"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/07/2025

Jurisprudência 2024 (215)


Procedimento de injunção;
oposição ao requerimento; preclusão


1. O sumário de RP 19/11/2024 (5149/23.9T8PRT-A.P1) é o seguinte:

Não tendo a embargante apresentado oposição ao requerimento de injunção na qual poderia ter invocado a prescrição dos créditos reclamados, não pode mais invocá-la em sede de embargos à execução, por força da preclusão prevista no art. 14º-A nº 1 do DL nº 269/98 de 1.09, conforme determina o art. 857º nº 1 do CPC.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na sentença recorrida, o tribunal considerou inquestionável que a dívida exequenda era consubstanciada por “quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros”, pelo que a situação jurídica em causa estava sujeita à disciplina do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2022, de 22 de Setembro, (DR n.º 184/2022, Série I, de 22-09-2022), que fixou jurisprudência nos termos seguintes: 

I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas."

Porém, o tribunal concluiu que “… a partir da aposição da fórmula executória, o prazo de prescrição já não é o de 5 anos, mas o prazo ordinário de 20 anos, por força do art. 311º do Código Civil…” E, por isso, julgou improcedente a excepção de prescrição arguida.

Dispõe esse art. 311º do C. Civil, no seu nº 1, que “O direito para cuja prescrição, bem que só presuntiva, a lei estabelecer um prazo mais curto do que o prazo ordinário fica sujeito a este último, se sobrevier sentença passada em julgado que o reconheça ou outro título executivo.”

Todavia, a questão colocada pela embargante, ora apelante, sedia-se a montante da aplicação desta norma, por entender que nestes embargos lhe deve ser admitida a discussão da prescrição que tenderia a obviar ainda à aposição da fórmula executória.

Defende, em suma, que a não arguição da prescrição no âmbito da própria injunção não impede que, já nesta fase, discuta a prescrição do próprio crédito exequendo e não da sua titulação por via da procedência da injunção.

A questão foi debatida no passado, designadamente durante a vigência de uma versão do art. 857º, nº 1 do CPC que consagrava uma limitação dos fundamentos de defesa, perante execução baseada em requerimento de injunção, tida por inaceitável. O Tribunal Constitucional chegou a declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral dessa norma (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 264/2015, de 8 de Junho, Diário da República n.º 110/2015, Série I de 2015-06-08).

Porém, como se salienta nos Acs. deste TRP de 18.11. 2021, (proc. 2918/20.5T8LOU-A.P1), de 16-01-2024 (proc. nº 1171/23.3T8LOU-A.P1) e do TRE, de 07-03-2024, (proc. nº 1610/23.3T8ENT-A.E1), todos publicados em dgsi.pt e cujo teor seguiremos de perto, a questão mostra-se já superada, tendo a disciplina daquele acórdão do TC deixado de ter aplicação.

Com efeito, a Lei 117/2019, de 13 de Setembro, veio alterar quer o teor do art. 857º, nº 1 do CPC, quer o teor do DL nº 269/98 de 1/09, aditando-lhe o art. 14º-A, que passaram a apresentar o seguinte teor:

Art. 857º, nº 1 do CPC “- Se a execução se fundar em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, para além dos fundamentos previstos no artigo 729.º, aplicados com as devidas adaptações, podem invocar-se nos embargos os meios de defesa que não devam considerar-se precludidos, nos termos do artigo 14.º-A do regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na sua redação atual.”

«Artigo 14.º-A do DL nº 269/98 de 1/09 (Efeito cominatório da falta de dedução da oposição): 1 - Se o requerido, pessoalmente notificado por alguma das formas previstas nos nºs 2 a 5 do artigo 225.º do Código de Processo Civil e devidamente advertido do efeito cominatório estabelecido no presente artigo, não deduzir oposição, ficam precludidos os meios de defesa que nela poderiam ter sido invocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - A preclusão prevista no número anterior não abrange:
a) A alegação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso;
b) A alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no artigo 729.º do Código de Processo Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção;
c) A invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas;
d) Qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente.»

Naquele acórdão deste TRP, de 16/1/2024 /proc. nº proc. nº 1171/23.3T8LOU-A.P1), numa situação absolutamente semelhante ao caso dos autos, o conteúdo deste regime foi perfeitamente explicitado, em termos que passamos a citar:

“Nesses casos, como é sabido, o legislador limitou os fundamentos passíveis de serem alegados, em sede de embargos de executado, aos aludidos taxativamente no art. 729º, do C.P.Civil.

