"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/11/2024

Jurisprudência 2024 (52)


Prova testemunhal;
poderes do tribunal; inquirição oficiosa


1. O sumário de RP 20/2/2024 (119553/16.9YIPRT-D.P1) é o seguinte:

A inquirição de uma pessoa como testemunha, por iniciativa do tribunal, à luz do princípio do inquisitório e da sua concretização na regra do nº 1 do art. 526º do CPC, não visa a superação da ineficiência das partes, não cabendo ao tribunal interferir no ónus que lhes cabe quanto à apresentação e produção dos meios de prova tendentes à demonstração dos factos que lhe convenham, designadamente intervindo a favor de uma delas e convocando testemunhas que ela não ofereceu nos termos legalmente previstos, quando esta, podendo fazê-lo, não providenciou nesse sentido, cumprindo as regras processuais correspondentes.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"É incontroverso que a regra que disciplina o oferecimento de prova, em acções como a presente, é o nº 4 do art. 3º do D.L. 269/98, de 1/9, nos termos da qual as provas são oferecidas na própria audiência, cabendo às partes a apresentação das testemunhas.

Sem prejuízo disso, no caso em apreço, todos os actos praticados na 1ª audiência de julgamento foram anulados, tendo sido decretada a necessidade da sua repetição, nos termos do art. 605º, nº 1 do CPC.

Por isso, quando foi iniciada a nova audiência de julgamento, em 10/5/2023, cabia ao autor a apresentação das testemunhas que pretendia que fossem inquiridas.

Não é objecto deste recurso saber se a pretensão do autor quanto às circunstâncias da convocatória das testemunhas por si indicadas deveria ter sido deferida, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo. Aqui, cumpre apenas aferir se, atenta a forma como a imprescindibilidade do depoimento de FF foi alegada, na própria audiência de julgamento, depois de ali ter sido afirmado que foi ele quem tratou do negócio com o réu primitivo, de quem também não é possível obter esclarecimentos, caberia ao tribunal, de per si, determinar a sua comparência.

É pertinente convocar o disposto no art. 526º, nº 1 do CPC, que dispõe: “1 - Quando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor.”

Esta regra, como recorrentemente se afirma, constitui uma concretização do princípio do inquisitório, prescrito no art. 411º do CPC, nos termos do qual se estabelece dever o juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.

Todavia, nem este princípio, nem aquela regra, têm por fim a intervenção do tribunal na superação da ineficiência das partes. Ou, dito de outro modo, não caberá ao tribunal interferir no ónus imposto às partes quanto à apresentação e produção dos meios de prova tendentes à demonstração dos factos que lhe convenham, designadamente intervindo a favor de uma delas, quando esta, podendo fazê-lo, não providenciou nesse sentido, designadamente oferecendo e tratando da apresentação ou convocação de testemunhas segundo o regime processual aplicável.

Isto mesmo referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Pires de Sousa, CPC Anotado, vol.I, pg. 577-578, em anotação ao art. 526º: “A intervenção oficiosa do juiz deve assumir uma natureza complementar relativamente ao ónus da iniciativa da prova que impende sobre cada uma das partes, não podendo servir para superar, de forma automática, falhas processuais reveladas designadamente através da omissão de apresentação do requerimento probatório em devido tempo ou sequer da alteração do rol de testemunhas até ao limite definido pelo art. 598º, nº 2. (…) O que este preceito pretende acautelar és possibilidade de o juiz inquirir uma testemunha cuja relevância se alcançou durante o processo/audiência e, sobretudo, numa fase em que as partes já não podem arrolar tal testemunha.”

Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (CPC Anotado., Vol II, pg. 416) referem ainda a reserva de algumas legislações quanto ao exercício deste poder pelo juiz, em razão dos riscos que comporta para a sua imparcialidade.

Também a jurisprudência vem acolhendo tal interpretação do regime, como se constata, entre outros, no Ac. do TRG de 04-03-2013 (proc. nº 293/12.0TBVCT-J.G1, Relator: ANA CRISTINA DUARTE, em dgsi.pt) “Este poder, complementar, de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste, não podendo configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos negligentes das partes.”

No caso sub judice, há muito que o autor conhecia a utilidade do depoimento de FF, de forma alguma se podendo sustentar que só em audiência e na sequência das declarações prestadas por ele próprio e pela ré BB foi percepcionada essa necessidade.

O autor já arrolara FF, seu filho, como testemunha em 2017, no julgamento que foi anulado. Refere o autor, ora apelante, que a utilidade desse depoimento resulta de ter sido ele que tratou de todo o negócio que é causa de pedir nestes autos. Por tudo isto, é absolutamente óbvio aquilo que antes se afirmou: de forma alguma se admite que só em audiência e na sequência da prova até então produzida tenha surgido, quer para as partes, quer para o tribunal - designadamente em função da respectiva razão de ciência - a percepção de que teria utilidade a audição dessa pessoa como testemunha.

Nestas circunstâncias, não se verificam os pressupostos da intervenção do tribunal, determinando por sua iniciativa a inquirição de uma testemunha que a parte tinha por essencial ouvir e que, apesar disso, não ofereceu nos termos legalmente previstos.

Sabe-se que o autor mantém em discussão, sob recurso, a questão relativa a ter providenciado, atempadamente e nos termos processualmente estabelecidos, em ordem à convocatória dessa testemunha para depor. Isso é, todavia, o objecto de outro recurso, do qual o presente foi autonomizado. Sobre tal questão não pode este tribunal pronunciar-se. No entanto, qualquer que seja a conclusão sobre a discussão dessa matéria, qualquer que seja o resultado desse recurso, a situação jamais haverá de ser superada por via de uma intervenção oficiosa e correctiva do tribunal, suprindo- se, se vier a ser entendido ter sido esse o caso, a ineficácia instrutória da parte.

É, de resto, por isso mesmo que se rejeita a alegação do apelante quanto a ver-se vítima de uma violação do princípio de igualdade de armas, por muito ser consentido à parte contrária, ao mesmo tempo que se lhe impede o direito à prova. Pelo contrário, a solução anteriormente afirmada observa, isso sim, esse princípio de igualdade, sujeitando ambas as partes ao mesmo regime processual de exercício dos seus direitos. Desigualdade ocorreria se se permitisse a uma das partes a realização de fins processuais em incumprimento de regras que foram impostas à parte contrária, substituindo-se-lhe o tribunal para assegurar a realização desses fins, em suprimento da sua ineficácia, como, afinal, pretende o apelante.

Igualmente se rejeita que a decisão recorrida incorra na violação de qualquer preceito constitucional, alegação essa que o apelante enuncia de forma que nem sequer concretiza por qualquer forma."

[MTS]


19/11/2024

Jurisprudência 2024 (51)

´
Reconvenção;
pedido reconvencional; autonomia


1. O sumário de STJ 14/3/2024 (3652/21.4T8VFR-A.P1.S1) é o seguinte:

I – Na reconvenção, estamos perante uma verdadeira ação – proposta, num processo em curso, através da contestação, pelo R. contra o A. – em que o R. faz valer um pedido/pretensão que podia formular em ação própria.

II – O que significa – correspondendo a reconvenção à introdução num processo pendente dum novo objeto constituído por uma causa de pedir própria e por uma pretensão autónoma – que nem todas as pretensões formuladas por um R. na contestação revestem natureza reconvencional, pois que, para que tal ocorra, tem a pretensão do R. de gozar de autonomia relativamente à pretensão do A..

