"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/10/2024

Jurisprudência 2024 (26)

 
Compensação extrajudicial;
excepção peremptória*

 
I. O sumário de RE 25/1/2024 (1809/21.7T8FAR.E1) é o seguinte:

1. A compensação pressupõe a reciprocidade de créditos, logo, a compensação apenas pode abranger a dívida do declarante, e não a de terceiro, e o declarante só pode utilizar para a compensação créditos que sejam seus, e não créditos alheios, ainda que o titular respetivo dê o seu consentimento (artigo 851.º do Código Civil).

2. É judicialmente exigível, para efeitos da compensação, a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à ação de cumprimento ou à execução do património do devedor.

3. O artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC não impõe que a invocação da compensação de créditos tenha de ser sempre feita através de reconvenção, apenas referindo que a compensação é admissível como fundamento da reconvenção, mas não que a compensação só possa ser feita valer por esse meio.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Importa apreciar como questão nuclear, apta a moldar o conhecimento transversal das demais questões do recurso, se a compensação de créditos tem de ser sempre invocada pela via reconvencional, como definido na sentença, ou se pode operar pela via excetiva, como pretendem os Réus na contestação.

Dispõe o artigo 847.º do Código Civil que:

«1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos:

a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção, perentória ou dilatória, de direito material;

b) Terem as duas obrigações por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.

2. Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente.

3. A iliquidez da dívida não impede a compensação.»

A compensação é no direito civil uma causa de extinção das obrigações além do cumprimento.

Torna-se efetiva mediante declaração de uma das partes à outra. Não basta a situação de compensação é necessário a declaração de compensação.

São requisitos da compensação legal (por contraposição a convencional) no direito civil:

- A reciprocidade de créditos, requisito autonomizado no artigo 851.º do Código Civil.

De acordo com este artigo a compensação apenas pode abranger a dívida do declarante, e não a de terceiro, ainda que aquele possa efetuar a prestação deste, salvo se o declarante estiver em risco de perder o que é seu em consequência de execução por dívida de terceiro (n.º 1).

O declarante só pode utilizar para a compensação créditos que sejam seus, e não créditos alheios, ainda que o titular respetivo dê o seu consentimento; e só procedem para o efeito créditos seus contra o seu credor (n.º 2 do mesmo artigo).

Um crédito solidário ou um débito solidário não pertence apenas a um dos concredores ou condevedores.

- Impõe-se também como requisito da compensação a homogeneidade das prestações. A fungibilidade há de ser da mesma espécie e qualidade.

- Consistem outros requisitos na validade, exigibilidade e exequibilidade do contra crédito.

O crédito invocado pelo compensante terá de ser exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção, perentória ou dilatória de direito material.

A propósito do que seja um crédito judicialmente exigível veja-se, por exemplo, o Acórdão do STJ de 11-07-2019, Proc. n.º 664/16.9T8OER-A.L1.S1 (Bernardo Domingos), in www.dgsi.pt, que define:

“É judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à ação de cumprimento ou à execução do património do devedor”.

No mesmo sentido os acórdãos nele citados, cujas transcrições assinalamos infra:

“O crédito (ativo) a compensar não tem de estar reconhecido previamente para se poder invocar a compensação (…). Assim, é exigível judicialmente o crédito suscetível de ser reconhecido em ação de cumprimento” – Relator Conselheiro Pinto de Almeida, Proc. 23656/15.5T8SNT.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt

“A exigibilidade do crédito para efeito de compensação não significa que o crédito (…) do compensante, no momento de ser invocado, tenha de estar já definido judicialmente: do que se trata é de saber se tal crédito, que se pretende ver compensado, existe na esfera jurídica do compensante, e preenche os demais requisitos legais; sendo exigível, não procedendo contra ele exceção, perentória ou dilatória, de direito material; e terem as duas obrigações por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade – alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 847.º do Código Civil.

