"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/04/2024

Jurisprudência europeia (TJ) (303)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (UE) n.° 1215/2012 — Artigo 6.°, n.° 1 — Âmbito de aplicação — Contrato celebrado entre um consumidor que tem a nacionalidade de um Estado terceiro e um banco estabelecido num Estado‑Membro — Ação intentada contra este consumidor — Tribunal do último domicílio conhecido do referido consumidor no território de um Estado‑Membro


TJ 11/4/2024 (C‑183/23, Credit Agricole Bank Polska / AB) decidiu o seguinte:

O artigo 6.°, n.° 1, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

quando o último domicílio conhecido de um requerido, nacional de um Estado terceiro e que tem a qualidade de consumidor, se situa no território do Estado‑Membro do tribunal chamado a decidir e este não consegue identificar o domicílio atual deste requerido nem dispõe de indícios de prova que lhe permitam concluir que este está efetivamente domiciliado no território de outro Estado‑Membro ou fora do território da União Europeia, a competência para conhecer desse litígio não é determinada pela lei do Estado‑Membro a que pertence esse tribunal, mas sim pelo artigo 18.°, n.° 2 deste regulamento, que atribui competência para conhecer desse litígio a um tribunal em cuja área de jurisdição se encontra o último domicílio conhecido do referido requerido.

 

Jurisprudência 2023 (151)


Recurso; prazo; ampliação;
reapreciação de prova gravada


1. O sumário de RC 27/6/2023 (3892/12.7TBLRA-B.C1) é o seguinte:

I – A extensão em dez dias do prazo para interposição do recurso de apelação, que tenha por objeto a reapreciação de prova gravada, nos termos do disposto no art.º 638.º, n.ºs 1 e 7, do CPCiv., só colhe justificação quando se tratar de uma impugnação séria, não fictícia, assente em prova pessoal gravada.

II – Se a parte recorrente invoca pretender a reapreciação de prova gravada, mas a factualidade impugnada é totalmente irrelevante para a decisão do recurso ou apenas suscetível de prova documental, não é de conceder aquela extensão de prazo, com a consequência da rejeição do recurso, por extemporaneidade.


2. O acórdão tem o seguinte voto de vencido:

"Declaração de voto de vencido (art. 663.º, n.º 1, 2.ª parte do CPC)

Dissenti da decisão proferida maioritariamente por entender que, na situação sub judice, o recurso não devia ter sido rejeitado por extemporaneidade.

É sabido que, ressalvados casos especiais (processos urgentes e os previstos nos arts. 644.º, n.º 2 e 677.º do CPC), o prazo “normal” para a interposição do recurso é de 30 dias contados da notificação da decisão (art. 638.º, n.º 1 do CPC).

Todavia, nos termos do n.º 7 do aludido normativo, a esse prazo acrescem 15 [sic] dias quando o recurso “tiver por objeto a reapreciação da prova gravada”.

A questão que se coloca - e que tem propiciado alguma divergência jurisprudencial - é a de saber se este alargamento do prazo para interposição do recurso está ou não dependente do cumprimento pelo recorrente das exigências de impugnação da matéria de facto constantes do art. 640.º do CPC.

Contrariamente à visão que parece, no caso, ter feito vencimento, seguimos, a este propósito, a orientação – segundo se crê, maioritária - que vai no sentido de que a extensão do prazo em causa depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação [ - Neste sentido, v.g. acórdãos do STJ de 22.10.2015 (processo 2394/11.3TBVCT.G1.S1); 28.04.2016 (processo 1006/12.2TBPRD.P1.S1); 06.06.2018 (processo 4691/16.2T8LSB.L1.S1); 06.06.2019 (processo 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1); 19.06.2019 (processo 3589/15.6T8CSC-A.L1.S1); 24.10.2019 (processo 3150/13.0TBPTM.E1.S1); 21.10.2020 (processo 1779/18.9T8BRG.G1.S1) e de 14.09.2021 (processo 18853/17.1T8PRT.P1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.]

Desde logo por razões de hermenêutica e literalidade da norma, visto que o n.º 7 do art. 638.º apenas aponta para “a reapreciação da prova gravada” como objeto do recurso.

Depois pela inserção da norma no âmbito da admissibilidade dos recursos, em momento prévio e independente à apreciação do conteúdo ou teor da impugnação e da observância, ou falta de cumprimento, dos ónus de impugnação a que se reporta o artigo 640.º do CPC, matéria que apenas compete ao tribunal superior.

Como se refere no acórdão do TRL de 27.10.2022 (processo 7241/18.2T8LRS-A.L1.2) “Uma coisa é o prazo de recurso, e seu acréscimo; outra, a existência de condições processuais para a apreciação da impugnação da matéria de facto ou para a sua rejeição”.

O que releva nesta sede é, tão só, perante as alegações apresentadas, verificar se o recorrente pretende a impugnação da matéria de facto sustentada em prova gravada, independentemente da avaliação a efetuar ulteriormente quanto ao cumprimento das exigências constantes do art. 640.º do CPC.

Ora, no caso, deixando de lado essa avaliação, apresenta-se inequívoco que a recorrente (insolvente) pretende impugnar factos cuja prova é sustentada em prova testemunhal que foi objeto de gravação.

Foi assim designadamente quando concluiu:

- “A douta sentença proferida nos presentes autos e da qual pelo presente se recorre não considerou como provados, factos que resultam quer da prova testemunhal (…), produzida nos presentes autos” (conclusão A),

- “com relevo para a boa decisão da causa e porque resulta da prova (…) testemunhal produzida nos presente autos, relativamente aos trabalhadores que a seguir se identificam, devem ser adicionados os seguintes factos à matéria de facto assente, o que se requer a V/ Exªs: (….)” (conclusão B),

face à prova (…) testemunhal produzida nos presentes autos, resultam provados os seguintes factos que se requer sejam adicionados à matéria de acto assente (…)” (conclusão F)

A prova documental e testemunhal produzida nos presentes autos leva necessariamente à total procedência da impugnação dos créditos dos trabalhadores” (conclusão I).

Ora, no caso, deixando de lado essa avaliação, não sobram dúvidas em como a recorrente (insolvente) pretende impugnar factos cuja prova é sustentada em prova testemunhal que foi objeto de gravação (sessão de julgamento de 06.05.2022, sendo que nas demais apenas foram prestadas declarações de parte).

Entendo, como tal, que o recurso devia ter sido admitido e apreciadas as questões nele colocadas, no sentido, em curta síntese:

i) a impugnação da matéria de facto (com a sua rejeição por não terem sido cumpridos os ónus a que se refere o art. 640.º do CPC),

ii) a nulidade da sentença (com improcedência, por a eventual omissão de diligências probatórias prévias não implicar a nulidade da sentença)

e

iii) o erro de julgamento (com a sua procedência, na exata medida em que não se descortina em como a impugnação dos créditos efetuada pela insolvente relativamente a alguns dos trabalhadores - e não a todos consubstancie, sem fundamentação acrescida, abuso do direito (até porque quanto aos demais trabalhadores podem existir fundamentos que justifiquem esse posicionamento).

Paulo Correia"

15/04/2024

Gestão de negócios e processo


I. Apresentação do problema

1. O problema analisado nos acórdãos da RL de 26/10/2023 (6473/22.3T8ALM-A.L1-2) e de 9/11/2023 (6473/22.3T8ALM.L1-6) -- como se vê, proferidos no mesmo processo -- coloca a interessante questão de saber se é possível alguém ser autor agindo como gestor de negócios de outrem. Para simplificar, na exposição subsequente o primeiro acórdão é referido como "ac1" e o segundo acórdão como "ac2".