III – É relativamente comum vermos contestações em que o R. termina/conclui a pedir a sua absolvição do pedido ou a pedir que sejam julgadas procedentes as exceções alegadas/invocadas, mas tais “pedidos” não constituem “pedidos reconvencionais”, uma vez que só há um verdadeiro “pedido” quando o mesmo corresponde a uma pretensão autónoma.

IV – E um pedido reconvencional é desprovido da indispensável autonomia – e, por isso, não deve ser admitido por força do art. 266.º/1 do CPC – se o efeito desejado pelo R. for a consequência da improcedência da ação: um pedido reconvencional destina-se a obter a declaração positiva de um direito, tem que acrescentar um benefício à simples improcedência da ação.

V – É o que, numa ação de responsabilidade civil, acontece (é desprovido da indispensável autonomia) com o “pretenso” pedido reconvencional que se baseie nas alegações/invocações factuais que se destinam a afastar/reduzir o direito indemnizatório invocado pelo A. (tendo e esgotando a sua repercussão jurídica – uma vez que correspondem tais alegações/invocações a defesa por impugnação – no plano do nexo causal e do dano, ou seja, não gozando de autonomia relativamente à pretensão indemnizatória do A.).

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O Acórdão recorrido confirmou a decisão da 1.ª Instância que não admitiu o pedido reconvencional, sendo pois a solução dada a tal questão – respeitante à admissibilidade ou não da reconvenção – que suscita a presente revista e que preenche todo o seu objeto.

Segundo o Acórdão recorrido, o pedido reconvencional é uma mera decorrência da defesa, sem autonomia em relação à pretensão da A., razão pela qual é inadmissível enquanto pedido reconvencional.

Com o que, desde já se antecipa, se concorda totalmente.

Vejamos porquê:

Estamos, fora de qualquer dúvida, perante uma ação fundada em responsabilidade civil contratual: segundo a A., o R., no exercício da sua atividade profissional de advogado e no âmbito de um contrato de prestação de serviço (de mandato) celebrado com a A., cometeu um erro/falta – não procedeu ao oportuno registo de hipotecas que visavam garantir o crédito da A. sobre o seu ex-marido (crédito esse emergente da partilha entre ambos) – que, ainda segundo a A., não lhe permitiu/te receber a totalidade do crédito que tinha sobre o seu ex-marido (terão ficado por receber as 4 últimas prestações anuais, no montante global de € 275.200,00).

Significa isto, muito claramente, que a A., na presente ação, peticiona uma indemnização civil pelos danos decorrentes do erro/falta (no cumprimento dos seus deveres profissionais) do R., o que também significa que são requisitos constitutivos de tal indemnização (e da responsabilidade civil do R.) o facto ilícito por parte deste, a sua culpa, a existência de dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano1.

E dá-se o caso de o R. admitir o seu referido erro/falta, com o que, abreviando, ficam demonstrados os requisitos do facto ilícito e da culpa, centrando-se a controvérsia/discussão, quanto à constituição do direito indemnizatório da A., no âmbito dos requisitos do dano e do nexo causal.

Sendo justamente aqui, na qualificação jurídico-processual do que o R. alegou/invocou no perímetro de tal controvérsia/discussão, que começa todo o equívoco do R..

O R., como havia feito na apelação, insiste que o que alegou/invocou na contestação visa impedir/modificar/extinguir o direito indemnizatório da A. e que configura defesa por exceção perentória.

Mas, claramente, o que alegou/invocou na contestação configura defesa por impugnação.

A defesa por impugnação, como resulta do art. 571.º/2/1.ª parte do CPC, compreende duas modalidades: a defesa direta, em que o demandado nega de frente os factos alegados pelo autor, em que ataca direta e frontalmente a realidade dos factos constitutivos alegados pelo autor; e a chamada negação “indireta ou motivada” dos factos, em que o demandado reconhece a realidade dos factos (ou de parte deles) alegados pelo autor, mas contradiz o efeito jurídico que o autor pretende extrair deles, ou seja, dá-lhes uma versão diferente (diz que as coisas se passaram de modo parcialmente diferente), contrariando assim a verificação dos factos constitutivos do direito do autor.

Ao invés, na defesa por exceção perentória, como resulta do art 571.º/2/2.ª parte e 576.º do CPC, o demandado – sem negar propriamente a realidade dos factos alegados pelo autor, nem atacar o efeito jurídico que deles se pretende extrair – procede à alegação de factos novos (contra-factos) tendentes a repelir a pretensão do autor, ou seja, é uma defesa indireta, que assenta num ataque de flanco/lateral contra a pretensão formulada pelo autor (o demandado aceita a alegação apresentada pelo autor, mas alega novos factos capazes de gerar a sua absolvição).

Há, reconhece-se, alguma proximidade entre a defesa por impugnação e a defesa por exceção perentória, na estrita medida em que em ambos os casos o propósito do demandado é ser absolvido do pedido, porém, a defesa por impugnação assenta no entendimento de que não assiste razão ao autor, seja de facto, seja de direito, enquanto na defesa por exceção perentória o demandado opõe contra-factos que têm por efeito impedir, modificar ou extinguir o direito invocado pelo autor, o qual, não fora a eficácia da exceção perentória, seria reconhecido.

Assim, os exemplos típicos de exceções perentórias são os factos que, em face da lei substantiva, configuram causas impeditivas, modificativas ou extintivas do direito do autor (como o pagamento, a remissão, a novação, a prescrição, a caducidade, o erro, a coação, a simulação, ou quaisquer outros factos que determinam a invalidade do negócio jurídico).

Pelo que, perante isto, o alinhado no relatório inicial – ou seja, o que o R. alegou/invocou na contestação – tem que ser qualificado, repete-se, como impugnação, na modalidade da negação “indireta ou motivada”.

Tudo o que o R. alegou/invocou tem em vista diminuir o dano indemnizável, não por ter um efeito impeditivo, modificativo ou extintivo do direito indemnizatório da A., mas sim por, face ao alegado/invocado pelo R., o dano indemnizável se ter que considerar constituído em montante inferior ao pretendido pela A..

Efetivamente:

quando o R. alega que, além das prestações anuais confessadamente recebidas, a A. recebeu ainda em dinheiro, do seu ex-marido, € 19.000, está a impugnar/negar o montante ainda não recebido pela A. e, em consequência, o montante do dano;

quando o R. alega que havia outro património do ex-marido da A. que, por opção desta, não foi penhorado, está a dizer que houve montante não recebido pela A. (através de tal outro património) que não decorre – que não foi causado – pela sua falta/erro e, em consequência, a impugnar/negar o montante do dano;

quando o R. alega que, antes da constituição das hipotecas a favor da A., já quatro dos imóveis tinham sido hipotecados pela A. e pelo seu ex-marido, em 1996, está também a dizer que parte do montante não recebido pela A. (através de tais imóveis) não foi causado pela sua falta/erro e a impugnar/negar, em consequência, o montante do dano;

quando o R. alega que uma das hipotecas posteriormente constituída e inscrita sobre um dos imóveis que também foi hipotecado em garantia do crédito da A. visava garantir um mútuo contraído pelo seu ex-marido para pagamento de outra dívida comum do casal, está ainda a dizer que parte do montante não recebido pela A. (através de tal imóvel) não foi causado pela sua falta/erro e, em consequência, a impugnar/negar o montante do dano;

quando o R. alega que sobre um outro dos imóveis hipotecados já existia registo de hipoteca anterior à que fora constituída para garantia do crédito da A., está mais uma vez a dizer que parte do montante não recebido pela A. (através de tal imóvel) não foi causado pela sua falta/erro e, em consequência, a impugnar/negar o montante do dano.