O invocado crédito não deixa de ser exigível, muito embora no momento em que é oposto não esteja reconhecido, nem judicialmente, nem pelo credor, o que conduz, inexoravelmente, a uma decisão judicial que os reconheça” – Relator Conselheiro Fonseca Ramos, proc. n.º 91832/12.3YIPRT-A.C1.S, acessível em www.dgsi.pt.

Sendo este também o nosso entendimento, não tendo como necessário para efetivar a compensação, que o crédito deva estar previamente reconhecido judicial ou extrajudicialmente.

A sentença recorrida aparentemente opta por uma posição jurisprudencial mais restrita, como se colhe da fundamentação que ora se transcreve:

“Embora a exigibilidade judicial do crédito nada tenha a ver com o reconhecimento judicial do mesmo, parece ser certo, no entanto, que o crédito só é judicialmente exigível se tiver as condições que permitem a realização coativa da prestação. (…)

É certo que tem vindo a ser defendido pela jurisprudência, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça, uma interpretação menos exigente desta norma, concluindo que a referência a uma obrigação judicialmente exigível no âmbito do artigo 847.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, apenas remete para a sua exigibilidade em ação declarativa (cfr. Ac. do STJ de 11.07.2019, no processo 1664/16.9T8OER-A.L1.S1). No rigor, essa é a posição que parece resultar do teor dos artigos 847.º e 848.º do Código Civil: a compensação para operar tem que ter sido declarada por uma parte à outra, mas o crédito passivo não tem que ser imediatamente exequível.

Ora, se decorre do ponto n.º 12 dos factos provados a existência da declaração de vontade dos RR em fazer operar a compensação de créditos, também decorre do ponto n.º 25 que a Autora não reconheceu o crédito reclamado pelos RR.

Assim, não estando o crédito invocado pelos RR reconhecido extrajudicialmente, impunha-se que o estivesse judicialmente para que aqueles se pudessem fazer valer do mesmo. (…)

Ou seja, era forçoso que na data da declaração operada pela comunicação referida no ponto n.º 12 dos factos provados, os RR pudessem impor à Autora a realização do crédito que invocam e essa imposição só poderia resultar ou do reconhecimento desse crédito por parte da Autora ou da existência de uma decisão judicial que o reconhecesse”.

E dizemos “aparentemente mais restrita” porque no desenvolvimento da fundamentação a sentença admite a possibilidade os Réus/recorridos nesta ação, em que o seu alegado crédito não surge reconhecido judicial ou extrajudicialmente, deduzirem reconvenção para obterem decisão judicial de reconhecimento deste crédito.

Assim, colhe-se da fundamentação:

“Não tendo a Autora reconhecido o crédito dos RR, impunha-se que estes obtivessem decisão judicial de reconhecimento, o que poderiam fazer por via reconvencional nesta ação (artigo 266.º/2-c), do Código de Processo Civil).

Contudo, os RR não deduziram reconvenção, tendo-se limitado a pugnar pela improcedência da ação defendendo que a validade da compensação de créditos que fizeram.

No entanto, como dissemos, o crédito que aqueles invocam não é, nem era à data da declaração à contraparte, judicialmente exigível, porque não estava reconhecido judicial ou extrajudicialmente.

O que os RR fizeram foi proceder, de forma unilateral, à redução do preço do negócio”.

Ou seja, o tribunal a quo afastou a possibilidade de os Réus verem reconhecida nesta ação a compensação do crédito pelos mesmos declarada, com fundamento em os Réus não fizeram uso do mecanismo processual que poderia permitir tal reconhecimento: a reconvenção.

O que nos remete para a questão central em apreciação.

Saber se pode um Réu invocar a compensação de créditos por via da mera exceção ao direito de crédito invocado pelo Autor, ou se tem de o fazer obrigatoriamente por via da reconvenção.

A questão foi já por nós decidida no âmbito da Apelação 83572/21.9YIPRT.E1 deste TRE, relatado pela ora relatora, in www.dgsi.pt, onde se sumariou:

“O artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC não impõe que a invocação da compensação de créditos tenha de ser sempre feita através de reconvenção, apenas referindo que a compensação é admissível como fundamento da reconvenção, mas não que a compensação só possa ser feita valer por esse meio.”

