"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/02/2025

Jurisprudência 2024 (111)


Acto processual;
realização prematura; repetição do acto*


1. O sumário de STJ 29/5/2024 (1627/19.2T8VRL-C.G1.S1) é o seguinte:

[...] O despacho que, após a prolação do acórdão do Tribunal da Relação que declarou extinta a instância no presente procedimento cautelar por inutilidade superveniente da lide, mas antes do seu trânsito em julgado, aceita a manutenção nos autos (para ser considerada) da nota discriminativa de custas de parte, por entender que a lei não sanciona a prematuridade dessa apresentação, invocando igualmente razões de economia processual e a inexistência de ofensa ao princípio da igualdade consignado no artigo 4º do Código de Processo Civil, não viola o caso julgado formal alegadamente produzido pela circunstância de, após a prolação da sentença de 1ª instância mas antes do seu trânsito, o tribunal não haver então admitido, por prematuridade, uma outra nota discriminativa de custas, de diferente teor, apresentada pela mesma parte.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O acórdão recorrido não nos merece a menor censura, louvando-nos inteiramente na sua fundamentação, a qual é clara, completa e assertiva.

Pode ler-se, a este propósito, no acórdão recorrido:

“Apreciemos, então, a questão da violação do caso julgado.

Para tal importará apreciar se o despacho recorrido conheceu de questão previamente apreciada e decidida em anterior decisão, transitada em julgado, mais precisamente, se ao decidir que ficassem nos autos as notas justificativas e discriminativas apresentadas em Julho de 2023, após o acórdão da Relação mas antes do seu trânsito, o tribunal violou o caso julgado formal da decisão transitada em julgado, proferida em 25 de abril de 2022, que decidira que as notas apresentadas após sentença, mas antes do seu trânsito, não eram admissíveis por extemporâneas.

Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, o caso julgado consubstancia-se “na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário” – in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2ª edição, 1997, p. 567.

Seguindo o ensinamento de Rui Pinto, o caso julgado tanto designa a qualidade de imutabilidade da decisão judicial que transitou em julgado, como o conjunto dos efeitos jurídicos que têm o transito em julgado da decisão judicial por condição. A decisão transitou em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação (cf. artigo 628.º, nº1, do CPC). Trata-se, por conseguinte, de uma qualidade formal ou externa ao próprio teor da decisão. Por outro lado, a imutabilidade da decisão permite que esta alcance uma estabilidade, ou seja, uma continuidade, na emissão dos respetivos efeitos jurídicos. O trânsito em julgado constitui uma técnica de estabilização dos resultados do processo, mas que não é única, integrando-se numa linha gradual de estabilização. Efetivamente, decorre, desde logo, do artigo 613.º, n.º 1, que, prolatada a sentença ou despacho, o tribunal não os pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais- In Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, revista Julgar Online, Novembro de 2018, p. 2/3.

O caso julgado formal, por oposição ao caso julgado material, restringe-se às decisões que apreciam matéria de direito adjetivo, produzindo efeitos limitados ao próprio processo – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 745.

As decisões de forma que incidem sobre aspetos processuais, adquirindo, em regra, valor de caso julgado formal, são vinculativas no processo, produzindo efeitos processuais: enquanto efeito negativo, resulta da decisão transitada a insusceptibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que a proferiu, se voltar a pronunciar sobre ela; como efeito positivo, resulta da decisão transitada a vinculação do tribunal que a proferiu (e de outros) ao que nela foi definido ou estabelecido - Miguel Teixeira de Sousa, ob cit. p. 572.

Assim, qualquer despacho proferido sobre questão processual, uma vez transitado em julgado, adquire valor de imutabilidade, sendo no processo inadmissível (e por isso ineficaz – art. 625º, nº 2 do CPC) decisão posterior sobre a mesma questão que dele tenha sido objeto – não sendo respeitados os efeitos processuais resultantes de decisão transitada em julgado, ocorrerá situação de contraditoriedade, a solucionar de acordo com a regra prescrita no art. 625º do CPC, valendo aquela que primeiro transitou em julgado (princípio da prioridade do trânsito em julgado que vale também para as decisões de natureza adjetiva proferidas no processo, como resulta do nº 2 do art. 625º do CPC) –Ac. da Relação do Porto de 17/05/2022 (João Ramos Lopes), proc. 1320/14.2TMPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.

Porque assim, o caso julgado formal duma decisão obsta a que no processo seja tomada nova decisão (seja renovando, seja modificando a anterior) e, como referido no acórdão do STJ de 8/03/2018 (Fonseca Ramos), uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e não recorrida, seja objeto de repetida decisão (se tal acontecer, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão - disponível em www.dgsi.pt.

O pressuposto nuclear do instituto consiste em a pretensão - ao nível da relação meramente processual - constituir a renovação, alteração ou repetição duma anteriormente decidida.

Determinar quando tal ocorre, remete-nos para o âmbito objetivo do caso julgado, isto é, para a determinação do seu objeto, do quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal na decisão transitada.

Esse quantum definidor dos limites objetivos respeita, no caso julgado formal, à questão processual concretamente apreciada e decidida.

No caso em apreço constata-se que a decisão recorrida (despacho de 12/09/2022) apreciou e decidiu que a apresentação da nota de custas de parte após a prolação do acórdão pelo Tribunal da Relação, mas antes do seu trânsito em julgado, apenas pecava por prematura, pelo que em nome do princípio da economia processual, determinou que a mesma ficasse nos autos.

Por sua vez, o despacho proferido em momento anterior, 25/04/2022, decidiu que as notas discriminativas e justificativas das custas de parte, apresentadas após a sentença, mas antes do respetivo trânsito, eram extemporâneas e, por isso, não foram admitidas.

A questão suscitada e apreciada pelo despacho de 12/09/2022, admitindo-se a similitude, não é a mesma que a conhecida e decidida no despacho transitado de 25/04/2022 – o objeto mediato é o mesmo, pois que em causa estão as consequências da apresentação prematura da nota justificativa e discriminativa das custas de parte, mas o momento e as circunstâncias são diversas, possibilitando, em abstrato, o entendimento adotando pelo tribunal de não admitir antes do trânsito da sentença, mas considerar que devem ficar nos autos após a prolação do acórdão pelo tribunal superior.

Discordar deste entendimento, é fundamento de recurso (caso seja admissível), já não de violação de caso julgado.

Incidindo o cerne da questão no momento temporal, estamos no caso em presença de dois tempos distintos do processo, de duas notas distintas, tendo em comum a sua apresentação prematura.

Não há identidade objetiva da questão apreciada em ambos os despachos. O caso julgado formal apenas se forma relativamente a questões que tenham sido concretamente apreciadas e nos limites dessa apreciação.

Não pode ser afirmado que os efeitos processuais do caso julgado formal formado com o despacho de 25/04/2022 se mantinham, e que a situação que determinou a prolação de tal despacho permanece inalterada. Não, houve uma alteração.

Haverá, assim, de reconhecer-se que não foi renovada questão que já havia sido decidida, não estamos perante uma repetição, antes de apresentação de uma nova e diferente nota de custas de parte, que sempre o tribunal teria de apreciar e decidir, precisamente, porque a situação que determinou a prolação do despacho recorrido se alterou.

