"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/09/2025

Da impugnação das decisões sobre a competência em razão do território

 

[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]



Jurisprudência 2024 (236)


Falecimento do autor; 
mandato forense; caducidade


1. O sumário de RP 11/12/2024 (288/20.0T8ILH.P1) é o seguinte:

I - À luz do disposto no art. 351º, nº 3, do CPC, numa acção proposta depois de falecido o autor e pretendendo sustentar-se que o processo se não extinga numa das hipóteses previstas no art. 1175º do C. Civil, haverá o advogado que exerceu o mandato depois do falecimento do mandante alegar que o fez sem que soubesse desse falecimento, ou as razões pelas quais, sabendo-o, propôs a acção, em ordem a prevenir prejuízos para os respectivos herdeiros. E de tudo o que alegar deve oferecer a respectiva prova, assim se processando o incidente.

II - O incumprimento do ónus de formulação de requerimento probatório não é susceptível de ser ignorado e superado por via de um convite a aperfeiçoamento.

III - Perante um requerimento instrutório, num incidente de habilitação de herdeiros, em que apenas é oferecida prova sobre a qualidade dos sucessores da parte falecida, mas nada é requerido quanto à verificação de uma excepção apta a permitir a continuidade de uma acção proposta depois do falecimento da autora, excepção esta impugnada pela parte contrária, não cabe ao tribunal convidar o respectivo Il. Mandatário a vir indicar a prova dessa excepção (o seu conhecimento tardio daquele falecimento). Isso constituiria puro atropelo do regime estabelecido no art. 293º do CPC, não legitimado, nem pelo princípio da cooperação (art. 7º), nem pelo princípio do inquisitório (art. 411º).

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dispõe o art. 1175º, do C. Civil, no respectivo nº 2, para o que aqui interessa, que a morte do mandante só faz caducar o mandato a partir do momento em que seja conhecida do mandatário, ou quando da caducidade não possam resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros.

É também pertinente, designadamente face aos argumentos dos apelantes, considerar o disposto nos nºs 1 e 3 do art. 351º do CPC, de onde resulta que se o autor falecer depois de ter conferido mandato para a proposição da ação e antes de esta ter sido instaurada, pode promover-se a habilitação dos seus sucessores quando se verifique algum dos casos excecionais em que o mandato é suscetível de ser exercido depois da morte do constituinte.

Trata-se, neste caso, de uma “habilitação preliminar” no âmbito de um incidente de habilitação, (Geraldes, Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anot, Vol. I, pg. 406, notas 5 e 6 ao art. 351º), na qual os requerentes devem alegar desde logo os factos demonstrativos da legitimidade dos sucessores da parte falecida.

Constata-se, assim, algum paralelismo entre a situação prevista nesse nº 3 e a do falecimento do réu que apenas se vem a conhecer em consequência das diligências tendentes à sua citação, prevista no nº 2 da mesma norma. Aí o legislador pretende assegurar o aproveitamento da instância já iniciada (Geraldes, ob e loc cit., nota 3).

Todavia, na hipótese do falecimento do autor, a instância iniciar-se-á também, mas o seu aproveitamento apenas é tido por justificado caso se verifiquem as circunstâncias que motivam que o mandato mantenha a sua eficácia mesmo depois da morte do mandante, previstas no art. 1175º do C. Civil: quando o mandato não deva ter-se por caducado por a morte do mandante não ser conhecida pelo mandatário, ao tempo do acto praticado no exercício do mandato, ou quando da caducidade possam resultar prejuízos para os herdeiros.

Como refere Alberto dos Reis (CPC Anotado, vol. I, pg. 879), se inexistir risco de tal prejuízo ou se o mandatário propuser a acção sabendo que o mandante já havia falecido, “o processo tem, em tal caso, de ficar sem efeito”. Prossegue este professor: “Verificado algum dos casos excepcionais, é ao mandatário do autor que incumbe fazer a prova de que podia fazer uso do mandato, isto é, da urgência da acção ou da ignorância da morte. (…) incumbe ao mandatário alegar e provar que à data da proposição estava na ignorância da morte do seu constituinte”. A esta mesma solução, que citam, aderem Isabel Alexandre e Lebre de Freitas, CPC Anot, vol. I, pg. 693).

Esta solução é perfeitamente consentânea com a estrutura procedimental do incidente, a que se aplicam as regras do processo comum, atento o disposto no art. 549º. Assim, tal como dispõe a al. d) do nº 1 do art. 552º do CPC, deve o requerimento em que se dá notícia do falecimento do autor, quando apresentado pelo respectivo mandatário, conter os factos essenciais que justificam que tenha exercido o mandato para além do falecimento do mandante e, em ordem ao prosseguimento da acção, sendo essa a vontade, a promoção da habilitação dos respectivos sucessores. E, bem assim, o oferecimento da prova dos factos alegados, em observância do disposto no art. 293º do próprio processo.

Como antes se referiu, havendo de sustentar-se uma pretensão contrária à extinção do processo numa das hipóteses previstas no art. 1175º do C. Civil, haverá o advogado que exerceu o mandato depois do falecimento do mandante alegar que o fez sem que soubesse desse falecimento, ou as razões pelas quais, sabendo-o, propôs a acção, em ordem a prevenir prejuízos para os respectivos herdeiros. E de tudo o que alegar deve oferecer a respectiva prova, assim se processando o incidente.

Trata-se, cumpre ter presente, de justificar uma solução excepcional, tolerada pelo legislador por razões de ordem pragmática, pois que o resultado normal da situação, isto é, da propositura de uma acção depois de falecido o autor, com a natural caducidade do mandato que era pressupostos dessa propositura, seria a da extinção da instância.

No caso em apreço, do requerimento apresentado em 26/1/2024, em que a Il. Mandatária dá conta do falecimento da autora, extrai-se não apenas a informação sobre o falecimento, mas também a afirmação de que a signatária só após ser notificada do despacho saneador é que tentou contactar a autora e que então é que tomou conhecimento, por isso lhe ter sido relatado através da sobrinha, que a mesma havia falecido. Sucessivamente, logo a 29/1, foi deduzido o incidente de habilitação de herdeiros, no qual apenas foi oferecida prova relativamente á sucessão.

Depois, na sequência da oposição oferecida ao incidente requerido pelos sucessores da falecida, a Il. Mandatária complementou o alegado sobre o seu tardio conhecimento do falecimento da autora, tratando de o justificar, mas continuando sem oferecer qualquer prova do alegado.

É, assim, fácil de constatar que a Il. Advogada não deixou de invocar, logo quando veio informar do falecimento da autora, que apenas teve conhecimento desse facto em momento ulterior à propositura da acção, designadamente após a notificação do saneador que havia sido proferido; mas também o é que não requereu logo o incidente de habilitação, embora o tenha feito no 1º dia útil seguinte (26/1: sexta-feira; 29/1: segunda-feira), bem como que não ofereceu qualquer prova sobre as circunstâncias que pudessem levar o tribunal a dar por verificado aquele pressuposto do art. 1175º,, isto é, o conhecimento do falecimento em momento ulterior à propositura da acção.

Atento o regime anteriormente descrito, só pode concluir-se que o mesmo não foi estritamente cumprido.

Respondidas, nestes termos, as duas primeiras questões em que se desenvolvia o objecto do recurso, a questão que se coloca de seguida é se, nas específicas circunstâncias do caso, o tribunal deveria ter convidado ao suprimento das irregularidades apontadas, não devendo extrair-se da sua verificação – a falta de requerimento imediato da habilitação de herdeiros e a falta de motivação e oferecimento de prova quanto ao conhecimento tardio do falecimento da autora – a consequência que veio a ser decretada.

A questão mostra-se prejudicada quanto ao requerimento de habilitação de herdeiros, pois que o incidente foi deduzido imediatamente e antes de qualquer pronúncia do tribunal sobre o tema.