2. Segundo se afirma no relatório do ac1,

«Em 23/09/2022, A, “na qualidade de gestor de negócios da sua mãe” M intentou uma acção contra os compradores [irmã e cunhado dele, A] e o vendedor de uma fracção autónoma de que a mãe dele (dele, A) era arrendatária, para exercer direito de preferência naquela compra e venda, pedindo que fosse reconhecido tal direito de preferência da sua mãe e fosse transmitido a esta o direito de propriedade da fracção mediante o pagamento do valor da compra e venda, substituindo-se a mesma aos réus na escritura de compra e venda. Entre o mais dizia, no artigo 39, que “deverá o autor na sua qualidade de gestor de negócios considerar-se como parte legítima nos presentes autos.”»

No ac1, a RL enquadrou o caso sub iudice da seguinte forma:

"Ao intentar a acção, A não disse estar a fazê-lo em nome da sua mãe, antes invocou o seu próprio nome: autor, ele, A, em gestão de negócios da sua mãe (e está-se a considerar, tal como a decisão recorrida, a própria petição inicial e não o formulário da petição inicial, pelo que toda a argumentação do recorrente à volta do que colocou no formulário e das razões porque o fez, é irrelevante).

Logo, não se está perante uma gestão representativa." 

No ac2, o enquadramento da mesma questão pela RL é diferente:

"Não concordamos [...] que resulte dos autos que AS está a agir em nome próprio. Aliás, quando o mesmo diz que é parte legítima (artigo 39º da petição inicial), não diz que ele, AS, em seu próprio nome, é parte legítima, mas sim que ele, gestor de negócios da sua mãe, é parte legítima.

Mas voltamos a dizer, o que releva não é o nome que é dado, mas o negócio concreto e a gestão concreta do negócio que é feita. Quando esta gestão passa pela interposição de uma acção judicial em que o negócio só pode resolver-se a favor directo do dono do negócio, não estamos perante gestão de negócios não representativa. [...]

Tendo concluído que AS está a agir em gestão de negócios representativa, naturalmente sem poderes, é convocado o artigo 268º do Código Civil [...]".

Não interessa agora resolver o dissídio de opiniões sobre o carácter da gestão de negócios assumida pelo autor de uma mesma acção e também não interessa considerar nem a coexistência dos dois acórdãos no mesmo processo, nem outros aspectos dos acórdãos da RL. A única questão que importa resolver é a de saber se alguém, assumindo-se como gestor de negócios de outrem, pode intentar uma acção, naturalmente como gestor e, portanto, como autor.

3. O ac1 ocupa-se de uma questão relativa à habilitação de herdeiros, porque, entretanto, a mãe do autor faleceu. O ac1 não trata, no entanto, da questão prévia que havia que apreciar: é possível alguém ser autor de uma acção através do regime da gestão de negócios? Da leitura do ac1 fica-se com a ideia de que a RL considera perfeitamente normal alguém propor uma acção actuando como gestor de negócios de outrem. O ac2 também não vê nenhum problema na atribuição de legitimidade processual a um gestor de negócios, principalmente porque, em sua opinião, no caso sub iudice a gestão é representativa. Importa verificar se é assim.

II. Enquadramento do problema

1. a) A primeira observação que há que fazer é a de que o regime da gestão de negócios não é transponível, sem mais, para o processo civil. Neste, o problema de saber se o gestor de negócios pode propor uma acção (sendo, naturalmente, autor nessa acção) coloca-se em termos de legitimidade processual. Sendo assim, o que importa analisar é se há fundamento para reconhecer legitimidade a um autor que se apresenta como gestor de negócios de outrem.

Mais em concreto: dado que o autor que intenta a acção como gestor de negócios não é o titular do direito invocado em juízo (quem é titular desse direito é o dominus), a propositura da acção por aquele gestor só pode ser enquadrada na substituição processual. Recorde-se que esta substituição ocorre quando está em juízo alguém que não é titular do direito alegado na acção e que se apresenta como tal. Sendo assim, o que se deve discutir é se há fundamento para atribuir a qualidade de substituto processual ao gestor de negócios, permanecendo o dominus como parte substituída.  

b) A este propósito convém deixar algumas referências básicas. Como é conhecido, o art. 30.º, n.º 3, CPC dispõe o seguinte:

"Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor."

Deixando de lado a confusão entre a legitimidade e o interesse, o preceito contém uma regra e uma excepção:

-- A regra é a seguinte: são partes legítimas os titulares da relação material controvertida (por exemplo, o credor e o devedor ou o proprietário reivindicante e o possuidor da coisa);

-- A excepção é a seguinte: para que seja reconhecida legitimidade processual a pessoas diferentes dos titulares da relação material controvertida, é necessário que tal resulte de uma "indicação da lei em contrário".

 A substituição processual pode ser legal ou voluntária:

-- A substituição é legal quando resulta da lei; é o caso daquela que está consagrada no art. 263.º CPC;

-- A substituição é voluntária quando a lei permite que alguém atribua legitimidade a quem não é titular do direito; no art. 34.º, n.º 1, CPC encontra-se um exemplo desta substituição quando se permite que um dos cônjuges dê o seu consentimento para a propositura de uma acção por um deles, mas em nome dos dois.

2. Como se sabe, a gestão de negócios pode ser representativa ou não representativa:

-- "a gestão representativa é a que o gestor assume e exerce diante de terceiros em nome do dono, se bem que privado de poderes para o fazer";

-- "na [gestão] não representativa, o gestor age em nome próprio, ainda que por conta e no interesse do dominus" (Andrade Pissarra, in Menezes Cordeiro (Coord.), Código Civil Comentado II (Coimbra 2021), Artigo 471.º, n.º 3).

Importa considerar na análise do problema respeitante à actuação do gestor como substituto processual do dominus cada uma destas modalidades da gestão de negócios.

III. Apreciação da solução jurisprudencial

1. a) Começa-se pelo caso em que o autor que actua em gestão de negócios propõe a acção indicando que o faz em representação de outrem, ou seja, o caso em que gestão é representativa e em que, portanto, o autor indica que actua em representação do dominus. A especialidade deste caso resulta de que a gestão de negócios fica sujeita a ratificação por aquele que teria legitimidade para ser autor (art. 471.º, n.º 1, e 268.º CC).