Nunca poderia o tribunal decidir não conhecer deste requerimento, com a invocação de já ter apreciado a questão anteriormente.

Assentando a segunda decisão em alterações consentidas pela lei, inerentes à própria dinâmica do processo, a diferença na interpretação não consubstancia violação do caso julgado.

As decisões apresentadas pelo recorrente não são conflituantes, pois as bases factuais em que assentam, por serem distintas, inviabilizam considerar-se que a segunda é uma repetição da primeira.

Para a compreensão do alcance da figura, a questão de direito tem de derivar ou promanar de um similar quadro lógico-factual. À similitude lógico-factual não pode deixar de corresponder uma teleologia de sentido funcional-processual, ou seja, uma inferência de alcance e dimensão compreensiva que se contém no momento em que se coloca em tela de juízo a questão jurídico-normativa que se aprecia e decide. Daí que, a oposição de decisões tem de se inserir e integrar num quadro teleológico similar e idêntico para ambas as decisões. Vale por dizer que o pressuposto discursivo e lógico-funcional em que as decisões, tomadas como contraditórias, assentam têm de servir o mesmo fim correlativo de análise e sentido teleológico – Ac. do STJ de 07/03/2018 (Gabriel Catarino), processo n.º 98/17.2YFLSB, disponível em www.dgsi.pt.

Porque assim, o tribunal a quo não desrespeitou o caso julgado formal”.

Vejamos:

Dispõe o artigo 620º do Código de Processo Civil: “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo”.

Acrescenta o artigo 621º do Código de Processo Civil “A sentença constitui caso julgado nos precisos termos e limites em que julga (…)”.

(Sobre ao recorte técnico-jurídico da figura do caso julgado, formal e material, vide, entre muitos outros, os recentes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 2024 (relator Nelson Borges Carneiro), proferido no processo nº 888/22.4T8PTG.E1.S1; de 10 de Abril de 2024 (relator Nelson Borges Carneiro), proferido no processo nº 1610/19.8VNG.P1.S1; de 10 de Abril de 2024 (relator Luís Correia de Mendonça), proferido no processo nº 2551/18.1T8VCT.3.G1.S1; de 27 de Fevereiro de 2024 (relator Pedro Lima Gonçalves), proferido no processo nº 400/20.0T8CHV-B.G1.S1; de 30 de Abril de 2024 (relator Ricardo Costa), proferido no processo nº 5765/03.5TVLSB-A.L2.S1, todos publicados in www.dgsi.pt).

Na situação sub judice, e tal como bem enfatizou o acórdão recorrido, encontramo-nos perante vários requerimentos de teor diferente que se reportam autonomamente a distintas notas discriminativas de custas de parte, juntas aos autos em fases diversas, incidindo os últimos outrossim sobre os custos processuais que se foram, entretanto, acumulando.

Ora, no primeiro caso (o do despacho datado de 25 de Abril de 2022), o titular do processo considerou que a prematuridade da apresentação implicava o não atendimento da nota discriminativa de custas de parte; no segundo (o do despacho datado de12 de Setembro de 2022), foi entendido que a lei não reserva qualquer sanção para tal prematuridade, aceitando que a nova nota discriminativa de custas de parte – autónoma em relação à primeira – se mantivesse e assim fosse considerada, inclusive por razões de evidente economia processual e salvaguarda do equilíbrio de posições entre as partes (no momento em que o despacho foi proferido já havia sido lavrado há cerca de três meses o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 15 de Junho de 2022, que conhecera da extinção da instância e do correspondente cabimento para a apresentação da nota discriminativa de custas de parte pelas partes vencedoras).

Assim sendo, a segunda decisão, embora revista de facto uma análise jurídica que pode ser porventura perspectivada, na sua ratio, como antagónica ou oposta relativamente à primeira, o certo é que não implicou qualquer modificação da anteriormente proferida, que se consolidou inteiramente em termos processuais (a respectiva e concreta nota discriminativa de custas de parte não foi então definitivamente considerada).

Ou seja, trata-se de uma aplicação do direito processual divergente, por motivos supervenientes, em relação a um outro requerimento de teor diverso que, revestindo a mesma natureza, não é absolutamente coincidente com o anteriormente referido, e que, independentemente do seu mérito, seria recorrível (ou não) nos termos gerais.

Note-se, ainda, que as primeiras notas discriminativas das custas de parte foram apresentadas pelos ora recorridos em 20 e 23 de Dezembro de 2021, após a prolação da decisão de 1ª instância que considerou verificar-se inutilidade superveniente da lide, datada de 1 de Dezembro de 2021.

Já as segundas notas discriminativas de custas de parte foram apresentadas em 1 e 5 de Julho de 2022, após a prolação do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15 de Junho de 2022 que, tendo sido proferido em procedimento cautelar, seria, em regra e à partida, irrecorrível para o Supremo Tribunal de Justiça nos termos do artigo 370º, nº 2, do Código de Processo Civil.

De notar igualmente que na fundamentação do despacho de 12 de Setembro de 2022, proferido em contexto processual diverso daquele que teve lugar no dia 25 de Abril de 2022, foi feita alusão ao princípio geral da economia processual, a que acrescia a circunstância de não resultar daí o menor desequilíbrio entre as posições e interesses das partes, respeitando-se neste contexto, escrupulosamente, o princípio da igualdade consignado no artigo 4º do Código de Processo Civil, o que aliás recolhe total pertinência, não só porque não há dúvida alguma de que ao requerente do procedimento cautelar incumbe o dever de suportar as custas de parte em favor da contraparte, como nos encontramos perante um processo de natureza urgente que deu entrada em juízo em 23 de Setembro de 2019 (há mais de quatro anos e meio), em que é inequívoca a consolidação do caso julgado quanto à decisão de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide (acrescente-se que, curiosamente, o ora recorrente, de forma algo contraditória com a sua actual postura, chegou inclusivamente a admitir, na oposição por si apresentada em 3 de Janeiro de 2022, que tais custas de parte pudessem perfeitamente ser consideradas no momento do trânsito em julgado da decisão final a proferir nos presentes autos – o que, como é incontestável, já aconteceu há muito).

Ordenar neste contexto o desentranhamento da nota discriminativa de custas de partes por pretensa vinculação, em termos de caso julgado formal, de um despacho anterior proferido sobre requerimento diverso e em fase processual distinta, não passa de um contra-senso inexplicável, fruto de um formalismo exacerbado, completamente infundado e não razoável, que não encontra no sistema processual o necessário respaldo ou guarida.

Logo, por todos estes motivos, não se verificou na situação sub judice qualquer violação do caso julgado formal."


*3. [Comentário] Neste Blog já se defendeu que a parte pode repetir a prática do acto enquanto estiver em prazo para o fazer (clicar aqui). Por maioria de razão, a parte pode repetir o acto se a sua primeira realização tiver ocorrido quando o acto ainda não podia ter sido praticado.

