"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/11/2024

Jurisprudência 2024 (42)


Causa de pedir; alteração;
facto superveniente*


1. O sumário de RP 5/2/2024 (3389/20.1T8MTS-A.P1) é o seguinte:

I - O art.º 260.º do Código do Processo Civil consagra o princípio da estabilidade da instância, o que implica que, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir.

II - No que se refere à causa de pedir, sendo alegados novos factos sucedâneos dos primeiros, suportados na mesma situação original, é de adotar uma interpretação flexível do art.º 265.º do C.P.C., considerando-se não existir ampliação da causa de pedir em sentido próprio.

III - É o que ocorre na situação em que na petição inicial os inquilinos invocam ausência de conservação de imóvel pelo senhorio, que ocasiona que precipitação abundante impeça a utilização plena do arrendado e cause estragos e sofrimentos, vindo, na pendência da ação, a reportar novo evento de pluviosidade, no mesmo contexto de omissão, ocasionador de novos prejuízos.

IV - Atentos os princípios da economia processual e do aproveitamento dos atos processuais, desde que respeitados os requisitos de superveniência dos factos ou do seu conhecimento, através de articulado superveniente, pode ser invocada uma nova causa de pedir.

V - O processo civil é conformado pelo princípio do dispositivo, mas este deve ser temperado por uma perspetiva flexível e substancialista que assegure uma tutela jurisdicional adequada à situação sob litígio.

VI - Por isso, é de apreciar a pretensão formulada pela parte que esta qualifica como correspondendo a ampliação do pedido, mas que respeita os requisitos próprios do articulado superveniente, sob esta perspetiva.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"IV - Subsunção jurídica [...]

b - Se o requerimento dos AA. deveria ter sido admitido nos termos formulados ou se o tribunal deveria ter usado dos seus poderes de gestão e de adequação processual para o convolar, sujeitando-o à disciplina do articulado superveniente.

Os recorrentes alegam, em síntese, que o seu requerimento deveria ter sido admitido por nos encontrarmos em face de pedido decorrente dos mesmos factos que consubstanciavam a causa de pedir primitiva.

Subjaz à pretensão recursória dos AA. a alegação de que houve lugar a ampliação do pedido, mas não da causa de pedir.

Vejamos se lhes assiste razão.

Nos termos do art.º 552.º/1/d) do C.P.C., é na petição inicial que devem ser expostos os factos que constituem a causa de pedir que servem de fundamento à ação.

O art.º 260.º do Código de Processo Civil consagra o princípio da estabilidade da instância, o que significa que após a citação do réu a instância deverá manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e causa de pedir, ressalvando, as exceções legalmente previstas.

No que se refere ao pedido e à causa de pedir, as exceções estão previstas nos arts. 264.º e 265.º do C.P.C..

Nos termos do disposto no art.º 264.º do C.P.C., a lei admite a alteração ou ampliação do pedido e da causa de pedir, por acordo das partes em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, salvo se tal perturbar inconvenientemente a instrução, discussão ou julgamento do pleito.

Consigna, por seu turno, o art.º 265.º/1 que, na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor.

Nos termos do n.º 2 do art.º 265.º, o autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido ou pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.

Consigna o n.º 6 do mesmo art.º 265.º que é permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida.

A propósito da ampliação do pedido, Alberto dos Reis (in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, p. 93) ensinava: a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial.

Em idêntico sentido vejam-se o ac. TRL de19/5/1994, proc. n.º 0070956 Rodrigues Condeço; o ac. TRL de 25/6/1996, proc. n.º 0012701, Guilherme Pires e o ac. TRL de18/1/2011, proc. n.º 271/09.7TBCDV-A. L1-1, Manuel Marques, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Constituem exemplo de ampliação em “consequência do pedido primitivo” a situação em que o autor pede a restituição de um imóvel, vindo depois a pedir uma indemnização pelo esbulho desse mesmo prédio e o caso em que o autor pede a condenação do réu no pagamento duma dívida, vindo posteriormente a pedir a condenação no pagamento de juros de mora. Trata-se de situações em que o autor poderia desde logo ter formulado a sua pretensão ampliada na petição inicial.

No caso dos autos, os AA. invocaram factos novos supervenientes ao termo dos articulados e formularam nova pretensão indemnizatória.

O pedido adicionalmente formulado não poderia estar, em sentido próprio contido no pedido primitivo, pelo simples motivo de que a segunda vaga de pluviosidade que terá conduzido ao desabamento de outros tetos e prejuízos inerentes ocorreu em momento ulterior ao da petição inicial. [...]

Em suma, não se poderá deixar de entender que houve lugar a ampliação do pedido. Mas fundar-se-á esta em ampliação da causa de pedir? Consubstanciarão, os eventos reportados pelos AA., referentes a uma vaga de precipitação, infiltrações e estragos posterior à data da entrada do processo em juízo, uma nova causa de pedir para os efeitos visados pelo art.º 265.º/1 do C.P.C.? É que, como se viu, nos termos do n.º 2 do art.º 265.º, o autor só poderá ampliar o pedido se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.

À luz do disposto no art.º 581.º/4 do C.P.C., considera-se como causa de pedir a factualidade, afirmada pelo autor, de que se faz derivar o efeito jurídico pretendido. De acordo com a teoria da substanciação, essa factualidade deverá traduzir o facto gerador do direito, individualizando o objeto do processo, de modo a prevenir a repetição da causa. Cabe ao autor definir o objeto da ação, formulando o pedido e a causa de pedir, indicando os factos concretos em que baseia a pretensão que quer acautelar. A causa de pedir constitui, afinal, o cerne da ação.

Na petição inicial, os inquilinos invocam ausência de conservação de imóvel pelo senhorio, que ocasiona que precipitação abundante impeça a utilização plena do arrendado e cause estragos e sofrimentos. Na pendência da ação, reportaram novo evento de pluviosidade, no mesmo contexto de omissão do dono do prédio, ocasionador de novos prejuízos. No primeiro dos casos, os eventos têm como área dominante da habitação o teto da sala. No segundo, o teto do quarto e da cozinha.

No ac. da Relação de Lisboa de 5/7/2018 (proc. n.º 1175/13.4T2SNT.B.L1-2, Arlindo Crua, também consultável em www.dgsi.pt, tal como os demais invocados, salvo indicação diversa) sustentou-se que se os factos invocados na ampliação se traduzirem em meros factos complementares duma causa de pedir complexa já alegada na petição inicial, como sejam a concretização de um dano já alegado, é processualmente admissível a ampliação do pedido, sem necessidade do consentimento da parte contrária.

Também no ac. da Relação de Évora de 10/10/2019 (proc. n.º 38/18.1T8VRL-A.E1, Cristina Dá Mesquita) se admitiu a ampliação do pedido que tenha essencialmente causas de pedir, senão totalmente idênticas, pelos menos integradas no mesmo complexo de factos.