Por outro lado, no requerimento de 26/1/2024, como já se referiu, a signatária alegou o facto essencial à viabilidade do prosseguimento da acção: o conhecimento do óbito já depois do falecimento da autora, aquando da tentativa de contacto que redundou na informação do óbito prestada pela sobrinha, a referida BB. Perante tal facto, os demais relativos à justificação para esse conhecimento tardio são factos complementares, cuja falta de alegação anterior não é apta a determinar o indeferimento. Não há preclusão em relação ao aproveitamento de tais factos se, em sede de decisão do incidente, o tribunal os vier a ter por úteis.

Por fim, não foi oferecida qualquer prova quanto a tal conhecimento tardio. Deverá esta circunstância determinar a rejeição da análise desse pressuposto da continuidade da acção?
Reconheceu-se já o incumprimento do regime do art. 293º do CPC.

Mas os próprios apelantes vêm pronunciar-se sobre a questão, afirmando: “…caso o tribunal tivesse dúvidas relativamente aos factos alegados pela mandatária da autora, deveria ter promovido a produção de prova que considerasse pertinente.” (art. 92º das alegações).

O regime processual dos incidentes de instância comporta momentos estanques, de que resulta a preclusão para o exercício de direitos processuais que não tenham sido efectivados. A um articulado inicial e a um articulado de oposição, que compreendem a alegação de factos e a formulação de requerimentos probatórios, sucede-se unicamente a produção de prova e subsequente decisão.

O incumprimento do ónus de formulação de requerimento probatório não é susceptível de ser ignorado e superado, por exemplo, por via de um convite a aperfeiçoamento. O princípio do inquisitório, tal como consagrado no art. 411º do CPC, não serve para que o tribunal se substitua às partes, produzindo no processo aquilo que qualquer delas, em momento próprio, deixou por declarar pretender. Isso constituiria uma violação de princípios como o da imparcialidade e do dispositivo.

Acresce que as rés B... e A... impugnaram a alegação da Il. Mandatária da autora quanto ao seu desconhecimento de que, à data da propositura da acção, aquela já tinha falecido, designadamente em face do disposto no art. 1176º,nº 1 do C. Civil e em atenção ao facto de que BB era, ela própria, procuradora da autora falecida.

Por conseguinte, perante um requerimento instrutório, num incidente de habilitação de herdeiros, em que apenas é oferecida prova sobre a qualidade dos sucessores da parte falecida, mas nada é requerido quanto à verificação de uma excepção apta a permitir a continuidade de uma acção proposta depois do falecimento da autora, excepção esta impugnada pela parte contrária, não cabe ao tribunal convidar o respectivo Il. Mandatário a vir indicar a prova dessa excepção (o seu conhecimento tardio daquele falecimento). Isso constituiria puro atropelo do regime estabelecido no art. 293º do CPC, não legitimado nem pelo princípio da cooperação (art. 7º), nem pelo princípio do inquisitório (art. 411º).

Rejeita-se, pois, frontalmente a afirmação supra citada, constante do art. 92º das alegações recursivas, atribuindo ao tribunal a incumbência da produção de prova sobre tal matéria, em face da total omissão dos requerentes a esse propósito.

Pelo exposto, em face do regime acima descrito, cumpre concluir que, tendo ocorrido o falecimento da autora em momento anterior ao da propositura da acção e não se podendo vir a dar por adquirido que a Il. Mandatária subscritora da p.i. só em momento ulterior ao dessa propositura teve conhecimento daquele anterior falecimento, porquanto não se propôs demonstrá-lo através de qualquer meio de prova, não poderá reconhecer-se a verificação da excepção prevista no art. 351º, nº 3 do CPC.

Consequentemente deverá reconhecer-se a caducidade do mandato já à data da propositura da acção, tal como afirmado na decisão recorrida, em razão do disposto no art. 1174º, al. a) do C.Civil."

[MTS]

19/09/2025

Jurisprudência 2024 (235)


Danos não patrimoniais;
indemnização civil; carácter punitivo*


1. O sumário de RG 18/12/2024 (689/21.7T8VRL.G1) é o seguinte:

I - A privação do gozo de uma coisa pelo titular do respetivo direito constitui um ilícito que o sistema jurídico prevê como fonte da obrigação de indemnizar, pois que, por norma ou regra, essa privação impede o respetivo titular de dela dispor e fruir as utilidades próprias da sua natureza.

II - Não tem sido consensual quer na doutrina quer na jurisprudência o entendimento de que o nosso ordenamento jurídico-civil admite a condenação em danos punitivos.

III- Aceitar a possibilidade de condenação em danos punitivos é admitir que existe uma função punitiva na responsabilidade civil com autonomia sobre a ressarcitória, reabilitando assim o conceito de punição civil.

IV - A figura do dano punitivo implica uma reflexão sobre a ilicitude e a culpa do agente, e assume um escopo de cariz preventivo e sancionatório do comportamento do lesante, constituindo uma alternativa civil à tutela penal, e que supera a via indemnizatória, representando uma via eficaz e acentuando a finalidade punitiva da responsabilidade civil.

V- Os direitos de personalidade foram pensados para as pessoas singulares, pois estão indissoluvelmente ligados à pessoa humana, e embora as pessoas coletivas possam gozar de alguns direitos de personalidade (direitos à honra, ao bom nome, imagem social e reputação), tal não conduz ao reconhecimento do direito à reparação por danos não patrimoniais por uma eventual lesão de algum desses direitos.

VI – Como defende o Prof. Pinto Monteiro a razão de ser da não ressarcibilidade dos danos não patrimoniais das pessoas coletivas é a mesma, num caso e no outro: a suscetibilidade de reparação por danos não patrimoniais, através de uma quantia pecuniária, pressupõe a personalidade humana.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

3.2.9. Danos não patrimoniais e danos punitivos

No que respeita aos danos não patrimoniais e “danos punitivos”, importará separar as águas, definir conceitos e colocar as questões que a montante se impõem, quais sejam a de saber se a responsabilidade civil tem uma função punitiva e se têm as pessoas coletivas direito a uma indemnização por danos não patrimoniais.

Aceitar a possibilidade de condenação em danos punitivos é admitir que existe uma função punitiva na responsabilidade civil com autonomia sobre a ressarcitória, reabilitando assim o conceito de punição civil.

Não tem sido consensual quer na doutrina quer na jurisprudência o entendimento que o nosso ordenamento jurídico-civil admita a condenação em danos punitivos.

No início de vigência do Código Civil de 1966, a doutrina já reconhecia à responsabilidade civil uma finalidade sancionatória ou punitiva, embora de natureza secundária e subordinada à função reparadora. O seu fundamento apoiava-se nas normas que conferiam ao julgador, na fixação da indemnização, o recurso ao critério assente no grau de culpabilidade do agente (arts. 494.º, 497.º, n.º 2 e 570.º).

Antunes Varela afirmava a propósito que a função preventiva ou repressiva da responsabilidade civil, subjacente aos requisitos da ilicitude e da culpa, subordina-se à sua função reparadora, reintegradora ou compensatória, na medida em que só excecionalmente o montante da indemnização excede o valor do dano [In Das Obrigações em Geral, vol. I, pag. 543].

Pessoa Jorge diferenciava a responsabilidade civil conexa com a criminal, em que a responsabilidade civil assumia uma função quer reparadora, quer punitiva, com primazia desta ultima finalidade, da responsabilidade meramente civil, cuja função primordial era reintegrativa, mas a nível secundário existiria o escopo punitivo-preventivo. Embora a responsabilidade meramente civil assentasse na existência de danos como pressuposto da responsabilidade civil, o certo é que a obrigação de indemnizar dependia, em regra, da culpa do agente, pelo que não se podia deixar de reconhecer uma função punitiva e preventiva, ainda que subordinada à finalidade reparadora. [Ensaio sobre a responsabilidade civil, Almedina,1995, pag. 51.]