MTS

20/02/2025

Jurisprudência 2024 (110)


Ineptidão da petição essencial;
conhecimento oficioso; preclusão


1. O sumário de RE 23/5/2024 (391/06.0TBBNV.E2) é o seguinte:

- o incidente de liquidação tramitado subsequentemente à decisão judicial de condenação tem em vista a concretização do objeto da condenação, com respeito pelo caso julgado ali formado;
 
- o recurso à equidade, ainda que como ultima ratio, permite obviar se profira decisão de improcedência no incidente de liquidação;

- a decisão assente no juízo de equidade deverá, contudo, sustentar-se em factos que, embora não revelem o valor exato dos danos, permitam aferir o montante adequado a fixar para que seja cumprido o efeito indemnizatório desses mesmos danos, o que inviabiliza se profira decisão assente em critérios de mera arbitrariedade;

- a prolação de despacho saneador tem efeitos preclusivos quanto ao conhecimento das nulidades decorrentes da ineptidão da petição inicial;

- se ocorre inultrapassável ineptidão da petição inicial, designadamente por falta de causa de pedir, ainda que em 1.ª Instância a decisão proferida tenha sido a de improcedência do pedido por falta de fundamentos fácticos, a preclusão do conhecimento da nulidade em sede de recurso, implicando na confirmação da improcedência, é desprovida de sentido, impondo-se a interpretação restritiva o regime legal decorrente do artigo 200.º/2, do CPC;

- tal interpretação restritiva permite, assim, o conhecimento oficioso da ineptidão da petição inicial em sede de recurso, após a prolação da sentença final, se não foi alegada pelo demandado e não foi objeto de apreciação oficiosa no despacho saneador e na sentença.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Não obstante improcedam as alegações recursivas formuladas, afigura-se que o desfecho do presente incidente de liquidação, no sentido da improcedência tal como sentenciado em 1.ª Instância, não prescinde da apreciação de requisitos de caráter oficioso atinentes à ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir (cfr. artigo 186.º/1 e 2, alínea a), do CPC).

A ineptidão da petição inicial determina a nulidade de todo o processo (cfr. artigo 186.º/1, do CPC), constitui nulidade que não é sanável, para além de constituir ainda uma exceção dilatória (cfr. artigo 577.º, alínea b), do CPC).

É certo que, nos termos do disposto no artigo 200.º/2, do CPC, as nulidades decorrentes da ineptidão da petição inicial podem ser apreciadas no despacho saneador, se antes o juiz as não houver apreciado; se não houver despacho saneador, pode conhecer-se delas até à sentença final. Então, a prolação de despacho saneador tem efeitos preclusivos quanto ao conhecimento das referidas nulidades, «significando isso, que, proferido o despacho saneador, fica encerrada a hipótese de o juiz suscitar aquelas nulidades.» [Abrantes Geraldes e outros, [CPC Anotado, Vol. I, 2.ª edição], pág. 254
]

Na jurisprudência do STJ [
Ac. STJ de 26/03/2015 (Lopes do Rego)] alcança-se a seguinte apreciação:

«Resulta, pois, claramente deste preceito legal – que reproduz inteiramente o regime que já constava do anterior artigo 206.º do velho CPC – que a nulidade por ineptidão da petição inicial está irremediavelmente precludida no momento em que é proferida sentença em 1ª instância, não podendo, consequentemente, ter-se por verificada, mesmo por impulso oficioso do Tribunal, apenas na fase de recurso.

E bem se compreende, aliás, o estabelecimento de um tal limite temporal à suscitação do vício de ineptidão, já que a prolação de decisão sobre o litígio – no caso dos autos, decisão sobre o mérito da causa, confirmada, aliás, por um primeiro acórdão, proferido pela Relação – implica necessariamente que, no desenrolar do processo, a eventual e originária insuficiência estrutural da petição inicial tenha sido suprida ou ultrapassada: não só a parte contrária terá contestado a versão do A., compreendendo o sentido essencial da factualidade que ele alegou, como o próprio tribunal, ao apreciar o mérito da causa, terá logrado compreender os pontos fundamentais do litígio que opunha as partes, ultrapassando, através da interpretação que fez dos articulados, as originárias deficiências e insuficiências factuais destes.»

Ora, salvo o devido respeito, bem se compreende tal regime se algum aproveitamento há da petição inicial, permitindo a apreciação do mérito da causa e a prolação de decisão que põe fim ao litígio. Obvia-se, assim, o desaproveitamento do processado e a prolação de decisão de cariz processual, culminando na absolvição do Réu da instância, quando, na verdade, foi alcançável a decisão de mérito, com apreciação substantiva do litígio.

Já se o caso redunda na inultrapassável ineptidão, designadamente por falta de causa de pedir, ainda que em 1.ª Instância a decisão proferida tenha sido a de improcedência do pedido por falta de fundamentos fácticos, a preclusão do conhecimento da nulidade em sede de recurso, implicando na confirmação da improcedência, é desprovida de sentido. Impõe-se a interpretação restritiva o referido regime legal, não obviando a apreciação oficiosa das nulidades que culmine na absolvição da instância. Acompanhamos, assim, os ensinamentos de MTS [
CPC online, artigo 200.º, 5 e 6], a saber:

«A imposição da preclusão da apreciação depois do despacho saneador da nulidade de todo o processo e de uma nulidade e exceção dilatória insanável não é aceitável. Não tem sentido deixar que permaneça pendente depois do despacho saneador uma ação em que, p. ex., não há causa de pedir (artigo 186.º, n.º 2, alínea a)) ou em que o pedido é contraditório com essa causa petendi (artigo 186.º, n.º 2, alínea b)). (b) Nem mesmo quando o réu não tenha invocado a ineptidão da p.i. na contestação se pode presumir que o mesmo interpretou convenientemente aquele articulado e que, por isso, não se justifica a apreciação oficiosa daquela ineptidão. O que resultado disposto no artigo 186.º, n.º 3, é diferente: a ineptidão não deve relevar quando o réu a tenha arguido e quando, depois de ouvir o autor, se conclua que aquela parte interpretou convenientemente a p.i..

6 (a) Há que reduzir o âmbito de aplicação do disposto no n.º 2 quanto à ineptidão da p.i. a uma dimensão razoável, fazendo uma interpretação restritiva do disposto nesse preceito e entendendo que a imposição do conhecimento dessa ineptidão no despacho saneador só vale para a hipótese de o réu a ter alegado na contestação (artigo 198.º, n.º 1). (b) O regime é então o seguinte: (i) se a ineptidão da p.i. for alegada pelo demandado na contestação, o tribunal deve conhecer dessa nulidade no despacho saneador (n.º 2); a falta deste conhecimento implica a nulidade, por omissão de pronúncia (artigo 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, alínea d)), daquele despacho; (ii) se a ineptidão da p.i. não tiver sido alegada pelo demandado, não há nenhuma preclusão do conhecimento oficioso dessa ineptidão depois do despacho saneador (dif. LF I (2018), n.º 2; GPS (2022), n.º 3; na j., RG 7/2/2019 (82/10); RG 26/1/2023 (2475/21)), salvo se essa ineptidão tiver sido concretamente apreciada ex officio naquele despacho (artigo 595.º, n.º 3, 1.ª parte).»

Tal interpretação restritiva permite, assim, o conhecimento oficioso da ineptidão da petição inicial em sede de recurso, após a prolação da sentença final, se não foi alegada pelo demandado e não foi objeto de apreciação oficiosa no despacho saneador e na sentença.

