência a nenhum conjunto de regras, nem a nenhumas regras em particular, a partir do/as qual/ais fosse possível concordar ou não com as conclusões por ele tiradas.

Uma leitura superficial das normas que regem o divórcio no UK – entre elas as contidas no Matrimonial Causes Act 1973 (que se consultou, para o caso, na versão de 31/12/2020 – especialmente a parte II: Provisions as to Divorce, secção 1), das Family Procedure Rules (especialmente a parte 7: Procedure for Applications in Matrimonial and Civil Partnership Proceedings, que se consultou na versão de Julho de 2020) – torna pouco plausível que, na prática, fosse possível decretar um divórcio sem que a questão dos alimentos aos filhos menores tivesse sido decidida (por acordo ou sem ele).

De qualquer modo, no caso, não há dúvida de que a sentença final de divórcio só foi proferida 2 dias depois de ter sido proferida uma decisão judicial a aprovar a decisão de reparação financeira projectada pelos cônjuges contendo entre outras o projecto de decisão de pagamentos periódicos aos filhos. Decisão essa que passou a ter eficácia com a sentença final de divórcio, como resulta do texto de tal decisão.

Em suma, com a sentença final de divórcio de 30/07/2021 ganhou eficácia a decisão judicial de 28/07/2021 que aprovou o anexo A que era um projecto de decisão elaborado pelos cônjuges, contendo, no meio de outras, a decisão de pagamentos periódicos aos filhos a pagar pelo pai, nos termos que constam dos §§ 22, 22 e 23 dessa decisão (e que não se transcrevam na íntegra aqui, como também não se transcreveu na íntegra o anexo A que dá o contexto de tal decisão específica, porque a sentença de revisão e confirmação não se destina a reproduzir a sentença/decisão revista, mas apenas a ver se ela deve ser confirmada; também por isso, este TRL não pode fazer a interpretação das cláusulas de tal anexo, para definir o respectivo alcance, nem actualizar valores do § de alimentos ou convertê-los em euros).

A circunstância de tal decisão regular apenas um dos aspectos do exercício das responsabilidades parentais, não quer dizer que ela não exista, como objecto possível de revisão e confirmação, ao contrário do que entende o requerido com a sua oposição, mas apenas que é só essa questão que fica resolvida e não todo o regime do exercício das responsabilidades parentais (ao contrário do que as expressões utilizadas pela requerente podiam dar a entender).

Por isso, justifica-se que o requerido tenha pedido, no Juízo de Família e de Menores de G, a regulação do exercício das responsabilidades parentais, porque as outras questões relativas a tal exercício estavam por decidir.

Veja-se, em reforço, para um caso semelhante, o decidido no ac. do STJ de 30/04/2024, proc. 264/22.9YRCBR.S1.

*
A revisão pedida é necessária (art. 978 do CPC e Convenção de Haia sobre o Reconhecimento e Execução das Decisões relativas às Obrigações Alimentares, de 2/10/1973, aprovada para ratificação pelo Decreto 338/75, de 2 de Julho; com início de vigência relativamente a Portugal em 01/08/1976, Aviso in DR de 9/5/1977, e relativamente ao Reino Unido desde 01/03/1980).

Este tribunal é o competente para o efeito (art. 979 do CPC).


Estão verificadas as condições para o reconhecimento e execução da decisão (art. 4 da Convenção) já que foi proferida por uma autoridade competente para o efeito segundo o art. 7 da Convenção pois que a residência do agregado familiar era em H (para além de que os alimentos são devidos por divórcio decretado pelo Reino Unido: art. 8 da Convenção) e a decisão foi obtida por consentimento e já está transitada em julgado.

Não foi invocado e não está sequer indiciado algum dos fundamentos da recusa da revisão previsto no art. 5 da Convenção. No processo em que a decisão foi proferida participaram ambos os cônjuges pelo que não se coloca qualquer questão prevista no art. 6 da Convenção.

A requerente apresentou os documentos exigidos pelo art. 17/1-2 da Convenção. Não se verifica o caso do art. 17/3, nem do art. 17/4 e o art. 134 do CPC dispensa a tradução autenticada prevista no art. 17/5 da Convenção.

Em suma, nada obsta à revisão e confirmação da sentença/decisão a rever e não importa que a requerente tenha pedido a revisão da sentença como sendo de 30/07/2021, pois que se trata de um lapso evidente, pois o que se trata é de rever a decisão de 28/07/2021, que é a que se refere à obrigação de pagamentos periódicos – e que foi a junta pela requerente, com tradução e apostilada – embora com eficácia decorrente da sentença de 30/07/2021 (também junta).