Confira-se o sumário do ac. do STJ de 19-06-2019 (proc. 22392/16.0T8PRT.P1.S1, Oliveira Abreu, disponível em sumários do Supremo):

IV- Estando no âmbito de uma ação declarativa de indemnização por responsabilidade civil, em razão de acidente de viação sofrido pelo demandante, cuja causa de pedir é complexa, temos de convir que não é qualquer alteração dos factos alegados que importa uma modificação da respetiva causa de pedir da ação, pois, ao ter-se alegado factos concretos no articulado inicial com vista a demonstrar os danos causados pelo ato ilícito, cuja indemnização se reclama, temos a causa de pedir como definida, não se alterando, de todo, se o demandante se limita, em momento posterior aos articulados, e até à audiência final, acrescentar novos danos, reconhecendo-se, claramente, estes novos factos, enquanto factos destinados apenas a concretizar os danos decorrentes do facto ilícito, como factos que complementam os factos jurídicos donde emerge a pretensão jurídica deduzida, como factos que acrescentam outras dimensões do dano decorrente do ato ilícito que serve de fundamento à ação, sem que se possa afirmar, por isso, que a demanda passa a ter uma dissemelhante causa de pedir ou passa a estar sustentada em fundamento que antes não possuía.

Lê-se ainda no ac. da Relação do Porto de 27-1-2022 (proc. 1218/21.8T8AMT-A.P1): embora a lei não defina o que deve entender-se por “desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”, a interpretação de tais conceitos deve orientar-se no sentido de a ampliação radicar numa origem comum. Esse é o entendimento que vem sendo sustentado na doutrina e na jurisprudência, ao defenderem que a ampliação do pedido será processualmente admissível, por constituir desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, quando o novo pedido (objeto de ampliação) esteja virtualmente contido no âmbito do pedido inicial, por forma a que pudesse tê-lo sido também aquando da petição inicial, ou da reconvenção, sem recurso a invocação de novos factos. Ou seja: a ampliação do pedido constitui o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo quando o pedido formulado esteja virtualmente contido no pedido inicial e na causa de pedir da ação, pressupondo-se, para tanto, que dentro da mesma causa de pedir o pedido primitivo se modifique para mais. [...]

Adota-se uma interpretação flexível do art.º 265.º do C.P.C.. Surgindo a nova pretensão como sucedânea da primeira, sendo suportada pela situação original que deu causa ao direito do autor, considera-se não existir verdadeira ampliação da causa de pedir.

No caso vertente, o núcleo de factos essenciais que dão causa à ação são os mesmos: aqueles que integram o estado de conservação deficitário da habitação dos AA..

Esta abordagem da questão afigura-se-nos, porém, em bom rigor, despicienda. Na verdade, a matéria alegada pelos AA. no articulado por si configurado como de ampliação do pedido consubstancia um verdadeiro e próprio articulado superveniente, nada impedindo que no âmbito deste haja lugar a ampliação do pedido. O pedido primitivo e o pedido adicional têm subjacentes o mesmo complexo de factos, ainda que a ampliação importe a alegação de factos novos. Esta situação encontra-se reconhecida na lei processual civil através do recurso ao articulado superveniente, bastando que se reporte a factos que revistam essa caraterística de superveniência, isto é, que ocorram ou sejam conhecidos posteriormente aos articulados, nos termos e prazos previstos.

Efetivamente, nos termos do disposto no art.º 588.º/1 do C.P.C. os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.

Nos termos do n.º 2 do mesmo art.º, dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tivesse conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.

Leia-se no ac. da Relação de Lisboa de 22-02-2018 (proc. 1951/07.7TBTVD-A.L1-6, António Santos): a superveniência de que fala o dispositivo tanto pode ser a objetiva - quando os factos têm lugar já depois de esgotados os prazos legais de apresentação pela parte dos articulados -, como subjetiva, ou seja, quando os factos ainda que tenham tido lugar em momento anterior ao da apresentação pela parte do/s seu/s articulado/s, certo é que apenas chegaram ao seu conhecimento já depois de esgotados os prazos legais de apresentação dos aludido/s articulado/s.

Vem-se defendendo, por força do princípio do princípio da economia processual e do aproveitamento dos atos processuais, que, através do articulado superveniente, pode ser invocada uma nova causa de pedir (cf. José Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, p. 170, Coimbra Editora, p. 170, e Código de Processo Civil Anotado, 2001, p. 342 e Miguel Teixeira de Sousa, in As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, pp. 189 e 190, 1990in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pp. 299-300, e também em blogippc.blogspot.pt).

Vejam-se ainda Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 4.ª ed., p. 529): É (…) possível a modificação simultânea não só quando alguns dos factos que integram a nova causa de pedir coincidem com factos que integram a causa de pedir originária, mas também quando, pelo menos, o novo pedido se reporta a uma relação material dependente ou sucedânea da primeira (cf.).

É precisamente o que ocorre no caso vertente."

*3. [Comentário] Noutro lugar escreveu-se o seguinte:

"Não constitui [...] uma alteração da causa de pedir a alegação de um facto complementar superveniente (num articulado superveniente: cf. art. 588.º, n.º 1). Assim, por exemplo, é possível invocar novos danos decorrentes de um facto ilícito ou novos factos que indiciam as deficiências na construção de um imóvel apresentadas como causa de pedir [---] , sem submeter essa invocação aos requisitos estabelecidos pelo art. 265.º, n.º 1." (Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil I (2022), 464).

MTS



Bibliografia (1153)


-- Bäuml, D., Bürgschaft und Prozess / Eine Untersuchung zu Drittwirkungen gerichtlicher Entscheidungen, insbesondere im Hinblick auf vom Hauptschuldverhältnis abgeleitete Rechte des Bürgen (Duncker & Humblot: Berlin 2024)



05/11/2024

Informação (309)


Processo estrutural;
Brasil 


O Anteprojeto de Lei do Processo Estrutural - Versão final da Comissão do Senado Federal (31/10/2024) pode ser consultado aqui (clicar também aqui e aqui).


Jurisprudência 2024 (41)


União de facto;
reconhecimento; competência material*


1. O sumário de RP 15/2/2024 (1544/23.1T8MAI.P1) (decisão individual) é o seguinte:
 
Para a ação de reconhecimento judicial da união de facto para aquisição da nacionalidade portuguesa é competente o Juízo de Família e Menores.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão que se coloca tem a ver com competência material para julgar as ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa.

Importa, “brevitatis causa”, assumir que este conflito foi já tratado, em mais do que uma ocasião e por nós decidido, impondo-se, salvo alteração de circunstâncias o que, no caso, não ocorre, que se mantenha uma mesma linha de rumo decisória por razões de certeza e segurança jurídicas.