“Com efeito, actualmente e dado que o requerimento de injunção em causa foi instaurado a 07.12.2021 [no caso, foi-o em 28/3/2022] e a fórmula executória data de 27.01.2022 [no caso, data de 14/7/2022], a que acresce o facto da notificação efectuada à aqui embargante no referido procedimento de injunção ter sido feita com a cominação resultante do disposto no art. 14º-A, nº 2 do D.L. nº 269/98, de 1 de Setembro (na redacção conferida pela Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro) - vide certidão que antecede emanada do Balcão Nacional de Injunções onde essa circunstância se mostra verificada -, a mesma está limitada aos fundamentos previstos no art. 729º do CPC. Ou, excepcionalmente, as situações elencadas nas als. a), c) e d) desse normativo.

O que os aqui embargantes não fazem pois a excepção de prescrição não é de conhecimento oficioso-artº 303 do CC.

A prescrição de direitos não é de conhecimento oficioso, sendo necessário, para que o tribunal dela conheça, a sua invocação pela parte que dela beneficia – artºs 303º do CC e 496º do Código de Processo Civil.

Assim, não se enquadra a defesa por excepção de prescrição apresentada na ali. d) do artº 14º-A, nº 2 do D.L. nº 269/98.

Com efeito, como resulta ainda do nº 1 do citado art. 14º-A, se o requerido, pessoalmente notificado e devidamente advertido do efeito cominatório previsto no nº 2 dessa mesma disposição legal (o que já vimos que se verificou no caso vertente), não deduzir oposição, ficam precludidos os meios de defesa que nela poderiam ter lugar, sem prejuízo do disposto no referido nº 2. Para além das situações excepcionais previstas nos nºs 2 e 3 do art. 857º, do CP; que também não têm aplicação ao caso dos autos.

Ademais, com essa actual redacção do citado art. 14º-A, nº 2 do D.L. nº 269/98, de 1-09, deixou de ter aplicabilidade o Acórdão do tribunal constitucional nº 714/2014, tirado com força obrigatória geral, uma vez que tem em vista a redacção anterior do D.L. nº 269/98, de 1-09, a qual foi actualmente superada precisamente com a introdução da cominação expressa emanada do art. 14º-A, nº 2. (no mesmo sentido Ac. do TRP de 18.11. 2021 in proc. 2918/20.5T8LOU-A.P1). (…)

Deste modo, da articulação do disposto no art. 857º do CPC com o art. 14º-A do DL nº 269/98 de 1.09, podemos concluir que, poderá a executada, em sede de embargos de executado a execução fundada em requerimento de injunção ao qual foi aposta fórmula executória, invocar os seguintes fundamentos de oposição á execução:

1. fundamentos de oposição à execução baseada em sentença (art. 729º do CPC):
 
a) Inexistência ou inexequibilidade do título;
b) Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução;
c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;
d) Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.º;
e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução;
f) Caso julgado anterior à sentença que se executa;
g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio;
h) Contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos;
i) Tratando-se de sentença homologatória de confissão ou transação, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses atos.

2. fundamentos de defesa que não devam considerar-se precludidos, nos termos do artigo 14.º-A nº 2 do DL nº 269/98 de 1.09:
 
a) A alegação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso;
b) A alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no artigo 729.º do Código de Processo Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção;
c) A invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas;
d) Qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente. (…)

A prescrição dos créditos reclamados no requerimento de injunção ao qual foi aposta fórmula executória consubstancia uma excepção peremptória, que não é de conhecimento oficioso (art. 579º do CPC e art. 303º do CC).

Assim sendo, tal como assertivamente foi decidido na decisão recorrida, não tendo a aqui Apelante apresentado oposição ao requerimento de injunção na qual poderia ter invocado a prescrição dos créditos reclamados, não pode mais invocá-la em sede de embargos à execução por força da preclusão prevista no art. 14º-A nº 1 do DL nº 269/98 de 1.09, conforme determina o art. 857º nº 1 do CPC.”