No mesmo sentido, Pereira Coelho assumia, no domínio da relevância da causa virtual, que apesar da causa virtual, a indemnização subsiste, reconhecendo que esta visa não um fim compensatório de danos, mas um fim sancionatório. [O problema da causa virtual na responsabilidade civil, Colecção teses, Almedina, 1998.]

A verdade é que a ciência jurídica tem evoluído e nos últimos anos encontramos defensores de um alargamento da finalidade punitiva da responsabilidade civil. [Neste sentido o Acórdão do STJ de 25/02/2014, Relatora Maria Clara Sottomayor, proferido no proc.287/10.0TBMIR.S1, acessível em www.dgsi.pt.]

Menezes Cordeiro defende a função punitiva para as indemnizações por danos não patrimoniais, nomeadamente quando estejam em causa valores morais, de modo a ressarcir o mal feito e desincentivar, quer junto do agente, quer junto de outros elementos da comunidade, a repetição das práticas prevaricadoras. [Direito das Obrigações, 2.° volume, pag. 288.]

Pinto Monteiro sustenta que a pena privada constitui uma alternativa civil à tutela penal, e que supera a via indemnizatória, representando uma via eficaz e acentuando a finalidade punitiva da responsabilidade civil. [In Cláusula penal e indemnização, Almedina, 1990, pag. 667, nota 1536.]

Júlio Gomes considera que a pena privada pode, no fim de contas, surgir como meio de garantir uma tutela mais completa da autonomia privada, o recurso à pena privada desencoraja a apropriação ilícita dos bens alheios e exprime de maneira adequada, que não é socialmente irrelevante ou indiferente a escolha entre a via do contrato e a do facto ilícito. [In Responsabilidade Objectiva e Responsabilidade Subjectiva», Revista de Direito e Economia, ano XIII, pag. 97 ss.]

Patrícia Guimarães advoga a consagração oficial da indemnização como pena privada, para evitar que a violação de direitos alheios compense o agente. [In Os danos punitivos e a função punitiva da responsabilidade civil, Direito e Justiça, v15.1 (2001), pag. 178.]

Paula Meira Lourenço defende a figura dos danos punitivos considerando que constituem o exemplo paradigmático da finalidade punitiva da responsabilidade civil, na dupla vertente preventiva e retributiva, destrói o dogma da função meramente reparadora, e que deve ser reassumida, mormente face a hipertrofia e ineficácia do direito penal e contra-ordenacional. [ In Os danos punitivos, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XLIII, nº2, pag. 1107.]

A dimensão sancionatória da responsabilidade civil implica o reacentuar da finalidade ético-jurídica do instituto e relaciona-se com o emergir do direito civil como direito constitucional das pessoas. [In Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, pag. 663.]

A figura implica uma reflexão sobre a ilicitude e a culpa do agente, e assume um escopo de cariz preventivo e sancionatório do comportamento do lesante, por muitos considerado atípico no quadro do direito civil.

Apresentando-se mais arrojadas as construções doutrinais desenvolvidas à volta do conceito, a jurisprudência não lhe tem sido imune.

Como se refere no Acórdão do STJ de 25/02/2014 (Relatora Maria Clara Sottomayor, proferido no proc.287/10.0TBMIR.S1), a jurisprudência portuguesa, apesar de não ter aceitado o conceito de danos punitivos, não deixa de, em determinados casos concretos, nomeadamente nos casos de ofensas ao bom nome e nos acidentes de viação atribuir à indemnização por danos não patrimoniais uma natureza mista de «reparar os danos sofridos pelo lesado e reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.

O conceito de indemnização punitiva surge, assim, a par de um movimento de desmaterialização do direito civil e da necessidade social de aumentar os valores das indemnizações por danos não patrimoniais, quando está em causa a violação de direitos fundamentais da pessoa humana.

Na prática, a categoria resulta de uma jurisprudência criativa que, preocupada com a justiça, condena o lesante, em casos de dolo ou de culpa grave, ao pagamento de uma quantia mais elevada do que os padrões habituais.

Os danos punitivos vêm enquadrados nos danos de natureza não patrimonial."


*3. [Comentário] A expressão "danos punitivos" é uma péssima expressão. Como é claro, não há danos punitivos, mas antes indemnizações punitivas, ou seja, indemnizações que, além de indemnizarem o dano verdadeiramente causado, sancionam o agente com uma indemnização de carácter punitivo.

Aliás, o que significa "
condenação em danos punitivos"? Condenar alguém a causar a outrem danos de carácter punitivo?

MTS

Jurisprudência constitucional (243)


Custas; 
partidos políticos; isenção


TC 10/7/2025 (650/2025) decidiu:

[...] Julgar inconstitucional a norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 166.º da Constituição [...]

 

18/09/2025

Bibliografia (1221)


-- Lamberty, A. T., Das Pfandrecht an eigener Schuld / Zugleich ein Beitrag zu den Grundlagen des Pfandrechts an einer Forderung, Mohr, Tübingen, 2025 [OA]


Jurisprudência 2024 (234)


Restituição provisória da posse;
execução; auto de investidura


I. O sumário do acórdão da RG 5/12/2024 (591/23.8T8PTL-A.G2) é o seguinte:

1 – Decretada a providência cautelar de restituição provisória da posse de um “caminho de servidão” e executado o decidido, do qual foi lavrado, no local, um auto, onde consta que os requerentes foram investidos «na posse do caminho de servidão de passagem» e que declararam-se «como investidos na posse do caminho de servidão, no estado em que se encontra», sem arguir no ato a deficiente ou incompleta execução da decisão cautelar ou qualquer nulidade, irregularidade ou desconformidade tanto da restituição da posse como do respetivo auto, o objeto do processo esgotou-se.

2 – Como os requerentes consentiram na manutenção de duas redes amovíveis, uma no início e outra no fim do caminho, não tomaram qualquer iniciativa relativamente à existência de 8 tubos de rega no caminho, assim como de duas árvores/arbustos que estreitam o caminho de 4 metros para 3,53/3,54 metros, e, estando acompanhados do seu mandatário, não suscitaram então qualquer nulidade, irregularidade ou desconformidade quanto aos termos da restituição e investidura ou do próprio auto, o qual assinaram depois de lhes ter sido lido, ficou precludida a possibilidade de o fazerem posteriormente.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] o que os Recorrentes pretendem, e foi indeferido na decisão recorrida, é a concessão de permissão para:

a) o abate «de pelo menos dois arbustos/árvores»;

b) a retirada de oito tubos de rega;

c) a remoção de duas redes existentes no início e no fim do caminho de servidão.

Liminarmente, a mero título de enquadramento, sobre o procedimento cautelar de restituição provisória da posse rege o artigo 377º do CPC: «No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência».

Decretada a providência cautelar, o esbulhado é restituído à posse que o facto do esbulho lhe fez perder. Por conseguinte, a providência destina-se a reconstituir, de imediato, um status quo ante e nada mais do que isso. É uma providência com uma finalidade puramente conservatória.~

Ainda com relevo para o caso dos autos, importa enfatizar que à fase declarativa do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, que culmina na decisão que decreta a providência cautelar, sucede uma fase de cariz executivo, em que o tribunal impõe coercivamente ao requerido a decisão e restabelece o status quo ante, mediante a entrega material da coisa esbulhada ou da reposição da possibilidade de gozo das utilidades que integram o direito e de que o requerente foi privado. Refere a esse propósito Miguel Teixeira de Sousa [CPC Online (v. 4/2024)in Blog do IPPC, em anotação ao artigo [378.º] do CPC]: «Após o decretamento da providência, o tribunal ordena, por mandado, a execução por f.j. do decidido (art. 172.º, n.º 2, e 185.º). Aquele f.j. deve lavrar, no local, um auto de entrega.» Por conseguinte, decretada a restituição, a secretaria deverá proceder à execução da decisão, emitindo mandado, para ser prontamente executado (art. 157º do CPC), procedendo-se coercivamente à entrega do objeto do direito que tiver sido esbulhado, do qual se lavrará auto (art. 159º, nº 1, do CPC).
 
