"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/01/2025

Jurisprudência 2024 (86)


Recurso de revisão;
prazo de interposição


I. O sumário de RG 24/4/2024 (233/05.3TBVRM-F.G1) é o seguinte:

1 – Por efeito do disposto no artigo 138º, nº 4, do CPC, é aplicável o regime previsto nos nºs 1 a 3 desse artigo ao prazo de sessenta dias para a interposição do recurso de revisão.

2 – A contagem de tal prazo suspende-se nas férias judiciais.

3 – Assim, é extemporâneo o recurso de revisão interposto a 29.10.2021, contado o prazo de sessenta dias a partir de 09.06.2021.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

2.2.2. Reapreciação de Direito

2.2.2.1. A Recorrente foi citada para a ação executiva no dia 09.06.2021. Apesar de o aviso de receção relativo à carta para citação, enviada e efetivamente recebida na residência da Recorrente, ter sido assinado por CC, deve presumir-se, em conformidade com o disposto no artigo 230º, nº 1, do CPC, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário. Tal citação tem-se por efetuada na própria pessoa da citanda.

Nenhuma razão existe para considerar que a carta não foi entregue à Recorrente. Pelo contrário, para além de existir uma presunção legal, a entrega à destinatária mostra-se conforme com as regras da experiência, pois o normal é a pessoa que recebe a carta entregá-la ao destinatário.

Argumenta a Recorrente que «o conhecimento exigido para efeitos do art.º 697º nº 2 do CPC tem que ser efetivo». A realidade é que mesmo que fosse a Recorrente a assinar o aviso de receção a questão suscitava-se na mesma, pois também poderia argumentar que não abriu a carta. Mesmo neste caso sempre se haveria de presumir que abriu a carta e tomou conhecimento do seu conteúdo, pois esse é o comportamento esperado de uma pessoa que recebe uma carta, assim como o é a entrega ao destinatário quando seja recebida por um terceiro. E no caso o terceiro não é uma pessoa qualquer, mas sim o próprio marido da Recorrente, ele igualmente parte tanto na ação de honorários como na execução da sentença proferida naquela.

Aliás, no plano substancial, é manifestamente improvável o alegado pela Recorrente. Teve conhecimento da sentença na data da citação ou até num momento anterior, bastando recordar que o marido da Recorrente confessou o pedido na ação de honorários e foi notificado da sentença, pelo que, vivendo ambos na mesma casa, dificilmente deixaria de a informar de tal facto. Daí que nenhum erro se deteta quando a Sra. Juiz a quo afirma que a Recorrente teve conhecimento da sentença, sendo certo que o acórdão do STJ que invoca (de 15.12.2011, proferido no processo 1065/08.2TVPRT-A.P1.S1) tem subjacente uma situação completamente distinta, sem paralelo com aquela que está aqui em apreciação.
Termos em que improcedem as conclusões formuladas sobre esta questão.
*
2.2.2.2. Como a carta de citação para a execução integrava cópia da sentença exequenda, a Recorrente tomou conhecimento da mesma no dia 09.06.2021.

Alega a Recorrente que o recurso sempre se deve ter como tempestivo, por na contagem do prazo de 60 dias previsto no artigo 697º, nº 2, do CPC «há que atender ao regime previsto nos arts. 138.º e 139.º do CPC, e assim considerar-se o prazo dilatório por via do disposto no art. 245.º, n.º 1, al. a), 2 e 4 do CPC, bem como ao art. 142.º do CPC e 279.º al. b) do CC». Sustenta que o prazo é «de 95 dias, suspendendo-se nas férias judiciais, sendo o último dia para a prática do ato o dia 29/10/2021, dia esse em que, aliás, atendendo a um excesso de cautela por parte da mandatária da Recorrente, foi efetivamente interposto o Recurso em causa

O recurso de revisão foi interposto pela Recorrente ao abrigo do disposto no artigo 696º, al. e), do CPC (v. arts. 32º a 39º do requerimento inicial).

Por isso, o prazo de 60 dias para interpor o recurso extraordinário de revisão contava-se, nos termos do artigo 697º, nº 2, al. c), do CPC, desde que a Recorrente teve conhecimento do facto que serve de base à revisão. Esse facto é a sentença proferida na ação de honorários, no âmbito da qual a ora Recorrente foi citada, mas não notificada daquela sentença.

O prazo de 60 dias previsto no artigo 697º, nº 2, do CPC é um prazo de caducidade.

Como é um prazo para propositura de ação (interposição do recurso de revisão; traduz-se no exercício do direito de anulação de decisão judicial) previsto no CPC, é-lhe aplicável o disposto no artigo 138º, nº 4, do CPC, pelo que segue «o regime dos números anteriores».

Significa isto que, por ser inferior a seis meses, suspende-se durante as férias judiciais (nº 1 do art. 138º) [---]. É-lhe ainda aplicável a regra do nº 2 do artigo 138º: se o prazo terminar em dia em que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o 1º dia útil seguinte.

Aplicando as apontadas regras ao caso dos autos, partindo da constatação de que o conhecimento do facto que fundamenta a revisão ocorreu no dia 09.06.2021, o prazo de 60 dias, por se suspender durante as férias judiciais, terminava no dia 24.09.2021.

Por conseguinte, como o recurso de revisão foi interposto em 29.10.2021, já havia caducado o direito que a Recorrente pretendia exercer, que era a anulação da sentença proferida na ação de honorários.

É de notar que, ao contrário do preconizado pela Recorrente, não acresce ao prazo de 60 dias qualquer dilação «por via do disposto no art. 245.º, n.º 1, al. a), 2 e 4 do CPC». Os 60 dias não são um prazo de defesa, mas sim, como já se referiu, um prazo para exercício do direito de anulação de decisão judicial transitada em julgado.

Por isso, nenhuma censura merece a decisão recorrida ao julgar extemporâneo o recurso interposto e declarar a caducidade do direito da Recorrente à revisão da sentença.
*

2.2.2.3. Alega a Recorrente que a decisão recorrida «viola de forma gritante a garantia de acesso aos tribunais prevista no art. 2.º do CPC, bem assim o art. 20.º da Constituição da República Portuguesa

Apesar do transcrito teor da conclusão XXII das alegações, a Recorrente limita-se no ponto 52º da motivação da sua apelação a afirmar que «[o] que esta aqui em causa, e é objeto do presente Recurso, é a limitação operada no processo em crise do exercício do seu amplo direito de defesa, protegido constitucionalmente pelo art. 20.º da Constituição da República Portuguesa.»

Por conseguinte, se bem compreendemos, a Recorrente refere-se ao mérito do recurso, o qual não foi sequer apreciado na decisão recorrida, uma vez que na fase introdutória foi exclusivamente abordada a questão da caducidade invocada pelo Recorrido.

Por isso, tendo presente que através da apelação se pretende revogar uma decisão que julgou extemporâneo o recurso de revisão, sendo essa a única questão que apreciou, o alegado na conclusão XXII e motivado no ponto 52º das alegações é inconcludente e irrelevante. Nenhuma apreciação se fez na sentença do ocorrido na ação de honorários, mas apenas da extemporaneidade do recurso extraordinário de revisão da sentença proferida naquela ação.

Em todo o caso, mesmo que a Recorrente estivesse a referir-se à exiguidade do prazo para impugnar, por via do recurso de revisão, a sentença proferida na ação de honorários, ainda assim não lhe assistiria razão.

A título liminar, a Recorrente limita-se a invocar a violação da «garantia de acesso aos tribunais», com base no disposto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa. Parece suscitar uma questão de inconstitucionalidade.