No mesmo sentido se pronunciou o Ac. deste TRP de 18/11/2021 (proc. nº 2918/20.5T8LOU-A.P1, que apresenta o seguinte sumário: (I – Face às alterações introduzidas pela Lei nº 117/2019, de 13.9 no art. 857º do Cód. de Proc. Civil e no Regime Anexo ao Dec. Lei nº 269/98, de 1.9 [regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância] do conteúdo da notificação do procedimento de injunção ao requerido deve constar a preclusão dos meios de defesa resultante da falta de tempestiva dedução de oposição. II – Essa preclusão, entre outras situações referidas no nº 2 do art. 14º-A aditado ao Regime Anexo ao Dec. Lei nº 269/98, não abrange a alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no art. 729º do Cód. de Proc. Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção, entre eles se contando a falta ou nulidade da citação. III – Com as alterações efetuadas pela Lei nº 117/2009, de 13.9 foi superada a inconstitucionalidade da norma do art. 857º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, deixando de ter razão de ser a jurisprudência constitucional que a declarara quando interpretada no sentido de limitar os fundamentos de oposição à execução instaurada com base em requerimento de injunção à qual fora aposta fórmula executória, por violação do princípio da proibição da indefesa, consagrado no art. 20º, nº 1 da Constituição da República [AC. do TC nº 274/15, de 12.5]).

No caso sub judice, como acima se referiu, quer a data de apresentação do requerimento injuntivo, quer a subsequente data em que lhe foi aposta a fórmula executória, determinam a subsunção da situação ao novo regime trazido pela Lei nº 117/2019, de 13/9 (cfr. o respectivo art. 11º, nº 1).

Face a tal regime, tendo a ora apelante sido notificada regularmente para os termos da injunção, sem que lhe tenha deduzido oposição, e não sendo a excepção da prescrição passível de conhecimento oficioso (art. 303º do C. Civil), tem de considerar-se precludida a possibilidade da sua arguição nesta sede de embargos. É o que resulta do disposto no citado art. 14º-A do D.L. 269/98, prejudicando a actuação do previsto no art. 857º, nº 1 do C.P.C.

Por consequência, o título executivo mostra-se perfeitamente constituído, sendo inviável a sua impugnação sob a alegação de que o crédito assim titulado estava anteriormente prescrito. A prescrição não foi invocada em momento e em sede própria, pelo que não pode já ser discutida."

[MTS]


22/07/2025

Jurisprudência 2024 (214)


Rol de testemunhas;
alteração


1. O sumário de RC 12/11/2024 (1231/23.0T8FIG-A.C1) é o seguinte:

I - No actual modelo de processo de inventário, a dedução de reclamação à relação de bens, insere-se na tramitação normal deste processo, não constituindo já um incidente da instância, a processar de acordo com as regras específicas previstas nos artºs 1105 e 1109 do C.P.C. e as constantes dos artºs 292 e 293, ex vi do artº 1091 do C.P.C., mas antes pelas regras próprias do inventário e pelas regras gerais do processo comum em tudo o que não estiver estabelecido naquelas (ex vi do artº 549, nº 1 do C.P.C.)

II - Deduzidas reclamações em sede de inventário, as provas devem ser apresentadas com o respectivo articulado e com a resposta a ele deduzida (artº 1105, nº 2 do C.P.C.).

III - O disposto neste preceito, não obsta, no entanto, por via do disposto no artº 549, nº 1 do C.P.C., à possibilidade de alteração do rol de testemunhas, tempestivamente apresentado, verificados os requisitos previstos no artº 598, nº 2 do C.P.C.

IV - O rol de testemunhas pode ser alterado ou aditado até 20 dias antes da data em que efectivamente se realize ou se inicie a audiência final, conforme dispõe o artº 598 nº 2 do C.P.C., sendo irrelevante para a contagem deste prazo, a data da junção de formulário electrónico, nos termos do artº 7 nº 4 da Portaria nº 280/2013 de 26 de Agosto, por a data relevante ser a da apresentação do requerimento de alteração deste rol.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Alega o recorrente como primeiro fundamento do seu recurso que o artº 598 nº 2 do C.P.C. não tem aplicação ao processo de inventário, por o art 1105, nº 2 deste diploma legal estipular que as provas são indicadas com os requerimentos e respostas.