Enfim, como corretamente se observa no Acórdão recorrido, o R. tão só “visa a fixação do montante da indemnização em valor inferior ao pedido”, para o que alega/invoca factos que – não contrariam os factos alegados pela A., dando-lhes, isso sim, uma “versão parcialmente diferente” – colocam em causa o montante do dano invocado pela A. e o nexo causal entre a sua conduta ilícita/omissiva e o dano invocado pela A..

Sendo a partir daqui, deste equívoco inicial – da configuração da sua impugnação motivada como defesa por exceção perentória – que o R. constrói e sustenta a admissibilidade, com base em tais alegações/invocações, da dedução da sua reconvenção.

O que, claro, sendo assim, não cumpre – de imediato se percebe – a função da reconvenção, que não é um meio de defesa do demandado, mas sim, antes, um meio de ataque (de contra-ataque), visando mais ou coisa diferente da mera improcedência do pedido do A.. [...]

Concorda-se pois com o Acórdão recorrido quando no mesmo se observa que “(…) só pode falar-se de reconvenção quando o réu formula um pedido contra o autor que não consista em mera conclusão da defesa. E tal não pode ser contornado pelo uso da fórmula que o recorrente usou em várias alíneas do pedido: “que seja o reconvindo condenado a reconhecer que…” ou “que seja declarado que”; e quando se acrescenta que, se fosse assim, não haveria “(…) nenhum meio de defesa que não pudesse, afinal, ser transmutado em “pedido”. A título meramente exemplificativo, poderá ser pedido: que seja reconhecido que o réu não teve qualquer responsabilidade pelo acidente; que seja o autor condenado a reconhecer que o réu já lhe pagou a quantia peticionada ou que sejam os reconvindos condenados a admitir que não têm direito de passagem sobre o prédio do réu. Ninguém duvidará que tais pedidos não poderiam ser considerados como reconvencionais, sequer se tratando de verdadeiros pedidos sendo, antes, meras conclusões da defesa. (…)”

Assim como com o que no Acórdão recorrido se observa, no sentido da inadmissibilidade da reconvenção, a propósito de cada uma e de todas as alíneas do pedido reconvencional deduzido pelo R./recorrente.

Insiste-se – e é um ponto decisivo – o R. não invocou qualquer exceção perentória: tudo o que ele alegou/invocou não “passa” de defesa por impugnação.

É verdade, não se contradiz, que todos os “pedidos reconvencionais” deduzidos decorrem de factos que servem de fundamento à defesa, mas isso, como acabámos de expor, não é suficiente para um pedido reconvencional ser admitido."


[MTS]

18/11/2024

Jurisprudência constitucional (232)


Uniformização de jurisprudência:
admissibilidade; rejeição

 TC 10/10/2024 (710/2024) decidiu

"[...] Não julgar inconstitucional a norma do artigo 692.º, n.ºs 1 a 4, do Código de Processo Civil, interpretado no sentido de que a rejeição do recurso para uniformização de jurisprudência, após exame preliminar, incumbe ao relator do processo em que foi proferido o acórdão impugnado, sendo o acórdão que confirme tal rejeição, proferido em conferência – constituída pelo mesmo relator e por dois adjuntos, que coincidem com os subscritores do acórdão recorrido –, definitivo nas instâncias; [...].

 

Jurisprudência 2024 (50)


Matéria de facto; impugnação;
ónus do recorrente


1. O sumário de STJ 19/3/2024 (150/19.0T8PVZ.P1.S1) é o seguinte:

I – Estando unicamente em causa o reconhecimento, ou não, do fundamento legal para a rejeição pelo Tribunal da Relação da impugnação da matéria de facto, por incumprimento da exigência estabelecida na alínea a) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, a decisão desta questão jurídica apenas se coloca no âmbito da apreciação do acórdão recorrido, inexistindo, por sua própria natureza, qualquer pronúncia da 1ª instância sobre a matéria, o que significa que não é logicamente concebível a constituição de dupla conforme nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil.

II – É manifesto o incumprimento pelo impugnante da obrigação prevista no artigo 640º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, quando nas conclusões do recurso não consta a indicação de qualquer ponto da matéria de facto que houvesse sido impugnado pelos recorrentes, o que é por si suficiente para determinar a imediata rejeição da impugnação.

III – Neste contexto não podem ser avocados, com pertinência e sucesso, os princípios moderadores da proporcionalidade, razoabilidade e adequação, na medida em que estes, enquanto filtro do sistema para obviar ao exacerbado formalismo na verificação desses requisitos, pressupõem que o impugnante tenha cumprido minimamente os ónus processuais que sobre si impendiam, o que não sucedeu na situação sub judice.

IV – Sendo o artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, claro, inequívoco e peremptório ao estabelecer a imediata rejeição da impugnação de facto no caso de incumprimento pelo impugnante dos ónus previstos nessa disposição legal, não há cabimento para a prévia prolação pelo juiz desembargador de qualquer convite ao aperfeiçoando das conclusões do recurso de revista nessas circunstâncias.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2 – (In)cumprimento dos requisitos exigidos no artigo 640º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil.

Nas conclusões do recurso de apelação os RR. apelantes não fizeram qualquer alusão aos pontos de facto que pretenderiam colocar em crise, não os identificando minimamente.

Ao invés, limitaram-se a realizar uma referência genérica ao enquadramento jurídico que, a seu ver, deveria ter sido observado (e não foi), aludindo, nesse contexto e de forma difusa, à narrativa geral dos acontecimentos que entenderam terem ficado demonstrados na sequência do julgamento, acrescentando a este propósito a alegação de que houve incorrecta valoração da matéria de facto.

Contudo, não indicaram, como se disse, um único dos pontos de factos concretos cuja modificação pretendessem ver operada pelo Tribunal da Relação.

(Note-se a este propósito que a factualidade dada como prova e não provada encontra-se descrita no elenco dos trinta e três factos dados como provados e vinte e um considerados não provados, competindo nestes termos aos impugnantes delimitarem, perante tal complexo acervo factual, os pontos de facto que pretendiam verdadeiramente colocar em crise, cumprindo relativamente a eles o ónus de síntese conclusiva – definido nos artigos 639º, nº 1, e 640º do Código de Processo Civil - que a lei especificamente lhes impõe).

É assim manifesto o incumprimento pelos impugnantes da obrigação processual prevista no artigo 640º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, segundo a qual: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: (…) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”.

Não constando das conclusões do recurso a indicação de qualquer ponto da matéria de facto que houvesse sido impugnado pelos Réus recorrentes, resta concluir que estes descuraram inteiramente o cumprimento da obrigação processual constante do artigo 640º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil e que sobre eles impendia.

O que é por si suficiente para determinar a imediata rejeição dessa mesma impugnação da matéria de facto, assim deficientemente apresentada.