Assim, entendemos que embora a questão da competência material para a referida ação de reconhecimento da união de facto, com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa, não seja consensual na jurisprudência, entendemos que, como todos reconhecem hoje, perante o conceito alargado de família, este tipo de ações dizem respeito às uniões de facto, não estando, por decorrência da lógica das relações sociais e familiares, alheias aos laços decorrentes, noutro contexto social, do casamento, conforme vem sendo reconhecido pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) a partir do art.º 8.º da respetiva Convenção. Quanto à consagração legal das uniões de facto bastará atentar no art.º 1576.º do Código Civil, na Lei 23/2010, de 30 de Agosto e na Lei 7/2001. Donde, a opção por uma jurisdição especializada.

A jurisprudência neste mesmo sentido – competência dos tribunais de família e menores – surge, inclusivamente, consagrada neste mesmo Tribunal da Relação do Porto (vide processo n.º 5202/21.3T8PRT.P1).

Como é consabido, dispõe a al. g) do n.º1 do já mencionado art.º 122.º da LOSJ, que “Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”.

Ora, reitere-se que a leitura mais adequada da norma, atualista, ao referir-se a “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” se reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto (art.º 1576.º do Código Civil; Lei 23/2010, de 30/agosto, e as alterações legislativas daí decorrentes com destaque para a Lei 7/2001, de 11/maio).

O objeto da ação tem a ver, estruturalmente, com o reconhecimento de uma alegada relação prolongada de união de facto – que se inclui no conceito moderno de família alargada (neste mesmo sentido, leia-se, por todos, o Ac. da Relação de Coimbra de 15/07/2020, processo nº 160/20.4T8FIG.C1, em www.dgsi).

Destarte, entendemos, em linha com o já decidido nesta Relação, que resulta ser materialmente competente para a presente ação o Juízo de Família e Menores.

Aliás, um acórdão muito recente do nosso Supremo Tribunal de Justiça vai neste exato sentido; trata-se do aresto de 16 de Novembro passado, onde, designadamente, se pode detetar um outro argumento eventualmente ponderoso: “o interesse público em combater a possibilidade de estarmos perante uma união de facto simulada unicamente com o objetivo de permitir a um cidadão estrangeiro a aquisição da nacionalidade portuguesa fica mais protegido se os tribunais competentes para julgar a causa tiverem mais experiência em analisar a prova. Ora, é indiscutível que são os juízos de família que estão mais preparados para este efeito.” (vide Acórdão STJ, processo nº 546/22.0T8VLG.P1.S1, disponível em dgsi.pt).


*3. [Comentário] Aos poucos, vai-se impondo a melhor solução no que respeita à competência material para as acções de reconhecimento judicial da união de facto. Remete-se para o comentário feito a STJ 22/6/2023 (3193/22.2T8VFX.L1.S1): clicar aqui.

MTS


04/11/2024

Jurisprudência constitucional (231)


Apoio judiciário;
pagamento faseado


TC 16/10/2024 (727/2024) decidiu

[...] Julgar inconstitucional, a norma contida nos artigos 8.º, n.º 1, 8.º-A da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e do respetivo Anexo, que não permite ao requerente do apoio judiciário obter o benefício da dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento de compensação de patrono, mas apenas o respetivo pagamento faseado, apesar de o seu rendimento mensal disponível ser substancialmente equivalente ao valor da taxa de justiça inicial a suportar no processo e o valor da prestação mensal a suportar na modalidade de pagamento faseado ter como consequência uma diminuição do respetivo rendimento mensal líquido, já inferior ao da remuneração mínima mensal garantida [...].

 

Jurisprudência 2024 (40)


Sentença arbitral;
fundamentação; anulação


1. O sumário de RP 5/3/2024 (319/23.3YRPRT) é o seguinte:

I - O termo a quo de contagem do prazo de 60 dias para a dedução de ação de impugnação/anulação de sentença arbitral, previsto no nº. 6, do artº. 46.º, da Lei nº. 63/2011, de 14/12, é sempre a notificação duma decisão dos árbitros, seja ela a sentença que decidiu o litígio arbitral, seja a decisão (despacho) de retificação, esclarecimento, aclaração ou completamento daquela, proferida a requerimento de uma parte, nos termos do artº. 45.º, do mesmo diploma.

II - Estando-se perante um prazo diretamente relacionado com outra ação, cujo decurso tem fundamentalmente um efeito de natureza processual, impossibilidade de questionar a integridade do decidido quanto ao tribunal arbitral, processo por este adotado e a integridade da decisão por ele proferida, em confronto com os princípios, regras e valores fundamentais do ordenamento jurídico, e não o efeito extintivo de um direito material, tal prazo deve considerar-se de natureza processual ou judicial, suspendendo-se durante as férias judiciais.

III - Estabelece-se no art.º 42.º, nº 3 da LAV que “a sentença deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do art.º 41.º”, pelo que, tal como sucede com a decisão judicial, também aqui se exige que o Tribunal Arbitral fundamente a sua decisão em termos de facto e de direito.

IV - Nesta conformidade, não obstante a amplitude do dever de fundamentação das decisões arbitrais não possa ser definida por decalque do dever sinónimo aplicável às sentenças dos tribunais estaduais, devendo ter em conta as especificidades do processo arbitral e os seus objetivos de celeridade, simplicidade e informalidade, ainda assim a fundamentação deve, em qualquer caso, ter o conteúdo mínimo exigível que permita apreender o sentido, as razões e o percurso racional seguido pelo árbitro na interpretação dos meios de prova.

V - Por assim ser o vício de nulidade por falta de fundamentação [art.º 46º, nº 3, al. a), vi) da LAV] da sentença arbitral - invocável através da ação de anulação - só pode ser declarado nos casos em que exista a falta absoluta de motivação. Sempre que a motivação seja deficiente deve essa deficiência ser suprida através de recurso.

VI - Está suficientemente fundamentada a decisão arbitral que enuncia, de forma perfeitamente inteligível e apreensível pelos respetivos destinatários, os fundamentos factuais e normativos da decisão, tornando percetível o iter lógico jurídico seguido na resolução do litígio.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Preceitua o artigo 42.º, n.º 3, da Lei da Arbitragem Voluntária que a sentença arbitral “deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do artigo 41.º”.

Por sua vez o artigo 15.º do Regulamento do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto, estabelece que a “sentença arbitral deve conter um sumário, ser fundamentada e conter a identificação das partes, a exposição do litígio e os factos dados como provados”.

Ora, nenhum destes incisos densifica aquilo sobre o que se deve entender por fundamentação da sentença arbitral.

Segundo as regras processuais estaduais, constantes do Código de Processo Civil, a fundamentação da decisão é de facto ou de direito.

A fundamentação de facto consiste na especificação dos factos que o tribunal julgou provados e aos quais vai de seguida aplicar o direito para concluir pelo dispositivo. A fundamentação de direito consiste na indicação, interpretação e aplicação das normas e princípios de direito aos factos provados e na formulação ao silogismo judiciário que há de conduzir ao dispositivo.

O artigo 154.º do Código de Processo Civil estabelece o “dever de fundamentar a decisão”, prescrevendo que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. O n.º 2 da mesma norma, sem concretizar o modo como essa fundamentação deverá ser feita estabelece, pela via negativa, que a fundamentação “não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.