Expressamos então a nossa posição de admissibilidade de invocação da compensação de créditos por via excetiva.

Seguindo de perto a fundamentação de outros acórdãos, nomeadamente do AC. TRC de 26-02-2019. Proc. n.º 2128/18.1YIPRT.C1, in www.dgsi.pt, escrevemos então:

«A questão de saber se a compensação tem, ou não, de ser invocada sempre via reconvencional, ao abrigo do anterior artigo 274.º, n.º 2, alínea b) e atual artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC tem sido abundantemente abordada na doutrina e na jurisprudência, constituindo uma vexata quaestio com dilucidações, essencial ou circunstancialmente, díspares.

Descortinam-se três orientações.

A primeira que entende que a compensação, quer exceda ou não o contra crédito, apenas pode ser invocada via reconvenção.

A segunda que pugna que o artigo 266.º, n.º 2, alínea c), apenas rege para os casos em que o réu se proponha ver reconhecida a compensação nos autos e não já para os casos em que ela foi anteriormente reconhecida, quer judicialmente, quer extrajudicialmente por declaração do compensante ao compensário.

Finalmente a terceira que defende que o citado segmento normativo atribui ao compensante uma mera faculdade de usar a reconvenção para fazer operar a compensação, podendo, assim, invocá-la por via excetiva – cfr. para maiores desenvolvimentos, os arestos citados pelas partes, a saber: o Ac. da RG de 22.06.2017, proc. 69039/16.0YIPRT.G1 e o Ac. da RC de 18.01.2018, proc. 12373/17.1YIPRT-A.C1 e a basta doutrina e jurisprudência neles citadas.»

Aderimos à terceira tese.

A compensação assume-se, substantiva e adjetivamente, como figura jurídica diferenciada e autónoma sem estar condicionada por outras figuras ou institutos.

Por isso, assume-se como exceção perentória capaz de obstar ao direito da contraparte, constituindo um meio de extinção das obrigações – cfr. artigo 847.º e segs. do CC. E, desse modo, pode ser invocada em sede de contestação – artigo 571.º, n.º 1, do CPC.

Não havendo qualquer razão para, nos casos em que o valor da compensação não excede o contra crédito, obrigar o compensante a invocar a compensação apenas por via reconvencional.

Não constituindo, para tanto obstáculo, o disposto no artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC, que rege:

«2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos: (…)

c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor»

A lei processual – artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC – não impõe que a compensação só possa ser feita valer em reconvenção, mas sim que esta reconvenção é admissível quando se pretenda invocar a compensação – cfr. Lebre de Freitas in “A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 4ª edição, página 145 e seguintes.

A não se entender assim, inexistindo reconvenção em certo tipo de ações, por imposição legal, como no presente caso, ao réu estaria vedada a invocação da compensação. (…)

Neste sentido os Acórdãos que seguem, todos in www.dgsi.pt:

- Ac. do STJ de 18-10-2016, p. 6271/08.7TBBRG.P1.S1:

«A compensação baseia-se na conveniência de evitar pagamentos recíprocos quando o devedor tem, por sua vez, um crédito contra o seu credor, e, ainda, em se julgar equitativo que se não obrigue a cumprir aquele que é, ao mesmo tempo, credor do seu credor, uma vez que o seu crédito ficaria sujeito ao risco de não ser integralmente satisfeito, se entretanto se desse a insolvência da outra parte». (…)

- Ac. do STJ de 14-12-2021, P.107694/20.2YIPRT.S1

«1. A compensação de créditos depende da verificação dos requisitos previstos no artigo 847.º do Código Civil e, eficazmente invocada pelo devedor-credor, produz os mesmos efeitos do cumprimento, dando lugar, quando provada, à absolvição do pedido, assim constituindo uma exceção perentória, nos termos do artigo 576.º, n.º 3, do CPC.

2. O artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC não impõe que a invocação da compensação de créditos tenha de ser sempre feita através de reconvenção, apenas referindo que a compensação é admissível como fundamento da reconvenção, mas não que a compensação só possa ser feita valer por esse meio.»