A propositura de uma acção através de uma gestão de negócios representativa poderia ser consistente com uma substituição processual voluntária, dado que a ratificação da gestão pelo dominus valeria como atribuição de legitimidade ao autor gestor. No entanto, a configuração da situação como uma substituição processual voluntária é bastante problemática:

-- Antes do mais, a ratificação que se regula nos art. 471.º, n.º 1, e 268.º CC é a ratificação do negócio concluído pelo gestor, não a ratificação da representação para a celebração do negócio; dito de outro modo: o que é ratificado pelo dominus é o negócio celebrado pelo gestor, não a gestão (que, aliás, já se completou com a celebração do negócio); coerentemente com este regime, a ratificação pelo dominus só devia acontecer depois do trânsito em julgado da decisão proferida na acção; o problema é que não faz sentido tramitar uma acção sem se saber se o dominus vai ratificar o seu resultado; sendo quase certo que essa ratificação não vai ocorrer se o resultado for uma decisão de improcedência, o réu não tiraria nenhuma vantagem da decisão de absolvição que conseguiu obter na acção; falha, por isso, ao contrário do que se entendeu no ac2, qualquer semelhança com a atribuição negocial de legitimidade processual ao substituto processual;
 
-- Acresce que, fora dos casos em que a substituição voluntária tem cobertura legal (isto é, em que se estabelece na lei que uma pessoa pode atribuir, por negócio, legitimidade processual a outra), a admissibilidade daquela substituição é muito discutível, porque à parte demandada não pode ser exigível que litigue contra alguém diferente do titular do direito; ora, a ratificação pelo dominus não pode constituir nenhuma justificação para que o demandado tenha de litigar com o gestor, e não com o titular do direito; 

-- Por fim, "[a negotiorum gestio] ocorre quando uma pessoa, desprovida de intuito de liberalidade e sem que tenha mandato ou autorização para tal, gira os assuntos de outra pessoa, no exclusivo interesse desta" (Menezes Cordeiro, in Menezes Cordeiro (Coord.), Código Civil Comentado II, Introdução (Artigos 464.º a 472.º), n.º 5); de acordo com esta noção, nunca se encontra preenchido um requisito característico da substituição processual voluntária: o de que o substituto processual tenha um interesse próprio na defesa de um direito alheio; no caso da gestão de negócios, verifica-se precisamente o contrário: o gestor está sempre a agir no interesse exclusivo do dominus negotii; a circunstância de a gestão de negócios ser representativa em nada altera a situação, porque, como, aliás, acontece em qualquer hipótese de representação, o representante não age em interesse próprio.

Do exposto pode concluir-se que não é possível enquadrar a propositura de uma acção através de uma gestão de negócios representativa como um caso de substituição processual voluntária.

b) Resta testar a hipótese de configurar a instauração de uma acção no regime de gestão representativa como uma substituição processual legal, ou seja, como uma substituição que decorre de um negócio admitido pela lei. O problema é que não se encontra no regime legal da gestão de negócios que consta dos art. 464.º ss. CC nenhuma base para se poder concluir que o dominus pode atribuir, por acto negocial, legitimidade ao gestor.

A conclusão não pode ser considerada surpreendente. A gestão de negócios caracteriza-se por alguém actuar, sem autorização, no interesse e por conta de outra pessoa (art. 464.º CC). A partir do momento em que o terceiro dá autorização para o gestor actuar em seu nome deixou de haver gestão (e passa a haver mandato ou qualquer outro negócio jurídico). Quer dizer: logo que, por acto negocial do dominus, for atribuída legitimidade processual ao gestor deixa de haver gestão.

c) Em suma: não é possível enquadrar a instauração de uma acção por um gestor que actua em representação do titular do direito na substituição processual, seja ela voluntária ou legal.

2. Passa-se agora a considerar a hipótese na qual o gestor propõe a acção não só em nome próprio, mas também sem indicação de que o faz em representação do titular do direito.

A instauração de uma acção através de uma gestão de negócios não representativa nem sequer pode ser considerada uma substituição processual, dado que o autor não revela que não é titular do direito. Esta situação tem uma solução muito fácil: alguém que está em juízo com base num direito alheio sem ter qualquer base legal ou convencional para o fazer só pode ser considerada uma parte ilegítima.

O que acaba de se afirmar recebe apoio no que dispõe no art. 471.º 2.ª parte CC: se a gestão for não representativa, aplica-se o regime do mandato sem representação (art. 1180.º ss. CC); pergunta-se: já alguma vez se admitiu que um mandatário sem representação tem legitimidade para propor uma acção em substituição do mandante?

3. Segundo o ac1, o autor da acção de preferência configurou a sua gestão como sendo uma gestão não representativa. O ac2 não viu nenhuma objecção à legitimidade do autor gestor, porque considerou que a ratificação pode resolver o problema. Salvo o devido respeito, nenhuma destas soluções é aceitável, pelo que o que se devia ter concluído no processo era que o autor não tinha legitimidade processual para se substituir à sua mãe no exercício de um direito de preferência. 

Não pode haver nenhuma admiração perante a conclusão precedente. Se assim não se entendesse, estaria descoberta a via para que, sempre que fosse possível a gestão de negócios, qualquer pessoa se pudesse substituir em processo a qualquer outra, bastando que invocasse que o faz como gestor de negócios. Isto contraria tudo o que se ensina sobre a função da legitimidade processual, que é a de limitar quem pode estar juízo litigando sobre um certo objecto e contra uma certa parte. Através do recurso à gestão de negócios, a legitimidade para a propositura de acções passaria a ser uma legitimidade "aberta".

Pode reforçar-se que a admissibilidade da gestão não representativa faz sentido no âmbito negocial, mas não faz nenhum sentido no campo processual. No âmbito negocial pode admitir-se que alguém não revele à outra parte que está a agir como gestor de negócios de outrem (o comprador não tem de revelar que está a comprar o selo raro que encontrou por um bom preço como gestor de negócios de um amigo); no campo processual, não é pensável um comportamento semelhante.

IV. Solução proposta (e única possível)

1. Salvo melhor opinião, não é possível justificar através da gestão negócios a atribuição da qualidade de parte processual ao gestor. Apesar disso, não pode deixar de se reconhecer que casos como aquele que se verifica nos acórdãos da RL (que, no fundo, se aproxima de uma incapacidade de facto do possível autor de uma acção) merecem uma resposta jurídica. Não constando do CPC nenhum regime para superar a incapacidade de facto de um possível autor, há que procurar encontrar uma solução.

A solução que se propõe é a seguinte: em vez de se utilizar a gestão de negócios para procurar justificar a atribuição da qualidade de parte ao gestor (empresa que, como se viu, está condenada ao fracasso), aquela gestão é utilizada para justificar a atribuição a esse gestor da qualidade de representante do dominus,

A diferença entre a solução que implicitamente se aceitou, embora com visões distintas, nos dois acórdãos da RL e aquela que agora se propõe é, em termos processuais, muito significativa:

-- Em vez de o problema ser analisado no âmbito da legitimidade processual (quem pode ser parte processual?), ele é considerado no plano da capacidade judiciária (quem pode representar uma parte processual?);

-- Em termos práticos, isso significa que, em vez de o gestor propor a acção em nome próprio (isto é, como autor), esse gestor propõe a acção como representante do dominus; o autor é o dominus e o gestor o seu representante.

2. Neste enquadramento, o problema é semelhante àquele que é resolvido pelo art. 49.º CPC no âmbito do patrocínio judiciário, ou seja, o problema é do mesmo tipo daquele que respeita ao exercício do patrocínio judiciário a título de gestão de negócios. O que está em causa em ambas as situações é uma situação de representação: no caso do art. 49.º CPC, a representação ocorre no âmbito do patrocínio judiciário; no caso agora em análise, a representação verifica-se no âmbito da capacidade judiciária. 

É verdade que no ac1 se refere o disposto no art. 49.º CPC, mas, salva a devida consideração, de uma forma equivocada, dado que nesse Ac1 o que se estava a analisar era a admissibilidade de atribuir ao gestor a qualidade de parte processual. Uma coisa é um advogado assumir a representação de uma parte em juízo através da gestão de negócios; outra completamente diferente é alguém tornar-se parte através de uma gestão de negócios (o que, como é claro, aquele advogado não faz). 