Se assim for, fazemos notar que um dos traços definidores do nosso sistema de controlo da constitucionalidade é o respetivo carácter normativo. Exige-se que a questão de inconstitucionalidade suscitada perante o tribunal recorrido tenha natureza normativa e não se limite a arguir a violação da Constituição diretamente por parte de decisões judiciais, em si mesmas consideradas. Sendo o controlo de constitucionalidade um controlo de constitucionalidade de normas, a suscitação da inconstitucionalidade deve fazer-se por referência a normas jurídicas, não às decisões judiciais em si mesmas.

Dito isto, verifica-se que a situação referida em XXII das conclusões não foi alegada em resposta à matéria de exceção deduzida pelo Recorrido ou em qualquer requerimento anterior à decisão recorrida, nem aí foi deduzida pretensão com base na mesma, sobre a qual tenha incidido a decisão recorrida, mas sim, e apenas, na presente apelação.

Sendo inequívoca a existência da norma aplicada (art. 697º, nº 2, do CPC) e o seu teor perfeitamente inteligível, verifica-se que em momento algum, podendo fazê-lo, a Recorrente suscitou a questão da desaplicação da norma que prevê que o recurso extraordinário de revisão seja interposto no prazo de 60 dias. Portanto, não submeteu a questão ao Tribunal de que recorre, pois só assim era equacionável que o tribunal recorrido pudesse formular um juízo de inconstitucionalidade determinante da prolação de uma decisão em sentido diferente daquele que veio a acolher. Por outras palavras: não se pode concluir que determinada decisão, proferida num concreto quadro factual, acolhe um entendimento normativo inconstitucional se a dimensão normativa invocada no recurso não foi submetida ao tribunal recorrido.

Além disso, como já se referiu, para que uma questão de constitucionalidade se considere suscitada em termos adequados perante o tribunal não é suficiente referir que a decisão viola a Constituição, tornando-se outrossim necessário que seja discernível a autonomização da questão de constitucionalidade da norma relativamente ao conteúdo da própria decisão em causa, o que não resulta do presente recurso.

Mas vejamos a questão em substância.

O caso julgado é uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social [--]. Garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir e acautela os valores da certeza e da segurança inerentes a decisões judiciais transitadas.

O recurso de revisão, enquanto meio de impugnação extraordinário, incide sobre decisões transitadas em julgado. Visa a anulação do caso julgado e da respetiva decisão com fundamento num vício específico.

Sendo um meio que põe em causa os valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica, é compreensível que a lei imponha condições e restrições à sua admissibilidade, seja em termos de prazos para a sua interposição, seja no que concerne aos fundamentos que justificam a anulação da decisão.

Quanto aos fundamentos, é necessário que o processo ou a decisão se encontrem afetados por vícios cuja gravidade justifica que se sacrifique a segurança resultante do caso julgado à justiça devida à situação apreciada. Por isso, pode-se dizer, com propriedade, que são extraordinários os seus fundamentos.

Sendo um recurso de revogação de uma decisão já transitada em julgado, para o que se renova ou restaura a instância já extinta, é perfeitamente compreensível que se estabeleçam limites temporais para a interposição do recurso de revisão.

É por isso que se estabelece o prazo de sessenta dias para a interposição do recurso, cujo dies a quo é fixado nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 697º do CPC, sendo no caso dos autos o conhecimento do facto que serve de base à revisão.

O prazo de sessenta dias para o exercício em juízo do direito de anulação da decisão transitada em julgado não é excessivamente curto, pois dele não decorre uma desrazoável limitação daquele direito. É um condicionamento que decorre das exigências de harmonização e de concordância prática entre diferentes valores. Por um lado, perante um processo ou uma decisão que se encontrem afetados por vícios graves, a parte deve poder reagir através do recurso de revisão, em decorrência do direito de acesso aos tribunais e do princípio de tutela jurisdicional efetiva, mas, por outro lado, a necessidade de certeza e de segurança jurídica exige que tal direito seja exercido num prazo de 60 dias, definindo-se a situação com brevidade, de modo a garantir que as pessoas saibam com o que podem contar. A proteção dos mencionados valores relevantes da vida jurídica, através da consagração do aludido prazo de caducidade, não desrespeita as fronteiras da suficiência da tutela, uma vez que essa limitação não impede o titular do direito de o exercer, impondo-lhe apenas o ónus de o exercer no apontado prazo.

Como bem resulta do acórdão nº 105/2014 (de 12.02.2014) do Tribunal Constitucional, «o n.º 4 do artigo 268.º da Constituição garante aos administrados o acesso aos tribunais para defesa de direitos subjetivos ou de interesses jurídicos dignos de tutela, manifestando ou concretizando o princípio geral de acesso dos cidadãos aos tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20º da Constituição, no âmbito da específica relação dos particulares com a Administração. Valem, neste domínio, os mesmos corolários identificados no que respeita, em geral, ao direito de acesso aos tribunais: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (cfr., entre muitos, o Acórdão n.º 440/94, acessível, como os adiante referidos, em www.tribunalconstitucional.pt ).

O Tribunal Constitucional foi já chamado diversas vezes a apreciar a conformidade constitucional de normas de direito ordinário que estabelecem prazos de prescrição ou de caducidade, concluindo invariavelmente que a simples fixação de tais prazos não importa a violação do direito de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efetiva. Valores objetivos de certeza e de segurança jurídica, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, justificam a imposição de um determinado prazo dentro do qual o respetivo direito carece de ser exercido, esgotado o qual fica privado de exigibilidade em juízo (cfr. Acórdãos n.ºs 148/87, 140/94, 70/2000, 411/2010 e 8/2012).»

[MTS]

16/01/2025

Informação (315)

 


Jurisprudência 2024 (85)


Petição da herança; acção contra incertos;
caso julgado material; âmbito subjectivo


1. O sumário de RC 9/4/2024 (1659/22.3T8CBR.C1) é o seguinte:

Em anterior acção de petição de herança intentada contra incertos, a decisão nela proferida não faz caso julgado relativamente a uma acção posterior que seja intentada pelos herdeiros do autor da sucessão anteriormente declarada vaga a favor do Estado.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"B) – A argumentação de recurso do Apelante, tal como já sucedeu na 1ª Instância, centra-se na defesa da procedência das excepções que viu serem decididas contra si na sentença recorrida.

Ora, no que concerne ao invocado desrespeito, pelos AA, ao intentarem a presente acção – e pelo Tribunal “a quo”, ao julgar procedentes os respectivos pedidos - da autoridade do caso julgado formado pela sentença de 13.10.2020, transitada em julgado em 18/11/2020, proferida na acção nº 4440/19...., com processo especial, de Liquidação de Herança Vaga a favor do Estado, que declarou a herança de EE vaga para o Estado Português, escreveu-se na sentença recorrida:

«[…] Apreciando os elementos constantes dos autos, mormente, relativamente ao processo especial de declaração da herança vaga a favor do Estado, e subsequente liquidação da herança declarada vaga a favor do Estado a correr termos com o n° 4440/19...., do Juízo Local Cível - Juíz ... (cf. certidão sob doc. n°3 junto com a petição inicial), é notório que a acção especial, em causa, foi instaurada pelo Ministério Público em representação do autor Estado Português contra os réus Herdeiros desconhecidos/incertos; os herdeiros desconhecidos foram citados editalmente para os termos da causa, e por não intervirem na causa, subsequentemente, foi aí citado o defensor oficioso nomeado nos termos do art. 22°, do CPC, em representação dos réus herdeiros desconhecidos, e a acção correu termos contra os réus desconhecidos, representados pelo Defensor Oficioso nomeado (ou seja, sem que algum herdeiro desconhecido, nomeadamente, algum dos aqui autores, haja intervindo pessoalmente nos autos). 