É, depois, o artigo 607.º desse diploma que ao definir o conteúdo da sentença nos dá mais indicações sobre o âmbito da fundamentação.

Nos termos do n.º 3 do citado preceito, a sentença deve apresentar os respetivos “fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicaras normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”.

Por sua vez o n.º 4, na parte dedicada à fundamentação da sentença estatui que o juiz deve declarar os factos que julga provados e os que julga não provados, “analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.

Constitui entendimento doutrinário e jurisprudencial pacífico que só a absoluta falta de fundamentação produz a nulidade da sentença, devendo distinguir-se as situações em que a fundamentação existe, mas é insuficiente, lacunosa ou errada, e as situações em que a fundamentação foi pura e simplesmente suprimida (ou cujas deficiências atingem um nível tal que a situação deve ser tratada como falta de fundamentação) e que são as únicas que podem conduzir à nulidade da sentença.

De todo o modo, a Constituição da República Portuguesa consagra no artigo 205.º, n.º 1, o dever de fundamentação das decisões decorre ao estabelecer que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

O Prof. Gomes Canotilho [in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 4.ª Edição, 2000, pág. 65.], afirma que esta exigência constitucional é justificada pela necessidade de exercer o controlo da administração da justiça, excluir o carácter voluntarístico e subjetivo do exercício da atividade jurisdicional, permitir o conhecimento da racionalidade e da coerência argumentativa dos juízes, permitir o melhor exercício do direito ao recurso ao dar às partes um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas. [Alguns autores acentuam, e bem, que “mais do que uma imposição constitucional, a exigência de fundamentação das decisões integra o elenco de princípios concretizadores do processo justo (muitas vezes designado “due process of law”), que tem como conteúdo fundamental a conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela jurisdicional efetiva” (cfr. Diogo Cunha, in Da forma, conteúdo e eficácia da sentença arbitral, Themis, ano XV, n.ºs 26/27, 2014, pág. 218, Patrícia Pereira, in Fundamentos de anulação da sentença arbitral, O Direito, 142, 2010, V, pág. 1081).]

É discutível se o dever de fundamentação deve ter a mesma densidade na sentença arbitral que na sentença de um tribunal estadual.

Ora, importa desde logo, salientar que a LAV não exige uma fundamentação idêntica à do artigo 607.º do CPCivil-não se exige qualquer tipo específico de fundamentação nem se impõe que sejam expressamente considerados todos os argumentos jurídicos invocados pelas partes.

Portanto, “a tendência jurisprudencial claramente dominante é no sentido de que o grau de fundamentação exigido seja menor do que é a prática corrente nas sentenças judiciais (...). É prudente inserir alguma fundamentação para evitar riscos de anulação ou de recusa de exequátur[Vide Dário Moura Vicente, Armindo Ribeiro Mendes, e Outros, in Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, 2º edição, 2015, Almedina, pág. 111.] [...]

A nosso ver, a definição da amplitude do dever de fundamentação das decisões arbitrais não pode ser feito de modo absolutamente decalcado do dever sinónimo aplicável às sentenças dos tribunais estaduais; importa ter em conta as especificidades do processo arbitral e os seus objetivos de celeridade, simplicidade e informalidade, ou seja, tudo se reconduz a que a invocação do citado vício deve ser visto caso a caso, isto é, verificando-se se a fundamentação tem no caso o conteúdo mínimo exigível aferido em função da necessidade de apreensão do sentido, das razões e do percurso racional seguido pelo árbitro na interpretação dos meios de prova, mas também da complexidade dos factos em discussão e do volume de prova produzida.
*
Apliquemos agora esta interpretação jurídica ao caso concreto.

Como decorre da decisão arbitral nela foram especificados os factos concretos integradores da exceção da caducidade do direito de ação invocada pela Reclamada e feito o respetivo enquadramento jurídico.

Portanto, analisada a dita sentença, não parece que se possa considerar verificada a invocada nulidade.

A decisão proferida e cujo mérito não cabe sindicar nos presentes autos [A impugnação da decisão arbitral somente se pode fazer “através do pedido da sua anulação, e nos estritos e taxativos fundamentos do artigo 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária, os quais se assumem como vícios ou irregularidades “a latere” do objeto/mérito do litígio, deste modo, em sede de impugnação da sentença arbitral, está vedada a apreciação do mérito, não comportando a presente ação de anulação a reapreciação da prova produzida com vista à alteração da decisão sobre a matéria de facto.] é perfeitamente clara e inteligível e encontra-se suficientemente fundamentada, nos planos factual e jurídico, sendo integralmente percetível o iter lógico jurídico que nela se seguiu para apreciação da invocada exceção da caducidade do direito de ação, cumprindo consequentemente, em termos satisfatórios, as exigências legais e constitucionais do dever de fundamentação das decisões judiciais (cfr. artigos 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 154.º do CPCivil).

Do mesmo modo, a operada indicação dos factos provados e dos meios de prova que lhes serviram de sustentáculo, satisfaz o imperativo constitucional e processual da fundamentação da decisão (artigos 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 154.º do CPC).

E, por isso, não se mostrando violadas as normas da LAV, especificadas pelo Requerente como fundamento da pretensão anulatória, nem a exigência constitucional (e da lei ordinária) de fundamentação das decisões judiciais, tem de improceder a peticionada anulação da decisão arbitral."

[MTS]


01/11/2024

Jurisprudência 2024 (39)


Processo de execução;
recurso de revista; admissibilidade


1. O sumário de STJ 6/3/2024 (4556/18.3T8PBL-G.C1.S1) é o seguinte:

I - A revista de decisão interlocutória proferida em processo de execução mostra-se submetida ao regime especial previsto nos artigos 852.º e seguintes, do CPC, e encontra respaldo nas situações em que o recurso é sempre admissível, isto é, as denominadas impugnações gerais excepcionais contempladas no artigo 629.º, do CPC.

II - A oposição relevante de acórdãos terá de ser frontal em termos da divergência da questão (fundamental) de direito assumir necessariamente natureza essencial para a solução do caso, integrando, por isso, a ratio decidendi no âmbito dos acórdãos em confronto. Carece de relevância para tal efeito as contradições relativamente a questões conexas, bem como reportadas à argumentação enquanto obiter dictum.

III - A exequibilidade de uma sentença, ainda que proferida em acção de impugnação pauliana, não passa pela condenação expressa no cumprimento de uma obrigação, bastando que essa obrigação dela ressalte inequivocamente.