Não parece que o ac1 tenha tomado em consideração a diferença entre os dois casos, chegado mesmo a concluir que "a comparação com a actuação de um mandatário representativo ajuda a compreender o regime" aplicável ao caso sub iudice (que era o de reconhecer ao gestor de negócios a qualidade de autor). Salva a devida consideração, não é assim. Do disposto no art. 49.º CPC -- que respeita a uma situação de representação assumida pelo gestor de negócios -- nunca se pode retirar nenhuma justificação para atribuir a qualidade de parte a esse gestor.

3. Atenta a semelhança entre a situação que é resolvida pelo disposto no art. 49.º CPC e aquela que consiste em atribuir ao gestor a qualidade de representante do dominus, a solução torna-se evidente: basta aplicar por analogia o disposto no art. 49.º CPC à representação processual assumida pelo gestor. Desta aplicação resulta o seguinte regime:

-- Em casos de urgência, a representação judiciária pode ser exercida por um gestor de negócios;

-- A parte representada tem de ratificar a gestão dentro do prazo fixado pelo juiz; se o não fizer, além de a acção não poder continuar, o gestor deve ser condenado nas custas que provocou e na indemnização do dano causado à parte contrária ou à parte cuja gestão assumiu;

-- O despacho que fixar o prazo para a ratificação deve ser notificado pessoalmente à parte cujo patrocínio o gestor assumiu.

 

MTS

Nota: agradece-se ao Doutor Nuno Andrade Pissarra a troca que opiniões que esteve subjacente â elaboração deste post.


Jurisprudência 2023 (150)


Citação;
réu estrangeiro*

1. O sumário de RC 12/7/2023 (5044/22.9T8CBR.C1) é o seguinte:

I –  Nos atos judiciais usa-se, ao menos por via de regra e salvo casos excecionais devidamente comprovados, a língua portuguesa – artº 133º nº1 do CPC.

II – Assim, afora tais casos, a citação deve ser efetivada, mesmo perante citando de nacionalidade estrangeira, em língua portuguesa, competindo a este, no prazo da contestação, diligenciar pela prova de não ter compreendido o seu teor e requerer em conformidade, vg. impetrando a tradução.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Estatui o artº 191º do CPC:

«Nulidade da citação

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 188.º, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei.

2 - O prazo para a arguição da nulidade é o que tiver sido indicado para a contestação

E prescreve o artº 133º do mesmo diploma:

«Língua a empregar nos atos

1 - Nos atos judiciais usa-se a língua portuguesa.

2 - Quando hajam de ser ouvidos, os estrangeiros podem, no entanto, exprimir-se em língua diferente, se não conhecerem a portuguesa, devendo nomear-se um intérprete, quando seja necessário, para, sob juramento de fidelidade, estabelecer a comunicação.

3 - A intervenção do intérprete prevista no número anterior é limitada ao que for estritamente indispensável.»

Finalmente expressa o artº Artigo 197º:

«Quem pode invocar e a quem é vedada a arguição da nulidade

1 - Fora dos casos previstos no artigo anterior, a nulidade só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato.

2 - Não pode arguir a nulidade a parte que lhe deu causa ou que, expressa ou tacitamente, renunciou à arguição.

Perante estes nucleares  preceitos a pretensão recursiva meridianamente está votada ao insucesso.

Em primeiro lugar porque, como bem alega a recorrida, é extemporânea.

Os réus foram citados em 2.11.2022.

O prazo para arguir a nulidade é de trinta dias, pois que este foi o prazo concedido para a contestação – cfr. fls. 40.

Ora a arguição apenas foi efetivada em fevereiro de 2013, com o recurso da sentença.

Muito depois do terminus de tal prazo.

E nem se diga que ela podia ser arguida com tal recurso, nos termos dos artºs 615º nº4 e 616º do CPC.

É que esta possibilidade apenas emerge para as nulidades da sentença previstas no artº 615º do CPC.

Obviamente que a presente nulidade não quadra na previsão deste normativo, pois que ela assume o jaez de nulidade procedimental, rectius do próprio e liminar ato  da citação, cujo regime de arguição é específico e autónomo, nos termos dos artºs supra mencionados.

Em segundo lugar,  e mesmo que assim não fosse ou não se entenda, e o recurso não soçobrasse por motivos formais, a pretensão sucumbiria por motivos substantivos, tal como outrossim é defendido pela recorrida.

A recorrente pugna que a citação é nula porque ela não compreende suficientemente a língua portuguesa, pelo que o teor da citação devia de vir traduzido.

Esta tese assume-se como totalmente peregrina, quer perante a lógica, quer perante os preceitos legais atinentes/pertinentes.

Naquela vertente há a considerar que sendo a citação o  primeiro ato processual cuja função é dar a conhecer ao réu a ação contra si instaurada e chamá-lo a juízo, naturalmente que o tribunal não  sabe se ele, mesmo sendo a citanda de nacionalidade estrangeira, não tem conhecimento da língua portuguesa.

Quantos imigrantes que chegam a Portugal, passados uns meses ou poucos anos, já dominam a língua portuguesa, ao menos o suficiente para inteligirem o essencial de uma citação judicial, ou seja, que ela vem de um tribunal, que é relativa a um processo  identificado por um certo número e que, indo dirigida a si, naturalmente que lhe diz respeito.

Aliás, esse é um dos poderes/deveres de um emigrante que emigra [sic] para Portugal ou para qualquer país: aprender o mais rápido possível a língua do país de acolhimento para mais facilmente  nele se integrar a todos os níveis: laboral, social, etc.

Ora os réus já estão em Portugal pelo menos desde 2005, ano em que arrendaram o locado, pelo que é suposto, razoável e sensatamente, concluir que eles já dominam a língua portuguesa o suficiente para compreenderem o significado, ou o possível significado, do teor duma citação enviada por um tribunal.

Mesmo que assim não fosse, o mínimo exigível aos réus - recebida a citação e porque ela lhes foi  enviada por um tribunal  em seu nome e, portando, lhes dizia respeito -, era dirigirem-se ao tribunal, colherem as informações a ela atinentes junto dos respetivos senhores funcionários, e requererem então o que tivessem por necessário.

Nada disto tendo feito e apenas mais de um mês depois e só após a sentença ter sido prolatada e notificada, terem enveredado pela tese da nulidade com o fundamento aduzido, demonstra mero oportunismo e atuação em desespero de causa, aliás, e como se viu, tardia.

Finalmente, e nesta última ótica legal, urge ter presente que, como supra referido, e pelo menos por via de regra, afora casos excecionais devidamente notificados/confirmados, nos atos judiciais usa-se apenas a língua portuguesa como instrumento comunicante.

Nada na lei obriga que estes atos sejam praticados, a priori e liminarmente, na língua da nacionalidade do citando se este for estrangeiro.

É que,  reitera-se, a qualidade de estrangeiro não implica, necessariamente, o desconhecimento da língua portuguesa.

Esta regra do uso da sua própria língua, como é intuitivo e do entendimento comum, é a emanação do poder soberano de cada país, e sendo que o uso da língua nacional é o reflexo e um dos fatores agregadores da sua identidade nacional e cultural.

Tal regra vigora em todos os ramos de direito, tanto privado como público.