Cumpre-nos assim decidir a primeira questão objecto de recurso, ou seja, se o regime específico do inventário obsta à aplicação das regras gerais de processo civil no que se reporta à possibilidade de alteração dos requerimentos probatórios.

Da aplicabilidade do artº 598 do C.P.C. aos processos de inventário.

Alega o recorrente que, a esta reclamação, se aplicam as normas especiais do processo de inventário não sendo aplicável o regime geral do artº 598 do C.P.C. Indica em abono da sua pretensão dois Acórdãos desta Relação, proferidos no âmbito do regime vigente no Código de Processo Civil de 1961 (nomeadamente na vigência dos revogados artigos 1340º, nº 3; 1344º, nº 2; 1345º, nº 1; 1348º, nº 1, e 1349º, nº 3 daquele código) e um da Relação do Porto, este último sem qualquer relevo para a decisão porque se reporta à ausência de indicação de prova e não à alteração da já indicada.

Não tem o recorrente razão, no entanto, como intentaremos demonstrar, com todo o respeito por opinião contrária, pois que o regime de inventário instituído pela Lei nº 117/2019 de 13 de Setembro, não afasta a aplicabilidade das regras gerais de processo civil, no que não for contrário os fins visados pelo normas que regem sobre a partilha de bens nesta sede (artº 549, nº 1 do C.P.C.). Há assim que definir o alcance e os princípios que se visaram com a introdução deste novo regime de inventário e com a revogação do RJPI instituído pela Lei nº 23/2013 de 5 de Março.

No actual modelo, apresentada relação de bens em sede de inventário, prescreve o artigo 1104.º, n.º 1, alínea e), do CPC, que o interessado pode apresentar reclamação à relação de bens, decorrendo do artigo 1105.º a tramitação a seguir para decisão desta reclamação, ou seja, a notificação da reclamação ao cabeça de casal, cabendo ao mesmo apresentar a respetiva resposta também no prazo de 30 dias.

No que se reporta à produção de prova, dispõe o nº 2, do artº 1105 do C.P.C. que se for deduzida oposição, impugnação ao inventário ou reclamação da relação de bens nele apresentada, é no respectivo requerimento e na resposta subsequente que devem ser indicados os meios de prova.

Seguem-se após, a realização das diligências probatórias que couberem ao caso, requeridas ou ordenadas oficiosamente (n.º 3, do referido artigo 1105.º), com prévia realização de uma audiência prévia se o juiz o julgar necessário (artigo 1109.º) ou o saneamento do processo (artigo 1110.º), decidindo-se as questões suscitadas pelas partes que possam influenciar a determinação dos bens a partilhar e a partilha (de acordo com o artº 1110, nº 1 alíneas a) e b)). Decididas estas questões, é ordenada a notificação dos interessados para, querendo, proporem a forma à partilha, designando-se dia para a conferência de interessados, seguindo-se a tramitação processual necessária à prossecução da finalidade última do inventário: a efectiva partilha de bens pelos interessados.

Trata-se de regime diverso do estipulado no Regime Jurídico da Lei do Inventário (RJPI), introduzido pela Lei nº 23/2013 de 5 de Março, comportando fases distintas e estanques, segundo o modelo de uma acção declarativa, procurando em cada fase a decisão das questões que possam influir na partilha dos bens e na definição dos interessados. Como refere Lopes do Rego [REGO, Carlos Lopes do, “A recapitulação do inventário”, Julgar Online, Dezembro de 2019, pág. 15 e segs] o modelo procedimental instituído para o inventário na Lei n.º 117/19 comporta: I) Uma fase de articulados (em que as partes, para além de requererem a instauração do processo, têm obrigatoriamente de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respetivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, ativo e passivo, que constitui objeto da sucessão) – abrangendo a fase inicial e a fase das oposições e verificação do passivo.  Na verdade, nos arts. 1097.º/1108.º CPC procura construir-se uma verdadeira fase de articulados: o processo inicia-se tendencialmente (ao menos, quando requerido por quem deva exercer as funções de cabeça de casal) com uma verdadeira petição inicial (e não como o mero requerimento tabelar de instauração de inventário) de que devem constar todos os elementos relevantes para a partilha. (…) Após despacho liminar (em que o juiz verifica se o processo está em condições de passar à fase subsequente), inicia-se a fase seguinte, da oposição ou do contraditório, exercendo  os interessados citados o direito ao contraditório, cabendo-lhes impugnar concentradamente  no próprio articulado de  oposição tudo o que respeite à definição do universo dos interessados diretos e respetivas quotas hereditárias, à competência do cabeça de casal e à delimitação do património hereditário, incluindo o passivo (cuja verificação é, deste modo, antecipada – do momento da conferência de interessados – para o da dedução de oposição e impugnações); II) Uma fase de saneamento, em que o juiz, após realização das diligências necessárias, e com a possibilidade de realizar uma audiência/conferência  prévia, deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar, proferindo também, nesse momento processual – e após contraditório das partes – despacho contendo a forma à partilha (também ele agora  antecipado para esta fase de saneamento, anterior à conferência de interessados), em que define as quotas ideais dos vários interessados na herança, conferência de interessados; (…)”