Passando, então, ao conhecimento da nulidade/exceção dilatória da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, importa notar que, tal como assinalado na sentença proferida em 1.ª Instância, competia à A alegar e provar os factos indispensáveis ao apuramento do lucro líquido.

Analisada a petição inicial, constata-se que a Requerente não alegou:

- o valor do lucro bruto, não superior a € 418.197,54, da Requerente no ano de 2004, afeto à atividade concessionada;

- o valor dos custos/despesas/encargos suportados pela Requerente, no ano de 2004, para viabilizar a atividade concessionada no mesmo ano de 2004.

Como a Requerente gizou a sua estratégia com o sentido de obter a indemnização a partir da margem bruta apurada em relação ao ano de 2004, não cuidou de carrear para o processo a alegação daqueles factos, indispensáveis à fixação da indemnização visada na condenação genérica objeto de liquidação.

Diz-se inepta a petição quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir – artigo 186.º, n.º 2, alínea a), do CPC.

Por via do princípio do dispositivo consagrado no artigo 5.º do CPC, “a iniciativa do processo e a conformação do respetivo objeto incumbem às partes; pelo que – para além de o processo só se iniciar sob o impulso do autor ou requerente – tem este o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respetivo pedido, ou seja, indicando qual o efeito jurídico, emergente da causa de pedir invocada, que pretende obter e especificando qual o tipo de providência jurisdicional requerida, em função da qual se identifica, desde logo, o tipo de ação proposta ou de incidente ou providência cautelar requerida.” [
Lopes do Rego, O Princípio do Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Feitas, vol. I, pág. 789]

Na verdade, ao demandante cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir – artigos 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d), do CPC. Temos, por um lado, os factos essenciais nucleares, aqueles que identificam ou individualizam o direito que se pretende exercer. Outros há que, “não desempenhando tal função, se revelam, contudo, imprescindíveis para que a ação proceda, por também serem constitutivos do direito invocado” [
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, 2.ª edição, pág. 30] – são os factos essenciais complementares. “A falta destes últimos revelará uma petição deficiente ou insuficiente, a carecer de convite ao aperfeiçoamento que permita suprir as falhas da exposição ou da concretização da matéria de facto.” [Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, ob. cit., pág. 30.]

causa de pedir consiste no facto jurídico de que procede a pretensão deduzida (artigo 581.º/4, do CPC), cumprindo ao autor que invoca a titularidade de um direito alegar os factos cuja prova permita concluir pela existência desse direito. Acolhida que foi, no nosso ordenamento jurídico, a teoria da substanciação, cabe ao autor “articular os factos dos quais deriva a sua pretensão, constituindo-se o objeto do processo e, por arrastamento, o caso julgado apenas sobre os factos integradores dessa concreta causa de pedir. (…) A causa de pedir, servindo de suporte ao pedido, é integrada pelos factos (por todos os factos) de cuja verificação depende o reconhecimento da pretensão deduzida, nos termos dos artigos 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d), (…).” [
Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Pires de Sousa, ob. cit., pág. 26]

Porque estamos no domínio do incidente de liquidação, cujo objeto é conformado pelo apuramento do valor da indemnização nos termos firmados na sentença transitada em julgado, assente que está o reconhecimento do direito de crédito à Requerente, a falta de alegação dos concretos factos que permitem o apuramento do referido lucro líquido redunda na ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.

O que, consubstanciando exceção dilatória (artigo 577.º, alínea b), do CPC), implica na absolvição da Requerida da instância (artigo 576.º/2, do CPC)."

[MTS]

19/02/2025

Bibliografia (1174)


-- Tomás Cardoso, N.O Dano da Perda de Chance na Responsabilidade Civil do Advogado, ROA 84 (2024), 101

Jurisprudência 2024 (109)


Providência de arresto;
perda da garantia patrimonial*


1. O sumário de RG 16/5/2024 (2111/24.8T8BRG.G1) é o seguinte:

I. A causa de pedir do procedimento cautelar nominado de arresto é complexa, integrada por factos (concretos e positivos) que revelem como provável a existência do crédito invocado pelo respectivo requerente e como justificado o seu receio de perda da garantia patrimonial respectiva.

II. A garantia patrimonial do crédito que se pretende preservar terá necessariamente que ser aquela que existia à data da constituição respectiva, ou como tal era conhecida pelo credor, precisamente por só essa ter o próprio considerado suficiente e idónea para assumir os riscos inerentes ao negócio celebrado; e apenas caber na tutela do arresto uma sua actuação cautelosa e prudente.

III. O carácter «justificado» do receio de perda da garantia patrimonial do crédito do requerente de arresto não se satisfaz com um mero juízo de probabilidade, correspondente a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, de simples ou meras dúvidas, de desconfianças subjectivas e precipitadas (sendo, por isso, um receio porventura conjecturado ou exagerado); exige, sim, um receio assente em factos objectivos (concretos e positivos) e avaliados num juízo distanciado (de prudente apreciação), tornando-se por isso convincente.

IV. A mera afirmação de que o devedor recusa o cumprimento (sem que se discrimine a diminuição do património que possuía à data da constituição do crédito), de que procede à reiterada constituição de sociedades, transmitindo para as novas o património das prévias e deixando estas oneradas com dívidas (sem que se discrimine que concretas sociedades constituiu e que concreto património - do antes existente - foi afectado a essa constituição), e que utiliza incessantemente a mesma e única sociedade para garantir as suas dívidas, como igualmente sucedeu no caso concreto (sem que se discrimine que activos possuía a dita sociedade à data em que se constituiu garante do concreto crédito em causa e que activos tem neste momento, e que responsabilidades garantia então e que outras assumiu desde então), não é idónea a fundar um juízo objectivo (factual) de risco de perda de garantia patrimonial.

V. Face ao momento precoce em que o julgamento antecipado do mérito da causa é realizado, o despacho de indeferimento liminar por manifesta improcedência da pretensão do autor deve ser reservado para situações em que seja evidente e inequívoco que a acção nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça da lei em vigor (tendo, nomeadamente, em conta os diferentes contributos da doutrina e da jurisprudência), ou a sua concreta aplicação ao caso sub judice.

VI. Só pode ser mandado aperfeiçoar aquilo que seja pré-existente, isto é, uma prévia alegação de factos essenciais, ainda que insuficiente ou imprecisa; e, por isso, se essa perfunctória ou ambígua alegação não chegou sequer a existir, a petição inicial é inepta, com a consequente nulidade de todo o processo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

4.3.1.2. «Justificado receio de perda da garantia patrimonial»

[...] verifica-se que o Requerente (AA) alegou, como factos concretizadores do justo receio da perda da garantia patrimonial do seu crédito:

. recusar-se o 1.º Requerido (BB) a cumprir o acordado, furtando-se inclusivamente a qualquer contacto seu para o efeito;

. ter o 1.º Requerido (BB) constituído EMP04... - Unipessoal, Limitada com um objecto social parcialmente coincidente com a Sociedade cuja quota lhe transmitiu, desviando o património desta para aquela, renunciando depois formalmente à gerência de EMP04... - Unipessoal, Limitada e simulando a transmissão da sua participação social, pese embora a continue a gerir de facto como negócio seu;

. constituir sociedades a torto e a direito, com a intenção de dissipar o seu património, deixando as prévias oneradas com dívidas, transferindo o seu património para as novas e prosseguindo nelas o inalterável objecto social das que abandona;

. ter sido condenado por insolvências culposas, uma delas com base na transmissão de bens de uma sociedade para a outra, fazendo-o uma e outra vez;

. e utilizar incessantemente a 2.ª Requerida (EMP01... - Unipessoal, Limitada) para credibilizar as dívidas que vai acumulando, fazendo-a garante das mesmas, tal como sucedeu no caso dos autos.