Assim e para além do Acordão citado pela recorrida, o da RL de 18.06.2015, p. nº 1821/14.2T8CSC-B.L1-6, veja-se o estudo de Artur Flamínio da Silva, sob a epígrafe:

«A obrigatoriedade da utilização da língua portuguesa no procedimento administrativo», in Revista Julgar, on line, http://julgar.pt/wp-content/uploads/2019/12/20191209,

no qual se expende:

«…a consagração do português como a língua do procedimento administrativo, enquanto concretização legislativa do constitucionalmente consagrado direito fundamental dos cidadãos à língua portuguesa, …São razões de eficiência administrativa que justificam a existência desta regra. …Neste contexto, importa reter que é complexa a imposição da utilização de língua estrangeira que exige a tradução de certa documentação, visto que implica um esforço económico que promove a assimetria informativa entre os cidadãos portugueses e a Administração ou, no limite, uma exigência que é desproporcional.»

Esta ideia de que a tradução – de português para língua estrangeira ou vice versa -  apenas pode emergir em casos de estrita e comprovada necessidade, estende-se aos próprios documentos juntos com a petição, ou juntos posteriormente.

Assim:

« A citação com entrega de uma petição inicial acompanhada de documentos escritos em língua estrangeira não enferma de nulidade, nem sequer de qualquer outro tipo de irregularidade.

« Tão-pouco é obrigatória a ulterior tradução dos documentos juntos em língua estrangeira; ela só terá de ser feita quando o juiz a ordene e o juiz só deverá ordená-la se, no seu prudente arbítrio, entender que a mesma é necessária, nomeadamente por não dominar a língua em causa.» - Ac. da RL de 28.05.2019, p. 19156/18.0T8LSB-B.L1-7, in dgsi.pt.

Ora no caso vertente, reitera-se, os réus não provaram que não tinham conhecimentos bastante da língua portuguesa para intuíram o teor da citação, minimamente e ao menos para despoletarem ulteriores diligências, vg. junto do tribunal, para, se dúvidas tivessem, as dissiparem, inteirarem plenamente do seu teor e significado junto do tribunal.

E poderiam tê-lo feito, pois que o prazo da contestação de trinta dias era suficiente para o efeito.

Aliás, do que dos autos emerge – docs de fls. 45 e sgs e  documentos ora juntos pela recorrida, e cuja junção se justifica considerando o fundamento do recurso, que é novo, porque não apreciado na sentença: artº 423º nº3 do CPC - , é que os réus,  rectius a recorrente, conhecem suficientemente a língua portuguesas para se  terem apercebido do teor e significado da citação.

Na verdade, tal suficiência foi atestada pelo agente de execução na notificação judicial avulsa para a resolução do contrato.

 E a ré, antes da citação, já tinha adquirido a nacionalidade portuguesa nos termos do artº 6º nº 1 da Lei nº 37/81 de 3 de Outubro – Lei da Nacionalidade -  o qual, e para além do mais, exige para tal aquisição, os requerentes  «conheceram suficientemente a língua portuguesa».

Se, reitera-se, perante tal conhecimento, não encetaram diligências com vista a inteirarem-se plenamente  - se algumas dúvidas tinham - do conteúdo, significado e consequências da não contestação no prazo legal, sibi imputat.

Nesta conformidade, a inelutável conclusão final é que, nitidamente, o caso não encerra contornos factuais e jurídicos mínimos dos quais se possa vislumbrar  a existência da assacada nulidade da citação por falta de compreensão, decorrente do desconhecimento da língua portuguesa, dos aludidos teor e significado da citação."


*3. [Comentário] Dado que a citação ocorreu em território português, a RC decidiu bem. E decidiu bem não apenas porque aplicou a lei, mas também porque, resididindo os réus em Portugal desde 2005 e tendo a citação sido realizada em 2022, era exigível outra conduta a esses demandados.

Uma sugestão: atenta a crescente imigração para Portugal, talvez não fosse má ideia que a comunicação de certos actos processuais -- entre os quais necessariamente a citação do réu -- fosse acompanhada de uma mensagem em língua inglesa sobre a finalidade da comunicação.

MTS


12/04/2024

Legislação (233)


BAS

-- DecRet 23/2024/1, de 12/4:

Retifica a Portaria n.º 49/2024, de 15 de fevereiro, que regulamenta o Balcão do Arrendatário e do Senhorio.

 

Paper (507)


-- Kamalova, Jamilya, Exploring Blockchain-Based Alternative Dispute Resolution: Limitations of Traditional Methods and Prospects for Further Research (SSRN 11.2022)


Jurisprudência 2023 (149)


União de facto; direito de habitação e de uso;
competência material


1. O sumário de RL 14/9/2023 (3080/22.4T8CSC.L1-2) é o seguinte:

I - Pelo menos quando está em causa uma fracção autónoma habitada de facto pelo morador usuário de forma permanente, os direitos de habitação e de uso de recheio, atribuídos pelo artigo 5/1-2 da Lei 7/2001, são exclusivos, no sentido de eles não terem de ser partilhados com os herdeiros do unido de facto falecido que era o proprietário da casa ou com alguém a quem eles a arrendassem.

II – O litígio relativo a estes direitos não é uma questão relativa à família para os efeitos do artigo 122/1-g da LOSJ, pelo que a competência para a causa respectiva não é dos juízos de família e de menores.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"J, divorciado, intentou no Juízo de Família e Menores de Cascais contra A, solteira, residente na mesma morada do autor, na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito da sua progenitora M, uma acção que qualificou de declarativa de simples apreciação, pedindo que se declarasse:

(i) A existência da união de facto entre o autor e a referida progenitora desde 1992; (ii) Que a fracção [que identifica e que é a morada do autor], [era] a casa de morada da família dos membros da união de facto; (iii) que o autor é titular do direito real de habitação exclusivo sobre a fracção urbana supra descrita por período equivalente àquele que durou a união; (iv) que o autor é titular do direito exclusivo do uso do recheio da referida fracção, pelo mesmo período; enfim, (v) Que [se] ordene o averbamento do direito real de habitação do autor na Conservatória do Registo Predial. [...]

A decisão recorrida tem a seguinte fundamentação.

Encontra-se elencada nos artigos 122 a 125 da Lei 62/2013, de 26/08 [LOSJ], a competência dos juízos de Família e Menores.

Ora, estabelece o artigo 122/1 que: Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: […] (b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum; (…) (g) Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família.

Contudo, como bem refere a ré, com a presente acção pretende o autor o reconhecimento de um direito real de habitação sobre um imóvel e o direito de uso sobre o respectivo recheio, não estando em causa qualquer providência relativa à utilização da casa de morada de família na sequência de uma dissolução de união de facto (cf. artigo 990/1 do CPC), uma vez que o que o autor pretende não é que lhe seja atribuído o uso da casa de morada de família, uso esse que já tem, mas que o tribunal reconheça que a filha da falecida […], herdeira desta, não possa, também, residir nessa mesma casa.

Ora, tal pretensão não consubstancia qualquer processo de jurisdição voluntária relativo a situação de união de facto, nem qualquer “acção relativa ao estado civil das pessoas e família”, uma vez que sendo, na perspectiva do autor, fundamento da acção a união de facto, tal relação familiar teria, necessariamente, que se reconduzir à al. (b), onde está expressamente prevista e não à al. (g) que, naturalmente, compreende situações que não mostrem elencadas na alíneas anteriores.

Por conseguinte, conclui-se, face do exposto, que este Juízo de Família e Menores não é materialmente competente para a decisão desta acção.