Posto isto, no plano substancial, quanto à permissão para o abate «de pelo menos dois arbustos/árvores» de forma a que o leito do caminho tenha 4 metros de largura em toda a sua extensão, secundamos inteiramente o afirmado pelo Tribunal a quo: o abate de árvores ou arbustos, designadamente das duas referidas pelos Requerentes, não está contemplado no dispositivo da decisão que ordenou a restituição provisória da posse do caminho de servidão, nem em qualquer outra parte daquela decisão. Também nenhuma menção a tais árvores ou arbustos consta do anterior acórdão desta Relação.

Mais, nenhum facto provado alude a tais árvores/arbustos. Aliás, nem sequer está alegado que essas árvores/arbustos consubstanciam a execução de um esbulho, no sentido de se destinarem a impedir o exercício do direito real de servidão.

E a restituição provisória da posse é apenas isso: restituição da posse do caminho de servidão tal como ele estava antes do esbulho, tivesse ou não árvores ou arbustos. Tudo o que exorbita dos atos materiais de esbulho, não pode ser aqui considerado.

Trata-se, por isso, de matéria que exorbita do âmbito da providência.

Repare-se que a situação factual que esteve na base do decretamento, em 08.05.2023, da providência foi o facto de os Requeridos, no decurso do mês de janeiro de 2023, terem cortado toda a vegetação do seu prédio, utilizando para o efeito máquinas que «rasparam o solo e retiraram-lhe a dureza, tornando o terreno outrora compactado em movediço, inapto à passagem até de um tractor agrícola» (ponto 11) e, perante a colocação pelos Requerentes de «gravilha para que retomasse as características de dureza aptas à passagem habitual» (12), os Requeridos «vedar[am] o terreno em toda a sua extensão, tendo recentemente, no mês de Março, colocado uma vedação em ferro, segura por esteios, tanto a nascente como a poente do caminho» (13).

Portanto, os atos materiais do esbulho consistiram na raspagem do solo do caminho (ação que o tornou movediço) e na obstrução da passagem através da colocação de uma vedação a nascente e poente do caminho.

Foi este circunstancialismo factual, e não a existência de arbustos ou árvores no caminho à data da produção de prova e prolação da decisão (08.05.2023), que motivou o decretamento da providência cautelar.

Aliás, é de notar que os Requerentes, por requerimento de 31.07.2024, afirmaram nos autos que «no local do leito do caminho de servidãonão há qualquer árvore plantada (como falsamente se invoca) como se demonstra pela foto recentemente obtida (onde se vê “a olho nu” as marcas e os limites do caminho, em direcção e em linha recta à vedação com esteios, ao fundo), mas ainda que houvesse, o caminho é facilmente desimpedido.»

Daí que não se possa agora introduzir, posteriormente ao decretamento da providência cautelar, uma questão que nada tem a ver com o circunscrito objeto do procedimento cautelar, designadamente a autorização para os Requerentes realizarem atos conservatórios ou de limpeza do caminho, para que a circulação se faça sem dificuldades. Tais atos de conservação e de manutenção nem sequer precisam de autorização judicial, pois está reconhecida por decisão transitada em julgado (as decisões proferidas nos procedimentos cautelares adquirem valor de caso julgado quando transitadas em julgado – art. 628º do CPC; aliás, tais decisões são suscetíveis de ser executadas nos termos gerais) a existência da servidão (sabe-se qual o seu conteúdo, extensão e modo de exercício e, nos termos do artigo 1565º, nº 1, do CCiv, o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação) e os Requerentes já foram investidos judicialmente na sua posse.

No que concerne à remoção de oito tubos de rega, sem prejuízo do que mais à frente se referirá quanto à investidura da posse e suas consequências, constata-se desde logo que, segundo o que resulta do auto de restituição, não impedem a passagem, seja a pé ou de veículo motorizado, designadamente um trator agrícola. O próprio Requerente circulou com o seu trator pelo caminho no dia em que foi realizada a restituição, «verificando-se que o mesmo ficou apto à passagem do seu trator agrícola

Mais, visualizadas as fotografias que acompanham o auto de restituição, verifica-se que os tubos são de pequeno diâmetro, estão espaçados ao longo do caminho e apenas parte deles está à superfície (por exemplo, a parte do tubo 7 que está à superfície é tão diminuta que é preciso porfiar no sentido de o encontrar na fotografia). Também nas fotografias é possível ver que as partes visíveis dos tubos estão calcadas. Por todo o exposto, não impedem a passagem ou o exercício do direito indiciariamente reconhecido aos Requerentes, sem prejuízo de os Requeridos terem assumido a obrigação de os enterrar.

Quanto à remoção das duas redes existentes no início e no fim do caminho de servidão, de harmonia com o que se exarou no auto, verifica-se que as mesmas são amovíveis e permitem abrir e fechar a passagem por qualquer pessoa. Segundo o auto de restituição, a da entrada do lado nascente tem um ferro (fotografia nº 35 do auto) e a do lado poente não tem sequer ferro. Segundo se observa nas fotografias, são redes de malha larga, de um fio de reduzido diâmetro (ignora-se o concreto material, mas aparentam ser metálicas) e de fácil movimentação.

A colocação de redes de vedação, por então obstruírem a passagem pelo caminho, foram o elemento factual essencial em que assentou a demonstração tanto do esbulho como da sua natureza violenta.

Por isso, a remoção das vedações estava necessariamente incluída no âmbito do ato de restituição da posse, tanto que na decisão que ordenou a providência, repristinada pelo anterior acórdão desta Relação, determinou-se «a imediata remoção das vedações no prédio referido em B instaladas que impeçam a livre e desimpedida passagem dos autores para o prédio referido em A dos factos provados». Cumpre salientar que no primitivo auto de restituição provisória da posse, elaborado em 25.05.2023, consta que foi «necessário proceder à remoção das vedações que impediam a passagem», o que significa que as vedações referidas na decisão que decretou a providência cautelar foram então removidas, pelo que as redes que no dia 02.05.2023 se encontravam no início e fim do caminho são outras redes, as quais os Requeridos, em violação da garantia penal da providência, colocaram.

Sucede que em 02.09.2024, dia em que foi levada a cabo a diligência judicial destinada a efetivar a restituição da posse do caminho, «pelos requerentes foi dito que não se opõe[m] a que as entradas do lado nascente e poente fiquem fechadas, desde que seja[m] de fácil abertura». Consequentemente, «compromete[u]-se a mandatária dos requeridos a colocar as redes de fácil abertura/ acesso.» Nesta parte, haverá alguma espécie de lapso, pois as redes existentes já são de «fácil abertura/ acesso». Porventura, estaria a referir-se à manutenção de um sistema de fácil abertura, ou seja, a não inserir nas redes ou nos postes onde aquelas são presas/amarradas aquando do seu fecho qualquer mecanismo que dificultasse a abertura.

Portanto, os Requerentes aceitaram a manutenção das redes cuja remoção tinha sido ordenada e agora apenas está em causa a dificuldade no manuseamento dos arames (e não a impossibilidade de abrirem as redes para passarem), matéria de ordem subjetiva e da qual não é apresentada qualquer prova.

Também não está alegado qualquer superveniente ato dos Requeridos no sentido de impedir a passagem dos Requerentes pelo caminho de servidão, ato que sempre estaria a coberto da garantia penal da providência, nos termos do artigo 375º do CPC.