Dir-se-á, e salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, que a recusa de cumprimento, ainda que expressa e/ou reiterada, não contende necessariamente com a perda da pré-existente garantia patrimonial que assistia o crédito cuja satisfação assim se nega (isto é, não obstante o dito incumprimento, poderá o devedor manter nos seus exactos termos o património que possuía à data da sua vinculação).

Já relativamente à constituição de EMP04... - Unipessoal, Limitada, pelo 1.º Requerido (BB), parcialmente com o mesmo objecto social da Sociedade cuja quota o Requerente (AA) lhe transmitiu, desviando o património desta para aquela, renunciando depois formalmente à gerência de EMP04... - Unipessoal, Limitada e simulando a transmissão da sua participação social, pese embora a continue a gerir de facto como negócio seu, dir-se-á não se ver como essa actuação diminua aquele que era o património do 1.º Requerido (BB) à data da celebração do negócio de cessão de quotas em causa.

Com efeito, a garantia patrimonial do crédito que se pretende preservar terá necessariamente que ser aquela que existia à data da constituição deste, ou como tal era conhecida pelo credor, precisamente por só essa ter o próprio considerado suficiente e idónea para assumir os riscos inerentes ao negócio por si realizado. Ora, a constituição posterior de uma nova sociedade pelo 1.º Requerido (BB), ainda que parcialmente com o mesmo objecto daquela outra cujo capital social adquiriu, não afecta necessariamente o seu pré-existente património, uma vez que o Requerente (AA) não alegou que parte dele foi afectado a essa constituição.

Considerando agora a alegada e reiterada constituição de sociedades a torto e a direito, pelo 1.º Requerido (BB), com a intenção de dissipar o seu património, deixando as prévias oneradas com dívidas, transferindo os seus bens para as novas e prosseguindo nelas o inalterável objecto social das que abandona - tendo inclusivamente sido condenado por insolvências culposas (uma delas com base na transmissão de bens de uma sociedade para a outra) -, reiteram-se as considerações referidas antes.

Com efeito, se este era, e é, o perfil de empresário do 1.º Requerido (BB), o respectivo conhecimento por parte do Requerente (AA) não o impediu de contratar com ele, sendo que não alegou nos autos não o ter podido conhecer em momento anterior, ou só o ter descoberto mais tarde (e em que circunstâncias) [---]

Dir-se-á ainda que, não tendo oportunamente alegado que património conheceu ao 1.º Requerido (BB), onde firmou o risco de incumprimento do negócio que com ele celebrou, que concretas sociedades o mesmo constituiu depois e que concreto património (do antes existente ou, pelo menos, por si conhecido) para elas desviou, as suas alegações estão desprovidas da exigível concretização factual, enunciando apenas a sua subjectiva desconfiança, o seu mero receio conjectural, a sua conclusiva avaliação das actuações daquele.

Por fim, quanto à actuação do 1.º Requerido (BB), de utilizar incessantemente a 2.ª Requerida (EMP01... - Unipessoal, Limitada) para credibilizar as dívidas que vai acumulando, fazendo-a garante das mesmas, tal como sucedeu no caso dos autos, dir-se-á não ter novamente o Requerente (AA) discriminado que activos possuía a mesma à data em que se constituiu fiadora daquele, no cumprimento do seu crédito, e que activos tem neste momento; e igualmente não discriminou que responsabilidades garantia então e que outras assumiu desde então.

Sem essa prévia alegação, tendente a caracterizar a perda (ou o risco de perda) da garantia patrimonial desta 2.ª Requerida (EMP01... - Unipessoal, Limitada), nada de útil se retira daquela que o Requerente (AA) afirma ser mais uma forma habitual de proceder do 1.º Requerido (BB).   

Dir-se-á, assim, que o Requerente (AA) não alegou factos (concretos e positivos) cuja futura prova revelasse como justo o seu receio de perda da garantia patrimonial que considerou, de forma prudente e cautelosa, à data da constituição do seu crédito, já que só essa actuação poderá caber na tutela do arresto preventivo.

Desta forma não se afirma que ele próprio, neste superveniente momento, não desconfie, não receie, que tal possa vir a suceder; mas sim, e apenas, de que não forneceu ao Tribunal uma alegação susceptível de, num alter e distanciado juízo (que, não exigindo um grau de certeza ou de realidade, assegurasse, porém, um prudente convencimento), corroborar tais desconfiança e/ou receio, face ao que fora a sua inicial, prudente e cautelosa avaliação da futura capacidade de cumprimento dos Requeridos."

*3. [Comentário] Considerado o disposto no n.º III do sumário na sua totalidade, dele não decorre que, como por vezes se entende, "o carácter «justificado» do receio de perda da garantia patrimonial do crédito do requerente de arresto não se satisfaz com um mero juízo de probabilidade", mas antes que, segundo os elementos fornecidos pelo requerente, nem sequer se alcança a verosimilhança que é suficiente para a prova desse justo receio.

MTS

18/02/2025

Jurisprudência 2024 (108)


Reconvenção;
valor da causa

1. O sumário de RG 16/5/2024 (6349/22.4T8GMR.G1) é o seguinte:

O aumento resultante da soma do pedido inicial e da reconvenção só produz efeitos relativamente aos actos e termos posteriores à reconvenção, o que pressupõe que previamente se ajuíze da admissibilidade da reconvenção e só em caso de se concluir afirmativamente é que há lugar à soma do pedido do autor e do réu.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Vejamos, em primeiro lugar, o que dizem as pertinentes normas do Código de Processo Civil:

Artigo 296.º
Atribuição de valor à causa e sua influência

1 - A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.
2 - Atende-se a este valor para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal.
3 - Para efeito de custas judiciais, o valor da causa é fixado segundo as regras previstas no presente diploma e no Regulamento das Custas Processuais.

Artigo 297.º
Critérios gerais para a fixação do valor

1 - Se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
2 - Cumulando-se na mesma ação vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles; mas quando, como acessório do pedido principal, se pedirem juros, rendas e rendimentos já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atende-se somente aos interesses já vencidos.
3 - No caso de pedidos alternativos, atende-se unicamente ao pedido de maior valor e, no caso de pedidos subsidiários, ao pedido formulado em primeiro lugar.

Artigo 299.º
Momento a que se atende para a determinação do valor

1 - Na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a ação é propostaexceto quando haja reconvenção ou intervenção principal.
2 - O valor do pedido formulado pelo réu ou pelo interveniente só é somado ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 530.º.
3 - O aumento referido no número anterior só produz efeitos quanto aos atos e termos posteriores à reconvenção ou intervenção.
Artigo 306.º
Fixação do valor

1 - Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes.
2 - O valor da causa é fixado no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o n.º 4 do artigo 299.º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença. [...]