Por ser, assim, e na esteira da jurisprudência pacifica dos tribunais superiores - cf. entre outros, a título exemplificativo, Ac. da Relação de Lisboa, de 29/06/2006, Relator Desembargador Salazar Casanova, disponível in www.dgsi.pt. - e na esteira dos ensinamentos de Marta Susana Duarte de Figueiredo Lobo, na Dissertação sobre “Os Incertos no Processo Civil” apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas com Menção em Direito Processual Civil, págs. 50 a 52, disponível no sitio https://estudo geral.uc.pt. - é notório que a acção de declaração da herança vaga a favor do estado português instaurada contra os réus/herdeiros desconhecidos/incertos não constitui caso julgado material/autoridade de caso julgado em relação aos réus/herdeiros desconhecidos, pelas razões aí indicadas no citado acórdão e na citada doutrina, às quais aderimos. […]».

Ora, este entendimento merece a nossa concordância.

A acrescer, dir-se-á o que se segue. [...]

O caso julgado material pressupõe, assim, a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, ou seja, que tenha transitado em julgado.

Como se salientou no Acórdão desta Relação, de 17/3/2020 (Apelação nº 3745/15.7T8PBL.C2) [Que se saiba, não publicado.], «[…] há que distinguir a excepção de caso julgado, da autoridade do caso julgado, sendo até já dominante o entendimento de que a imposição dos efeitos da autoridade do caso julgado não pressupõe a coexistência das três identidades dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir que se exige para a verificação da excepção de caso julgado. – Vide, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24.11.2015, proferido no processo n.º 346/14.0T8PVZ.PT (…) A esse propósito, ensina Lebre de Freitas (in “Código de Processo Civil Anotado”, Cbra. Ed., pág. 325), que enquanto pela excepção se visa o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito, a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão (...), assentando esse efeito positivo numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida. […]».

Rui Pinto no texto epigrafado “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, “in” “JULGAR Online, novembro de 2018, pag. 1 e ss., escreve:

«[…] O efeito positivo externo consiste na vinculação de uma decisão posterior a uma decisão já transitada em razão de uma relação de prejudicialidade ou de concurso entre os respetivos objetos processuais, ou, em termos mais simples, em razão de objetos processuais conexos. (…)

A jurisprudência costuma designar este efeito como autoridade de caso julgado stricto sensu.

Esta autoridade de caso julgado não se cinge apenas às decisões que, por conhecerem do mérito, fazem caso julgado material. Se é certo que as decisões sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo (cf. Artigo 620.º, n.º 1), não deixam, porém, de ser dotadas de efeito positivo externo dentro desse processo.

Efetivamente, o mesmo tribunal que julgou certa questão processual continua vinculado a ela quando julga questão processual conexa, por estar em relação de prejudicialidade ou de concurso. Por ex., se o tribunal julgou improcedente a exceção de incapacidade judiciária do réu por menoridade, não pode, depois, julgar procedente uma exceção de falta de representante judiciário do mesmo. (…) 

devemos acrescentar uma condição subjetiva para que haja uma tal força vinculativa do caso julgado fora do seu objeto processual: a autoridade de caso julgado apenas pode ser oposta a quem seja tido como parte do ponto de vista da sua qualidade jurídica como definido pelo artigo 581.º, n.º 2. Seria absolutamente inconstitucional, por contrário à proibição de indefesa, prevista no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição e no artigo 3.º do Código de Processo Civil, que uma decisão vinculasse quem foi terceiro à causa(…). Daqui decorre que a autoridade de caso julgado (i) pode ser oposta pelas concretas partes entre si e (ii) não pode ser oposta a quem é terceiro. Em termos práticos, serão julgadas improcedentes (em maior ou menor grau) as pretensões processuais das partes entre si que sejam lógica ou juridicamente incompatíveis com o teor da primeira decisão; mas já idêntica pretensão deduzida por terceiro será apreciada sem consideração pelo sentido decisório alheio.

Nesta linha de entendimento, o citado Ac. do TRP de 21-112016/Proc.1677/15.8T8VNG.P1 (JORGE SEABRA) decidiu que a “parte que em acção de reivindicação obtém sentença declaratória do seu direito de propriedade sobre determinado imóvel não pode, regra geral, em confronto com um terceiro (que não interveio sob qualquer titulo na aludida acção prévia) [sic] invocar a seu favor a autoridade de caso julgado e para efeitos de impor a este ultimo, de forma reflexa, um certo conteúdo do direito de propriedade (não concretamente esgrimido e decidido na acção anterior) excludente do direito invocado pelo terceiro em posterior acção contra si interposta”. […]».

Como se pode ler no Acórdão do STJ, de 18/06/2014 (proc. nº 209/09.1TBPTL.G1.S1), «[…] O cuidado com que é tratada a eficácia externa do caso julgado também é bem visível em Antunes Varela que, depois de abordar a problemática dos efeitos da sentença relativamente a terceiros juridicamente indiferentes, acrescentou, relativamente aos terceiros titulares de uma relação jurídica incompatível com a litigada, que “nenhuma razão há, de acordo com o espírito da norma que prescreve a eficácia relativa do caso julgado, para impor a sentença ao terceiro, titular da posição incompatível com a declarada na sentença transitada” (Manual de Processo Civil, 2ª ed. pág. 727). Nas demais situações cobertas pelas regras gerais, a invocação da “autoridade de caso julgado” formado num processo não pode conduzir a que se produzam na esfera de terceiros efeitos com que este não poderia contar, pelo facto de emergirem de um processo em que não teve qualquer intervenção. […]». [...]

No Acórdão da Relação de Lisboa, de 29/06/2006, citado na sentença recorrida,5 diz-se: «[…] no caso de ausência do citando em parte incerta, a lei manda, antes de se ordenar a citação edital, efectuar diligências no sentido de se determinar o seu paradeiro (artigos 244.º e 247.º, n.º4 do Código de Processo Civil); tratando-se de citação contra incertos não há necessidade de efectivar quaisquer diligências.

12. A razão está em que a acção contra incertos (artigo 16.º do Código de Processo Civil) tal como a habilitação no caso de incerteza de pessoas, não faz caso julgado em relação àqueles que não foram demandados, ou seja, a sentença é, quanto a eles, res inter alios acta. […]».

Também Lebre de Freitas e Isabel Alexandre - Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, pág. 593 – citando Alberto dos Reis, referem “Na acção contra incertos, o caso julgado só se forma em face daqueles que nela intervenham como réus”.

Decisivamente, escreve Augusto Lopes Cardoso (Partilhas Litigiosas, vol. III, págs. 242 e 243):

«[…] A sentença que julga vaga a herança para o Estado é, na sua essência, meramente declarativa (…).

Mas o seu trânsito em julgado não implica que fique definitivamente assegurada ao Estado a titularidade dela. Tal trânsito só opera em relação aos que intervieram no processo em que proferida, jamais aos que lhe foram estranhos. Trata-se, de resto, de sentença contra incertos chamados à lide editalmente, o que desde logo lhe retira força de caso julgado erga omnes(…). Este ponto de vista tem fundas raízes jurisprudenciais(…) e doutrinais(…) e, que se conste, não tem sofrido contradição alguma.

É, assim, de concluir que «em qualquer altura pode, pois, o herdeiro vir reclamar a herança, sem prejuízo, é claro, da prescrição [usucapião] que se tenha verificado. Para esse efeito há-de propor acção de processo comum. 

E pode dirigi-la, ou contra o Estado, a pedir a entrega do que este haja recebido, ou contra os adquirentes dos bens, a reivindicá-los, ou contra aquele e estes […]». 

E é claro que, e na acção anterior, cujo caso julgado é invocado pelo Apelante,  foi intentada contra incertos e não contra os ora AA., estes não estão vinculados pela sentença que aí julgou vaga a herança para o Estado, e podem intentar acção em que reivindiquem a herança, justificando a respectiva qualidade de herdeiros, sem que se lhes impute, por não instaurarem recurso de revisão da referida sentença, quer a excepção da autoridade do caso julgado, quer a nulidade do erro na forma de processo, ou no meio processual empregue. O Apelante invoca, mas sem relevância para o presente caso, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 21/12/2021 (Apelação n.° 131/21.3T8PDL.L1-7).