Todavia, sem prejuízo do que se acaba de expor relativamente tanto à largura do caminho de servidão como à remoção de tubos e redes, a questão fundamental emerge do facto de os Requerentes, sabedores das circunstâncias que agora invocam (que existem dois arbustos ou árvores que em determinado local estreitam o caminho de «cerca de quatro metros» para «3,53 metros» ou «3,54 metros», que estão oito tubos de rega no leito do caminho e que existem duas redes no início e no fim do caminho de servidão), foram investidos «na posse do caminho de servidão de passagem» e «declaram-se como investidos na posse do caminho de servidão, no estado em que se encontra».

Sendo assim, em primeiro lugar, se existia alguma objeção, seja quanto às árvores/arbustos, aos 8 tubos de rega ou à manutenção das redes, os Requerentes não podiam declarar-se investidos na posse do caminho. Se discordavam da manutenção das duas redes, das duas árvores/arbustos ou dos 8 tubos de rega, não podiam aceitar, como aceitaram, que os mesmos permanecessem no local onde se encontram.

Em segundo lugar, aquando da realização da diligência de restituição da posse, os Requerentes, estando presentes e acompanhados do seu Exmo. Mandatário, não suscitaram qualquer nulidade, irregularidade ou desconformidade quanto aos termos da restituição e investidura ou do próprio auto. [...]

Ora, caso existisse algum vício ou desconformidade a apontar ao ato de restituição e de investidura dos Requerentes na posse do caminho de servidão, cabia-lhes argui-lo de imediato no ato, assinalando o que, no seu entender, não traduzia a execução integral da decisão que decretou a providência cautelar.

Com efeito, dispõe o artigo 199º, nº 1, do CPC: «Quanto às outras nulidades, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar».

Nesta conformidade, terminada a elaboração do auto de restituição e assinado o mesmo pelos presentes, incluindo pelos Requerentes e o seu Exmo. Mandatário, por se ter esgotado o prazo para arguir qualquer nulidade, irregularidade ou desconformidade da restituição da posse e da respetiva investidura, ficou precludida a possibilidade de o fazerem posteriormente."

[MTS]

17/09/2025

CPC online (23)


CPC online


-- Notas
 
-- Divulga-se a Versão (23) do CPC online;
 
-- A Versão (23) contém a primeira anotação aos art. 467.º a 489.º e actualiza a última Versão divulgada; cabe referir, em especial, que foram retrabalhados alguns aspectos gerais da prova judiciária.


-- Versão (23) do CPC online

-- MTS, CPC online, NP-Ab-IG; L 41/2013 (vs. 2025.09

-- MTS, CPC online, Art. 1.º a 129.º (vs. 2025.09

-- MTS, CPC online, Art. 130.º a 361.º (vs. 2025.09)

-- MTS, CPC online, Art. 362.º a 409.º (vs. 2025.09

-- MTS, CPC online, Art. 410.º a 489.º (vs. 2025.09)


Jurisprudência 2024 (233)


Compensação de créditos;
declaração de insolvência; insolvência superveniente


1. O sumário de STJ 3/10/2024 (32/22.8T8AVR-A.P1.S1) é o seguinte:

I - A certeza e a segurança das relações contratuais devem permitir, a quem invoca eficazmente a compensação de um crédito, confiar que o efeito extintivo inerente ao exercício desse direito potestativo se produziu definitivamente na ordem jurídica.

II - Não admitir o réu a fazer prova da excepção respeitante à invocada compensação, por se entender que só podia ser feita valer em reconvenção, mas, ao mesmo tempo, entender que a reconvenção nunca seria admitida no caso concreto, porque, sendo a autora uma massa insolvente, tal estaria excluído pelas regras do art. 90.º e ss. do CIRE, sendo o réu condenado no pedido, traduzir-se-ia numa significativa afectação dos direitos de defesa do réu.

III - A insolvência superveniente da contraparte (autora) não deve afectar o efeito extintivo da obrigação que já se possa ter produzido com a eficaz invocação da compensação de créditos, por via judicial, pela Ré, não se ajustando ao sistema decretar a inutilidade superveniente da lide reconvencional como um todo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"32.5. Diz a recorrente que a situação dos autos não é enquadrável no Acórdão do STJ nº 1/2014.

Analisando.

Neste aresto foi uniformizada a jurisprudência assim:

“Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”

A norma do art.º 287.º, al. e) do C.P.C para este AUJ corresponde actualmente ao art.º 277.º, al. e) do CPC.

A situação que despoletou a prolação deste AUJ reportava-se a uma acção intentada por credor contra uma empresa, que veio a ser declarada insolvente, já depois da entrada em juízo da acção.

E o tribunal disse:

“Em síntese, aproximando a conclusão:

- Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência;

- A partir daí, os direitos/créditos que a A. pretendeu exercitar com a instauração da acção declarativa só podem ser exercidos durante a pendência do processo de insolvência e em conformidade com os preceitos do CIRE - cujos momentos mais marcantes da respectiva disciplina deixámos dilucidados -, seja por via da reclamação deduzida no prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência (...e, no caso, a A. não deixou de o fazer), seja pela sua inclusão na listagem/relação subsequentemente apresentada pelo administrador da insolvência, não subsistindo qualquer utilidade, efeito ou alcance (dos concretamente peticionados naquela acção (13), que justifiquem, enquanto fundado suporte do interesse processual, a prossecução da lide, assim tornada supervenientemente inútil.

O Acórdão sub judicio elegeu a solução consentânea, que não pode, por isso, deixar de ser sufragada, soçobrando, pois, todas as razões que enformam as asserções conclusivas que resumem a motivação do recurso.

E, com todo o respeito por diverso entendimento, não vemos qualquer razão, técnico-juridicamente ponderosa, que aponte no sentido de que a solução deva ser diversa no Foro comum.”

Em que medida a jurisprudência deste AUJ é aplicável aos presentes autos?

Interpretando o acórdão em causa e as considerações já realizadas sobre a distinção entre “compensação/excepção” e “reconvenção”, o AUJ aplica-se à reconvenção na parte em que a mesma excede a compensação invocada claramente.

É relativamente a este crédito que alguém se pretenda fazer reconhecer como credor contra o insolvente que se diz que o mesmo terá de ser deduzido no processo de insolvência, pelas vias aí indicadas, nomeadamente a reclamação de créditos.

E, por isso, a acção que o alegado credor tenha intentado contra a Ré que venha a ser considerada insolvente deve ter como desfecho a inutidade superveniente da lide – regra que se aplicará ao crédito que excede a compensação invocado a título de reconvenção apresentada por R. em defesa no âmbito de acção intentada por quem como credor vem depois a ser declarada a insolvência do devedor, visto que a posição de invocação desse crédito em reconvenção é equivalente a fazer valer em juízo um crédito por via de uma acção.

Do exposto resulta que a recorrente tem parcialmente razão.

Tem razão na parte em que pretende ver admitida a sua defesa por excepção, em que invoca a compensação com os créditos da A. – e até ao valor daqueles;

Não tem razão quando pretende que nesta acção se possa decretar ser credora da A. no remanescente (e até ao valor total do seu pedido reconvencional), por esta invocação ser equivalente à posição de A. em acção contra insolvente posteriormente assim declarado, tomando por referência a data da propositura da acção.

Nessa parte – e quantia – há inutilidade superveniente da lide e a R. deverá, nos termos legais, deduzir reclamação do crédito a que se arroga no processo de insolvência.

É que, uma vez declarada a insolvência, todos os credores da insolvência têm direitos de crédito que entram em colisão entre si dada, em provável, a insuficiência da massa insolvente para satisfação de todos os créditos. Por isso, se prevê um processo de verificação e graduação de créditos a que são chamados todos os credores da insolvência a fim de aí fazerem valer os seus direitos em confronto com todos os restantes credores e a insolvente, para que os direitos verificados e as garantias ou preferências no pagamento reconhecidas sejam oponíveis a todos.