*
Pelo exposto, julga-se procedente a pretensão da requerente e, em consequência, decide-se rever e confirmar a decisão de 28/07/2021 do Tribunal de H, Reino Unido, que aprovou projecto de decisão consentida do Anexo A, que contém a decisão de pagamentos periódicos aos filhos, nos termos dos §§ 22, 22 e 23 desse anexo, e a que a sentença final de divórcio do mesmo Tribunal, de 30/07/2021, deu eficácia, decisão que assim passará a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa (podendo, por isso, ser executada)."

[MTS]

19/03/2025

Dívida comercial, juros civis - mas porquê?


1. a) O sumário de STJ 19/9/2024 (258/09.0TNLSB-D.L1.S1) é o seguinte:

Mantendo-se a orientação jurisprudencial do STJ, considera-se que, à falta de outros elementos interpretativos, a decisão judicial dada à execução, condenando a ora embargante a pagar à aí autora uma indemnização acrescida de juros calculados à taxa legal, deve ser interpretada como abrangendo o direito a juros de mora à taxa legal prevista para os juros civis.

 b) A fundamentação do acórdão esclarece o que estava em causa:

"5.2. Na acção declarativa que culminou com a decisão judicial dada à execução, foi formulado o seguinte pedido:

«Nestes termos, deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e por via dela, ser a R. condenada a pagar à A. a quantia peticionada de (...), acrescida de juros vincendos, bem como custas e o mais legal. (...)».

Sendo que, no último artigo da petição inicial (artigo 69), a pretensão relativa ao pagamento de juros, foi assim enunciada:

«A esta quantia deverão acrescer juros, à respectiva taxa legal, desde a data da citação até à data do integral pagamento.».

Afigura-se que o segmento decisório do acórdão dado à execução se encontra em conformidade com o teor literal do pedido («condeno a Ré Petrogal a pagar à Autora a quantia de 150.000,00 €, acrescida de juros, calculados à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento»). E, uma vez que se verifica que em momento algum a petição inicial se refere à natureza (comercial ou civil) da obrigação da ré Petrogal, tampouco a utilização, no artigo 69.º da p.i., da expressão «respectiva taxa legal», permite retirar a ilação de que os juros peticionados o foram à taxa comercial.

Temos, assim, que, no caso dos autos, e diversamente do alegado pela recorrente, a directriz interpretativa assente no princípio do pedido não permite chegar a qualquer conclusão segura."

2. O acórdão optou por seguir a jurisprudência do STJ (também largamente maioritária nas instâncias, segundo se supõe): não se conseguindo retirar do pedido do credor de uma dívida comercial se os juros que pede são civis ou comerciais, deve entender-se que o demandante pede juros civis.

Quanto à opção do STJ, nada há a objectar. Na dúvida, deve seguir-se a jurisprudência consolidada, pois que uma 
jurisprudência flutuante origina perplexidade entre as partes e não favorece a confiabilidade do sistema processual. 

Outra coisa completamente diferente é saber se a orientação do STJ é a melhor na matéria e se não se impõe uma mudança da jurisprudência. A formulação escolhida pelo STJ ("Mantendo-se a orientação jurisprudencial deste Supremo Tribunal [...]") pode eventualmente ser interpretada como mostrando algum "desconforto" perante a jurisprudência consolidada, mas isto não passa de uma mera conjectura. 

Talvez possam ser mobilizados alguns outros, mas bastam três argumentos muito simples para questionar a bondade da referida jurisprudência. Talvez se possa adiantar que a solução do problema nada tem a ver com a interpretação do pedido do demandante, mas tão-só com a aplicação da lei pelo tribunal da acção.

3. a) O primeiro argumento é meramente textual. O art. 703.º, n.º 2, CPC dispõe que "consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dela constante". Não está agora em causa o âmbito de aplicação do preceito (talvez indevidamente restringido pelo Ac. STJ 9/2015, de 24/6), mas um outro aspecto: os juros de mora que são abrangidos pelo título executivo são aqueles que respeitam à "obrigação dele constante"; portanto, estão abrangidos juros civis, se a obrigação for civil, e juros comerciais, se a obrigação for comercial. 

Quer dizer: o estabelecido no art. 703.º, n.º 2, CPC é bem claro em relacionar os juros com a obrigação exequenda. Aliás, nada de especial, certamente. Surpreendente seria que o preceito relacionasse os juros a serem cobrados na execução com qualquer coisa distinta da obrigação que consta do título executivo.