Assim não acontecia no âmbito do RJPI, permitindo-se no que se reporta à reclamação da relação de bens, a dedução desta reclamação, quer no prazo fixado no nº 1 do artº 30 (20 dias a contar da notificação da relação de bens), quer no início da audiência preparatória, conforme o permite o artº 32, nº5 do RJPI. Neste modelo, a reclamação da relação de bens, seguia o regime específico previsto para os incidentes do inventário, de acordo com os normativos expressos nos artºs 14 e 15 do RJPI (preceitos muito semelhantes ao disposto para os incidentes da instância em processo comum, nos artºs 293 e 294 do C.P.C.)

O actual modelo afastou-se da fluidez que regia o RJPI e veio estabelecer fases nas quais têm de ser decididas as questões fundamentais do inventário, nomeadamente a fase de oposição e saneamento do processo, com decisão de todas as questões relativas ao inventário (nomeadamente das reclamações de bens), sem a decisão das quais os autos não prosseguem.  

É nesta fase de oposição que devem ser apresentadas as provas necessárias à decisão, seguindo-se após a instrução com produção dos meios de prova necessários, quer os indicados pelos interessados quer os determinados oficiosamente pelo juiz da causa, seguindo-se o saneamento do processo.

Tendo em conta este novo modelo e as diversas fases estipuladas neste processo, a oposição, impugnação ou reclamação traduzem-se já não na dedução de um incidente no inventário (a que se aplicariam as regras específicas e as contidas nos artºs 292 e 293 do C.P.C., ex vi do artº 1091), mas “no exercício pelos citados de um direito de defesa que é processado nos próprios autos e inserido na tramitação normal e típica do processo de inventário. Também a resposta dos interessados a essa oposição, impugnação ou reclamação se insere na tramitação do processo de inventário (n.º 1)” [SOUSA, Miguel Teixeira de, REGO, Carlos Lopes do, GERALDES, António Abrantes e TORRES, Pedro Pinheiro, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pág. 86.]a que são aplicáveis as regras gerais previstas no C.P.C. (ex vi do artº 549 nº 1 do C.P.C.), nomeadamente as que regem sobre a prova.

Ora, do disposto no nº 2 do artº 1105 do C:P.C. não resulta nenhum obstáculo à alteração posterior de meios de prova já indicados nos articulados em que são deduzidas as oposições, impugnações ao inventário ou reclamações relativamente à relação de bens apresentada. [Neste sentido vide Acs. da Relação de Guimarães de 11/01/2023, proc. n.º 487/21.8T8VCT-A.G1, de que foi relatora Alexandra Rolim Mendes; de 30/03/2023, proc. nº 215/21.8T8VVD-A.G1, de que foi relatora Anizabel Sousa Pereira; de 25.05.2023, proc. n.º 2525/21.5T8VCT-A.G1, de que foi relator Pedro Maurício; de 01/02/2024, proc. nº 2020/22.5T8VNF-A.G1 e de 14/03/2024, proc. nº 476/19.2T8MNC-C.G1, de que foi relator, em ambos, Jorge Santos; do TRE de 20/10/11, proc. nº 245/08.5TBELV-A.E1, de que foi relator Mata Ribeiro; do TRP de 22/02/2024, proc. nº 1020/22.0T8MTS-A.P1, de que foi relatora Anabela Morais; de 10/07/2024, proc. nº 645/21.5T8ALB-A.P1, relator João Proença, todos disponíveis no endereço www.dgsi.pt]   

É certo que a não dedução tempestiva de meios de prova, inviabiliza o direito de a parte produzir prova. É a consequência do princípio da preclusão e da auto-responsabilização das partes, sendo certo que, apesar do disposto no nº 3 do artº 1105 do C.P.C., que constitui um afloramento do princípio do inquisitório, o “exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste - não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes[REGO, Carlos Lopes do, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Almedina, 2004, pág. 533.]. [...]