Visando a Ré, com a reconvenção, exercer direitos de crédito de natureza patrimonial sobre a Autora reconvinda constituídos antes da declaração de insolvência (que não a compensação), deve estender-se também a esta hipótese a jurisprudência fixada no referido Acórdão n.º 1/2014, pois que, também em relação à ré reconvinte, se aplica, a partir do trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência do autor reconvindo, o ónus previsto no artigo 90.º do CIRE

Por força do disposto no art. 128º, nº 3 do CIRE, a reconvenção não pode prosseguir, dado que o meio processual próprio para o reconhecimento e verificação de créditos é o aí referido.

Ainda que fosse procedente a reconvenção, nenhum efeito jurídico contra a massa insolvente retiraria a autora da decisão destes autos, pois a mesma seria inoperante perante os demais credores e massa insolvente – art. 173º do citado Código.

Declarada a insolvência deve julgar-se extinta a instância reconvencional (na parte em que não abrange a compensação) por impossibilidade superveniente da lide por o Réu/reconvinte ter de reclamar o seu crédito no competente incidente. E não obsta à conclusão estar em causa uma reconvenção pois, como é aceite unanimemente, trata-se de uma contra-ação pelo que é totalmente aplicável à dedução de reconvenção, nestas circunstâncias, o que se aplica à ação, também sendo, in casu, impossível de ser deduzida.

32.6. Invoca a recorrente que a solução configurada nos presentes autos envolve um conflito negativo de competência em relação à instância reconvencional. E a razão desse conflito negativo seria fundado na listispendência: estando já pendente a acção e a reconvenção nela deduzida no momento da apresentação da Autora à insolvência e, consequentemente, no momento da prolação da sentença de declaração da insolvência, a Ré não poderia, sob pena de incorrer em litispendência, ir reclamar na insolvência o seu contracrédito contra a Autora e a compensação parcial de créditos e muito menos propor a posteriori, na pendência desta acção, um acção de verificação ulterior de créditos prevista no artigo 146º do CIRE.

Analisando.

Não tem razão integral, mas há alguns aspectos da decisão recorrida que merecem ser ponderados, à luz da já indicada distinção entre compensação /excepção e reconvenção.

Não tem razão na parte relativa à reconvenção porque:

- A reclamação do crédito invocada na reconvenção não só é possível, sem violação do regime da litispendência, como é mesmo a solução imposta pelo legislador na situação específica da insolvência do alegado devedor, que não é dispensável nem mesmo se uma decisão judicial tiver reconhecido o crédito da Ré sobre a insolvente, com trânsito em julgado.

- A apresentação a insolvência após ter sido notificada da contestação-reconvenção contra ela deduzida pela Ré-reconvinte, não contraria o citado princípio da igualdade processual entre as partes, tao pouco corta liminarmente e cerce o direito da Ré/reconvinte ao exercício dos seus direitos de indemnização e contracréditos contra a Autora.

- A Ré não estava impedida, nem nunca esteve impedida, de, após a dedução da sua contestação- reconvenção e a posterior declaração de insolvência da Autora, ir reclamar os seus créditos indemnizatórios ao processo de insolvência ou em acção de verificação ulterior de créditos, não se verificando qualquer excepção de litispendência na reclamação de créditos ou na verificação ulterior de créditos por força do disposto nos artigos 580º, 581º e 582º do C.P.C..

Mas já tem razão quando lhe está a ser vedada a possibilidade de defesa da presente acção na parte em que invoca a compensação com o alegado crédito da A., impondo-se, em princípio, ao tribunal que conheça da defesa que apresenta.

Essa permissão encontra-se no art.º 99.º do CIRE, que funciona como norma que permite não reclamar todos os créditos na insolvência, porque “não emergindo do disposto no art.º 90º do CIRE um princípio absoluto no sentido de todas as situações relativas a créditos da insolvência e créditos sobre a insolvência deverem ser verificadas em sede do processo de insolvência e dos seus incidentes (desde logo o incidente de verificação de créditos), mas admitindo-se que as questões relativas à compensação de créditos se apresentam como uma excepção a esse princípio, nada impede que as mesmas possam ser discutidas no processo onde foram suscitadas, a título de excepção peremptória.”

32.7. Diz a recorrente ainda: “O douto Acórdão recorrido é manifestamente violador do princípio da igualdade processual entre as partes ao considerar que, declarada a insolvência da Autora na presente acção, em processo de insolvência por ela própria instaurado por apresentação já após ter sido notificada da contestação-reconvenção contra ela deduzida pela Ré-reconvinte, a mesma acção pode prosseguir apenas para apreciação dos pedidos nela formulado pela Autora na p.i., para eventual reconhecimento dos direitos de crédito que nela a Autora reclama sobre a Ré, sem a concomitante apreciação dos pedidos reconvencionais oportunamente deduzidos pela Ré contra a Autora e dos contracréditos daquela contra esta que de tais pedidos reconvencionais são objecto, para, na hipótese do seu procedimento, serem objecto de compensação parcial com parte ou a totalidade dos créditos invocados e que venham a ser reconhecidos à Autora na presente acção…O entendimento do Acórdão recorrido corta liminarmente e cerce o direito da Ré-reconvinte ao exercício dos seus direitos de indemnização e contracréditos contra a Autora com base no incumprimento contratual do mesmo contrato com base no qual a Autora formula na p.i. os seus pedidos contra a Ré, não tendo tido em conta que, na pendência da presente acção e da instância reconvencional, a Ré estava impedida de, após a dedução da sua contestação-reconvenção e a posterior declaração de insolvência da Autora…

Analisando.

Não tem razão integral, mas há alguns aspectos da decisão recorrida que merecem ser ponderados, à luz da já indicada distinção entre compensação /excepção e reconvenção.

Tem razão quando lhe está a ser vedada a possibilidade de defesa da presente acção na parte em que invoca a compensação com o alegado crédito da A., impondo-se ao tribunal que conheça da defesa que apresenta. [...]

33. Quanto à questão de saber se estão reunidos os requisitos legais para invocar a compensação, recorda-se que a questão foi colocada na apelação – e vem suscitada na revista pela via da ampliação do objecto do recurso –, mas a mesma foi considerada prejudicada pelo tribunal recorrido:

1. Foi elencada como questão b) do recurso

“b) – caso assim se não entenda, se a reconvenção, por falta dos requisitos da compensação, não deve ser admitida [conclusões J) a T) do recurso].”

2. Teve a seguinte resposta do tribunal:

Face ao ora decidido, fica prejudicado o tratamento da segunda questão enunciada (arts. 663º nº2 e 608º nº2 do CPC).”

Na medida em que se impõe revogar a decisão do tribunal da Relação na parte que considerou toda a reconvenção abrangida pela inutilidade superveniente da lide, também antes de saber se o processo deve mesmo seguir os seus termos, impõe-se determinar que o TR aprecie a questão prejudicada (no contexto da nova decisão que este STJ adoptou), após o que aquele tribunal decidirá do recurso de apelação.

É que o apelante havia colocado a questão de saber se o pedido seria admissível por referência ao fundamento de ser uma compensação judiciária ou compensação reconvenção, ao abrigo do art.º 266.º, n.º2, al. c) do CPC, por entender que não estariam reunidos os requisitos do 847.º do CPC – e o tribunal não conheceu (legitimamente, à época) da questão, tendo a 1ª instância decidido que a questão seria de conhecer em momento próprio, quando houvesse prolação de decisão de mérito sobre a acção interposta."