Equacionando as normas citadas com os factos acima relatados, temos que, relativamente quer aos pedidos formulados na petição inicial, quer ao pedido reconvencional, os valores indicados pelas respectivas partes – € 9816,51 e € 1.410,00, respectivamente – se mostram correctos o que, aliás, não vem questionado.

Posto que o momento a atender para a determinação do valor da causa é o da instauração da ação, salvo as excepções previstas na lei (citado art. 299.º/1), como a de, que no caso ocorre, haver reconvenção, desde já se pode concluir que o valor da causa fixado pelo Tribunal recorrido (inferior à soma dos valores dos pedidos da petição inicial) não está correcto, ponto é saber se ao valor da causa atribuído pelo autor se deve ou não somar o da reconvenção.

E no caso presente entendemos que não.

Como se escreveu em Ac. desta RG de 02-03-2023, Proc. 1430/22.2T8BCL.G1, Relatora Maria Leonor Barroso [---], em que interviemos como adjunto, «Ora, no caso, a autora pretende obter a condenação da ré em quantia certa. Somou os vários pedidos parcelares e os juros vencidos à data da propositura da acção. Pelo que o valor da causa por ela indicado está correcto.

Pedido reconvencional:

Refuta a ré que o valor da causa deve ser o que resulta da soma do pedido da autora e do pedido reconvencional.

Esquece a ré que na determinação do valor da causa se começa por atender somente ao momento em que a acção é proposta - 299º, 1, CPC.

O aumento resultante da soma do pedido inicial e da reconvenção só produz efeitos relativamente aos actos e termos posteriores à reconvenção - 299º, 3, CPC. O que pressupõe que previamente se ajuíze da admissibilidade da reconvenção e só, em caso de se concluir afirmativamente, é que há lugar à soma do pedido do autor e do réu.

Assim, como bem diz a autora nas contra-alegações:

“Conforme referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 3.ª Edição, em anotação ao art.º 299.º, nota 5, “Nesta linha, a reconvenção apenas determinará o aumento do valor processual se vier a ser admitida…”»

No mesmo sentido escreve Miguel Teixeira de Sousa [CPC ONLINE - CPC: art. 130.º a 361.º - Versão de 2024/02, pág. 205, anotações 21 e 22], que “(a) O momento a partir do qual se verifica a alteração do valor da causa deve ser apenas aquele em que a modificação do objecto se considera processualmente admitida. Antes da decisão sobre a admissibilidade da modificação do objecto não há nenhuma justificação para modificar o valor do processo (id. GPS I (2022), n.º 4 s.). (b) O disposto no n.º 3 impõe que a modificação do valor só opera para o futuro, pelo que não tem sentido construir este futuro sem se saber se estão adquiridas as bases para a sua construção. Em termos mais concretos: o art. 296.º, n.º 1, impõe que o valor da causa corresponda à sua utilidade económica. Ora, a utilidade económica de uma acção não se altera se a ocorrência que a pode determinar afinal não se verificar por inadmissibilidade da alteração do seu objecto.

(a) A reconvenção tem um valor próprio (art. 583.º, n.º 2); o mesmo sucede quanto ao incidente de intervenção de terceiros (art. 304.º, n.º 1). Assim, enquanto se discutir a admissibilidade da reconvenção ou da intervenção do terceiro não pode haver nenhuma alteração do valor da causa. (…)”.

No caso em apreço não houve pronúncia sobre a admissibilidade da reconvenção, nem faz sentido, prejudicada que está essa questão, que se conheça agora da mesma.

Acresce, por outro lado, que nos termos do citado art. 299.º/2 do CPC, o valor do pedido formulado pelo réu só é somado ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 530.º.

Este n.º 3 do art. 530.º do CPC estabelece, com interesse para a questão que ora nos ocupa, que não se considera distinto o pedido, designadamente, quando a parte pretenda conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

Sucede que no caso em análise ambas as partes pretendem (quanto ao autor, além do mais que também peticiona) obter uma indemnização da contraparte pela promovida cessação do contrato de trabalho - na alegação do autor, por despedimento ilícito por parte da ré; na alegação da reconvinte, denúncia do contrato pelo autor sem observância do aviso prévio.

Isto é, a ré/reconvinte propõe-se obter o mesmo efeito jurídico que o autor pretende, por sua vez, obter em seu benefício."

[MTS]


17/02/2025

Jurisprudência 2024 (107)


Processo de inventário;
remessa para os meios comuns


1. O sumário de RC 7/5/2024 (21/22.2T8MBR.C1) é o seguinte:

No inventário, não sendo caso do previsto no art.1092, nº 1, b), do Código de Processo Civil, as partes apenas podem ser remetidas para os meios comuns quando, nos termos do art. 1093, nº 1, da referida lei, a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes.

No caso, admitidos os movimentos bancários, discutido apenas se o dinheiro é economia do casal, transferido, por acordo de pais e filho, para este, para o “esconder”, considerando que a prova se limita aos documentos aceites e aos depoimentos desta família, não se justifica aquela remessa.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Considerando os princípios da concentração dos atos processuais, da economia de meios e da celeridade, a regra basilar é a de que, em qualquer processo, todas as questões e pretensões que nele se coloquem devem no mesmo ser decididas.

“A prossecução da regra de que a partilha de bens comuns deve ser efetuada de forma justa e equitativa passa também pela observação da regra de que a resolução de todas as questões tenha lugar no processo de inventário devendo a partilha realizar-se de uma só vez.” (Ac. da R. Porto, de 08.09.2020, proc. 3744/06, em dgsi.pt.)

Esta regra é afastada ou atenuada pelo disposto no art. 1903 do Código de Processo Civil, o qual estatui:

Outras questões prejudiciais

1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.

Não sendo caso do previsto no art.1092, nº 1, b), do Código de Processo Civil, as partes apenas podem ser remetidas para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes.

Nos incidentes da instância, a prova apenas é limitada quantitativamente, que não qualitativamente, podendo ser apreciados e valorados todos os meios de prova em direito admissíveis.

A jurisprudência vem entendendo que os interessados só devem ser remetidos para os meios comuns quando a questão em causa exija larga e complexa indagação factual, de tal modo que a sua solução se mostre inadequada ou dificilmente apreciável no processo de inventário, especialmente por os interessados não poderem aí exercer cabalmente a defesa dos seus direitos.

No caso concreto:

As partes reconhecem as transferências documentadas. Mais, com uma relativa exceção (€ 47.290,87), as partes reconhecem que o dinheiro era economia do casal. Elas apenas divergem na razão porque o dinheiro aparece na conta do filho de ambos.

As partes não se queixaram de qualquer redução de garantias em ver a questão resolvida aqui.

A prova a produzir limita-se aos esclarecimentos dos pais e filho, não se vislumbrando que outra pudesse ser feita, com relevância, no processo comum.

Assim, não ocorre a complexidade pressuposta na decisão recorrida.

Afastada a remessa que justificou a suspensão, fica também esta arredada."