IV - A questão da (in)exequibilidade da sentença proferida em acção de impugnação pauliana em que se funda a execução contra a recorrente apreciada no acórdão recorrido não coloca em causa a autoridade do caso julgado por ela formado, situando-se no âmbito de uma problemática diversa reportada à função delimitadora da obrigação exequenda, que embora pressuponha uma actividade interpretativa da referida sentença não a ignora ou desrespeita enquanto comando de acção.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Questão prévia: Da admissibilidade da revista

Se bem se percepciona a pretensão recursória da Recorrente, a mesma fundamenta a revista, designando-a, para o efeito, de recurso de revista e revista excepcional:

- ao abrigo dos artigos 671.º, n.º2 e 629.º, n.º 2 alínea a), do CPC, por ofensa de caso julgado;

- ao abrigo do artigo 672.º nº 1 alínea c), do CPC, por contradição de acórdãos, indicando como acórdão-fundamento, o proferido, em 13.05.2021, pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do Processo n.º 2215/16-T80ER-A.L1.S3, tendo junto cópia da publicação do aresto nas Bases Documentais do ITIJ.

Vejamos.

1. Constitui objecto da pretendida revista o recurso do acórdão do tribunal da Relação de Coimbra confirmativo do despacho de indeferimento da arguição de nulidade processual insanável, de todo o processo executivo, relativamente à Recorrente, interveniente na execução.

Está, por isso, em causa a recorribilidade de decisão com natureza interlocutória [A decisão interlocutória encontra definição em contraposição à decisão final, que é aquela que, em termos gerais, põe termo à causa ainda que não conheça de mérito (que tem como consequência a extinção da instância com o arquivamento ou encerramento do objecto do processo, mesmo que não se tenha conhecido do mérito).], proferida em processo de execução.

O presente recurso, porque interposto no âmbito de um processo executivo, não pode deixar de se encontrar submetido ao regime especial previsto nos artigos 852.º e seguintes, do CPC.

Para o caso e no que aqui assume cabimento, determina o artigo 854.º, do CPC:

Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução”.

Assim sendo, a admissibilidade da revista em causa apenas encontra respaldo nas situações em que o recurso é sempre admissível, isto é, ao abrigo das denominadas impugnações gerais excepcionais contempladas no artigo 629.º, do CPC.

Todavia e porque a Recorrente invoca, também, como fundamento da revista, a existência de oposição de acórdãos, fazendo referência à revista excepcional (artigo 672.º, n.º2, alínea c), do CPC), importa fazer salientar que a mesma não assume cabimento em face da natureza da decisão em causa – decisão interlocutória [Tratando-se de decisão final, ocorrendo dupla conformidade, conforme defende Abrantes Geraldes, existe a possibilidade de apresentação da revista excepcional (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª edição, Almedina, p 443).]

Com efeito conforme constitui entendimento solidificado neste tribunal, a revista excepcional apenas pode incidir sobre decisões finais [---].

Ainda que no caso não assuma cabimento o recurso de revista com fundamento em oposição de acórdãos (designadamente ao abrigo do artigo 671.º, n.º 2, alínea b), do CPC), cumpre sublinhar que, ao invés do pugnado pela Recorrente, não se verifica a invocada contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do STJ de 13.05.2021, proferido no Processo n.º 2215/16.0T8OER-A.L1.S3, indicado como acórdão-fundamento.

2. Como tem sido reiteradamente defendido por este Tribunal, a oposição de acórdãos relativamente à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.

Por conseguinte, a contradição de acórdãos impõe a identidade da questão essencial objecto de apreciação nos acórdãos em confronto, constituindo pressuposto do conceito de identidade da questão que a subsunção jurídica efectuada por cada uma dessas decisões decorra do mesmo núcleo central factual.

Por outro lado, tal oposição terá de ser frontal [---] em termos da divergência da questão (fundamental) de direito assumir necessariamente natureza essencial para a solução do caso, isto é, tem de integrar a ratio decidendi no âmbito dos acórdãos em confronto, carecendo de relevância para tal efeito as contradições relativamente a questões conexas, bem como reportadas à argumentação enquanto obiter dictum; nessa medida, inexistirá contradição relevante de julgados se confinada entre a decisão de uma e fundamentação de outra.

Reportando tais considerações para o caso sob apreciação, não podemos deixar de concluir que os juízos formulados no acórdão recorrido relativamente à questão da exequibilidade da sentença de impugnação pauliana de modo algum podem ser entendidos como confrontando com o entendimento em que o acórdão-fundamento sustentou a sua decisão. Acresce ainda a circunstância de tais considerações terem sido produzidas a latere do objecto do recurso [O tribunal a quo, só após julgar a apelação improcedente (por considerar sanado o vício da ineptidão do requerimento executivo por falta de causa de pedir), teceu tais considerações referindo para o efeito que “De todo o modo sempre se dirá o seguinte”.]; nessa medida, não constituírem a sua ratio decidendi pelo que, ainda que se verificassem contradições, não poderiam as mesmas assumir importância de essencialidade indispensável à caracterização de oposição relevante de acórdãos.

Todavia e contrariamente ao defendido pela Recorrente (de acordo com a argumentação tecida pela mesma, a contradição dos julgados mostra-se justificada por o acórdão recorrido, ao invés do acórdão fundamento, ter entendido não ser necessário que o (re)conhecimento de crédito do exequente resulte da sentença da impugnação pauliana), os entendimentos veiculados nos acórdãos quanto à exequibilidade da sentença de impugnação pauliana mostram-se em consonância, como resulta da interpretação do teor de cada um deles.

Na esteira do posicionamento do acórdão-fundamento, o acórdão recorrido considera que a procedência da acção de impugnação pauliana permite ao credor a possibilidade de promover a execução contra o terceiro adquirente com vista a executar o bem objecto dessa impugnação no próprio património deste. E tal como defendido no acórdão fundamento [---], o acórdão recorrido considerou que a exequibilidade da sentença de impugnação pauliana, para efeitos de viabilizar a execução cumulativa contra o devedor e contra o terceiro adquirente “terá de apresentar um título executivo integrado por aquele dotado de exequibilidade contra o devedor e pela sentença obtida na acção pauliana”.

MTS

31/10/2024

Jurisprudência 2024 (38)


Processo de inventário;
emenda da partilha; dever de colação


1. O sumário de RC 6/2/2024 (51/14.8T8MBR-G.C1) é o seguinte:

Intentada partilha adicional de bens em sede de inventário, proferida decisão transitada em julgado que considerou serem estes bens propriedade de um dos herdeiros por adquiridos por usucapião após doação dos inventariados, a improcedência deste incidente não obsta à dedução e apreciação de pedido de emenda da partilha já realizada, com fundamento na existência do dever de colação deste herdeiro.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Funda o recorrente a sua discordância quanto à decisão proferida nos autos que declarou extinta a instância do incidente de partilha adicional, por inutilidade da lide, por entender que, não podendo estes bens ser objecto de partilha adicional, deve, ainda assim, ser levado o seu valor à colação, por adquiridos por usucapião pelo interessado BB, na sequência de doação dos seus avós, autores da herança.