Constitui aliás entendimento firme e consolidado, tanto na jurisprudência como na doutrina, que a impugnação da matéria de facto pressupõe, para ser admissível, a inclusão nas conclusões de recurso (e não apenas no corpo das alegações) dos pontos de facto impugnados.

(Neste sentido, vide Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil”, Almedina 2022, 7ª edição, a página197; José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Artigos 627º a 877º”, Almedina 2022, 3ª edição, a pagina 95; Rui Pinto in “Manual do Recurso Civil”, AAFDL, Editora, 2020, a página 301; na jurisprudência, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Março de 2022 (relator Pedro Branquinho Dias), proferido no processo nº 330/14.4TTCLD.C1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Junho de 2021 (relator Ricardo Costa), proferido no processo nº 10300/18.8SNT.L1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2023 (relator Cura Mariano), proferido no processo nº 4696/15.0T8BRG.G1.S1); o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Novembro de 2023 (relator Luís Espírito Santo), proferido no processo nº 203/18.1T8GDL.E1.S1); o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Fevereiro de 2024 (relator Lino Ribeiro), proferido no processo nº 7146/20.7T8PRT.P1.S1); o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Novembro de 2023 (relator Ferreira Lopes), proferido no processo nº 7146/20.7T8PRT.P1.S1); o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2023 (relator Moreira Alves), proferido no processo nº 1727/07.1TBSTS-L.P1.S1), todos publicados in www.dgsi.pt.

Pelo que o acórdão do Tribunal da Relação agiu com absoluto acerto, inteira correcção e plena conformidade com a lei ao rejeitar, como se impunha, a impugnação da matéria de facto por incumprimento do disposto no artigo 640º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, o que neste caso é claro, ostensivo e incontornável.

Mas se refira que não podem ser aqui avocados, com pertinência e sucesso, os princípios moderadores da proporcionalidade, razoabilidade e adequação, na medida em que estes, enquanto filtro do sistema para obviar ao exacerbado formalismo da análise na análise dos citados requisitos legais, pressupõem que o impugnante tenha cumprido minimamente os ónus processuais que sobre si impendiam, o que, como se viu, não sucedeu na situação sub judice.

3 – Inadmissibilidade da prolação de despacho de aperfeiçoamento perante o incumprimento dos deveres processuais consignados no artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil.

O artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, é claro, inequívoco e peremptório ao estabelecer a imediata rejeição da impugnação de facto no caso de incumprimento pelo impugnante dos ónus previstos nessa disposição legal.

O que significa que inexiste cabimento para a prévia prolação pelo juiz desembargador de qualquer convite ao aperfeiçoando das conclusões de recurso de revista nestas circunstâncias.

Nesse mesmo sentido, constitui entendimento uniforme da jurisprudência e da doutrina que a rejeição da impugnação de facto por incumprimento das exigências previstas no nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil não tem de ser antecedida de um prévio despacho de aperfeiçoamento.

Neste sentido, vide, na doutrina, José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º. Artigos 627º a 877º”, Almedina 2022, 3ª edição, a página 95; António Abrantes Geraldes in obra citada supra, a página 199; Rui Pinto in “Manual do Recurso Civil”, AAFDL, Editora, 2020, a página 304; na jurisprudência, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Setembro de 2021 (relator José Rainho), proferido no processo nº 5404/11.0TBVFX.L1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Setembro de 2022 (relator Fernando Batista), proferido no processo nº 556/19.4T8PNF.P1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 2024 (relator Nelson Borges Carneiro), proferido no processo nº 18321/21.7T8PRT.P1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Janeiro de 2024 (relator Pedro Lima Gonçalves), proferido no processo nº 2605/20.4T8LRS.L1.S1; todos publicados in www.dgsi.pt.

A revista é, por conseguinte, negada."

[MTS]


16/11/2024

Bibliografia (1557)


-- Ferraro, F. / Iannone, C. (Eds.) Il rinvio pregiudiziale (Giappichelli: Torino 2024)

-- Smidt, M., Beweiserleichterungen im deutschen Zivilprozess / Eine systematisch-vergleichende Analyse (Nomos: Baden-Baden 2024)

15/11/2024

Bibliografia (1156)


-- Roy, Philippe Matthew, Pleading and Cooperation in Private-Law Litigation / Comparing Germany and the United States (Duncker & Humblot: Berlin 2024)


Jurisprudência 2024 (49)


Injunção de pagamento europeia;
competência internacional


1. O sumário de STJ 19/3/2024 (21307/20.5T8PRT.E2-A.S1) é o seguinte:

Sendo apresentado requerimento de injunção europeia para pagamento de um crédito emergente de um contrato de compra e venda, celebrado entre uma empresa portuguesa e outra sediada no Reino Unido, nos termos do Regulamento (CE) n.1896/2006 (de 12 de dezembro), e tendo-se provado que o local de entrega das mercadorias era em Portugal, a competência internacional cabe ao tribunal português (e não aos tribunais do Reino Unido) nos termos do artigo 7º, n.1 do Regulamento (EU) n.1215/2012.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3. O direito aplicável

3.1. A única questão em análise nos presentes autos é a de saber se o tribunal onde foi proposta a ação é, ou não, o tribunal internacionalmente competente para julgar o presente pleito.

Como resulta dos autos, o conflito entre as partes respeita a um contrato de compra e venda de bens alimentares, no qual figura como vendedora uma empresa portuguesa – a ÉVORALIMENTAR, Ldª” e como compradora uma empresa sedeada no Reino Unido – a “AGARI International Limited”.

Está, assim, em causa um caso de natureza transfronteiriça, tal como definido no art. 3º do Regulamento n.1896/2002, respeitante a matéria comercial, que, por isso, cabe no seu âmbito de aplicação, tal como previsto nos artigos 2º e 4º deste Regulamento, sendo a respetiva competência judiciária determinada segundo as regras do direito comunitário aplicáveis, tal como prevê o art.6º do referido Regulamento.

As regras de competência judiciária (após a revogação do Regulamento n.44/2001) passaram a estar previstas no Regulamento (EU) n.1215/2012 (de 12 de dezembro), aplicável a partir de 10.01.2015.

3.2. O litígio em causa (tal como o requerente o configura e o recorrido não o nega) respeita a um contrato transfronteiriço, de compra e venda de bens alimentares, entre duas empresas, sendo a vendedora sediada em Portugal e a compradora sediada no Reino Unido. Assim, estando em causa matéria de natureza comercial, encontra-se justificada a aplicação do Regulamento n.1215/2012 (pois o caso não respeita a nenhuma das matérias excluídas do seu âmbito de aplicação pelo art.1º deste Regulamento).

O artigo 4º do referido Regulamento estabelece como regra geral (e supletiva) a de que as pessoas devem ser demandadas no Estado-Membro onde estão domiciliadas. Porém, tal regra comporta as exceções previstas no art.7º, correspondentes a hipóteses de competências especiais.

Estabelece o Regulamento 1215/2012 (na sua SECÇÃO 2) o seguinte:

«Competências especiais

Artigo 7.º
As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:
1) a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues; (…)»

Considerando que não houve convenção prévia das partes sobre o tribunal competente (dado que as partes não a invocam), o elemento decisivo para a determinação do tribunal internacionalmente competente é o do lugar onde os bens vendidos foram (ou deviam ser) entregues, como previsto no art.7º, n.1 do referido Regulamento.