Sem relevância, porque nesse aresto – que não versava, uma situação de demanda de incertos na acção cujo trânsito em julgado se invocava - para a afirmação da autoridade do caso julgado, também não se dispensou a existência de identidade de sujeitos, afirmando-se que a mesma existia porque a acção posterior fora proposta pelo autor da anterior acção e pelos sucessores da sua mulher, também autora na 1ª acção, mas, entretanto, falecida. É a hipótese que também se refere no item “II” do sumário do Acórdão do STJ, de 30/11/2021, acima citado, mas que aqui não se verifica, da consideração de identidade das partes, não só, quando estas, no novo processo, forem as próprias pessoas que pleitearam no outro, como, também, forem “…sucessores delas (entre vivos ou mortis causa), na relação controvertida: herdeiros, legatários, donatários, compradores, cessionários.” (Manuel de Andrade, “in” Noções Elementares de Processo Civil, 1979, págs. 309 e 310).

Do exposto resulta, que, na sentença recorrida, julgando-se improcedentes, quer a excepção da violação da autoridade do caso julgado, quer a nulidade, por erro na forma de processo, decidiu-se correctamente.

Parece-se-nos claro que, não se estando em sede de recurso de revisão, desinteressa saber se o mesmo seria, ou não, tempestivo, v.g., à luz do fundamento previsto no artº 696, c), do NCPC.

Sustenta o Apelante; «[…] Ainda que se entenda que tal acto não consubstancia um erro no meio processual, o que apenas por mera hipótese académica se equaciona, sempre se dirá que a lei não admite a prática de tal acto, pelos motivos aduzidos, gerando uma irregularidade que influi no exame e decisão da causa, o que determina a sua nulidade, nos termos dos artigos 195.°, n.° 1, 196.°, 577.°, alínea b), 278.°, n° 1, alínea b), 576.°, n.°s 1 e 2 e 578.°, todos do Código de Processo Civil, o que aqui expressamente se invoca. […]».
E acrescenta:

«[…] Por outro lado, em ultima ratio, a prática de tal acto sempre consubstanciará uma excepção dilatória inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos dos artigos 576.°, 577.° no segmento “entre outras” e 278.°, n° 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil, o que aqui também se invoca. […]».

Ora, tomando a expressão “tal acto”, como a dedução da presente acção em lugar da interposição de recurso de revisão da sentença de 13/10/2020, apenas cumpre observar que, tendo-se concluído que não cabia aos AA interpor o dito recurso, a instauração da presente acção e o processamento subsequente, com términus na prolação da sentença recorrida, não configura nulidade, v.g., a prevista no artº 195.°, n.° 1, do NCPC, nem qualquer “excepção dilatória inominada”.

A acção de petição de herança, em que a causa de pedir “…consiste na sucessão “mortis causa” e na subsequente apropriação por outrem da massa hereditária…”6, caracteriza-se pelos pedidos do reconhecimento do direito da qualidade sucessória, e o da consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou, por outro título, ou mesmo sem título (artº 2075º, do CC).

A cumulação de outros pedidos – como os que os AA. fizeram - que sejam consequentes daqueles, ou que lhes dêem utilidade, não descaracteriza uma tal acção.

O Apelante não discordou da factualidade provada, nem da subsunção dos factos ao direito, sendo nosso entendimento que, na sentença “sub judice” - para a qual aqui se remete - enunciando-se devidamente as questões a resolver, foram estas, sem infracção das normas que o Apelante diz terem sido violadas, solucionadas correctamente e com fundamentação adequada.

A conclusão a extrair daquilo que ficou dito, é a de que se decidiu acertadamente na sentença recorrida, nada mais restando, senão, confirmando tal decisão, negar procedência à Apelação." 

[MTS]

15/01/2025

Jurisprudência 2024 (84)


Processo de inventário;
verificação do passivo; efeito cominatório


1. O sumário de RL 18/4/2024 (13381/22.6T8LSB-A.L1-6) é o seguinte:

I. Entre os interessados directos da partilha, no âmbito de processo especial de inventário, existe situação de litisconsórcio necessário legal.

II. O artigo 1106º do Código de Processo Civil enuncia de forma expressa o efeito cominatório da não impugnação por alguns dos interessados directos das dívidas relacionadas, que é o de estas serem reconhecidas, relativamente à quota-parte dos interessados que as não impugnem, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574º do mesmo Código.

III. Não sendo aplicada a excepção do art.º 568º, a) do Código Processo Civil a esse efeito.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Em causa neste recurso encontra-se a interpretação a dar ao disposto no art.º 1106º do Código de Processo Civil, que dispõe o seguinte:

Artigo 1106.º
Verificação do passivo
1 - As dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574.º, devendo a sentença homologatória da partilha condenar no respetivo pagamento.
2 - Se houver interessados menores, maiores acompanhados ou ausentes, o Ministério Público pode opor-se ao seu reconhecimento vinculante para os referidos interessados. (…).
4 - Se houver divergências entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida, aplica-se o disposto nos n.ºs 1 e 2 relativamente à quota-parte dos interessados que a não impugnem e quanto à parte restante observa-se o disposto no número anterior. (…).

Invoca o recorrente que a revelia, emergente da falta de oposição ao passivo da herança, por alguns dos interessados (tendo sido deduzida oposição pelos restantes), não tem efeito operante, face ao disposto no art.º 568º, a) do Código de Processo Civil e sendo caso de litisconsórcio necessário.

É verdade que, entre os interessados directos da partilha, no âmbito de processo especial de inventário, existe situação de litisconsórcio necessário legal.

Contudo, essa constatação permite a aplicação da excepção do art.º 568º, a) do citado Código ao efeito cominatório emergente da falta de oposição ao passivo relacionado, por alguns dos interessados? Parece-nos que não, pelas seguintes razões:

Tal como nos dizem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres [O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, pág. 8.] “O novo modelo do processo de inventário assenta em fases processuais relativamente estanques e consagra um princípio de concentração dado que fixa para cada ato das partes um momento próprio para a sua realização.”

Explicam estes autores que, no modelo ora instituído, o processo de inventário para fazer cessar a comunhão hereditária, comporta as seguintes fases:

- Uma fase dos articulados na qual as partes, para além de requererem instauração do processo, têm de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respectivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, activo e passivo, que constitui objecto da sucessão. Esta fase abrange a subfase inicial (art.ºs 1097º a 1002º) e a subfase da oposição (art.ºs 1104º a 1107º). No articulado de oposição devem os interessados impugnar concentradamente todas as questões que podem condicionar a partilha, nomeadamente, apresentar reclamação à relação de bens (vd. art.º 1104º).

- A fase de saneamento, na qual o juiz, após a realização das diligências necessárias – entre as quais se inclui a possibilidade de realizar uma audiência prévia – deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar e também proferir despacho sobre a forma da partilha.

- A fase da partilha onde ocorrerá a conferência de interessados na qual se devem realizar todas as diligências que culminam na realização da partilha.

Sendo que, por via do disposto no art.º 549º, nº 1 do mesmo Código, à tramitação do inventário são aplicáveis as disposições da parte geral desse Código, bem como as regras do processo civil de declaração que se mostrem compatíveis com o processo de inventário judicial.