*
Apreciação:

Pressuposto aparente do decidido é a consideração de que não está em causa, no caso, qualquer providência relativa à utilização da casa de morada de família na sequência de uma dissolução de união de facto […], uma vez que o que o autor pretende não é que lhe seja atribuído o uso da casa de morada de família, uso esse que já tem, mas que o tribunal reconheça que a filha da falecida […], herdeira desta, não possa, também, residir nessa mesma casa.

Isto na sequência das “excepções” deduzidas pela ré, na segunda das quais defendia que o autor não podia ter os direitos exclusivos que se arrogava porque não dizia ser o comproprietário da fracção nem do recheio e só nestes casos aqueles direitos são exclusivos (esta defesa não é uma excepção, mas uma impugnação: art. 571/2 do CPC: “O réu defende-se por impugnação quando […] afirma que [os factos articulados na petição] não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor; […]”) Invocava como suporte para tal a interpretação que faz do art. 5/3 da LUF.

O artigo 5 da LUF (na redacção que resulta da Lei 23/2010, de 30/08), dispõe, na parte que interessa, o seguinte sobre a protecção da casa de morada da família em caso de morte:

1 - Em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada da família e do respectivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio.
2 - No caso de a união de facto ter começado há mais de cinco anos antes da morte, os direitos previstos no número anterior são conferidos por tempo igual ao da duração da união.
3 - Se os membros da união de facto eram comproprietários da casa de morada da família e do respectivo recheio, o sobrevivo tem os direitos previstos nos números anteriores, em exclusivo.

Posto isto,

O direito real habitação da casa de morada de família e o direito de uso do recheio são o direito de habitação e o direito de uso previstos nos artigos 1484 a 1490 do Código Civil
.
Ora, a propósito destes, diz José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, página 779, ao tratar do direito real de habitação [com referência ao art. 1484/2 do CC]: “Quanto ao uso, e tendo em conta o sentido de que demos conta no ponto anterior, estamos convictos que ele se reveste de exclusividade, mesmo que as necessidades do morador usuário ou da sua família se limitem a uma parte dela. Não vemos como fundamentar que o morador usuário deva tolerar na sua casa a presença do proprietário ou de um estranho ao qual o último cedeu o gozo da parte não usada pelo morador usuário só porque as necessidades da sua família não esgotam as possibilidades de uso do objecto. […]”

Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, UCE, 2017, pág. 434, por razões ligadas à dignidade humana, adere a esta solução neste tipo de casos, embora não concorde, em termos gerais, com a tese da exclusividade.        
 
Marta Sá Rebelo, Comentário ao CC, Direito das Coisas., UCP/FD/UCE, 2021, que também não concorda com a tese da exclusividade – pág. 630, parte final de II - lembra que “em determinadas circunstâncias, razões de privacidade ou outras exigências do princípio da dignidade da pessoa humana poderão determinar, em concreto, que a faculdade de uso seja exercida em exclusivo pelo proprietário”  - obra citada, pág. 632, parte final de 6.IV.

Guilherme de Oliveira (Manual de direito da família, Almedina, pág. 359) pronunciando-se sobre o art. 5/3 da LUF diz o seguinte:

“760. No caso de os membros da união de facto serem comproprietários do imóvel, reconhece-se ao sobrevivo um direito de uso exclusivo da coisa comum durante os prazos estabelecidos no art. 5.°. Se eles fossem os únicos comproprietários, talvez fosse inútil qualquer referência, pois se a lei dava o direito real de habitação ao sobrevivo quando o falecido fosse o proprietário único do imóvel, por maioria de razão se aceitaria que o sobrevivo comproprietário beneficiasse do direito de usar a habitação contra uma eventual pretensão dos herdeiros da quota do falecido. Se os membros da união de facto não fossem os únicos comproprietários, e porventura até tivessem quotas inferiores às de outros consortes, pode valer a pena esclarecer que o membro sobrevivo tem um direito de uso exclusivo da coisa comum os termos referidos, para impedir que os outros comproprietários reclamem a possibilidade de um uso concorrente (art. 5.°, n. 3, LUnFac).”

No mesmo sentido, Maria Margarida Silva Pereira, Direito da Família, Nova Causa, Edições Jurídicas, 2016, pág. 404, diz:

“O n.º 3 do art. 5.º vem atribuir ao membro sobrevivo a titularidade exclusiva do direito de uso e habitação no caso de ser comproprietário da casa de morada de família. Vertido o direito no art. 1406.º do CC, nos termos do mesmo, qualquer dos comproprietários poderia reclamar este uso. Através de um regime especial para o membro sobrevivo da união de facto, a lei afasta essa possibilidade.

Trata-se de uma norma que reforça os direitos do membro sobrevivo, a quem a lei confere regime mais benéfico do que aquele que resultaria da compropriedade.”

No mesmo sentido, já ia Guilherme de Oliveira, Notas sobre a Lei n.º 23/2010, de 30/08 (Alteração à Lei das Uniões de facto), na Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 7, n.º 14, julho/dezembro de 2010, páginas 145/146:

"16. A lei anterior não estabelecia uma protecção para o caso de os membros da união de facto serem comproprietários do imóvel; deixava a solução para o regime geral da compropriedade, que autoriza qualquer dos consortes a usar a coisa comum, mas permite aos outros reclamar um uso semelhante.

A lei nova reconhece um direito de uso exclusivo da coisa comum, durante certos prazos, para impedir que os outros comproprietários reclamem a possibilidade de um uso concorrente (segundo o art. 1406 do CC).”

Portanto, a lei não previu a exclusividade apenas para o caso de os unidos serem [os únicos] comproprietários. Pelo contrário, previu-a expressamente para o caso de eles serem, com outrem, comproprietários.

Ora, se a lei, para esta hipótese, de haver outros comproprietários, esclareceu que os direitos do morador usuário eram exclusivos, de modo a afastar outros comproprietários desse uso (que, de outro modo, lhes permitido pelo art. 1406 do CC), é porque pressupõe que os direitos, no caso de o unido de facto falecido ser o único proprietário, são exclusivos (daí os termos usados acima por Guilherme de Oliveira: “[…] pois se a lei dava o direito real de habitação ao sobrevivo quando o falecido fosse o proprietário único do imóvel por maioria de razão se aceitaria que […]”).

Pelo que, o n.º 3 do art. 5 da LUF não só não favorece a interpretação feita pela ré e pelo despacho recorrido, como, pelo contrário, dele resulta que estes direitos, ao menos quando atribuídos por leis de protecção, são exclusivos.

Mesmo que não se entenda assim, em termos genéricos, pelo menos no caso em que está em causa uma fracção autónoma (que terá no máximo uns 120m2, sendo provável que tenha ainda menos, talvez 80m2, se cada andar tiver três fracções, como indicia o facto de a fracção em causa nos autos, no 4.º andar, ser a fracção N) habitada de facto pelo morador usuário de forma permanente, os direitos em causa (de habitação da casa e do recheio da mesma), atentas as razões de privacidade ligadas com a dignidade da pessoa humana, não pode deixar de ser exclusivo, no sentido de ele não ter de partilhar a casa com os herdeiros do unido de facto falecido que era o proprietário da casa, isto é, com os actuais proprietários da casa, ou com alguém a quem eles a arrendassem.