Assim, na adesão a esta posição jurisprudencial anteriormente por nós defendida, e que julgamos de manter, teremos de discordar da sentença quando alega a falta de dedução da reconvenção como comprometedora do reconhecimento da compensação de créditos.

O compensante pode fazer operar a compensação por via excetiva, verificados que estejam os requisitos de natureza substantiva da compensação.

Assim decidida a primeira questão do recurso, fica prejudicada a questão de apurar se o tribunal deveria ter usado os poderes de gestão inicial do processo convidando os Réus a deduzirem reconvenção."
 
 
*III. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, o acórdão assenta num enorme equívoco.

Como se deduz do que se afirma no próprio acórdão, o que estava em causa era saber se era válida uma compensação realizada extrajudicialmente antes da propositura da acção
("Terminam [os Réus] pugnando pela improcedência da ação, mantendo que têm direito à compensação de valores que fizeram operar extrajudicialmente"). Ora, o disposto no art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC, aplica-se apenas à chamada compensação judiciária, isto é, à compensação que é provocada na ação pendente. 
 
Quer dizer: há que distinguir entre provocar a compensação que é realizada em juízo (situação à qual se aplica -- sempre -- o disposto no art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC) e alegar uma compensação que já operou (situação à qual se aplica -- também sempre -- o regime das excepções peremptórias: art. 576.º, n.º 3, CPC). Se a compensação já operou antes da propositura da acção, o que o réu invoca é que o crédito do autor já se encontra extinto, no todo ou em parte, por compensação. Como é claro, não faz sentido provocar a extinção de um crédito que já se encontra extinto por uma compensação que já operou antes da propositura da acção. É por isso que o regime da compensação judiciária não é aplicável quando o réu invoca que o crédito alegado pelo autor já se encontra extinto por uma compensação anteriormente declarada. 
 
Em suma:

-- Não faz sentido aplicar o regime da excepção peremptória quando se trata de provocar a compensação em juízo; em concreto: a excepção peremptória serve para invocar um facto extintivo do crédito (pagamento, novação, compensação, etc.), não para para provocar a extinção desse crédito em juízo (aliás, é precisamente por isto que passa a linha divisória entre a excepção peremptória e a reconvenção); assim, para provocar a extinção do crédito do autor em juízo através da compensação, há que recorrer ao regime da reconvenção (art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC);

-- Não faz sentido aplicar o regime da reconvenção quando se trata de invocar a extinção do crédito do autor por uma compensação que operou antes da propositura da acção; para alegar esta extinção, há que recorrer à excepção peremptória (art. 576.º, n.º 3, CPC); um crédito que já se encontra extinto não pode voltar a ser extinto em juízo.

Estas soluções são as únicas que são compatíveis com dados elementares do processo civil, pelo que não deixa de causar alguma estranheza as confusões que se têm verificado nesta matéria. Tendo presente a distinção entre a excepção peremptória e a reconvenção -- isto é, in casu, a diferença entre invocar a extinção e provocar a extinção de um crédito --, não há nenhuns motivos para dúvidas.

b) O que estava em causa no caso concreto -- e o que, aliás, a RE apreciou -- era apenas a questão da validade da compensação declarada extrajudicialmente pelos agora Réus. Assim, toda a discussão sobre o modo de operar a compensação judiciária (que, aliás, só pode ser a reconvenção) foi totalmente desnecessária, pois que não era essa a "questão central em apreciação".

MTS


14/10/2024

Jurisprudência 2024 (25)

 
Prova documental;
apresentação de documentos; controlo judicial

 
1. O sumário de RG 15/2/2024 (4774/21.7T8GMR.B.G1) é o seguinte:

I - A tempestividade de um documento apresentado na audiência final implica a alegação e prova de que a apresentação anterior não foi possível ou de que a apresentação se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior.
 
II - A ocorrência posterior deve ser relacionada com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialéctica que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa.
 
III - O princípio da igualdade encontra consagração no artigo 4.º do CPC, que dispõe que o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.
 