Também é nítido que, ao contrário do entendimento da jurisprudência agora em análise, a expressão "juros calculados à taxa legal" não pode significar apenas juros civis. Se assim se entendesse, então a "taxa legal" referida no art. 703.º, n.º 2, CPC estaria a reportar-se, qualquer que fosse a obrigação exequenda, apenas à taxa legal dos juros civis. É manifesto que não é isto que resulta do preceito, já que, como se disse, o preceito relaciona os juros com a obrigação que consta do título.

b) Uma segunda observação é esta: não se encontra na lei (art. 102.º CCom; art. 4.º DL 62/2013, de 10/5) nenhuma base para se entender que o regime dos juros comerciais é supletivo perante o regime dos juros civis, isto é, que os juros comerciais só se aplicam se as partes o estipularem ou se -- que é o que agora interessa -- o demandante o pedir em juízo. A única coisa que se pode retirar desses preceitos é que as partes podem convencionar qual a taxa dos juros comerciais (art. 102.º, § 1.º CCom; art. 4.º, n.º 1, DL 62/2013), taxa que, nesta hipótese, prevalece, com a limitação imposta pelo disposto no art. 102.º, § 2.º, CCom, sobre a taxa legal supletiva (art. 102.º, § 3.º e 4.º CCom).

Os juros civis e os juros comerciais são ambos "juros calculados à taxa legal". A única diferença entre eles é que os juros civis são o regime geral e os juros comerciais correspondem a um regime especial. Ora, que se saiba a aplicação em juízo de um regime especial não depende da vontade das partes: o regime aplica-se, não porque as partes o queiram ou o peçam, mas porque a lei especial derroga a lei geral. Portanto, cumprindo o princípio iura novit curia, os tribunais devem aplicar ex officio qualquer regime especial (incluindo, naturalmente, aquele que respeita à taxa legal definida para os juros comerciais).

Atendendo ao disposto no art. 5.º, n.º 3, CPC não pode ser de outra maneira, já que este preceito determina que "o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito". Ora, a orientação agora criticada faz precisamente o contrário: em clara violação do disposto naquele preceito, faz depender a aplicação do direito da vontade das partes num caso em que esta é totalmente irrelevante.

O regime especial prevalece sobre o regime geral, mas a solução da jurisprudência agora em análise também parece esquecer este elementar princípio. Sem excluir que exista em alguma parte do ordenamento jurídico um regime especial cuja aplicação pelos tribunais esteja dependente da vontade das partes, não se vislumbra que exista qualquer base legal para se entender que qualquer regime comercial esteja dependente de uma expressa vontade das partes, em especial no que respeita aos juros devidos no giro comercial. Portanto, não há nenhum motivo para excluir a matéria dos juros comerciais da aplicação oficiosa pelo tribunal da acção.

Acresce que, a dar-se qualquer relevância à vontade das partes em matéria de juros respeitantes a dívidas comerciais, a hipótese em que tal pode suceder é precisamente a inversa daquela que está em análise: o regime geral dos juros civis só pode ser aplicado em detrimento do regime especial dos juros comerciais se tal resultar da vontade das partes (o que, aliás, se admite como perfeitamente possível). Em contrapartida, para a aplicação pelos tribunais do regime legalmente aplicável nunca é necessária qualquer manifestação de vontade das partes.

Nestes termos, o equívoco da jurisprudência parece ser de base: admitir que, na falta de um pedido expresso em juízo, se aplicam a dívidas comerciais juros civis quando o que se devia admitir era que, na falta desse pedido, se aplicam a essas dívidas os juros comerciais a que se referem (sem os qualificarem como tal) o art. 102.º CCom e o art. 4.º DL 62/2013. 

Em conclusão: é verdadeiramente estranho que se entenda que, na falta de especificação pelo credor comercial de quais são os juros aplicáveis, se possa entender que o tribunal fica desvinculado de aplicar a lei e tenha de aplicar o regime geral dos juros civis em detrimento do regime especial dos juros comerciais.

c) O terceiro argumento contra a jurisprudência do STJ é ainda mais evidente: se, na falta de estipulação negocial das partes, se aplicam a dívidas comerciais juros comerciais, por que razão, na falta de um pedido que refira que se trata de juros comerciais, se aplicam a dívidas comerciais juros civis?

Esta falta de sintonia entre a solução substantiva e a solução processual contraria tudo o que se diz e ensina sobre a função instrumental do processo civil: essa função proíbe que se construam em processo soluções que contrariam o que vale fora do processo.

4. Em suma: há boas e simples razões para abandonar a jurisprudência que entende que, na falta de especificação dos juros pedidos em juízo quanto a uma dívida comercial, se aplicam a esta dívida juros civis.

MTS