[MTS]

14/02/2025

Jurisprudência 2024 (106)


Processo de inventário;
mapa da partilha; passivo da herança


I. O sumário de RC 7/5/2024 (583/20.9T8ACB.C1) é o seguinte: 

1 - Em processo de inventário judicial, havendo diversos bens a partilhar, tal como passivo determinado, e não tendo os interessados acordado no sentido de esse passivo ser suportado apenas por algum ou alguns deles, deve a decisão determinativa da partilha – e o mapa dela decorrente – mostrar como distribuir, não apenas o ativo, mas também aquele passivo, com o pagamento a constar relativamente a cada um dos interessados responsáveis.

2. - O mapa da partilha materializa a divisão, sujeita a homologação na sentença dos autos de inventário, contendo enunciação do ativo e do passivo, da quota de cada interessado e do preenchimento do respetivo quinhão com bens (ou lotes de bens), e sendo a peça processual que concretiza os direitos de cada interessado, quanto aos bens que lhe serão atribuídos e a tornas a prestar/receber.

3. - No âmbito das operações da partilha, a inicial subtração do passivo ao ativo, com vista à determinação da massa ativa líquida, a ser objeto de divisão pelos quinhões/quotas, não impede a (subsequente) partilha/distribuição do passivo, não constituindo, por isso, a derradeira divisão deste entre os herdeiros uma duplicação na dedução do passivo.

4. - Na falta de acordo em contrário, o passivo, tal como o ativo, deve ser partilhado segundo um princípio igualitário, tendo em conta os direitos/posições hereditários em concurso.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Não convencido, o Recorrente insiste na existência de uma ilegal – e prejudicial – duplicação na dedução do passivo ao ativo (dupla imputação), em violação do dito preceito do art.º 2068.º do CCiv..

Vejamos.

Dispõe este preceito da lei substantiva (em matéria de “Encargos da herança” e sob a epígrafe “Responsabilidade da herança”):

«A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados.».

Trata-se, então, da «menção completa das obrigações que recaem sobre os bens deixados pelo falecido» (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 117), sabido, nessa senda, que “Pelos encargos da herança é directamente responsável, nos termos dos arts. 2068.º e 2069.º do Código Civil, a massa patrimonial que constitui a herança”, tudo numa “tónica objectivista” como “reflexo da autonomia patrimonial da herança e do seu caráter de universalidade de direito”, mormente “no caso de herança indivisa”, “um património autónomo directamente responsável (art. 2097.º do CCiv.)” (V. Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 2.ª ed. (reimpressão), Coimbra Editora, Coimbra, 1990, ps. 109 e seg.. O Autor esclarece que «os herdeiros vêm a ser responsáveis pelos encargos da herança apenas porque titulares dessas massas patrimoniais autónomas e por isso mesmo a sua responsabilidade não se processa ultra vires hereditatis (art. 2071.º do CCiv.)» (cfr. ps. 110-111)), quadro em que não surpreende “que o art.º 2097.º claramente estipule que «os bens da herança indivisa respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos». Ou seja, respondem todos e cada um dos bens da herança, como universalidade (…)” (Cfr. p. 114. No mesmo sentido, João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. II, Almedina, Coimbra, 1990, ps. 126 e seg., aludindo a “um património autónomo, de afectação especial, pelo que somente o seu activo, e não o património do herdeiro, responde pela satisfação das respectivas dívidas”).

Relativamente à organização do mapa da partilha (---), explica Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, cit., p. 457) haver “três aspectos a considerar”, desde a (i) determinação da importância total do ativo, passando pela (ii) determinação da quota de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens, até ao (iii) preenchimento das quotas. O primeiro daqueles aspetos reporta-se «à prática de duas operações:

I Soma dos valores de cada espécie de bens conforme as avaliações e licitações efectuadas;

II Dedução a essa soma das dívidas, legados e encargos que devam ser abatidos».

Assim se encontra – sabido sempre que “o passivo da herança funciona independentemente do activo da mesma” (Vide Capelo de Sousa, op. cit., p. 157) – o ativo líquido a partilhar, tendo em conta que todo o passivo da herança constitui um valor negativo que tem de deduzir-se aos valores positivos que a constituem, também para responsabilizar os herdeiros pelo seu pagamento e na devida proporção e para fixar concretamente aquilo que cada um recebe na verdade (Cfr. Partilhas Judiciais, cit., p. 460, enfatizando-se que a “forma do pagamento” do passivo “em nada influi no seu abatimento”, sendo que, se o passivo foi aprovado por unanimidade, “cumpre deduzi-lo ao activo na primeira parte das operações em que o mapa da partilha se desdobra”.).

É esse ativo líquido que importa para o preenchimento da quota ou quinhão de cada um dos herdeiros, na parte em que se pretende partilhar/dividir o património/ativo.

Mas também o passivo haverá, do mesmo modo, de ser partilhado/distribuído, na falta de acordo em sentido diverso – no caso inexiste um tal acordo (quanto ao passivo que agora importa, no montante total aludido de € 8.395,08).

Ou seja, na falta – como in casu – de acordo em contrário (---), o passivo aprovado deve ser submetido às mesmas regras da partilha do ativo (divisão entre os herdeiros, na proporção das respetivas quotas, com recurso, se necessário, a compensação de créditos).

A tal em nada obsta, salvo o devido respeito, a operação inicial de subtração do passivo ao ativo, visto que nesse momento inicial das operações tendentes à partilha o que se procurava era somente determinar o dito ativo líquido, o valor total dos bens/ativos a partilhar, para cálculo das posições ativas a que são chamados os herdeiros e decorrente preenchimento dos seus quinhões.

Operada a inicial dedução (abatimento/subtração) do valor do passivo, encontrado está o valor global a atender para a partilha do ativo e preenchimento dos respetivos quinhões: apurada a importância total do ativo, segue-se a determinação da quota de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens, de molde a apurar quanto cabe a cada interessado no montante global e a fazer a destrinça desse quantitativo com referência a cada espécie de bens (Cfr. Partilhas Judiciais, cit., p. 463).

Mas como é a herança que responde pelo passivo, também o valor global deste tem de ser submetido à partilha, em operação subsequente à inicial dedução de valores passivos (uma não impede a outra).

Havendo passivo aprovado e inexistindo acordo em sentido diverso, esse passivo tem de ser partilhado/distribuído entre os interessados, do mesmo modo que o ativo.

Com efeito, importa proceder ao preenchimento de cada quota ou quinhão, de acordo com um “princípio igualitário” (Vide Partilhas Judiciais, cit., p. 465. Assim sendo, a “partilha supõe igualdade e é mister fazer quinhoar todos e cada um no bom e no mau” (cfr. p. 468), sem esquecer que, no mapa da partilha, “não se faz unicamente a distribuição do activo pelos interessados; determina-se ainda a parte que a cada um deles compete no pagamento do passivo” (p. 490)), seja quanto ao que compõe a massa do ativo, seja quanto ao passivo.

Se é certo poderem os interessados acordar “em diferentes formas de pagamento do passivo”, caso em que no mapa da partilha “cumpre observar o que ficou deliberado a tal respeito, considerando-se ainda que pode ficar a cargo de algum ou alguns dos herdeiros”, seguro é também – reitera-se – que nada os aqui interessados acordaram no sentido de o passivo em questão ser suportado apenas por algum ou alguns deles, devendo, por isso, a decisão determinativa da partilha mostrar também como distribuir o passivo, com o pagamento a “constar em relação a cada um dos interessados responsáveis” (Partilhas, cit., ps. 490-491).