Conhecido esse facto, a conclusão quanto à competência do tribunal será inequívoca: só pode ser o tribunal do Estado-Membro onde se situa o local de entrega.

Após alteração da matéria de facto, o TRE concluiu que o lugar da entrega foi em ..., nas instalações da vendedora (onde as mercadorias foram carregadas).

3.3. A recorrente entende que o tribunal recorrido errou ao considerar que a entrega dos bens vendidos ocorreu em (...), pois na sua opinião o lugar de entrega era no Reino Unido, sendo, consequentemente, competentes os tribunais desse reino.

Sustenta a sua tese na alegação de que o TRE teria feito errada avaliação da prova constante dos autos, tanto da prova testemunhal como da prova documental. E pretende que, em revista, o STJ se pronuncie sobre o modo o tribunal recorrido apreciou as provas.

Deve, desde já, afirmar-se que a pretensão da recorrente se apresenta destituída de fundamento.

3.4. Como decorre do previsto no art .682º do CPC, em regra, a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada pelo STJ. Esta regra é complementada pelo disposto no art. 674º, n. 3, primeira parte, nos termos da qual o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista.

Tal regra só admite como exceção a hipótese de existir ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

No caso concreto, o facto cuja prova releva para a decisão da questão jurídica respeitante à competência do tribunal é o de saber em que local foram entregues as mercadorias vendidas pela requerente à requerida. É manifesto que, pela própria natureza de tal facto, não está em causa a exigência legal de um específico meio de prova (como acontece quando a lei exige um documento autêntico). Trata-se, sim, de um facto que pode ser demonstrado por qualquer meio de prova, podendo ser alvo de prova testemunhal (nos termos do art.392º do CC), como efetivamente foi, não se verificando qualquer impedimento a esse tipo de prova (nos termos dos artigos 393º e 394º do CC).

Entende a recorrente que o local de entrega era o Reino Unido e que tal facto resultava de documento com força probatória plena – a fatura emitida pela vendedora.

Não lhe assiste razão. A fatura não é, por si só, um documento dotado de força probatória plena, quanto ao local de entrega das mercadorias, pois não se trata de documento autêntico (vd. art.371º do CC), nem de documento particular reconhecido por entidade oficial (vd. art.376º do CC) que lhe ateste o valor dessa informação.

O tribunal recorrido, ao reapreciar a prova produzida, baseou-se, assim, em elementos probatórios que pode apreciar livremente, pelo que não se pode concluir que tenha existido violação de qualquer norma que fixe a força de determinado meio de prova.

Feito este percurso, conclui-se que, no caso concreto, como a jurisprudência tem reiteradamente entendido, não cabe a este tribunal sindicar o modo como o tribunal recorrido valorou a prova produzida em tribunal, dado não estar em causa prova com valor tarifado.

Veja-se, a propósito, o que se resume no recente Acórdão do STJ, de 19.12.2023 (relator Luís Espírito Santo)1, no processo n. 1929/20.5T8VRL.G1.S1:

«Desde que não se coloque no âmbito da revista a violação pelo acórdão recorrido de normas respeitantes à prova tarifada, com força legalmente vinculativa, encontrando-nos, ao invés, perante prova apreciada livremente pelas instâncias, nos termos gerais do artigo 366º e 369º do Código Civil e 466º, nº 3, do Código de Processo Civil, o juízo de facto autónomo extraído pelo acórdão recorrido está fora do superior controlo por parte do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência do que se dispõe nos artigos 662º, nº 4, e 674º, nº 3, do Código de Processo Civil.»

3.5. Encontrando-se definitivamente apurado que a entrega dos bens vendidos ocorreu em Portugal (mais concretamente, em (...)), ao STJ cabe apenas, nos termos do art. 682º, n.1 do CPC aplicar o direito correspondente.

Como supra referido, determinando-se no art. 7º do Regulamento 1215/2012 que o tribunal competente para apreciar o litígio é o do local da entrega, dúvidas não existem de que este é o tribunal português, como bem entendeu o acórdão recorrido, em cuja fundamentação se afirma:

«No caso em apreço, tendo por base um contrato de compra e venda de bens alimentares celebrado entre A. e R, e sendo apurado que o local da entrega de tais bens à R. era nas instalações da A., situadas em (...), forçoso é concluir que o tribunal competente para conhecer do pleito é o Tribunal Judicial de Évora, mais concretamente o Juízo Central Cível e Criminal de (...), onde, aliás, os presentes autos se encontram já a correr termos

Em resumo, não existe fundamento para censurar o acórdão recorrido, pois este fez a correta aplicação das normas pertinentes ao caso sub judice."

[MTS]


14/11/2024

Jurisprudência 2024 (48)


Princípio do contraditório;
exercício; notificação da parte


1. O sumário de TConf 11/1/2024 (0205/22.3Y2MTS.P1.S1) é o seguinte:


I - A discordância quanto ao decidido não é motivo de nulidade do acórdão; a sua arguição, com este significado, é manifestamente infundada.

II - Tendo sido anulado um acórdão para que fosse cumprido o contraditório, por ter a recorrente alegado que apenas com a sua notificação teve conhecimento de que tinha sido junto um parecer do Ministério Público (que é o recorrido) junto do Tribunal dos Conflitos, e constando o parecer do Citius, plataforma por onde é tramitado o processo, a recorrente teve a oportunidade de se pronunciar sobre o parecer antes de proferido o novo acórdão.

III - O princípio do contraditório tem um significado material, que se reconduz ao princípio da igualdade das partes perante a lei e o tribunal e se traduz no reconhecimento do direito das partes a que a sua posição sobre as questões em litígio possa ser considerada pelo tribunal quando as vai decidir.

IV - É este sentido material do contraditório que o n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil traduz, ao revelar, na sua parte final, que o que o respeito do contraditório impõe é que, antes de o juiz decidir “questões”, as partes devem ter disposto “da possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

V - Tendo sido notificado às partes o acórdão que anulou o acórdão anterior, para que fosse cumprido o contraditório, e constando do Código de Processo Civil a regra geral sobre a duração e o início da contagem do prazo para as partes exercerem qualquer outro poder processual para além dos que vêm referidos na lei – cfr. artigo 149.º do Código de Processo Civil e artigo 19.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro –, a recorrente dispôs de todos os elementos de que necessitava e do prazo para se poder pronunciar oportunamente.

VI - Anular o último acórdão por falta de notificação do parecer do Ministério Público seria apenas um formalismo sem qualquer fundamento material; razão pela qual a arguição de nulidade por falta de notificação é manifestamente infundada.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"6. São manifestamente infundadas as nulidades arguidas.

Relativamente à nulidade do acórdão, por falta de assinatura do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o que o requerimento agora em apreciação revela é a discordância da recorrente relativamente ao que, quanto a este ponto, se decidiu expressamente no acórdão de 22 de Novembro de 2023, e que acima se transcreveu. Note-se que a circunstância de constar da acta da sessão que o acórdão foi “subscrito pelo Senhor Presidente”, quando é manifesto que não foi, não tem a virtualidade de invalidar o acórdão.