“Abandonada a experiência subsequente de atribuição aos cartórios notariais da competência exclusiva para a tramitação dos inventários, tendo em conta os frustrantes resultados, a nova regulamentação foi orientada pelo objetivo de modernizar tal processo especial contribuir para a resolução célere e justa de partilhas litigiosas. Para tal, considerou-se, desde logo, impor ao requerente (seja ou não cabeça de casal) o ónus de alegar e demonstrar os factos mais relevantes, de modo que, citados, os demais interessados, possam exercer o seu direito de defesa em toda a amplitude, mas com efeitos preclusivos, tornando mais eficiente a tramitação, mediante a concentração dos atos em cada uma das diversas fases processuais. Não se compreendendo, aliás, a persistência no campo do processo civil de um “enclave” no qual as regras processuais pudessem ser manipuladas em função das conveniências de ordem meramente particular; ao invés, o facto de no inventário se conjugarem diversos interesses exige a fixação de regras que, embora sem uma absoluta rigidez formal, contribuam para a resolução oportuna das diversas questões e, a final, para a concretização de partilhas justas e equilibradas, num prazo razoável. Neste novo cenário, o requerimento inicial assemelha-se a uma verdadeira petição inicial”, como se decidiu no Acórdão da Relação de Guimarães, de 2/6/2022, disponível em www.dgsi.pt.

Feitas estas considerações genéricas, vejamos a situação em concreto.

Em primeiro lugar, um argumento lógico: a concordarmos com a tese do recorrente, o disposto no nº 4 do art.º 1106º, supra citado, nunca teria aplicação, pelo que esta norma seria inútil.

Na medida em que a situação nele descrita – pluralidade de interessados em inventário, sendo que nem todos impugnam o passivo relacionado – será sempre uma situação de litisconsórcio necessário.

Afastando-se o efeito cominatório emergente da falta de oposição, nunca seria aplicável o disposto no nº 1 do mesmo preceito, logo, esvaziaríamos de conteúdo a remissão operada pelo referido nº 4.

Em segundo lugar, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 549.º do Código citado, os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum;

Ora, no âmbito do processo especial de inventário, o n.º 4 do artigo 1106.º dispõe, expressamente, que quanto ao reconhecimento da dívida, aplicam-se os n.ºs 1 e 2 do mesmo preceito, relativamente à quota parte dos interessados que a não impugnem.

«(…) no novo regime do inventário, foi introduzido um ónus de contestação do requerimento inicial (art.ºs 1104.º e 1106.º) e um ónus de resposta à contestação (art.º 1105.º, n.º 1), o que implica, como efeito cominatório para a falta de resposta ao requerimento inicial ou à oposição, a aceitação dos termos desse requerimento inicial ou dessa oposição. Passa, assim, a vigorar um verdadeiro sistema de preclusões, até agora inexistente, no processo de inventário», como referem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, ob. cit., pág. 43.

Em terceiro lugar, a remissão para o disposto no art.º 574º, nº2 implica que a não impugnação das dívidas relacionadas só importa reconhecimento se não estiverem em oposição com a pronúncia considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre as mesmas ou se só puderem ser provadas por documentos escrito (neste sentido, João Espírito Santo, Revista de Direito Comercial, 16/02/2021).

Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, em anotação ao artigo 574º, “não opera o ónus de impugnação quanto aos factos que careçam de ser provados por documento escrito. Apesar de, em matéria de declaração negocial vigorar o princípio da consensualidade ou da liberdade de forma (art.º 219º do CC), há diversas situações em que a lei exige, sob pena de nulidade (art.º 220º do CC) documento escrito ou uma formalidade ainda mais solene para a celebração de certos negócios, o que constitui um requisito ad substanciam (cf. entre outros 875, 947, 1143 e 1250) (…). (…) nestes casos ainda que o réu não impugne esse facto, nem por isso se dará como assente tal negócio.”

Efectivamente de acordo com o n.º 2 do citado artigo 574º, há situações em que falta de impugnação de um facto não pode implicar a confissão tácita dele, quando o mesmo esteja em inequívoca contradição com o que resulta da defesa globalmente considerada, sendo que no caso essa contradição está em oposição com a decisão tomada em relação à existência ou não da dívida e das situações acabadas de referir.

Mas trata-se da única excepção ao efeito cominatório expresso no nº 4 do art.º 1106º, quanto aos interessados que não impugnem o passivo, não lhe sendo aplicável o disposto no art.º 568º, a), ambos do Código de Processo Civil.

Seguindo esta posição, veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães de 25/5/2023 (Conceição Bucho), disponível em www.dgsi.pt:

I - O artigo 1106º do Código de Processo Civil enuncia de forma expressa o efeito cominatório da não impugnação pelos interessados directos das dívidas relacionadas, que é o de estas serem reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574º.
II - Se um dos interessados impugnar a dívida, a não impugnação das dívidas relacionadas pelos demais interessados só importa reconhecimento se não estiverem em oposição com a pronúncia considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre as mesmas ou se só puderem ser provadas por documentos escrito, nos termos do disposto no artigo 574 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do n.º 1 do artigo 1106, 2ª parte."

[MTS]


14/01/2025

Paper (520)


-- Davies, Ben, Ethics in Artificial Intelligence and Alternative Dispute Resolution: Generating AI/Human Reviewed Ethical Guidelines for ADR Practitioners and the Legal Profession (SSRN 06.2024)


Jurisprudência 2024 (83)


Transacção:
sentença homologatória; apelação


1. O sumário de RL 18/4/2024 (1821/22.9T8ALM.L1-6) é o seguinte:

I- Pode haver recurso de apelação da sentença homologatória duma transação, o qual apenas pode incidir sobre um vício da própria decisão homologatória, não cabendo no objeto do recurso a apreciação de eventual vício da vontade; se a parte pretender arguir a nulidade ou peticionar a anulação da transação os meios adequados são os previstos no art.º 291º/1 e 2 do CPC.

II- A invocação da falta de manifestação de vontade por parte da autora-recorrente quanto à transação que foi homologada por sentença constitui um vício da decisão homologatória, suscetível, portanto, de fundamentar o recurso da sentença.

III- Não basta que na ata da audiência final conste que a parte estava presente para que se considere que deu o seu acordo à transação que foi homologada; é necessário que conste ou, pelo menos, resulte da ata que a parte cujo mandatário não tinha poderes para o ato declarou que concordava com os termos do negócio jurídico.

IV- Não resultando da ata que o legal representante da recorrente deu o seu acordo à transação que foi homologada, verifica-se a nulidade decorrente da falta de poderes do mandatário judicial, que decorre da violação do art.º 45º/2 do CPC.

V- Tal nulidade é sanada pela forma prevista no art.º 291º/3 do CPC.


2. O acórdão tem o seguinte voto de vencida:

"1. Na acta lê-se que feita a chamada para a audiência final estavam presentes o legal representante da autora JF, Unipessoal, Lda, JF e a ré HV;

2. Na acta consta, ao que agora importa: «Retomada a presente audiência de Julgamento às 10H50, foi logo de seguida pelas partes declarado terem chegado a acordo nos seguintes termos» e «Atento o objeto da presente ação, a qualidade dos intervenientes, que para o efeito têm legitimidade e os necessários poderes, bem como o cumprimento da forma legal, julgo válida a transação (…)»;

3. Ora, não foi deduzido incidente de falsidade da acta, pelo que considero inaceitável que neste acórdão seja colocado em dúvida que a senhora juiz se tenha bastado com a transmissão do teor da transacção pelos mandatários sem a presença de JF, legal representante da autora, apesar de o mandatário não estar munido de procuração com poderes especiais para transigir;

4. Ainda assim, procedi à audição da gravação da diligência e dela é perceptível que as próprias partes – não só os mandatários – estavam presentes quando a senhora juiz ditou para a acta o teor da transacção e a homologou, pois terminou a diligência dizendo «Por hoje é tudo, muito bom dia, bom dia às partes também»;

5. O Código de Processo Civil contém a disciplina sobre a realização da transacção, pelo que não há que convocar normas do Código do Notariado;

6. No dispositivo do acórdão consta: «decide-se julgar procedente o presente recurso de apelação, em função do que se ordena a notificação pessoal da sentença homologatória da transação proferida nos autos à autora-recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 291º/3, do CPC, após o que se seguirão os ulteriores termos do processo, em conformidade com a atitude que a mesma vier a oferecer na sequência de tal notificação, como previsto no citado preceito»;

7. Porém, a apelante já expressou não querer aquela transacção e por isso vem pedido: «revogando-se a douta sentença homologatória, devendo os autos prosseguir para julgamento.»,

7. [8] Pelo que tal notificação configura acto inútil que o tribunal não deve praticar (cfr art.º 6º do CPC);

8. [9] Por fim, o que resulta da alegação recursiva é que o legal representante da apelante se arrependeu de ter celebrado a transacção, que aceitou fazer por lhe ter sido transmitido que não poderia fazer prova por falta de pagamento de taxa de justiça e de multa, e pretende que seja realizado o julgamento, tendo agora outro mandatário."