Em sentido contrário conhece-se apenas a posição da autora citada acima [mas também é verdade que, de todos os autores invocados pela autora, apenas os acima mencionados tomam posição sobre a questão], Marta Sá Rebelo, quando, na obra citada, sugere, com o exemplo que dá (pág. 648, anotação ao art. 1489 do CC), que uma fracção autónoma com mais de que um quarto pode ser objecto de um direito de habitação não exclusivo. Sendo que a própria autora reconhece que não é assim que as coisas normalmente acontecem (mas não dá exemplos de casos em que outra coisa tenha acontecido), isto é, que “no direito real de habitação o mais comum é o usuário ocupar toda a casa de morada […]”, pág. 649.

Sendo assim, os pedidos (iii) e (iv) formulados pelo autor não são mais do que a formalização da pretensão de que fique esclarecido aquilo que, no caso, resulta dos direitos em causa (ou seja, a provarem-se os factos e a existirem os direitos, eles serão exclusivos, mesmo que o autor não tivesse pedido que isso fosse declarado), ao contrário do defendido pela ré e pela decisão recorrida, não consubstanciando uma pretensão autónoma de exclusão da ré do uso daqueles bens.

*
Mas o fundamento do despacho recorrido não é só esse e, mesmo que não se concorde com o modo como o outro foi formulado, a ré e o despacho recorrido acabam por ter razão.

No caso, não há dúvida de que a hipótese dos autos não tem a ver com a do art. 122/1-b da LOSJ.

Pelo que a outra hipótese de enquadramento que salvasse a posição do autor seria só a do artigo 122/1-g da LOSJ. E, assim sendo, para que o caso coubesse nesta hipótese, teria de se entender que ele dizia respeito a uma relação familiar.

Ora, o efeito prático-jurídico visado pelo autor é que fique a ter os direitos reais de habitação e de uso do recheio dessa habitação. Estes direitos não dizem respeito a uma relação familiar, mas sim a relações reais.

Os direitos em causa estão dependentes de pressupostos que são objecto de pedidos autónomos, mas esses pressupostos não deixam, por isso, de ser pressupostos.

Ou seja, os direitos em causa existirão se o autor tiver vivido com a proprietária da fracção autónoma em causa numa união de facto protegida. A existência destes pressupostos é uma questão prejudicial dos direitos que o autor pretende ter, mas a decisão dessa questão prejudicial não é o efeito prático jurídico visado pelo autor.

Isto é, o objecto dos pedidos (i) e (ii) é o objecto de questões prejudiciais para as quais, mesmo que um outro tribunal fosse competente, o tribunal que fosse competente para os pedidos (iii) e (iv) poderia conhecer por força dos artigos 91/1 e 92/1 do CPC.

Pelo que, ao contrário do que o autor defende, o facto de o pedido (i) poder ser da competência dos juízos de família e de menores como é defendido por parte da jurisprudência que ele invocou e que é também a posição do relator deste acórdão, e de o pedido (i) ser um pressuposto dos outros pedidos, não implica que a competência para o conhecimento dos pedidos (iii) e (iv) também fosse da competência dos juízos de família e de menores.

*
O efeito da incompetência absoluta é o da absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar (art. 99/1 do CPC). Mas, não havendo despacho liminar, ou já tendo o réu contestado, o efeito não pode ser o de indeferimento liminar.

Assim, o autor tem razão quanto a ter sido errado o indeferimento liminar decretado pelo despacho recorrido. 

[MTS]

11/04/2024

Jurisprudência europeia (TJ) (302)


Reenvio prejudicial — Princípios do direito da União — Artigo 4.°, n.° 3, TUE — Princípio da cooperação leal — Autonomia processual — Princípios da equivalência e da efetividade — Princípio da interpretação conforme do direito nacional — Legislação nacional que prevê uma via de recurso extraordinária que permite a reabertura de um processo civil encerrado por sentença transitada em julgado — Fundamentos — Decisão posterior de um Tribunal Constitucional que declara a incompatibilidade com a Constituição de uma disposição de direito nacional com base na qual essa sentença foi proferida — Privação da possibilidade de agir devido a uma violação do direito — Aplicação extensiva dessa via de recurso — Alegada violação do direito da União decorrente de um acórdão posterior do Tribunal de Justiça que se pronuncia sobre a interpretação deste direito ao abrigo do artigo 267.° TFUE — Diretiva 93/13/CEE — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Sentença proferida à revelia — Não verificação oficiosa do caráter eventualmente abusivo das cláusulas contratuais


TJ 9/4/2024 (C‑582/21FY / Profi Credit Polska) decidiu o seguinte:

1)      O artigo 4.°, n.° 3, TUE e o princípio da equivalência

devem ser interpretados no sentido de que:

quando uma via de recurso extraordinária estabelecida por uma disposição processual nacional permite que um particular requeira a reabertura de um processo que deu origem a uma decisão judicial transitada em julgado através da invocação de uma decisão posterior do Tribunal Constitucional do Estado‑Membro em causa que declara a desconformidade com a Constituição ou com outra norma hierarquicamente superior de uma disposição de direito nacional, ou de uma determinada interpretação dessa disposição, com base na qual essa sentença foi proferida, não impõem que essa via de recurso também possa ser exercida através da invocação de uma decisão do Tribunal de Justiça que se pronuncie a título prejudicial sobre a interpretação do direito da União, nos termos do artigo 267.° TFUE, desde que as consequências concretas de tal decisão desse Tribunal Constitucional no que respeita à disposição de direito nacional, ou à interpretação de tal disposição, na qual se baseia a referida sentença transitada em julgado resultem diretamente desta decisão.

2)      O princípio da interpretação conforme do direito nacional

deve ser interpretado no sentido de que:

cabe ao órgão jurisdicional nacional apreciar se uma disposição de direito nacional que estabelece uma via de recurso extraordinária, que permite a uma parte requerer a reabertura de um processo encerrado por decisão judicial transitada em julgado se tiver sido privada da possibilidade de agir devido a uma violação do direito, pode ser objeto de interpretação extensiva por forma a incluir no seu âmbito de aplicação a situação na qual o juiz que julgou procedente um pedido de um profissional baseado num contrato celebrado com um consumidor, por decisão judicial transitada em julgado proferida à revelia, não examinou oficiosamente esse contrato à luz da eventual existência de cláusulas abusivas, em violação das obrigações que lhe incumbiam por força da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, e na qual se verifique que as modalidades processuais do exercício por esse consumidor do direito de deduzir oposição a essa sentença proferida à revelia são de molde a criar um risco não negligenciável de que o consumidor renuncie a esse direito e não permitem, por conseguinte, assegurar o respeito dos direitos que esta diretiva lhe confere. Se tal interpretação extensiva não for concebível devido aos limites constituídos pelos princípios gerais do direito e pela impossibilidade de proceder a uma interpretação contra legem, o princípio da efetividade impõe que o respeito desses direitos seja assegurado no âmbito de um processo de execução dessa sentença proferida à revelia ou de um processo subsequente distinto.


Jurisprudência 2023 (148)


Procedimento de injunção;
"outras quantias devidas"


1. O sumário de RP 12/7/2023 (3889/21.6T8VLG-A.P1é o seguinte:

Não cabe no âmbito das “outras quantias devidas”, no que respeita ao procedimento de injunção geral, o pedido de pagamento de encargos associados à cobrança da dívida, os quais constituem danos decorrentes do incumprimento contratual, não sendo obrigação directamente emergente do contrato.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Nos termos do art. 7º do diploma anexo ao D.L. 269/98, de 01/09, considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro [referência actualmente para o D.L. 62/2013, de 10/05, por força do disposto no art. 13º, nºs 1 e 2, deste diploma, que revogou aquele].