No que toca à nulidade processual resultante da falta de notificação do Parecer do Ministério Público, apresentado no Tribunal dos Conflitos, cumpre ter presente, em primeiro lugar, que este recurso é tramitado através da plataforma Citius, como a recorrente, aliás, nos recorda, ao identificar o acórdão (embora a referência indicada se refira ao acórdão de 5 de Julho de 2023) e a acta da sessão de 22 de Novembro de 2023 pelas respectivas referências Citius e que o referido Parecer do Ministério Público conste da mesma plataforma (ref. 11549441).

Em segundo lugar, cabe frisar que o princípio do contraditório tem um significado material, que se reconduz ao princípio da igualdade das partes perante a lei e o tribunal e se traduz no reconhecimento do direito das partes a que a sua posição sobre as questões em litígio possa ser considerada pelo tribunal quando as vai decidir. Por isso se anulou o acórdão de 5 de Julho de 2023 – recorde-se que a recorrente alegou que só com a leitura deste acórdão tomou conhecimento da existência de tal Parecer, ponto 24 do requerimento de 20 de Julho de 2023.

Tendo o acórdão de 27 de Setembro de 2023, em julgamento da nulidade por falta de notificação do Parecer do Ministério Público, arguida pela recorrente, anulado o acórdão de 5 de Julho anterior “para que seja cumprido o princípio do contraditório, uma vez que o Ministério Público é recorrido no recurso que está em causa” (ponto 2 do acórdão de 27 de Setembro), acórdão que foi notificado à recorrente, e constando do Código de Processo Civil a regra geral sobre a duração e o início da contagem do prazo para as partes exercerem qualquer outro poder processual para além dos que vêm referidos na lei – cfr. artigo 149.º do Código de Processo Civil e artigo 19.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro – a recorrente dispôs de todos os elementos de que necessitava e do prazo para se poder pronunciar antes de ser proferido o acórdão de 22 de Novembro – cfr. ponto 4 deste acórdão de 22 de Novembro.

Recorda-se que é este sentido material do contraditório que o n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil traduz, ao revelar, na sua parte final, que o que o respeito do contraditório impõe é que, antes de o juiz decidir “questões”, as partes devem ter disposto “da possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Tendo disposto dessa possibilidade, anular o acórdão de 22 de Novembro por falta de notificação do Parecer do Ministério Público seria apenas um formalismo sem qualquer fundamento material; razão pela qual a arguição de nulidade por falta de notificação é manifestamente infundada.

Não se conhecem as inconstitucionalidades suscitadas porque não se aplicam as normas visadas com o sentido que a recorrente considera inconstitucional."

[MTS]

13/11/2024

Paper (518)


-- Clermont, Kevin M., Skirmishing Toward a General Theory of Evidence and Proof (SSRN 06.2024)


Jurisprudência 2024 (47)


Acção de divisão de coisa comum;
reconvenção; admissibilidade


1. O sumário de RC 20/2/2024 (183/22.9T8PNI-B.C1) é o seguinte:

I – Na ação de divisão de coisa comum, é a lei, no art. 926º, nº 3 parte final, do n.C.P.Civil, que se mostra adaptável a incluir no processo especial de divisão de coisa comum, a forma de processo comum.

II – Quando a indivisibilidade do bem comum é aceite entre as partes e o único litígio verdadeiramente existente se prende com as questões relativas à aquisição da fração autónoma em comum e na mesma proporção por ambos os comproprietários, com recurso a pedido de empréstimo bancário (mais concretamente quanto ao pagamento por um deles de empréstimo bancário relativo ao prédio, e bem assim dos montantes a título de IMI e contribuições de condomínio), numa situação em que o pagamento caberia a ambos, é admissível a reconvenção quando tenha sido suscitada a compensação de alegado crédito por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao Requerente.

III – O poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção.

IV – Sendo certo que esta é a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil, cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efetiva composição do litígio (de acordo com o art. 37º, nos 2 e 3, do mesmo n.C.P.Civil).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Importa no presente recurso aferir e decidir do desacerto da decisão que não admitiu o pedido reconvencional formulado pela Requerida numa ação de divisão de coisa comum.

Um dos fundamentos base de tal decisão foi o entendimento de que é requisito do preenchimento do disposto no art. 266º, nº 2, al. c) do n.C.P.Civil[3], que estejam em causa dois “créditos”, sendo que não teria essa natureza o exercício do direito potestativo de exigir a divisão – direito exercitado pela Requerente nos autos.

O outro fundamento basilar foi o de que admitir a reconvenção «apenas serviria para complicar desnecessária e intoleravelmente a tramitação da presente ação de divisão de coisa comum».

Que dizer?

Salvo o devido respeito – e releve-se o juízo antecipatório! – não se mostra bem fundado o despacho recorrido em qualquer das suas duas vertentes.

Senão vejamos.

Consabidamente, a ação de divisão de coisa comum tem como pressuposto a compropriedade sobre um determinado bem, sendo que neste caso estava em causa um imóvel.

A ação de divisão de coisa comum é um processo especial que se encontra previsto e regulado nos arts. 925º e segs. do n.C.P.Civil, tendo por objeto a realização do direito dos comproprietários à divisão, conforme o art. 1412º do C.Civil, e, no caso de indivisibilidade material da coisa, o acordo na sua adjudicação a algum dos titulares do direito de compropriedade e preenchimento dos quinhões dos restantes com dinheiro, ou na falta de acordo, a venda executiva e subsequente repartição do respetivo produto na proporção das quotas de cada um (art. 929º, nº 2, do n.C.P.Civil).

Assim, tal tipo de ação é de natureza especial comportando uma fase declarativa [cf. arts. 925º a 928º do n.C.P.Civil] e uma fase executiva [cf. art. 929º do n.C.P.Civil], aquela dirigida a definir o direito da divisão e esta a efectivá-lo.

De referir que a questão da admissibilidade da reconvenção nas ações de divisão de coisa comum tem dividido a jurisprudência, entendendo uns que se verifica incompatibilidade processual entre o pedido de divisão e o pedido reconvencional face ao disposto no art. 266º, nº 3 do n.C.P.Civil, sendo que outros ultrapassam a questão ponderando o disposto no art. 37º, nos 2 e 3, ex vi do art. 266º, nº 3 do mesmo n.C.P.Civil.

Isto para dizer que a questão recursiva não é nova, antes tem sido frequentemente colocada.

Vejamos então.

O supra enunciado primeiro fundamento da decisão recorrida traduz a exigência duma certa conexão ou relação entre o objecto do pedido reconvencional e o objecto do pedido do autor em ação de divisão de coisa comum.

Ora, se como aconteceu na presente ação especial de divisão de coisa comum, a Requerida, apesar de deduzir contestação, confessa o pedido da Requerente [quanto à aquisição do imóvel em compropriedade e a natureza indivisível da coisa], é ainda assim admissível a reconvenção quando tenha sido suscitada a compensação de alegado “crédito” por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o “crédito” de tornas que venha a ser atribuído ao Requerente.

Na verdade, em tais circunstâncias, o litígio entre as partes centra-se essencialmente na ausência de entendimento sobre as quantias pecuniárias com que cada contribuiu para a aquisição do imóvel.

Donde, “as questões suscitadas pelo pedido de divisão”, referidas no art. 926º, nº 2, do n.C.P.Civil, acabam por ser as relativas à compensação do valor que um deles haja suportado a mais com a aquisição, com o valor das tornas a haver pelo outro. [Neste sentido vide MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA em Comentário ao Acórdão da Relação de Évora de 17 de janeiro de 2019, proc. n.º 764/18.5T8STB.E1 – disponível para consulta in https://blogippc.blogspot.com/2019/05/jurisprudencia-2019-18.html.]