Em suma, não se vê, com todo o respeito devido, que tenha havido no caso uma duplicação de dedução do passivo ao ativo, razão pela qual também não se pode acompanhar a argumentação do Apelante no sentido de ter ocorrido erro de julgamento e/ou violação do disposto no art.º 2068.º do CCiv.."

[MTS]


13/02/2025

Bibliografia (1173)


-- Capponi, B., Diritto dell'esecuzione civile, 8.ª ed. (Giappichelli: Torino 2025)


Jurisprudência 2024 (105)


Pedido reconvencional;
falta de causa de pedir; ineptidão


1. O sumário de RL 9/5/2024 (13299/23.5T8SNT-A.L1-2) é o seguinte:

I - Se um pedido reconvencional não for deduzido “de forma clara, de modo separado na contestação e com indicação do seu valor”, a consequência não é uma absolvição da instância (implícita), mas a necessidade de um despacho de aperfeiçoamento (artigos 590/3 e 583/2, ambos do CPC).

II - Se a autora alega um estado de necessidade subsumível à previsão do negócio usurário (art. 282 do CC) e o réu, sem mais, a faz equivaler ou implicar a um estado de incapacidade, e com base nisso faz um pedido de invalidade de actos praticados pela autora, verifica-se, por um lado, nulidade do pedido por ineptidão derivada da falta de causa de pedir e, por outro lado, uma falta de legitimidade processual activa para tal pedido, visto que o réu não tem o direito de pedir a anulabilidade do acto da autora por falta de capacidade desta.

III – Uma perícia não pode suprir – nem é um meio de suprir - a falta de alegações de factos.


2. Na fundamentação e na parte dispositiva do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os fundamentos invocados para a absolvição da instância implícita estão errados, pois que, existindo, deviam ter dado lugar a um despacho de aperfeiçoamento (assim, por exemplo, Lebre de Freitas, A acção declarativa, 5.ª edição, Almedina, 2023, pág. 149, e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, anotação ao art. 583, fim da nota 1 da pág. 602).

Apesar disso não teria sentido deixar seguir a reconvenção, o que se decide em substituição do tribunal recorrido ao abrigo do art. 665/2 do CPC.

A situação de inferioridade, inexperiência e dependência de terceiros, descrita pela autora para os efeitos do preenchimento da previsão do art. 282 do CC (negócios usurários), só por si não equivale nem implica de forma necessária a existência de uma incapacidade “cognitiva suficiente para exercer o direito de preferência, apresentar acções judiciais e os demais actos a que, legalmente tem Direito”. Como o réu, para concluir por tal incapacidade, nada acrescentou ao que a autora alegava, não se poderá nunca concluir pela mesma. E a falta dos factos necessários não pode ser suprida, porque o réu nada alegou no sentido de o estado da autora ser de incapacidade e não pode ser convidado a inventar agora factos nesse sentido. O réu limitava-se a pressupor que a situação descrita pela autora era equivalente ou implicava o estado de incapacidade.

O pedido reconvencional subsidiário era, pois, inepto, por falta de causa de pedir (art. 186/1-2a do CPC).

Não tendo sido alegados factos que permitissem concluir pela incapacidade e não podendo tal falta ser suprida, a perícia requerida pelo réu não serviria para nada. A perícia, como meio de prova que é, destina-se a provar as afirmações de facto feitas pelas partes, não a, eventualmente, descobrir factos que as partes não alegaram.

Dito de outro modo: a instrução feita no decurso de um processo destina-se à prova das afirmações de facto feitas pelas partes, não à investigação de factos que permitam às partes fazer afirmações de facto (art. 341 do CC). A investigação de factos não se faz durante o processo. A instrução é uma investigação da verdade das afirmações de facto feitas pelas partes com base na investigação dos factos que estas fizeram ou deviam ter feito antes do processo.

Neste sentido:

Castro Mendes: “A investigação processual não é uma actividade de descoberta da verdade sobre certo evento ou complexo de eventos, mas uma actividade de confirmação ou prova de um certo número de afirmações previamente feitas sobre os mesmos eventos; não se destina à aquisição de conhecimentos novos, mas à demonstração da verdade de factos já alegados em juízo, e que só resta confirmar – à prova, em suma. O art. 2404 do Código Civil de 1867, numa definição que se pode considerar basicamente correcta, define prova como a ‘demonstração da verdade dos factos alegados em juízo’” (Direito Processual Civil, AAFDL, III, 1982, pág. 185).

Lebre de Freitas, A acção declarativa comum, 5.ª edição, 2023, Gestlegal, pág. 245: “A produção dos meios de prova no processo visa demonstrar a realidade dos factos alegados pelas partes ou, em outra perspectiva, demonstrar a verdade da alegação por elas feita. […] […] a função probatória é precedida pela afirmação de que o facto ocorreu: a alegação precede a prova […].”

Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, 5.ª edição, 2023, Gestlegal, pág. 234, diz: “O princípio do inquisitório (supra, n.º II.6.6) aponta já para uma concepção do processo civil, diversa da primitiva concepção liberal, em que a investigação da verdade é da responsabilidade do juiz. Na sua pureza, implicaria que a iniciativa do juiz não se limitasse ao plano da prova e, invadindo igualmente o da recolha do material a provar, se traduzisse na livre investigação judicial dos factos. Não é assim, porém, nos siste­mas processuais dos Estados democráticos de tipo ocidental (supra, n.º II.6 (35)), em que, dominando o princípio da controvérsia a recolha dos factos da causa, apenas no campo da prova tem também aplicação o princípio do inquisitório […]”

Por outro lado, o réu não tem legitimidade para pedir a anulação de actos praticados pela autora por falta de capacidade; a falta de capacidade é um vício que pode levar à anulabilidade do acto (art. 257 do CC – “apesar da epígrafe da norma falar expressamente em ‘incapacidade acidental’ ela é aplicável quer a causa da incapacidade seja temporária quer seja permanente”: Maria de Fátima Ribeiro, nota 6/I ao art. 257 do C, pág. 621, no Comentário ao CC, Parte geral, UCP/FD/UCE, 2014) que só pode ser arguido pelas pessoas (ou seu representante, segundo lembra a autora acabada de citar) em cujo interesse a lei a estabelece (art. 287/1 do CC), sendo que entre essas pessoas não se conta, naturalmente, o declaratário ou o réu numa acção proposta pelo eventual incapacitado.

Pelo que o réu careceria de legitimidade processual activa para deduzir tal pedido contra a autora (art. 30/3 do CPC): a própria relação controvertida tal como configurada pelo réu não tem, no lado activo, o direito que o réu pretende exercer.

A nulidade do pedido reconvencional e a falta de legitimidade são casos de absolvição da instância (art. 277/1-b-d do CPC).

*
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido, mas, em substituição do tribunal recorrido, julga-se nulo o pedido reconvencional, por ineptidão derivada de falta de causa de pedir, para o qual, além disso, o réu não teria legitimidade, e, em consequência absolve-se a autora da instância reconvencional."

[MTS]