IV – A identidade de faculdades e meios de defesa processuais das partes só é exigível quando a sua posição perante o processo seja equiparável.
 
IV – O juiz não se encontra compelido a admitir a junção de um documento só porque a parte, que não o apresentou oportunamente, invoca a importância daquele para a descoberta da verdade. A não se entender assim, perdia sentido a obrigação de apresentação da prova em momentos processuais determinados, pois restaria sempre à parte a possibilidade de invocar a sua essencialidade.
 
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A questão a apreciar insere-se no âmbito do direito à prova e oportunidade da sua apresentação.
 
O direito à prova emana da necessidade de se garantir ao cidadão a adequada participação no processo e de assegurar a capacidade de influenciar o conteúdo da decisão. [...]
 
Todavia, o direito à prova não é ilimitado.
 
O direito à prova não pode ser tomado por um direito absoluto na sua essência, e por isso, por vezes, terá de sofrer restrições.
 
No campo das proibições de prova, importa considerar a natureza processual ou substancial que estas revistam: tem natureza substancial quando colocada essencialmente em função dos direitos que o ordenamento reconhece aos indivíduos, independentemente do processo; está em causa uma proibição de prova processual, quando for colocada em função de interesses atinentes à lógica e à finalidade do processo [Sobre a proibição da prova, Isabel Alexandre, Provas ilícitas em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1998, pag. 48.]
 
Sem entrar na classificação conceitual de “prova proibida”, ora como uma limitação legal à produção da prova, ora como uma limitação legal a valoração da prova, importa sublinhar aqui a sua importância em termos de prova inadmissível, por referência àquela prova que, por qualquer razão legal, não pode ser admitida no processo. Neste conspecto, a inadmissibilidade corresponde à verificação de um impedimento à prática de determinado ato no processo seja porque a lei não admite in tottum ou não admite com aquela forma ou altura do processo. Com efeito, na doutrina refere-se à prova inadmissível para descrever os meios de prova que, por qualquer motivo, não podem ser inseridas nos autos.
 
Um dos limites que a lei impõe respeita, precisamente, ao momento da sua apresentação.
 
Quanto à prova por documentos, a oportunidade da sua apresentação encontra-se legalmente fundada na previsão do art. 423.º, do C.P.C.
 
O nº1 deste preceito consagra o princípio geral de proposição dos meios de prova, constituendos e pré-constituídos, com os articulados, ao dispor que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
 
Da exegese do 423.º do C.P.C., extrai-se que os documentos podem ser apresentados nos seguintes momentos: a) com o articulado respetivo; b) até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final mas, neste caso, a parte é condenada em multa, exceto se provar que não os pode oferecer com o articulado respetivo; e c) posteriormente aos mencionados 20 dias, até ao encerramento da discussão em 1ª instância mas, neste caso, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento e os que provem factos posteriores a ele ou que, provando factos anteriores, se formem posteriormente ou se tornem necessários por virtude de ocorrência posterior.
 
O art. 423º do C.P.C. regula tão só e apenas o direito que assiste às partes de fazerem juntar ao processo documentos, independentemente da sua pertinência, da sua relevância e da apreciação do seu valor probatório [---]
 
As circunstâncias que tornam admissível a apresentação de documentos depois dos 20 dias que antecedem a audiência final têm de ser alegadas e provadas pela parte que pretende a junção do documento.
 
Visou-se com a restrição contida neste preceito (que difere da anterior redação do art.º 523º, nº 2) disciplinar a produção de prova, assegurando-se o oportuno contraditório e obviando a intuitos exclusivamente dilatórios.
 
A falta de diligência da parte e a produção do chamado "efeito-surpresa" são incompatíveis com os parâmetros atuais do processo civil. Como o é a apresentação de um documento na audiência final com vista a provocar o seu adiamento. Um e outro estão correlacionados, pois que a diligência constitui um parâmetro de aferição da conduta da parte no desenvolvimento do processo.
 