Com efeito, atento o facto de o prédio não ser divisível, a divisão de coisa comum terá de se realizar com a adjudicação do prédio a um dos comproprietários, mediante o pagamento de tornas ao outro comproprietário – art. 929º nº 2 do n.C.P.Civil.

Sucede que as despesas alegadamente realizadas por um dos interessados quer no pagamento de empréstimo bancário relativo ao prédio, quer nos montantes a título de IMI e contribuições de condomínio, numa situação em que o pagamento caberia a ambos, gera na esfera jurídica da Requerida, a fazer fé no por si alegado, um direito a ser ressarcida em ½ das despesas, sendo que esse “crédito” poderá assim ser compensado com o “crédito” do Requerente em tornas.

Assim, a não se admitir a discussão ampla e prévia daquela questão do “deve” e “haver” entre as partes, na conferência de interessados, no caso de se adjudicar o imóvel a um dos comproprietários, o valor de tornas a entregar ao outro não terá em conta o verdadeiro cerne do litígio, tudo se passando como se ambos tivessem contribuído igualmente na proporção da quota respetiva.

Porém, segundo o que cada uma das partes alega, tal não aconteceu…

Dito de outra forma: não existe razão para lançar mão de outro processo judicial com vista à resolução daquilo que, efetivamente, separa as partes: o encontro entre o “deve” e o “haver”, entre a contribuição de cada um para o valor da sua quota.

Por outro lado – e aqui entrando já na apreciação do segundo fundamento basilar da decisão recorrida! – vejamos agora da salvaguarda do expediente legal inscrito no citado nº 3, do art. 266º, do n.C.P.Civil.

É certo que se traduzem as diversas formas de processo – especial [quanto à divisão de coisa comum] e comum [quanto ao apuramento do “deve” e “haver” entre as partes] – no único obstáculo formal à admissibilidade da reconvenção, mas não seguem as mesmas uma tramitação manifestamente incompatível, tanto mais que é expressamente admissível a convolação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum, de acordo com o art. 37º, n.os 2 e 3, do n.C.P.Civil, isto é, segundo o qual o juiz pode autorizar a reconvenção, «(…) sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio».

Sendo certo que as formas de processo especial e comum, correspondentes aos pedidos da Requerente e da Requerida, não seguem uma “tramitação manifestamente incompatível”, pois o próprio legislador prevê, no art. 926º, nº 3, do n.C.P.Civil, a transmutação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum.

Acresce que o art. 2º, nº 2, do n.C.P.Civil adverte para a garantia de acesso aos tribunais, mediante todos os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação, salvo se a lei disser o contrário, o que neste caso não diz.

Finalmente, temos ainda que por via do art. 6º do mesmo n.C.P.Civil, compete ao juiz adotar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a almejada justa composição do litígio em prazo razoável.

Neste sentido, tal poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as da presente lide – sendo esta a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil.

Princípios esses cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efetiva composição do litígio.

Nesta linha de entendimento já foi sublinhado o seguinte em douto aresto [Trata-se do acórdão do STJ de 09/10/2019, proferido no proc. nº 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, acessível em www.dgsi.pt/jstj.]:

«É certo de igual forma que essa tramitação não se adequa em si mesma à tramitação inerente ao pedido reconvencional.

É ainda certo que a tramitação de processo comum a seguir em atenção ao pedido reconvencional altera a tramitação prevista para o processo de divisão de coisa comum.

Todavia, importa compreender que toda essa perturbação na tramitação processual é conatural à junção num só processo de pedidos que sigam uma tramitação diversa.

E o que é facto é que a lei não enjeita a possibilidade dessa junção.

Na perspetiva da lei, o inconveniente inerente à perturbação processual que é introduzida resolve-se através da adaptação do processado aos fins da reconvenção (n.º 3 do art. 37.º do CPCivil).

Isto só não deverá ser assim quando a ação e a reconvenção devam seguir tramitação “manifestamente incompatível””.

(…) incompatibilidade manifesta (intolerável, gritante) só existirá naqueles casos em que se imporia (ou, pelo menos, em que houvesse o risco disso suceder) praticar atos processuais contraditórios ou inconciliáveis. Não basta que se esteja perante tramitações desajustadas umas das outras, pois que isso sempre acontece, em maior ou menor grau, em formas processuais diferentes.

(…) a introdução da reconvenção em causa é fonte de perturbação no processo de divisão da coisa comum, mas isso, na perspetiva da lei, não é suficiente para impedir a reconvenção. (…)»

O que tudo serve para dizer que deve a ação seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então depois se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados.

Esta mesma linha de entendimento – a qual, s.m.j. é claramente maioritária a nível jurisprudencial! – já foi sublinhada em douto aresto do nosso mais alto tribunal, como flui do seguinte:

«I. Na ação especial de divisão de coisa comum, em que o Requerido, apesar de deduzir contestação, confessa o pedido da Requerente, é admissível a reconvenção quando tenha sido suscitada a compensação de alegado crédito por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao Requerente, devendo a ação seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados.

II. No art. 266.º, n.º 3, do CPC, o legislador salvaguarda a possibilidade de o juiz autorizar a reconvenção “quando ao pedido do Requerido corresponda uma forma de processo diferente”, nos termos previstos no art. 37.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo corpo de ºnormas, “com as necessárias adaptações”.

III. Traduzindo-se as diversas formas de processo - especial e comum - no único obstáculo formal à admissibilidade da reconvenção, mas não seguindo as mesmas uma tramitação manifestamente incompatível, tanto mais que é expressamente admissível a convolação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum, de acordo com o art. 37.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, o Juiz pode autorizar a reconvenção, “sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa-composição do litígio”.

IV. O poder-dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as dos presentes autos.

V. Está em causa o interesse em discutir e decidir todas as questões que, para além da divisão, envolvem os prédios dividendos. Importa evitar que o Requerido se veja compelido a propor uma outra ação para ver o seu direito reconhecido.» [Citámos agora o acórdão do STJ de 26/01/2021, proferido no proc. nº 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj, onde, aliás, se faz uma resenha jurisprudencial perfilhando a mesma posição; no mesmo sentido o acórdão do STJ de 25/05/2021, proferido no proc. nº 1761/19.9T8PBL.C1.S1, este citado nas alegações recursivas; ainda no mesmo sentido e com igual resenha jurisprudencial, vide o acórdão do TRL de 24/03/2022, proferido no proc. nº 823/20.4T8CSC-A.L1-2, este acessível em www.dgsi.pt/trl]."


[MTS]


 

12/11/2024

Paper (517)


-- Lally, Martin, The Bayesian Framework and the Polkinghorne Case (SSRN 10.2024)

Jurisprudência 2024 (46)


Restituição provisória da posse;
posse; esbulho violento*


I. O sumário de RC 20/2/2024 (1822/23.0T8CVL.C1) é o seguinte:

1. A restituição provisória de posse tem natureza antecipatória, assegurando a satisfação provisória do possuidor e deverá ter lugar quando o juiz se convença da séria probabilidade da verificação dos requisitos da posse e do esbulho violento (art.ºs 368º, n.º 1 e 378º, do CPC), dependendo, pois, da verificação cumulativa de três requisitos: a posse, o esbulho e a violência.