Decidindo

Alega o recorrente que se mantém intocado o direito de os demais herdeiros exigirem a colação de bens doados a um dos herdeiros e por este adquiridos por usucapião, mais considerando que “a falta de conferência destes bens no inventário, prejudica de forma inaceitável e é fundamento de erro quanto às decisões tomadas no mesmo inventário por todos os demais herdeiros o que resulta de imediato do simples cotejo dos valores dos imóveis urbanos doados ao interessado / Recorrido BB que totalizam mais de € 71.150,00 €. E que embora estes bens não possam ser agora partilhados, “tal não significa que não deverão ser levados, nos termos legais, à colação e à conferência pela imputação do seu valor, por se estar em tempo útil e com todas as consequências legais.”, requerendo afinal que seja admitida a partilha adicional e a consequente emenda á partilha.”

O requerimento de partilha adicional de bens entrou em juízo em 2015, pelo que lhe é aplicável o Regime Jurídico do Processo de Inventário (Lei 23/2013 de 5 de Março, entretanto revogada pela Lei 117/2019, de 13 de Setembro, com entrada em vigor a 1 de Setembro de 2020) que, no essencial, dispunha no seu artº 75, nº 1, que “Quando se reconheça, depois de feita a partilha, que houve omissão de alguns bens, procede-se no mesmo processo a partilha adicional”.

Decorre deste normativo que a partilha adicional de bens, destina-se a efectivar a partilha de bens cujo conhecimento advenha após a partilha já realizada e homologada por decisão judicial transitada em julgado, devendo efectuar-se no mesmo processo com aproveitamento dos elementos constantes dos autos, mas sendo absolutamente distinta e autónoma da anterior partilha. Constitui uma nova partilha, uma nova causa e só são objecto desta partilha os bens omitidos, independentemente das causas dessa omissão.

Como referem Teixeira de Sousa et al. [SOUSA, Miguel Teixeira de, REGO, Carlos Lopes, GERALDES, António S. Abrantes e TORRES, Pedro Pinheiro, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, 2021, Almedina, pág. 149, nota 5.], “…o incidente de partilha adicional respeita aos casos em que, na partilha realizada no processo de inventário, tenham sido omitidos alguns bens, independentemente dos motivos que a isso conduziram, quer dizer: em contraste com o que sucede na emenda e na anulação da partilha (…), não se atribui qualquer relevância ao erro, dolo ou à má fé de qualquer dos interessados…”.

Quer isto dizer que, como aliás reconhece o recorrente, a partilha adicional não se destina a emendar a partilha anteriormente feita, nem interfere com esta.  

Já a emenda da partilha, apenas pode ocorrer se, após o trânsito da sentença que homologou partilha anterior, se verificar que existiu “erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes”, desde que seja pedida em acção proposta “dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à sentença” (artºs 70, nº1 e 71, nº1 do RJPI e 1126 do C.P.C., na actual redacção introduzida pela Lei 117/2019).

Como refere LOPES CARDOSO [CARDOSO, João António Lopes, Partilhas Judiciais, Vol.II, Almedina-Coimbra, 1990, páginas 545 e seguintes.], “Em princípio a sentença homologatória da partilha, transitada em julgado, põe termo ao inventário. Pode suceder, porém, que a partilha tenha lesado os interessados; estes, para se ressarcirem dos prejuízos, que, porventura, sofreram por via disso, só têm ao seu alcance, para além do recurso extraordinário de revisão, três meios específicos:

a) A emenda da partilha por acordo de todos eles;

b) Na falta de tal acordo, a acção para a emenda da partilha proposta dentro de um ano a contar do conhecimento do erro;

c) A ação para a anulação da partilha judicial.” [...]

Do acima exposto decorre que enquanto a partilha adicional visa partilhar bens da herança do de cujus, ainda não partilhados, a emenda à partilha visa corrigir situações de erro na partilha. Não são, assim, incidentes confundíveis, nem visam as mesmas finalidades.

Nestes termos, suspensa a partilha adicional até decisão sobre a propriedade destes bens, o trânsito em julgado da sentença que decidiu serem estes bens próprios do herdeiro e, assim, excluídos da partilha, determina, não a inutilidade da lide, conforme decidido pela decisão recorrida, mas antes a improcedência do pedido de partilha adicional de bens pertencente à herança dos primeiros inventariados, formulado pelo cabeça-de-casal, AA, cfr. decorre do artº 276, nº2 do C.P.C.

O que não significa que o pedido de sujeição a colação não possa ser feito no inventário, mormente a emenda da partilha já efectuada, nos termos previstos no artº 1126 do C.P.C.

O dever de colação é precisamente um dos casos que legitima o pedido de emenda da partilha, verificados os demais pressupostos constantes deste preceito legal e não lhe sendo oponível nenhuma excepção (nomeadamente a de caducidade do direito de a vir requerer). A colação visa, não a partilha de um novo bem, mas antes a igualação da partilha, mediante a restituição à herança dos bens (ou do seu valor) que foram doados em vida pelo autor da herança a um dos herdeiros legitimários. A ela só estão obrigados, in casu, os descendentes que eram, à data da doação presumíveis herdeiros legitimários do doador (cfr. artsº 2104, nº1 e 2105 do C.C.), sendo irrelevante que venham a assumir essa qualidade no momento da abertura da sucessão. Ora, o interessado BB integrava essa categoria, atenta a data do óbito do inventariado EE.

Tem por fundamento, conforme assinala DUARTE PINHEIRO [PINHEIRO, Jorge Duarte, O Direito das Sucessões Contemporâneo, Gestlegal, 5ª edição, 2022, pág. 304.], “uma presunção legal iuris tantum de que o autor da sucessão quando faz uma doação a um dos filhos (ou a outro descendente que, na altura, seja um sucessível legitimário prioritário) não pretende avantaja-lo relativamente aos demais.”

Já o artº 2108 do C.C. diz-nos que a colação, não existindo acordo de todos os herdeiros para a restituição dos bens doados, “faz-se pela imputação do valor da doação ou da importância das despesas na quota hereditária”, sendo este valor calculado à data da abertura da sucessão (artº 2019, nº1 do C.C.).

Se, em consonância com o já decidido em Acórdão proferido no Apenso F, se entende que a sentença proferida na que correu termos sob o nº 103/18...., “apenas obsta à partilha dos prédios a que respeita, “rectius”, em incidente de partilha adicional, não obstando a que os mesmos sejam considerados para efeitos de colação, ou, seja, em temos práticos, que o respectivo valor seja considerado para que se componham os quinhões de todos os interessados do inventário em termos de não se tolher o respectivo direito a uma partilha equilibrada, e, portanto, justa.”, esta colação constitui fundamento de emenda da partilha já realizada, não havendo lugar a esta operação no âmbito deste incidente de partilha adicional de bens.

Requerida a emenda da partilha para efeitos de colação, a decisão recorrida não se pronunciou, no entanto, sobre este requerimento do cabeça-de-casal, nem sobre a oposição que a ele foi deduzida pelo interessado BB, não tendo apreciado nenhuma das questões que nele se encontram colocadas, nomeadamente a caducidade oposta pelo interessado à requerida emenda da partilha.