Assim se conclui que comportando o actual modelo de processo civil, uma verdadeira fase instrutória, conforme resulta do artº 1109 do C.P.C., aplica-se por via do disposto no artº 549, nº 1 do C.P.C., as disposições do processo civil que regem sobre a possibilidade de alteração dos meios de prova, nomeadamente o disposto no artº 598, nº 2 do C.P.C.

Aliás, conforme assinala certeiramente o Acórdão do TRE de 11/05/2023 [---] a disposição contida no artº 1105, nº 2 do C.P.C., é afinal a mesma da prevista para o processo comum, conforme decorre do disposto no artº 552, nº 6 e 423, nº 1 do C.P.C.

Ainda que se considerasse que estas reclamações constituem verdadeiros incidentes do processo de inventário, entendemos possível a alteração de requerimentos probatórios, embora condicionado à superveniência de factos que venham a ser alegados ou à junção de prova documental relevante [---].

Com efeito, conforme por nós já afirmado no Acórdão desta Relação de 01/02/2022 [---], embora a respeito de um procedimento cautelar “dispõe o artº 365 nº 1 do C.P.C que a prova do direito ameaçado e do receio de lesão deve ser oferecida como o r.i., à semelhança aliás do disposto para os acidentes da instância, conforme decorre do disposto no artº 293 do C.P.C., aplicável por via da remissão do nº 3 do citado preceito legal.

Existindo contraditório do requerido prévio à decisão, na oposição deduzida deve este oferecer igualmente os seus meios de prova, seguindo-se após, sem mais articulados, a fase da audiência final.

Assim sendo, nos procedimentos cautelares, os meios de prova terão de ser requeridos com o requerimento inicial e com a oposição que lhe vier a ser deduzida. E, dada a natureza urgente deste procedimento, não são admitidos outros articulados, mormente de resposta a eventuais excepções, sem prejuízo do disposto no artº 3 nº 4 do C.P.C, nem apresentação posterior de novos meios de prova.

Da conjugação destes preceitos legais resulta que o legislador estabeleceu momentos processuais para a apresentação de meios de prova pelas partes neste tipo de procedimentos, sob pena de preclusão deste direito para ambas as partes, sem prejuízo da produção de meios de prova pelo tribunal, oficiosamente, conforme decorre do disposto no artº 367 nº 1 do C.P.C.

Não é assim aplicável aos procedimentos cautelares, pela sua urgência, o disposto no artº 598 do C.P.C., sem prejuízo da possibilidade de junção de documentos nos momentos processuais previstos no artº 423 do C.P.C.”

Mas mesmo a considerar esta reclamação um incidente do inventário, no sentido da admissibilidade da alteração dos meios de prova, a respeito dos artºs 1349 e 1334  (este último remetida para os artºs 302 a 304 daquele código, preceitos aplicáveis aos incidentes da instância), defendeu-se em Ac. do TRG de 04/06/2013 [---], que “não se nos oferecem dúvidas de que, em matéria de apresentação das provas, continua a vigora o princípio da preclusão, devendo cada uma das partes, no incidente em causa, juntar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova no requerimento em que se suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida, sob pena de caducidade do direito.

Cumprido aquele ónus processual, já não nos parece que a parte não possa, ainda em tempo oportuno, substituir ou aditar testemunhas ao rol (regularmente) apresentado, em ordem a uma efetiva concretização de alguns dos princípios acima enunciados, sem prejuízo relevante de outros. Se o pode fazer no processo ordinário e também, por via da aplicação do art.º 463º, nº 1, in fine, ao processo sumário e aos processos especiais, porventura até ao processo declarativo sumaríssimo (art.ºs 464º, 794º, nº 1 e 795º, nº 2), nada de particular ou específico em matéria de incidentes permite a negação daquele direito. As razões que justificam a alteração ou o aditamento ao rol de testemunhas na generalidade das formas de processo encontram a mesma pertinência no processo incidental (uma testemunha que morre ou adoece e não pode deslocar-se a Juízo, outra que tem que viajar e a parte prefere substituí-la, outra ainda importante de que a parte não se lembrou antes do oferecimento do rol, ou que, entretanto, se mostrou conhecedora de factos de grande relevância para a decisão da causa, etc.)”.