2. É possuidor esbulhado quem foi privado da posse (enquanto poder de disponibilidade fáctica ou empírica de determinado bem) que tinha e que é impedido de continuar a exercer.

3. Falta aquele primeiro requisito, se não indiciada a “posse” (concreta e efetiva) de veículo automóvel - a sua disponibilidade fática ou empírica por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art.º 1251º do CC) - e que não decorre simplesmente de anterior e coevo registo de propriedade.


II. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I. Em 21.12.2023, AA intentou o presente procedimento cautelar de restituição provisória da posse contra BB, relativamente ao veículo com a matrícula ..-..-AP.

Alegou, em síntese: é dona do referido veículo automóvel, que se encontrava na sua posse exclusiva desde 01.6.2023; terminou a relação de namoro com o requerido no dia 27.10.2023; então, este tirou-lhe a chave do veículo com recurso a força física e recusou devolver-lha; desconhece a localização da viatura, agora, já registada em nome da mãe do requerido, sem que a requerente assinasse declaração de venda.

Determinou-se a não audição prévia do requerido.

Produzida a prova (documental e pessoal), a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo, por sentença de 29.12.2023, julgou o procedimento cautelar totalmente improcedente, decidindo não decretar a providência cautelar de restituição provisória da posse à requerente do veículo automóvel com a matrícula ..-..-AP. [...]

"II [...] 6. A restituição provisória de posse tem natureza antecipatória, assegurando a satisfação provisória do possuidor e deverá ter lugar quando o juiz se convença da séria probabilidade da verificação dos requisitos da posse e do esbulho violento (cf. os art.ºs 368º, n.º 1 e 378º do CPC), dependendo, pois, da verificação cumulativa de três requisitos: a posse, o esbulho e a violência.

É possuidor esbulhado quem foi privado da posse (enquanto poder de disponibilidade fáctica ou empírica de determinado bem) que tinha e que é impedido de continuar a exercer (foi colocado em condições de não poder continuar a exercer a posse; o possuidor ficou privado do exercício ou da possibilidade de exercício dos poderes correspondentes à sua posse), e, em regra, o Réu/requerido/esbulhador terá de restituir a coisa, fazendo cessar a posse iniciada com o esbulho. [---]

Para que o esbulho possa servir de fundamento ao pedido de restituição provisória de posse é ainda necessário que este seja violento e, ao contrário do que sucede em relação à definição de esbulho, que não consta da lei, a doutrina e a jurisprudência entendem que o conceito de violência que para aqui releva se mostra definido no n.º 2 do art.º 1261º do CC, onde se estatui que se considera violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coação física, ou de coação moral nos termos do art.º 255º do mesmo diploma.

A coação moral, na hipótese de esbulho, ocorre quando o possuidor da coisa é forçado à sua privação pelo receio de um mal de que foi ilicitamente ameaçado, mal esse que tanto pode respeitar à sua pessoa como à sua honra ou fazenda ou de terceiro (art.º 255º do CC), enquanto a coação física supõe a completa ausência de vontade por parte daquele a quem a posse foi usurpada. [---]

7. Não suscita qualquer dúvida que o uso de violência sobre as pessoas, quer seja pelo uso da força física, quer seja através da coação moral, pelas formas da intimação e da ameaça, é relevante para, caracterizando o esbulho como violento, fundamentar o deferimento do procedimento cautelar de restituição provisória de posse.

Considerando-se que a violência a que se refere o art.º 1261º do CC tem de exercer-se sobre as pessoas, e não apenas sobre as coisas que constituem um obstáculo à privação da posse (e a ameaça pode respeitar às pessoas ou aos bens, mas há de exercer-se sobre a pessoa do coato), as dúvidas podem-se colocar no tocante à violência sobre as coisas.

Embora estejamos perante questão não isenta de dificuldades (algumas das quais, cremos, poderão ser ultrapassadas se tivermos uma real/adequada configuração da situação controvertida), afigura-se defensável, como regra, o entendimento de que a violência contra as coisas só é relevante se com ela se pretende intimidar, direta ou indiretamente, a vítima da mesma, não devendo, por isso, qualificar-se como tal os meros atos de destruição ou danificação desprovidos de qualquer intuito de influenciar psicologicamente o possuidor a violência sobre as coisas que estorvam a privação apenas relevará para este fim quando o agente usou, pelo menos de dolo eventual, quando previu, como normal consequência da sua conduta, que iria constranger psicologicamente o possuidor e, todavia, não se absteve de a assumir, conformando-se com o resultado. [---]

8. A referida perspetiva quanto à utilização do procedimento cautelar de restituição provisória de posse, numa interpretação restritiva dos preceitos que o preveem, justifica-se pela diminuição das garantias de defesa do requerido, que não é chamado a defender-se e a contraditar os factos e as provas do requerente previamente à decisão e pela desnecessidade da existência de qualquer prejuízo do requerente - a utilização do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, pela diminuição de garantias de defesa do requerido e pela desnecessidade de existência de qualquer prejuízo do requerente, só deve ser permitida em casos em que a violência atingiu pessoas, e não quando apenas se exerceu sobre coisas, pois só aquelas situações revestem uma gravidade que justifica a utilização daquele meio de intervenção draconiano. [---]

9. Ante o descrito enquadramento normativo e a factualidade indiciada em II. 1., supra, antolha-se evidente que a requerente não demonstrou os requisitos do presente procedimento cautelar, desde logo, que tinha a “posse” (concreta e efetiva) do veículo, a sua disponibilidade fática ou empírica, atuando “por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” (art.º 1251º do CC) sobre o mesmo. [---]

Por outro lado, também não vemos configurado um esbulho violento, uma vez que o desapossamento, a ter existido, foi obtido através de uma ação que não incidiu sobre a requerente, já que não se verificou diretamente qualquer ofensa física à pessoa desta, nem se verificou, direta ou reflexamente, qualquer ofensa psicológica à sua liberdade de determinação, colocando-a na impossibilidade material de agir, ou inibindo-lhe qualquer capacidade de reação, por receio de algum mal.

Tendo em conta a factualidade indiciada e a previsão dos art.ºs 1282º do CC e 377º do CPC, concluiu-se, assim, pela não verificação dos pressupostos/requisitos de que depende o deferimento do procedimento cautelar de restituição provisória de posse.

10. Sufragamos, pois, o entendimento e o decidido na 1ª instância, mormente quando se conclui pelo não preenchimento dos requisitos (cumulativos) para ser decretada a pretendida restituição provisória da posse: não ficou demonstrada a posse pela requerente do veículo automóvel em dissídio – que não decorre simplesmente do anterior registo de propriedade de que era titular; não ficou, outrossim, indiciariamente demonstrada a factualidade invocada relativa aos requisitos do esbulho e violência (não ficou indiciariamente demonstrado, inclusive, que o requerido esteja na posse no veículo, atualmente registado em nome de terceiro); não ficou demonstrada a violência do esbulho, mormente a utilização de “força física” pelo requerido."

III. [Comentário] Admite-se que a RC (bem como a 1.ª instância) decidiu bem, atendendo ao que foi alegado e provado no procedimento cautelar. Não se exclui que o tipo de situação que foi alegada pela requerente possa fundamentar, noutras circunstâncias, a procedência da providência de restituição provisória da posse.

MTS