[MTS]


13/01/2025

A importância da determinação adequada do objecto da prova


1. O sumário de um acórdão de uma das Relações é o seguinte:

I - Numa ação de alimentos, o autor/alimentando pode exercer o seu direito perante qualquer dos obrigados, não lhe competindo provar a impossibilidade económica daqueles que precedem o demandado na ordem legalmente estabelecida (art. 2009º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Civil).

II - Nada obsta, por isso, que aquele demande apenas os filhos, para deles exigir a prestação dos alimentos de que carece.

III - Cabe aos demandados invocar (e provar) a excepção da existência de um obrigado anterior e a subsidiariedade da sua obrigação, designadamente que o ex-cônjuge do autor possui meios para lhe prestar alimentos.

Para melhor se perceber o que está em causa, transcreve-se este pequeno trecho que consta da fundamentação do acórdão:

"[...] pretendendo o Autor recorrente exercer o seu direito de alimentos e tendo diretamente demandado os seus dois filhos, abstendo-se de demandar o seu-ex-cônjuge, competirá aos demandados invocar – e demonstrar – a excepção da existência de um obrigado anterior e a sua subsidiariedade da sua obrigação, ou seja, de que o ex-cônjuge do autor está em condições de lhe poder prestar alimentos. Só assim se tornará inviável aferir a capacidade económica dos demandados para prestar alimentos ao seu progenitor. E não como fez o Tribunal recorrido, que erigiu como prevalecente a alegação (e prova) de que o ex-cônjuge do autor não tinha meios económicos suficientes para satisfazer a peticionada prestação de alimentos.

De resto, nenhum sentido faria que o autor demandasse o ex-cônjuge quando reconhece que o mesmo está impossibilitado de prestar alimentos".

Salvo o devido respeito, discorda-se da solução adoptada no acórdão.

2. a) Antes do mais, parece haver um forte argumento legal contra a orientação defendida no acórdão. Recorde-se que o art. 2009.º, n.º 3, CC estabelece que, "se algum dos vinculados não puder prestar alimentos ou não puder saldar integralmente a sua responsabilidade, o encargo recai sobre os onerados subsequentes". Não pode admirar que assim suceda, dado que o estabelecido não é mais do que uma consequência da escala de vinculados à prestação alimentícia. Tudo isto claramente indicia que não se passa para outros vinculados "subsidiários" à satisfação do crédito de alimentos antes de estar apurado que devedores "prioritários" não podem satisfazer esse crédito. Portanto, respondem primeiro certos vinculados, e só depois outros. Aliás, o mesmo se pode dizer do disposto no art. 2009.º, n.º 2, CC.

Seja como for, não parece muito razoável que se entenda que o credor de alimentos pode demandar um dos obrigados que constam da escala definida no art. 2009.º, n.º 1, CC e que na acção se apure se é necessário "subir" nessa escala e procurar um responsável "prioritário". A "ordem indicada" no art. 2009.º, n.º 1, CC é relevante para determinar quem é que tem legitimidade para ser demandado na acção de alimentos, pelo que há que respeitá-la.

É, aliás, muito discutível que a insuficiência económica seja um critério a considerar na aferição da legitimidade processual. O melhor entendimento parece ser o de que se demanda quem tem legitimidade para ser demandado segundo a escala definida no art. 2009.º, n.º 1, CC e que se determina depois, na apreciação do mérito, se essa parte tem capacidade económica para satisfazer o crédito de alimentos. Isto é: a capacidade económica do demandado não é um factor determinante para a aferição da legitimidade processual (esta é aferida pela ordem estabelecida no art. 2009.º, n.º 1, CC), mas antes para a procedência ou improcedência do pedido de alimentos contra a parte demandada.

Também não parece muito feliz o argumento avançado no acórdão de que, no caso concreto, não valia a pena demandar o ex-cônjuge, porque o próprio credor "reconhece que o mesmo está impossibilitado de prestar alimentos". O "reconhecimento" pelo autor fora da acção do que quer que seja nunca pode ser relevante para a determinação da legitimidade passiva em qualquer acção.

b) Em conclusão: a legitimidade processual passiva para a acção de alimentos é determinada pelo disposto no art. 2009.º, n.º 1, CC; aferir se o demandado tem capacidade económica para saldar o crédito de alimentos é um aspecto relativo ao mérito da acção.

 
3. a) Para além das razões legais acima aduzidas, há uma razão ligada ao objecto da prova que também infirma a solução defendida no acórdão. A razão é a seguinte: é muito mais razoável que a parte demandada tenha de provar a sua incapacidade económica para satisfazer o direito de alimentos do demandante do que provar que um responsável não demandado tem condições económicas para satisfazer aquele direito do demandante. Não está em causa que o ónus da prova pertence ao demandado (distribuição do ónus da prova); o que está em causa é saber o que esse demandado tem o ónus de provar (objecto da prova).

O que é lógico é que a parte demandada faça prova de um facto pessoal ("eu não tenho capacidade económica para satisfazer o crédito de alimentos"), não que essa parte tenha de provar um facto alheio ("quem tem capacidade económica para satisfazer o crédito de alimentos é outra pessoa"). Logo, quem deve ser demandado é quem tem de provar um facto pessoal, não quem tem de provar um facto alheio. Isto confirma que, no plano da legitimidade processual, se deve seguir a ordem estabelecida no art. 2009.º, n.º 1, CC e conduz a que cabe ao demandado provar que não tem condições económicas para satisfazer o crédito de alimentos e que, por isso, a acção não pode proceder contra ele.

A Relação aceitou que dois devedores "subsidiários" pudessem ser demandados na acção de alimentos em detrimento de um devedor "prioritário" (isto é, reconheceu que esses demandados eram partes legítimas) e definiu o objecto da prova em função desses demandados (a estes demandados cabe provar que um devedor "prioritário" tem possibilidade de satisfazer o crédito alimentício). O que, salvo melhor opinião, a Relação devia ter feito era precisamente o contrário: entender que não faz sentido exigir que os demandados provem que o devedor "prioritário" (terceiro em relação à acção) tem capacidade económica para satisfazer o crédito alimentício e que, por isso, nunca esses demandados podiam ser reconhecidos como partes legítimas.

Aliás, nem se vê muito bem como é que os demandados na acção de alimentos conseguiriam provar que um não demandado (ou seja, um terceiro em relação à acção) tem condições económicas para cumprir a obrigação de alimentos. Note-se que não se trata de provar, por exemplo, que, ao contrário do que o demandante invoca, um devedor "prioritário" ainda não faleceu; trata-se de demonstrar que um terceiro tem possibilidade de satisfazer um crédito de alimentos. Para isso é necessário conhecer, entre muitos outros aspectos, não só as fontes de rendimento do terceiro, mas também a sua situação familiar e respectivos encargos e ainda a eventual prestação de alimentos a outrem.