[MTS]


16/09/2025

Jurisprudência 2024 (232)


Competência material;
contrato de concessão; incumprimento contratual


1. O sumário de RP 11/12/2024 (79534/24.2YIPRT.P1) é o seguinte:

Compete à jurisdição administrativa conhecer de uma acção para pagamento/condenação em quantia pecuniária, na qual a autora, concessionária da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, em conformidade com determinado regulamento municipal, pede a condenação do réu no pagamento de quantias devidas pela utilização desses parques, a saber, taxas.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), é uma única a questão a tratar,

A questão a avaliar nesta acção é de natureza essencialmente jurídica, relevando, em termos fácticos, o próprio conteúdo do primeiro articulado e os contornos do pedido e da causa de pedir aí desenhados.

Ora, impõe-se desde logo avançar que intende a A. cobrar ao Réu um valor máximo diário pelos períodos de utilização de estacionamento não pago, em razão da exploração de parques de estacionamento ao abrigo de um contrato de concessão celebrado com a Câmara de Matosinhos, sendo esta quem define as regras dessa exploração.

É que a exploração e concomitante cobrança pela A., respeitando a domínio público, é feita ao abrigo do disposto no contrato de concessão celebrado com a edilidade, sendo que bem assim as tarifas cobradas aos utentes são definidas por via do Regulamento Municipal das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos publicado em DR de 8 de março de 2016 – II Série (com sucessivas alterações).

A questão a decidir foi já analisada com acerto, adequação técnica e coincidência de solução, pelo tribunal da Relação de Lisboa, nos Acórdãos de 20.10.2009 (6149/08.4YIPRT.L1-7) e 22.04.2010 (1950/09.4TBPDL.L1-2), ambos em http://www.dgsi.pt.

Aqui se convoca, desde logo, o excerto daquele primeiro citado: 

«o contrato de concessão celebrado entre o Município (...) e a recorrente é um contrato de direito público, nos termos do qual o Município (...), munido de jus imperii, adjudicou àquela, a concessão, exploração, gestão e manutenção de quarenta e dois parquímetros na cidade (…). Sobre esta matéria, compete à Câmara deliberar no âmbito da organização e funcionamento dos seus serviços e no da gestão corrente, nos termos do art. 64.º n.º 1 alínea u) e n.º 6.º alínea a) da Lei n.º 169/99 de 18 de Setembro (Lei das Autarquias Locais), alterada pela Lei n.º 5-A/2002 de 11 de Janeiro.

Considerando a causa de pedir nesta acção, o que está indubitavelmente em causa envolve a relação jurídica existente entre o Município (…) e a recorrente, na medida em que tem, na sua génese, a cobrança de uma taxa sancionatória diária pelo estacionamento não pago pelo recorrido. A este direito de cobrança arroga-se a recorrente, no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos pela concessão celebrada.

Se bem que se possa alegar que a relação estabelecida entre a recorrente e um particular difere e dispõe de uma natureza diferente daquela existente entre a recorrente e a edilidade (…), a verdade é que os actos praticados pela recorrente não revestem a natureza de actos privados susceptíveis de serem desenvolvidos por um qualquer particular, mas, ao invés, revestem-se de natureza pública, na medida em que são praticados no exercício de um poder público, isto é, na realização de funções públicas no domínio de actos de gestão pública.

Com efeito, o contrato de concessão outorgado entre a recorrente e o Município (…), rege-se pelo conteúdo das suas disposições e pelas disposições constantes do Regulamento de Estacionamento de Duração Limitada daquele Município, no qual se encontram previstos, designadamente, as taxas devidas pelo estacionamento, a possibilidade daquele Município, nos termos da lei geral, concessionar o estacionamento de duração limitada a empresa pública ou privada, bem como a fiscalização do regime previsto no aludido Regulamento e ainda as situações que configuram ilícitos de mera ordenação social e respectivas sanções.

Por outro lado, e tendo em conta que no âmbito do contrato de concessão celebrado, a ora recorrente se vinculou expressamente ao cumprimento do aludido Regulamento de Estacionamento, recai sobre esta o ónus de conformar a sua actuação com o disposto naquele diploma e agir no âmbito dos poderes que o mesmo lhe confere, nomeadamente na sua relação com os terceiros particulares que usufruem do estacionamento concessionado e como tal passam a estar sujeitos às suas respectivas regras e condições.

Assim, contrariamente ao que sucede no âmbito de relações contratuais entre particulares, as quais se regem pelo princípio da liberdade contratual e que dizem respeito a actividades de direito privado susceptíveis de ser desenvolvidas por particulares, no caso em apreço, a recorrente, na relação jurídica que estabelece com o recorrido, surge investida de prerrogativas próprias de um sujeito público, revestido de jus imperii, podendo cobrar-lhe uma taxa pelo estacionamento nas zonas concessionadas e aplicar-lhe as sanções especificamente previstas no Regulamento de Estacionamento de Duração Limitada e que consistem na aplicações de coimas (...).

Temos, assim, que a acção se reporta a um litígio no âmbito de uma relação jurídica materialmente administrativa, submetida, por convenção das partes, a um regime substantivo de direito público, pelo que, nos termos da alínea f) do art. 4.º do E.T.A.F, são competentes para conhecer da acção os tribunais administrativos.»

E, com referência já ao segundo Acórdão, «O que ocorre é que as relações contratuais estabelecidas entre o município, ou o concessionário, e os utentes do estacionamento de duração limitada tarifada, têm, (…) um regime substantivo parcialmente regulado por normas de direito administrativo que especificamente os têm em vista, a saber, as contidas no referido Regulamento, que dá execução ao Decreto-Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.

Estabelecendo tal regime, inclusive, infracções de natureza contra-ordenacional, com atribuição, para além de funções gerais de fiscalização do cumprimento do Regulamento, das funções de registo e notificação nessa matéria contra-ordenacional, à concessionária, que alegou actuá-los.

Com o que se recai na previsão intermédia do art.º 4º, n.º 1, alínea f) do ETAF.»

Temos estas considerações como perfeitamente cabíveis na situação decidenda.

Confrontem-se já, nos termos do Regulamento citado, os meios coercivos e as interdições, como claras manifestações do poder do Estado, estabelecidos no quadro do ordenamento/regime do estacionamento de duração limitada, em cujo contexto a Apelante intervém e de cujo quadro nunca enjeitou aproveitar-se, como se vê, claramente, por exemplo do valor reclamado.

Tem-se assim por simplificadora e enviesada a tentativa de estreitar e converter a relações tão só de direito privado a complexa relação constituída através da concessão.

Sempre a «concessão» remete a dois domínios de intervenção: o externo, do concessionário e o interno e essencial, do concedente, já que se reconduz a uma autorização ou permissão de uma actividade “em vez de outrem”. Num tal contexto, o concessionário permanece obrigado pelos contornos e conteúdos do que lhe é atribuído. E, de entre estes, vários ultrapassam as meras intervenções privadas, reconduzindo-se: a interdições, ao exercício próprio de actividade sancionatória e à regulação unilateral e não negociada, antes exercida em nome da legitimidade democrática e de um poder de soberania de natureza executiva.

Mais incontestável se patenteia o desequilíbrio, a natureza realmente não contratual da relação com o utente, na tese doutrinal da recorrente, que convoca uma actuação de facto geradora de uma relação que tem pouco de contratual e mais de mero enquadramento da realidade ou do evento consumado, que denomina de «relação contratual de facto». Nessa medida, o utente nem estabelece um contrato comum, sendo que antes usa o espaço de estacionamento com determinados efeitos jurídicos inerentes pré-estabelecidos em Regulamento Municipal, para mais quando a entidade cobra antes que um preço uma taxa, já que tem por detrás de si um conjunto de mecanismos e regras impositivas emanadas de um órgão da administração local e não um qualquer processo de formação da vontade negocial.