Sendo que no art. 1º do D.L. 269/98, de 01/09 (diploma preambular) se afirma a aprovação do regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15 000.

Portanto, não há dúvidas de que a injunção é um procedimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, ou seja de obrigações pecuniárias que decorram directamente de contratos celebrados entre as partes. Está em causa o cumprimento do contrato, ainda que de forma coerciva, e não as consequências do incumprimento, designadamente ao nível indemnizatório.

Este procedimento pode ser utilizado para exigir créditos decorrentes do próprio acordo contratual, mas “não tem a virtualidade de servir para obter indemnização no âmbito da responsabilidade civil contratual ou extracontratual ou com base no enriquecimento sem causa” (cfr. Salvador da Costa, A Injunção e as Conexas Ação e Execução, Almedina, 8ª ed., 2021, pág. 13).

É, porém, questionado o sentido da expressão “outras quantias devidas”, constante do art. 10º, nº 2, al. e), do diploma anexo ao D.L. 269/98, com a epígrafe “Forma e conteúdo do requerimento” e com o seguinte teor:

1 - O modelo de requerimento de injunção é aprovado por portaria do Ministro da Justiça.
2 - No requerimento, deve o requerente:
a) (…);
b) (…);
c) (…);
d) Expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão;
e) Formular o pedido, com discriminação do valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas (…)

Discute-se se a referida expressão “abrange ou não os juros vincendos, as despesas administrativas do contrato, incluindo as de expediente concernentes às comunicações de advogados e os honorários a estes pagos pelo requerente”, justificando-se, “a propósito da interpretação do referido segmento normativo”, “a distinção entre o procedimento de injunção geral” “e o especial, previsto no Decreto-Lei no 62/2013” (cfr. ob e aut. cits., pág. 76).

O D.L. 62/2013, de 10/05, que respeita às obrigações emergentes de transacções comerciais, relativamente às quais o credor se pode socorrer também do procedimento de injunção, neste caso sem limite de valor, dispõe, no seu art. 7º, com a epígrafe, “Indemnização pelos custos suportados com a cobrança da dívida”, que quando se vençam juros de mora em transacções comerciais, nos termos dos artigos 4.º e 5.º, o credor tem direito a receber do devedor um montante mínimo de 40,00 EUR (quarenta euros), sem necessidade de interpelação, a título de indemnização pelos custos de cobrança da dívida, sem prejuízo de poder provar que suportou custos razoáveis que excedam aquele montante, nomeadamente com o recurso aos serviços de advogado, solicitador ou agente de execução, e exigir indemnização superior correspondente.

Não existe norma semelhante no D.L. 269/98, de 01/09, não obstante este ter sido alterado em 2019 (pela Lei nº 117/2019, de 13/09), já muito depois do D.L. 62/2013. Caso o legislador entendesse que deveria contemplar solução semelhante nos casos do procedimento geral de injunção, poderia tê-lo feito nesta altura, pelo que, se não o fez, foi porque entendeu que uma tal norma não tinha cabimento neste procedimento. Note-se que, de acordo com o disposto no art. 9º, nº 3, do Código Civil, o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

E compreende-se que assim seja, pois, como se vê do preâmbulo do D.L. 62/2013, este diploma visou transpor para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16/02/2011, resultando a norma em causa precisamente de uma imposição da Directiva, que regula todas as transacções comerciais (e só estas), não se aplicando nomeadamente às transacções com os consumidores (o que também sucede com o Decreto-Lei em causa, como decorre do seu art. 2º, nº 2, al. a), que exclui do âmbito de aplicação deste os contratos celebrados entre consumidores – que é o caso dos autos).

Assim, afigura-se-nos que a indemnização prevista no art. 7º do D.L. 62/2013 não se aplica ao procedimento geral de injunção (neste sentido, Salvador da Costa, ob. cit., pág. 76).

Ademais, há que ter em conta que estando em causa obrigações pecuniárias emergentes de contrato “as referidas quantias a que se reporta o normativo, hão-de resultar do que foi objecto do contrato em causa” (cfr. Joel Timóteo Ramos Pereira, Revista Julgar, nº 18, pág. 116, citando Salvador da Costa).

Daí que se entenda que não cabe no âmbito das “outras quantias devidas”, no que respeita ao procedimento de injunção geral, o pedido de pagamento de encargos associados à cobrança da dívida, os quais constituem danos decorrentes do incumprimento contratual, não sendo obrigação directamente emergente do contrato (tanto assim que, como se viu, no caso das transacções comerciais foi necessário criar uma norma expressa a prever tal pagamento, o que não seria preciso se tais quantias se considerassem “obrigação emergente do contrato”).

Conforme se diz no Ac. da R.L. de 25/05/2021, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de processo 113862/19.2YIPRT.L1-7, citando Paulo Duarte Teixeira (in revista “Themis”, nº 13), “só pode ser objeto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias diretamente emergentes do contrato, mas já não pode ser peticionado naquela forma processual obrigações com outra fonte, nomeadamente, derivada de responsabilidade civil. O pedido processualmente admissível será, assim, a prestação contratual estabelecida entre as partes cujo objeto seja em si mesmo uma soma de dinheiro e não um valor representado em dinheiro”.

Neste sentido, para além do acabado de referir, podem ver-se, entre outros, os Acs. da R.P. de 07/06/2021, com o nº de processo 2495/19.0T8VLG-A.P1 (citado pela recorrente como defendendo a sua posição, certamente por lapso, pois, lido com atenção, verifica-se que neste acórdão igualmente se entendeu que a “indemnização pelos custos administrativos e internos associados à cobrança da dívida (…) não deixa de ser um direito indemnizatório concernente à responsabilidade contratual que, como vimos, não pode ser exercido através do mecanismo simplificado da injunção”), de 27/09/2022, com o nº de processo 418/22.8T8VLG.-A.P1, e de 08/11/2022, com o nº de processo 901/22.5T8VLG-A.P1, da R.L. de 28/04/2022, com o nº de processo 28046/21.8YIPRT.L1-8, e da R.E. de 15/09/2022, com o nº de processo 2274/20.1T8ENT.E1, todos publicados em www.dgsi.pt.

Não desconhecemos a existência de jurisprudência que defende que podem ser peticionadas no procedimento de injunção as despesas tidas com a cobrança da dívida (cfr. Ac. da R.L. de 17/12/2015, com o nº de processo 122528/14.9YIPRT.L1-2, Ac. da R.C. de 25/10/2016, com o nº de processo 166428/15.5YRPRT.C1, e Ac. da R.P. de 11/10/2018, com o nº de processo 99372/17.8YIPRT.P1), porém, afigura-se-nos que o entendimento que supra expusemos e que é o defendido na jurisprudência mais recente (que citamos) é o mais consentâneo com o regime legal simplificado do procedimento de injunção geral (o que não decorre de transacções comerciais) tal como foi delineado pelo legislador.

Não assiste, pois, razão à recorrente, não sendo possível peticionar a referida quantia de € 100,00 “a título de indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida” no procedimento injuntivo, justificando-se o indeferimento liminar parcial do requerimento executivo nessa parte."

[MTS]