Mesmo o disposto no art. 432.º CPC quanto à entrega de documentos em poder de terceiro é certamente inaplicável quando se trata de determinar se esse terceiro é titular de uma dívida perante o demandante; para isso, o terceiro tem de ser parte numa acção. Quer dizer: aceitar que possa ser demandado um alegado devedor que fica com o ónus de provar que um terceiro, porque tem para tal capacidade económica, é o verdadeiro responsável pela dívida alimentícia é fazer depender a improcedência da acção contra esse demandado de uma probatio diabolica

Acresce que não se vê qual a utilidade prática de definir numa acção que um terceiro (e não o demandado) é responsável pela satisfação de um crédito de alimentos. Como é claro, qualquer decisão neste sentido sempre seria inoponível ao terceiro não demandado, pelo que numa eventual posterior acção teria de se começar tudo de novo e poder-se-ia vir a proferir uma decisão contraditória com a anterior absolvição.

b) Perante a falta da demanda de um devedor "prioritário" (in casu, o ex-cônjuge do credor demandante), o que a Relação devia ter reconhecido era a ilegitimidade dos devedores demandados e tê-los absolvido da instância (como, aliás, eles alegaram e pediram). Em vez disso, a Relação não só não questionou a legitimidade dos demandados, como lhes impôs, como condição de improcedência da acção, a prova de que esse devedor "prioritário" tinha capacidade financeira para suportar os alimentos. Não se pode acompanhar esta solução. 


4. Importa ainda resolver uma outra questão: é possível admitir a intervenção, a pedido dos demandados "subsidiários", do terceiro eventualmente responsável, como devedor "prioritário", pelo crédito de alimentos? 

Atendendo a que o que está em causa é uma alternatividade entre devedores -- apenas o demandado ou o devedor "prioritário" pode ser responsabilizado pelo crédito de alimentos --, pode defender-se a aplicação analógica do disposto no art. 316.º, n.º 2, CPC com base no seguinte argumento: tal como o estabelecido no art. 39.º CPC quanto ao litisconsórcio subsidiário pode ser aplicado, por analogia, a um litisconsórcio alternativo, também o disposto no art. 316.º, n.º 2, CPC pode ser aplicado à intervenção de um litisconsorte alternativo.

A admissibilidade desta intervenção (que, aliás, o acórdão não reconheceu) não se destina a permitir que o demandado inicial prove que o litisconsorte interveniente tem capacidade financeira para satisfazer o crédito de alimentos, mas antes a permitir, antes de tudo o mais, que o interveniente, como devedor "prioritário", prove que não tem capacidade financeira e que, por isso, a acção não pode proceder contra ele. Portanto, a admissibilidade da intervenção do devedor "prioritário" é totalmente compatível com o que acima se defendeu.


5. Em conclusão: 

-- Quer o disposto no art. 2009.º, n.º 3, CC, quer uma determinação adequada do objecto da prova indicam que o demandado tem de provar que não tem capacidade económica para satisfazer o crédito alimentício; logo, deve ser demandado quem tem legitimidade processual segundo o disposto no art. 2009.º, n.º 1, CC e que, logicamente, pode provar a sua insuficiência económica;

-- A não se entender assim, desconsidera-se a ilegitimidade do demandado e impõe-se a esta parte, como condição para conseguir a improcedência da acção, uma probatio diabolica quanto à demonstração de que um terceiro tem capacidade económica para satisfazer o crédito alimentício; ainda por cima, a eventual decisão de improcedência da acção não tem nenhum efeito prático, dado que o que se decide na acção nunca será oponível ao terceiro que nela não foi demandado.

MTS


Jurisprudência 2024 (82)


Litigância de má fé;
falta de poder jurisdicional; inexistência jurídica*


1. O sumário da RP 18/3/2024 (63556/21.8YIPRT.P1) é o seguinte:

I – A apreciação da litigância de má-fé deve ocorrer até à decisão final do processo, apenas se podendo relegar para momento posterior a determinação da indemnização que tenha sido pedida pela parte contrária, se não houver elementos para a fixar logo na sentença.

II – O despacho proferido já depois da sentença final que aprecie a referida litigância nessas circunstâncias será juridicamente inexistente por estar esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria da causa.

III – Só assim não será se o comportamento processual a apreciar for posterior à referida sentença, caso em que deverá ser apreciado até à decisão que puser termo ao incidente em que esse comportamento se inseriu.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Tal como supra se referiu a primeira questão que cumpre apreciar e decidir prende-se com:

a)- saber se após a prolação da sentença ficou, ou não, esgotado o poder jurisdicional do tribunal para apreciar a litigância de má fé por banda do Réu.

O recorrente defende que a decisão que o condenou como litigante de má fé é nula por excesso de pronúncia na medida em que conheceu de uma questão (a litigância de má fé) de que já não podia tomar conhecimento uma vez que tinha sido proferida sentença onde a questão não foi decidida e com esse ato esgotou-se o poder jurisdicional do juiz.

E, salvo melhor entendimento, assiste razão ao recorrente. [Alteramos, assim, a nossa posição em relação ao Ac. prolatado no processo nº 2432/18.9 T8GDM.P1 em que interviemos como segundo adjunto.]

A questão supra enunciada não é nova, mas não tem merecido uma resposta unânime na jurisprudência dos Tribunais da Relação, no entanto, pensamos ser maioritária, pelo menos no Tribunal da Relação do Porto, a jurisprudência que preconiza a tese aqui defendida pelo recorrente, a qual também merece a nossa aceitação.

Nos termos do preceituado no artigo 613.º, nº 1, do CPCivil proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ressalvando-se os casos de retificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença (cfr. nº 2 do mesmo preceito). [...]

Como assim, é inerente à natureza/essência do processo que, proferida a sentença, fique imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 613.º, n.º 1, CPC), embora o mesmo possa e deva continuar a exercer no processo o seu poder jurisdicional para resolver as “questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu”. [Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, 1981, volume V, p. 127, em anotação ao art. 666.º do CPC de 1939.]

Significa, portanto, que com a sentença fica precludida a possibilidade de o juiz conhecer de qualquer questão (relativa ao antes processado nos autos) que até esse momento não tenha sido suscitada, oficiosamente ou a requerimento, excetuado o que no n.º 2 do mesmo artigo se dispõe em matéria de retificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença e, por outro lado, o que–em caso de recurso–seja determinado pelo tribunal superior que proceda à anulação da decisão.

A existência do referido princípio (esgotamento do poder jurisdicional) justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.

Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão”. [Cfr. Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 174.]

Como já referia o Prof. Alberto dos Reis [Ibidem], a justificação deste princípio justifica-se por uma razão de ordem doutrinal e por outra de ordem pragmática, a saber:

“Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever–o dever jurisdicional–que é a contrapartida do direito de ação e defesa. (…) E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respetivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.

A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional.(…)

Não há dúvidas de que a questão da litigância de má fé é matéria do conhecimento oficioso, o que bem se compreende porque se trata de um mecanismo que visa regular a disciplina processual e o bom aproveitamento dos recursos afetos ao funcionamento da justiça e à prossecução da verdade que, naturalmente, não podia ficar dependente da vontade das partes.

Acontece que, no momento de proferir a sentença, se as partes tiverem suscitado a questão da litigância de má fé e/ou se entender oficiosamente que tal forma de litigância teve lugar, o juiz deve pronunciar-se sobre mesma a nessa ocasião, condenando a parte que litigou de má fé em multa.

O que significa, portanto, que o juiz só deve deixar de se pronunciar se ninguém lhe colocou a questão e entender que não houve litigância de má fé, não carecendo de justificar, pela negativa, que tal forma de litigância não ocorreu.