Conclui-se, pois, que o objecto da presente acção se origina no quadro de uma relação jurídica materialmente administrativa, sem que a atribuição de faculdades de intervenção a empresa privada convole a relação para o domónio jus privatístico, já que o regime que regula os contornos da actividade cedida se submetem, manifestamente, a um estatuto substantivo de direito público.

Estatui a alínea f) do n.º 1 do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção aplicável à presente acção – que é a emergente da Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro: «Artigo 4.º – Âmbito da jurisdição – 1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: […] f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público».

Nesta norma se inserem as condições relativas ao pedido e à causa de pedir da presente acção. O uso ou benefício de aparcamento concessionado cujas prestações se pretende cobrar coercivamente é regulado por normas de direito público, regras que revelam a autoridade do Estado e a sua força reguladora e impositiva.

Neste mesmo sentido decidiu já o Tribunal de Conflitos, por Acórdão de 25-11-2010, na base de dados da dgsi, com o seguinte Sumário: I -A competência material do tribunal afere-se pela relação jurídica controvertida, tal como é configurada na petição inicial. II - Nos termos do artigo 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, os tribunais administrativos são os competentes para o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. III - Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de interesse público legalmente definido. IV - Assim, compete à jurisdição administrativa conhecer de uma acção especial para cumprimento de obrigações emergentes de contrato, na qual a autora, concessionária da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, em conformidade com determinado regulamento municipal, pede a condenação da ré no pagamento de quantias, devidas pela utilização desses parques.

Aqui nos remetemos, data venia, àquela decisão:

«Conforme ensina o Prof. Manuel de Andrade, a competência do tribunal "afere-se pelo quid disputatum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum" (in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91).

Por sua vez, o Tribunal dos Conflitos e a Secção de Contencioso Administrativo do STA têm reiteradamente afirmado que a competência em razão da matéria se afere em função dos termos em que a acção é proposta - cfr, a título de exemplo, os acórdãos do T. Conflitos de 91.01.31 (AD 361) e de 2007.05.17 (proc. n° 5107), e, os acórdãos do STA de 93.05.13 (proc. n° 31478), de 96.05.28 (proc. nº 39911), de 99.03.03 (proc. n° 40222), de 99.03.23 (proc. n° 43973), de 99.10.13 (proc. n° 44068) e de 2000.09.26 (proc. n° 46024).

Neste caso, atentos os termos em que a acção é instaurada, julgamos ser de concluir que a competência para dela conhecer pertence aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente aos tribunais tributários.

A Autora, B…, SA, na qualidade de concessionária, por força de vários contratos de concessão celebrados com a Câmara Municipal de Ponta Delgada para fornecimento, instalação e exploração de parquímetros colectivos, em zonas de estacionamento de duração limitada, na cidade de Ponta Delgada, pretende, através da acção, que a Ré, C… Lda, seja condenada a: Pagar-lhe a importância de 421,72 euros, acrescida de juros legais, correspondente aos montantes devidos pelo estacionamento de uma viatura da Ré em zona reservada para esse efeito, abrangida pela concessão.

Funda este pedido no facto de a Ré não ter procedido, em várias datas, que indica, ao pagamento do tempo de utilização do lugar de estacionamento.

Atentos os termos da própria petição e os documentos juntos com a mesma, estamos perante a utilização, assegurada pela Câmara, de um bem do domínio público (os lugares de estacionamento), mediante o pagamento de certa prestação. A prestação patrimonial correspondente ao uso de um bem como este constitui uma taxa, em conformidade com o disposto nos art°s 30, nº 2 e 4°, n° 2, da Lei Geral Tributária aprovada pelo DL n° 398/98, de 17.12. Essa taxa encontra-se prevista na alínea g) do art° 19º da Lei n° 42/98, de 06.08 (Lei da Finanças Locais), e, no que toca a situação concreta em análise, este expressamente contemplada nos artºs 24° e 25° do Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada[1] de Ponta Delgada, publicado no DR II série, de 2004.06.01, n° 128, apêndice 71/2004 (cfr. fls. 34 a 39 dos autos).

Neste caso, não lhe e retirada essa natureza pelo facto de ser uma entidade privada - a Autora - que procede a respectiva cobrança. Tal cobrança só ocorre por força da referida concessão de fornecimento, instalação e exploração de vários parquímetros na cidade de Ponta Delgada, sendo que a Câmara não deixa de recolher a receita nos seus cofres, ainda que parte (cfr. fls. 25 e 26 dos autos).

A questão que aqui este em causa tem, assim, natureza fiscal, na medida em que, segundo uma tese ampliativa, a mais seguida na jurisprudência (em oposição a uma tese restritiva), para decidir o litigio há que fazer a interpretação e aplicação de normas de direito fiscal sobre matéria respeitante ao exercício da função tributária da Administração Pública Cfr., a este propósito, Cons. Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, 2006, I volume, p. 220 e 221, onde são citados vários arestos da Secção de CA deste STA nesse sentido. E há, então, que acrescentar que, subjacente ao litígio, há uma relação jurídica tributária, entre a Câmara e a Ré (muito embora aquela não intervenha na acção), atenta a definição contida no art° 1°, n° 2, da Lei Geral Tributária, nos termos da qual consideram-se relações juridico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas.

Os Tribunais competentes para conhecer da acção, são, assim, em nosso entender, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente, os tribunais tributários, face ao disposto no art° 1°, n° 1, do ETAF. (…)

A competência dos tribunais comuns tem natureza residual, no sentido em que, nos termos constitucionais e legais Cfr. Artigo 211º («1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais»), da Constituição da República Portuguesa, e art. 66 («São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outras ordem jurisdicional»), do Código de Processo Civil. Em termos idênticos a este último preceito dispõe o art. 18, nº 1, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais., se estende a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais (G. Canotilho/V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. rev., 812). Aos tribunais administrativos, por sua vez, cabe, segundo o preceito constitucional e legal, apreciar os processos «que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas» Cfr. Artigo 212º («… 3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais»), da Constituição da República Portuguesa; e artigo 1º («1. Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais»), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais..

E, na falta de clarificação legislativa sobre o conceito de relação jurídica administrativa, deverá esta ser entendida no sentido tradicional de relação jurídica de direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.

Assim, temos que os tribunais administrativos serão competentes para dirimir os litígios surgidos no âmbito das relações jurídicas públicas, devendo como tal considerar-se «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» [J.C.Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., 57/58].

E importa notar, ainda, que, para efeito da determinação da competência material do tribunal, deve atender-se à relação jurídica, tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respectivos fundamentos (causa de pedir) Neste sentido, veja-se, p. ex. o acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 9.6.10 (Pº 05/10), e a demais jurisprudência e a doutrina, nele citadas.»

No caso sujeito, em causa a concessão pelo Município de Matosinhos à A., para exploração, gestão e manutenção de parques de estacionamento naquela cidade, nos termos previstos no Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada já citado…

Ora, por via da concessão, ficou a A. obrigada, perante a concedente, a assegurar o funcionamento dos referidos parques de estacionamento em conformidade com o referido Regulamento, cabendo-lhe, em consequência, exigir o pagamento das “taxas”, nele previstas (cfr. artigo 4º do Regulamento) e fiscalizar essa utilização pelos interessados, como naquele igualmente se prevê (16º, última parte do regulamento), sendo certo que vem reclamado o valor integrante da taxa sancionatória prevista no artigo 19º do mesmo Regulamento.

Assim, é de concluir que, por via da concessão, a A. recorrente foi investida de um poder público, para a realização de um interesse público, legalmente definido como sendo o de solucionar o estacionamento no perímetro urbano da cidade de Matosinhos.

Donde o conflito a que respeitam os presentes autos respeita a uma relação jurídica administrativa, segundo o conceito dela acima indicado, cabendo a respectiva apreciação e decisão aos tribunais administrativos, conforme o citado art. 1, do ETAF."

[MTS]