Na indagação da admissibilidade do documento, quando invocada a impossibilidade da prévia apresentação, o seu fundamento haverá de ser apreciado segundo critérios objetivos e de acordo com padrões de normal diligência, isto é, a diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias do caso (art. 487, nº2, do C.P.C.).
 
Quando invocada a necessidade da sua junção em virtude de ocorrência posterior o grau dessa necessidade não tem de ser significativo, bastando que a apresentação do documento se revele útil como meio de prova.
 
Na verdade, como se escreveu no já citado acórdão da Relação de Lisboa de 25/9/2018 [---], “da economia do preceito legal não se descortina uma especial intenção de reforçada excecionalidade; não é necessário que o documento cuja junção se pretende seja o único (ou principal) meio de prova, bastando que a apresentação do documento se revele útil como meio de prova”.
 
Seguindo ainda o entendimento considerado no referido aresto “A ocorrência posterior deve ser relacionada com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialéctica que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa (…). E nesse conspecto haverá de ter em conta o regime legal relativamente ao apuramento dos factos relevantes. As partes apenas estão adstritas à alegação dos factos essenciais (artigos 5º, nº 1, 552º, nº 1, al. d), e 572º, al. c), do NCPC); mas o tribunal, para além desses, pode considerar os factos instrumentais e complementares ou concretizadores que resultem da discussão da causa (art.º 5º, nº 2, do NCPC). Ora será aquando da revelação desses factos decorrentes da produção de prova na audiência que poderá surgir a necessidade, no apontado sentido de utilidade, de confirmação desses factos mediante prova documental. E a essa situação se reportará, na generalidade dos casos, o conceito de ocorrência posterior”.
 
No caso vertente, estando ultrapassados os prazos previstos na lei, o Requerente justifica a razão e a finalidade da junção para que se possa aferir, ou melhor contrariar, a relevância probatória dos cheques que foram juntos pela contraparte por determinação do tribunal.
 
Apreciemos, então, a justificabilidade quer formal quer material da apresentação dos documentos.
 
Atentemos que o processo se encontra na fase de julgamento.
 
Logo, só com a invocação de ocorrência posterior relacionada com a dinâmica do processo se justificaria legalmente a junção dos documentos.
 
Ora, ressalvado o devido respeito, não se vislumbra que ocorrência posterior relacionada com a dinâmica do processo, possa justificar a junção dos documentos nesta fase, quando antes em face dos fundamentos da defesa e da alusão que já aí era feita aos cheques (que foram protestados juntar), não sentiu o autor tal necessidade.
 
Nenhuma justificação se prefigura como atendível, no sentido de ser apta ou adequada a demonstrar a impossibilidade de o autor, num quadro de normal diligência, proceder à junção do documento no momento processualmente oportuno. Não é por acaso que a propósito da impossibilidade da prévia apresentação, a terminologia usada nos art.s 423º, n.º 3 e 425º é “não ter sido possível”, implicando que o fundamento haja de ser apreciado segundo critérios objetivos e de acordo com padrões de normal diligência, isto é, a diligência de um bom de família em face das circunstâncias do caso (art.º 487, nº2, do Código Civil).
 
Por outro lado, como já referido, não se alcança nem o recorrente invoca qual tenha sido a “ocorrência posterior”, suficientemente consistente e atendível, que torne necessária a apresentação dos documentos, não decorrendo a mesma claramente dos cheques que foram juntos.
 
Acrescenta-se, em termos de pertinência, que os documentos não apresentam relevância para a decisão da causa, isto é, baseando-nos num juízo de prognose abstrato os elementos em causa não têm (potencial) relevância para prova de factos objeto do litígio, pois que dizem respeito a outros processos, que envolvem outros intervenientes e outros imóveis, não podendo extrair-se a conclusão que os aqui 2ºs réus simularam os negócios em discussão nestes autos, com base na convicção firmada naqueloutros, a pretexto de que ali se teria concluído que os mesmos incorreram em simulação."

[MTS]

 

11/10/2024

Bibliografia (1149)


-- Consolo. C. / Maggiolo, M. (Eds.), I rimedi contrattuali tra autonomia privata e processo civile (Giuffrè: Milano 2024)