abuso de direito; embargos de terceiro*
1. O sumário de RC 26/11/2024 (1513/16.8T8GRD-A.C2) é o seguinte:
I - O princípio da confiança exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas, numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.
Para sustentar a sua pretensão, o Embargante alegou, em síntese:
No processo executivo ao qual os presentes embargos se encontram apensos foi penhorado, em 04.06.2018, o imóvel identificado como “Prédio urbano, Casa de altos e baixos que serve de escola do ensino primário, pendências e logradouro, com área total 476,00 m2, sendo a área coberta de 296,00 m2, situada na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., distrito ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo ...28 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...98”.
O referido imóvel é, há mais de sessenta anos, a sua casa de morada de família, alegando factos tendentes à sua aquisição originária.
Em 1995, essencialmente por razão de favor, conveniência e amizade com o Sr. BB, e a pedido deste, acedeu em ajudar a obter para este e sua companheira, CC, um empréstimo bancário junto da Banco 1... no valor de onze mil e quinhentos contos.
Para tal, para que pudesse servir de garantia do empréstimo, colocou o referido prédio em nome da referida CC, tendo, porém, ficado combinado que logo que estivesse tal valor pago à Banco 1..., deveria imediatamente ser escriturado “em sentido inverso” o dito imóvel, e portanto, para a titularidade do embargante.
A vontade real, no caso em apreço, nunca foi a de vender, nem de comprar, a casa do embargante, não tendo nenhum preço sido pago ou recebido, como também nenhuma verdadeira transferência da posse e da titularidade ocorreu.
O Tribunal recorrido considerou a existência do direito de propriedade do Embargante, mas entendeu que o seu exercício contra o credor era abusivo.
Nesse pressuposto, também nós entendemos que tal exercício é abusivo.
Porém, antes mesmo da avaliação do abuso, existe algo que nos parece essencial e não foi considerado.
O Embargante tem a posse, não há dúvida. Mas, ao realizar a escritura de compra e venda, aquele mudou a titulação da posse, ou seja, esta deixou de estar titulada pelo direito de propriedade.
Para voltar a ocorrer uma nova mudança de título relativa ao domínio do prédio em questão, a posição do Embargante tinha de traduzir-se em atos ostensivos, positivos e inequívocos de oposição, levados ao conhecimento dos específicos interessados.
A inversão do título vem prevista na al. d) do art. 1263.º e 1265.º do Código Civil.
Para a inversão não basta um mero aproveitamento da inércia de outrem.
(Ver acórdão do STJ de 17.12.2014, processo nº1313/11, em www.dgsi.pt., no qual se cita: “O detentor há-de tornar diretamente conhecido da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial quer extrajudicialmente) a sua intenção de atuar como titular do direito”.)
No caso e para com o credor, o Embargante manteve uma aparência de detenção, pois a posse tinha perdido o seu título originário, pela venda.
De qualquer maneira, ainda que se entenda que o Embargante tem o direito de propriedade, o seu exercício neste caso é abusivo.
Por um lado, tendo resultado provado que a Banco 1..., então credora hipotecária, agora substituída pela “B...”, é terceiro de boa fé, porquanto desconhecia qualquer carácter desconforme dos negócios celebrados, ainda que se provassem as simulações, estas seriam inoponíveis àquele de boa fé (artigo 243, n.º 1, do Código Civil).
Por outro lado, no âmbito do artigo 334 do Código Civil, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
No abuso do direito estamos perante posições jurídicas contrárias aos valores estruturantes do sistema jurídico.
É um limite indeterminado ao comportamento jurídico, que passa pelos conceitos de fim, de bons costumes e de boa fé.
Trata-se de um conceito indeterminado, que carece de um processo de concretização para melhor aplicar a justiça ao caso concreto.
Há, assim, necessidade de surpreender grupos típicos de comportamentos abusivos frente a "um universo informe de comportamentos inadmissíveis" - M. Cordeiro, Boa Fé, 1997, página 719.
Têm sido considerados grupos típicos: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegalidades formais, a suppressio e a surrectio, o tu quoque e finalmente o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
A locução venire contra factum proprium exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assuma comportamentos contraditórios.
Parte-se de uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objetivamente considerada, é de molde a criar noutrem uma situação objetiva de confiança, ou seja, a convicção de que aquele sujeito jurídico se comportará, no futuro, coerentemente com aquela conduta. É necessário que, com base na situação de confiança criada, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe resultarão danos se a sua confiança legítima vier a sair frustrada.
Como refere Menezes Cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil”, Teses, Almedina, 2007, página 745), o abuso de direito nesta modalidade postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si mas diferidas no tempo. A primeira – o factum proprium – é contrariada pela segunda – o venire. Só se considera como “venire contra factum proprium” a contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento da mesma pessoa.
Mas a contradição a atender está limitada à proteção da confiança: um comportamento não pode ser contraditado quando tenha suscitado a confiança dos sujeitos envolvidos.
O princípio da confiança exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas, numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.
No caso decorre que entre o Embargante e CC foi celebrado um negócio por meio do qual aquele declarou vender e esta declarou comprar o imóvel em causa nestes autos.
O imóvel foi objeto de hipoteca, para garantia de créditos obtidos junto da Banco 1..., que confiou, de forma justificada, em face da escritura e registo, que o imóvel era propriedade de CC.
A celebração do contrato de compra e venda, que teve a intervenção do Embargante, criou em quem visse o registo predial referente ao imóvel a convicção de que não se tratava de bem de sua propriedade, tendo-o vendido.
Assim, a conduta anterior do Embargante – a venda do imóvel – é susceptível e criou uma situação objetiva de confiança, que se traduziu na constituição de uma garantia de um crédito. A Embargada concedeu o crédito com a convicção suportada de que estava garantida por um bem propriedade da mutuária.
A solução passa então por penalizar quem se colocou em situação repudiável.
*3. [Comentário] O acórdão parece orientar-se pelo princípio "dura bona fides, sed bona fides!", pelo que vale a pena ser analisado por especialistas na matéria do exercício abusivo de direitos.
MTS