Nessa medida, considerando que os bens indicados para partilha adicional estão sujeitos a colação, integrando o interessado BB a categoria dos herdeiros legitimários à data da doação, improcedendo embora o incidente de partilha adicional, devem os autos prosseguir para conhecimento do pedido de emenda da partilha com fundamento no dever de colação por parte do interessado BB e, dos termos da oposição que a ele foi deduzida."

[MTS]


30/10/2024

A proteção jurídica entre o deferimento tácito e o indeferimento expresso

 

[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]


Jurisprudência 2024 (37)

 
Conflito de competência;
conflito impróprio*


1. O sumário de RL 29/2/2024 (decisão individual) (7020/23.5T8SNT.L1-8) é o seguinte:

Tendo sido instaurada a mesma ação, entre as mesmas partes, embora figurando em inversa posição nos respetivos processos, distribuídos a diversos juízos e tendo ambos conhecido oficiosamente da exceção de litispendência, ocorre um conflito negativo impróprio, cuja resolução se impõe, em conformidade com o prescrito no corpo do artigo 114.º do CPC, radicando a competência para a tramitação do processo no juízo onde o respetivo réu/demandado foi, em primeiro lugar, citado.

2. Na fundamentação da decisão escreveu-se o seguinte:

"A ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a esta respeitantes, constitui uma providência tutelar cível (cfr. artigo 3.º, al. c) do regime geral do processo tutelar cível – RGPTC - aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08 de setembro).
 
No caso, foram instauradas em juízo, separadamente, duas ações de regulação, nas quais, cada um dos Tribunais a que vieram a ser distribuídas, veio a julgar verificada a exceção de litispendência em face do outro processo, absolvendo o demandado – em cada uma delas – da instância.
 
Nos termos do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
 
Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n.º 3, do CPC).
 
O artigo 114.º do CPC dispõe sobre a aplicação do processo de resolução de conflito de competência a outros casos, nos seguintes termos:
 
“O disposto nos artigos 111.º a 113.º é aplicável a quaisquer outros conflitos que devam ser resolvidos pelas Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça e também:
a) Ao caso de a mesma ação estar pendente em tribunais diferentes e ter passado o prazo para serem opostas a exceção de incompetência e a exceção de litispendência;
b) Ao caso de a mesma ação estar pendente em tribunais diferentes e um deles se ter julgado competente, não podendo já ser arguida perante o outro ou outros nem a exceção de incompetência nem a exceção de litispendência;
c) Ao caso de um dos tribunais se ter julgado incompetente e ter mandado remeter o processo para tribunal diferente daquele em que pende a mesma causa, não podendo já ser arguidas perante este nem a exceção de incompetência nem a exceção de litispendência”.
 
Conforme salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 142), “[c]om uma frequência superior à que seria desejável ocorrem por vezes situações de bloqueio processual, em resultado da verificação de conflitos de competência impróprios, mas que têm que ser resolvidos a bem do interesse das partes e da justiça. São essas situações que são configuradas no corpo do artigo. Já as alíneas subsequentes visam evitar a pendência de duas ações, apesar do que relativamente a cada uma delas tenha sido decidido”.
 
Dispõe o artigo 580.º, n.º 1, do CPC que as exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência.
 
A litispendência pode considerar-se um pressuposto processual negativo (cfr., Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, II, Almedina, 1982, p. 242), que visa evitar a repetição de causas, ou seja, "evitar decisões inúteis ou desnecessárias" (cfr., Fernando Luso Soares, Direito Processual Civil, Almedina, 1980, pp. 167-168) e o "risco de grave dano para o prestígio da justiça" (assim, Antunes Varela, Sampaio e Nora, J. M. Bezerra, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra editora, 1985, p. 301).
 
De acordo com o disposto no artigo 578.º do CPC, o conhecimento da litispendência é oficioso por parte do Tribunal.
 
O impedimento da litispendência opera na ação proposta em segundo lugar, considerando-se como tal, aquela em que o réu foi citado posteriormente (cfr., artigo 582.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC).
 
“A litispendência (e o caso julgado) visam evitar a prolação de decisões contraditórias ou a repetição de decisões (por se tornar inútil a segunda decisão – vide art. 130º do CPC)” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-10-2022, Pº 474/20.3YHLSB.L1-PICRS, rel. SÉRGIO REBELO).
 
A situação de litispendência, cuja arguição tem regras específicas, resolve-se em conformidade com essas mesmas regras, podendo dizer-se que, na sua apreciação individual, “os juízes não chegam a dispor sobre a situação decidida pelo outro” (cfr. decisão de 19-02-2021 do Vice-Presidente do STJ no processo n.º 1324/20.6T8CBR-A.S1).
 
Sucede que, se afigura que a situação se integra na previsão do corpo do artigo 114.º do CPC, dado que, na presente situação, ambos os Tribunais julgaram verificada a exceção de litispendência, gerando um conflito decisório, ou de competência impróprio ou latente, tanto mais que, ambas as decisões que declararam a litispendência, transitaram em julgado.
 
Resolvendo o conflito, verifica-se que, na ação n.º (…)/23.5T8SNT.L1 o requerido foi citado posteriormente (o que ocorreu em 23-06-2023), relativamente à citação que se operou (em 21/06/2023), no processo n.º (…)/23.7T8SNT, pelo que, o litígio entre as partes deve ser dirimido no âmbito da ação instaurada em primeiro lugar, ou seja, a competência para a tramitação do processo radicará no Juízo de Família e Menores de Sintra - Juiz “99”, onde o respetivo réu/demandado foi, em primeiro lugar, citado.
 
Em suma: Tendo sido instaurada a mesma ação, entre as mesmas partes, embora figurando em inversa posição nos respetivos processos, distribuídos a diversos juízos e tendo ambos conhecido oficiosamente da exceção de litispendência, ocorre um conflito negativo impróprio, cuja resolução se impõe, em conformidade com o prescrito no corpo do artigo 114.º do CPC, radicando a competência para a tramitação do processo no juízo onde o respetivo réu/demandado foi, em primeiro lugar, citado.
 
Pelo exposto, sem necessidade de mais considerações, decido este conflito impróprio, declarando competente para a presente acção o Juízo de Família e Menores de Sintra - Juiz “99”.
 
*3. [Comentário] Em apoio do decidido poderia ter sido invocado o disposto no art. 205.º, n.º 2, CPC, que é uma das situações a que se aplica o disposto no art. 114.º pr. CPC. O argumento seria o seguinte: se o art. 114.º pr. CPC se aplica às divergências entre juízos do mesmo tribunal, também se aplica, por maioria de razão, às divergências entre juízes do mesmo tribunal.
 