Efetivamente, se a litigância de má fé respeita à atuação processual anterior à sentença ela já se encontra evidenciada nos autos; trata-se nesse caso de uma questão a decidir e que não poderá deixar de o ser em virtude do esgotamento do poder jurisdicional subsequente à pronúncia da sentença.

O que poderá acontecer, é não ser ainda possível decidir o “quantum” indemnizatório que o litigante de má fé deve pagar à parte contrária, pelo que, só nessa eventualidade e para essa finalidade estrita a lei processual admite no n.º 3 do artigo 543.º do Código de Processo Civil que a fixação desse segmento da condenação como litigante de má fé seja relegada para momento posterior.

Já o Prof. Alberto dos Reis [In Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, 1981, Vol. II, pág. 281, em anotação ao artigo 466º do Código de Processo Civil de 1939.] se pronunciava nesse sentido afirmando: “A apreciação da má fé e a condenação em multa e indemnização não pode o juiz relegá-las para depois da sentença; é nesta que há-de decidir se o litigante procedeu de má fé; é aí que, em caso afirmativo, há-de condená-lo em tal multa e indemnização; o que pode e deve deixar para depois da sentença é a fixação do quantitativo da indemnização (…)”.

No mesmo sentido, Lebre de Freitas [In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2001, pág. 200.], refere: “Havendo elementos suficientes para tanto, deve ser fixada a indemnização que deles resulte. Não havendo, o juiz, ouvidas as partes, fixará, já depois da sentença em que profira a condenação por má fé, mas nos autos da acção, aquilo que, no seu prudente arbítrio, lhe pareça razoável, não havendo assim lugar para a condenação no se liquidar em execução de sentença”.

Já assim não será se, após a prolação da sentença ou despacho que pôs termo ao processo for deduzido algum incidente (p. ex. reclamação da conta, reforma da sentença, fixação do efeito do recurso, prestação de caução, etc.) em cuja dedução ou oposição venha a existir litigância de má fé.

Nessa situação, a conduta enquadrável como litigância de má fé deriva de uma atuação processual posterior à sentença e a apreciação da mesma terá de ser feita na decisão final do incidente no qual ela tenha sido praticada e, ainda assim, com fundamento apenas na atuação posterior à sentença, não sendo, mesmo nessa situação, admissível que o juiz revisite a tramitação anterior à sentença para a qualificar e sancionar como litigância de má fé.

A questão que importa agora dilucidar é se o juiz pode fazer tábua rasa deste dever (de decidir na sentença todas as questões que deve conhecer) e contornar o impedimento decorrente da prolação da sentença determinando, imediatamente, a seguir a esta a notificação das partes para se pronunciarem sobre a eventualidade de uma delas ser condenada como litigante de má fé como, aliás, sucedeu no caso presente.

Entendemos que a resposta deve ser idêntica. [...]

Como bem se refere no Ac. desta Relação de 05/12/2021 [Processo nº 1211/14.7TBMTS.P1, consultável em www.dgsi.pt.] (que aqui seguimos de perto) “Admitir que chegado à sentença, o juiz anteveja a possibilidade de condenar a parte como litigante de má fé e, mesmo assim, em vez de fazer o que a lei processual determina (que cumpra previamente o contraditório e depois na sentença profira decisão sobre essa questão), ordene a notificação das partes para se pronunciarem sobre essa eventualidade, relegando a decisão sobre a litigância de má fé para um momento em que o seu poder jurisdicional já se encontra esgotado, seria, bem vistas as coisas, permitir-lhe alterar o objeto da sentença e excluir uma das causas de nulidade desta.

Portanto, se se der essa circunstância, o que o juiz tem de fazer é sobrestar a prolação da sentença e exercer o contraditório que estiver por cumprir e sem o qual ainda não pode decidir a questão. Não o fazendo, a decisão que, depois da sentença, vier a proferir sobre a litigância de má fé não deixa de enfermar de nulidade por conhecer de questão de que nesse momento o juiz já não pode conhecer”.

No caso concreto, decorre do relatório supra e do teor da sentença proferida pela primeira instância o pedido de condenação do Réu como litigante de má-fé foi formulado antes da prolação da sentença, com fundamento no anterior comportamento processual daquela parte, e, por assim ser, o Tribunal recorrido devia ter apreciado e decidido aquele pedido na sentença, e não em despacho posterior. [...]

Não se questiona, naturalmente, a necessidade de assegurar o contraditório, tido pelo legislador em princípio basilar e estruturante do atual processo civil, como decorre do comando geral do artigo 3.º, n.º 3, do CPCivil.

Acontece que, o Tribunal recorrido sempre poderia ter dado imediata e expressamente a palavra ao mandatário do Réu para se pronunciar, querendo, sobre a alegada litigância de má-fé e, se tal se justificasse, poderia ter interrompido a audiência pelo tempo que necessário para a autora responder.

O que não podia, a nosso ver, era depois de ter encerrado a audiência e proferido a sentença, conceder prazo para a parte se pronunciar sobre uma questão que “deixou pendente” e apreciá-la posteriormente em despacho autónomo, ainda que ao abrigo dos poderes de gestão processual (artigo 6.º do CPC) e de adequação formal (artigo 547.º do CPC), pois estes não permitem modificar o objeto da sentença afastando as consequências do artigo 613.º do CPC. [...]

*
Aqui chegados a questão que agora importa dilucidar é qual o concreto vício que afeta o despacho que, em violação de lei, assim tiver sido proferido?

Debruçando-se sobre a questão, o STJ [Cfr. Ac. de 06-05-2010 in www.dgsi.pt.], apelando aos ensinamentos dos Srs. Profs. Paulo Cunha e Castro Mendes, entendeu que o vício aqui em causa é o da falta de poder jurisdicional de quem profere, neste caso concreto, despacho modificativo de decisão anteriormente proferida, gerando a sua inexistência jurídica.

  Na verdade, como refere o Prof. Castro Mendes [In Direito Processual Civil, edição policopiada da AAFDL, vol. III, 1973, pg. 369.] embora o legislador tenha traçado um apertado numerus clausus das nulidades da sentença/acórdão, aplicáveis também, até onde seja possível, aos despachos jurisdicionais (artigo 613.º, nº 3 do CPCivil), a verdade é que outros vícios podem afetar as decisões judiciais, englobando categorias diferentes, que Castro Mendes classificava como vícios de essência, de formação, de conteúdo, de forma e de limites.

O referido Mestre denominava de vícios de essência, aqueles que, atingindo a sentença nas suas qualidades essenciais, a privam até da aparência de acto judicial e dão lugar à sua inexistência jurídica (ibidem).

Por sua vez Prof. Paulo Cunha [In Da Marcha do Processo: Processo Comum De Declaração, Tomo II, 2ª edição, pg. 360.] dava vários exemplos de casos de inexistência jurídica de sentenças, sendo um deles, quanto ao que ora nos interessa, o de a sentença (despacho) ser proferida por quem não tem poder jurisdicional para o fazer e o de, já depois de lavrada a sentença no processo, o juiz lavrar segunda sentença. [Tal posição mereceu, aliás, a discordância do Prof. Alberto dos Reis, Idem, pag. 113 e ss.]

Portanto, a sentença (despacho) inexistente, no dizer do Prof. Alberto dos Reis [Idem, pag. 114.], é um mero ato material, um ato inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com a aparência de sentença, mas absolutamente insuscetível de vir a ter a eficácia jurídica da sentença. [Em sentido diferente, defendendo uma interpretação extensiva, do preceituado no art. 615.º, n.º 1 al. d) do CPC, enquanto nulidade por excesso de pronúncia, vide Ac. da RG de 02/06/2016 já citado, mas com um voto de vencido.]

*3. [Comentário] Sobre o assunto discutido no acórdão, pode ver-se Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil I (Lisboa 2022), 629.

MTS