MTS



29/10/2024

Jurisprudência 2024 (36)


Processo de inventário;
competência material


1. O sumário de RL 6/3/2024 (decisão individual) (9462/16.3T8SNT-A.L1-6) é o seguinte: 

O processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal, na sequência de divórcio decretado na competente conservatória do registo civil, podendo ser instaurado, atento o disposto no artigo 1087.º, n.º 2, do CPC, no tribunal (ou no cartório notarial), deverá ser instaurado no tribunal territorialmente competente, determinado por força do disposto no artigo 80.º do CPC, não funcionando a regra de conexão (que, nos termos do disposto no artigo 206.º, n.º 2, do CPC, determina a apensação de processos) existente no caso de ter havido prévio processo judicial onde o divórcio tenha sido decretado.

2. Na fundamentação da decisão escreveu-se o seguinte:

"Os presentes autos de inventário foram instaurados em 03-11-2022.

Conforme resultava do artigo 1404º, n.º 3, do CPC, na redação do D.L. n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, o inventário corria por apenso ao processo de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação, conforme a situação.

Esta norma foi revogada, após a alteração da regulação do inventário pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro.

A Lei nº. 117/2019, de 13 de setembro, com entrada em vigor a 01-01-2000, reintroduziu o processo de inventário judicial no Código de Processo Civil (artigos 1082.º a 1135.º do CPC).

O n.º 1 do artigo 1083º do CPC indica os casos em que o processo de inventário é da exclusiva competência dos tribunais judiciais, sendo que, será o caso, sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.

Por seu turno, o n.º. 1 do artigo 1133. º do CPC., dispõe que, decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para a partilha dos bens comuns.

Nos termos do preceituado no nº. 1 do art. 122º da LOSJ:

“1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: (…)
2 - Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.

No presente conflito de competência não é colocada em questão a competência material dos juízos de família e menores para a tramitação do processo de inventário instaurado.

Contudo, verifica-se que, muito embora tenha corrido ação judicial de divórcio, o extinto casal divorciou-se, não por decisão proferida no âmbito desse processo, mas sim, por via de decisão proferida pela Conservatória do Registo Civil onde os requerentes apresentaram, ulteriormente, pretensão nesse sentido, o que coloca a questão de saber se deverá funcionar a regra da competência por conexão – apensando-se o inventário ao divórcio – como o entendeu o Juiz “X”, ou se, ao invés, tal regra não funciona, nessa situação, como o considerou o Juiz “Y”.

Ora, nos casos em que não existe processo judicial de que o proposto inventário seja dependência, nomeadamente quando o divórcio foi decretado em Conservatória do registo Civil, trata-se de inventário que, de modo meramente facultativo, pode ser proposto em tribunal judicial.

A LOSJ não fixa qual o Juízo de Família e Menores territorialmente competente para processos de inventário que sigam o novo regime, ao invés do que sucedia quanto aos inventários tramitados nos cartórios notariais, no âmbito da Lei n.º 23/2013, de 5 de março, conforme decorria do disposto no artigo 3.º, n.º 6 do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado por este diploma legal.

Quanto aos inventários instaurados após a revogação do referido Regime Jurídico do Processo de Inventário, operada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, não existe norma que fixe a competência territorial.

Já a competência territorial dos tribunais com a competência material para os restantes inventários – visando matéria sucessória – foi prevista no artigo 72.º-A, aditado pela referida Lei n.º 117/2019, sendo competente o tribunal do lugar da abertura da sucessão, sem prejuízo dos critérios subsidiários de determinação da competência territorial referenciados no mesmo normativo e do estabelecido no n.º 4 do artigo 12.º da Lei n.º 117/2019.

Assim, “quanto ao inventário subsequente a divórcio decretado por decisão da Conservatória do Registo Civil, como decorre do art. 1083º nº2 do CPC (pois é um dos “demais casos” aqui previstos por referência aos casos do nº 1), o seu requerente pode optar entre o tribunal judicial ou o cartório notarial” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-03-2023, Pº 553/22.2T8AVR.P1, rel. MENDES COELHO, na linha do Acórdão do mesmo Tribunal de 24-03-2022, Pº 4165/21.0T8AVR.P1, rel. ISABEL SILVA).

Ou seja: “O inventário para partilha dos bens comuns do casal, na sequência de divórcio decretado na competente conservatória do registo civil, pode ser instaurado, por escolha do requerente, no tribunal ou no cartório notarial, nos termos do art. 1087º/2 CPC. Optando o requerente por instaurar o processo no tribunal, determina-se o tribunal competente por aplicação do regime previsto no art. 80º CPC” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-01-2022, Pº 1240/21.4T8AVR.P1, rel. ANA PAULA AMORIM).

Conforme se lê neste último Acórdão, a alteração legislativa foi motivada “pela frustração dos objetivos que o legislador se propusera alcançar com a desjudicialização operada pela Lei 23/13 (…), perante objeções que se suscitaram em torno do princípio constitucional da reserva do juiz”, sendo que, “[p]erante a dimensão da alteração operada, com a reintrodução do regime do processo de inventário judicial, necessariamente esteve presente na mente do legislador as situações em que o processo de divórcio correu os seus termos na conservatória do registo civil (…). As alterações introduzidas pela Lei 117/2019 de 13 de setembro criaram, como se referiu, um regime de repartição de competências quanto à tramitação do processo de inventário, sem excluir em qualquer caso o recurso ao tribunal judicial. Apenas torna obrigatória a sua instauração no tribunal nas situações previstas no art. 1083º/1 CPC (…). A redação do art. 122º/2 da Lei de Organização do Sistema Judiciário garante tal regime concorrente, na medida em que não só prevê a competência dos tribunais de família e menores para a tramitação do processo, como ainda, prevê a intervenção do juiz no processo, quando este seja instaurado no cartório notarial (…). Conclui-se que ao abrigo do art. 108[3]º/2 CPC pode o interessado requerer no tribunal competente processo de inventário para partilha dos bens comuns na sequência de divórcio por mútuo consentimento decretado na conservatória do registo civil”.

Decorre destas considerações que, o inventário para partilha dos bens comuns do casal, na sequência de divórcio decretado na competente conservatória do registo civil, podendo ser instaurado, atento o disposto no artigo 1087.º, n.º 2, do CPC, no tribunal (ou no cartório notarial), deverá ser instaurado no tribunal territorialmente competente, determinado por força do disposto no artigo 80.º do CPC, não funcionando a regra de conexão (que, nos termos do disposto no artigo 206.º, n.º 2, do CPC, determina a apensação de processos) existente no caso de ter havido prévio processo judicial onde o divórcio tenha sido decretado.

Ora, no presente caso, nem a circunstância de ter corrido termos ação de divórcio, determina a apensação do inventário, pois, como se referiu, tal processo cessou, por desistência, sem que o divórcio aí tenha sido decretado.

Assim, os autos deverão prosseguir termos no juízo onde foram primeiramente distribuídos, radicando a competência, para o efeito, no Juízo de Família e Menores de Sintra – Juiz “X”."

[MTS]