Apesar de não concordarmos na íntegra com este entendimento, sem prejuízo da possibilidade de apresentação de prova documental relevante ou de inquirição mesmo oficiosa de pessoas com conhecimento dos factos, na realidade o novo modelo de processo de inventário, ao estabelecer uma verdadeira fase instrutória para definição das questões que possam influir na partilha de bens, afasta-se do modelo incidental existente quer no CPC de 1961, quer no RJPI, não existindo actualmente razões que permitam considerar estarmos perante um incidente deste inventário, a tramitar de acordo com as regras específicas resultantes do artº 1105 do C.P.C. e as aplicáveis aos incidentes (ex vi do artº 1091 do CPC).

Improcede assim este argumento de recurso, considerando-se admissível a alteração do rol de testemunhas oportunamente apresentado, se verificados os demais requisitos previstos no artº 598, nº 2 do C.P.C."

[MTS]

21/07/2025

Bibliografia (1214)


-- Kernchen, T., Automatisierung und richterliche Rechtsanwendung / Rechtliche Anforderungen und technische Möglichkeiten der Entwicklung eines intelligenten Systems für richterliche Rechtsanwendung (Nomos: Baden-Baden 2025)


Jurisprudência 2024 (213)


Penhora de bens; bens relativamente impenhoráveis;
"instrumentos de trabalho"


1. O sumário de RC 12/11/2024 (3596/10.5TJVNF-B.C2) é o seguinte:

I - A impenhorabilidade relativa do artº 737º nº2 do CPC, que proíbe a penhora dos instrumentos de trabalhos e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do executado – lato sensu, que podem incluir bens móveis ou imóveis -, emerge se se provar que o bem penhorado é estritamente indispensável ao exercício de tal atividade, em termos tais que a cessação desta implique intolerável efetação/prejuízo para os interesses vitais e de subsistência do executado, unicamente considerados, e ainda por reporte à afetação do status económico financeiro do exequente decorrente da pretendida impenhorabilidade.

II - Provado que o executado é agricultor e criador de gado, exercendo tais atividades no prédio misto penhorado, e que delas ele retira a esmagadora maioria – mais de 120 mil euros - dos seus proventos, sendo a exequente a CGD, emerge a impenhorabilidade relativa deste bem dado à penhora.

2. O acórdão tem o seguinte voto de vencido:

«Vencido. Revogaria a decisão, pelas seguintes razões:

1 - Quando no artigo no artigo 737.º, n.º 2 do CPC, se isentam de penhoras os "instrumentos" de trabalhos e os "objetos" indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do executado, têm-se em vista, em regra, bens móveis (instrumentos/objetos) cujo valor não é elevado, mas que permitem ao executado sobreviver profissionalmente.

Procura-se, pois, com esta isenção, proteger o executado, por razões humanitárias, transferindo para a esfera jurídica do exequente o custo desse benefício atribuído pela lei ao executado, mas sem que esse ónus colocado sobre o exequente seja desproporcionado, até porque, em abstrato, o exequente pode estar tão necessitado economicamente como o executado (em concreto, no caso dos autos, essa paridade não ocorre).

Deste modo, um imóvel composto por terra de semeadura e olival, na qual se encontra construída uma ordenha e um estábulo, com anexos e logradouro, não cabe no conceito de "instrumentos de trabalho", nem no de "objetos indispensáveis ao exercício da atividade profissional do executado".

2 – Em processo executivo, no contexto da penhora os conceitos de "instrumentos" e "objetos" referem-se a bens penhoráveis e estes estão distribuídos por três categorias, móveis, imóveis e direitos.

Deste modo, deve-se fazer uma interpretação dos conceitos "instrumentos" e "objetos" no âmbito destas categorias de bens e dentro destas categorias não é usual em sede de penhora o legislador deferir-se a imóveis como "instrumentos" ou "objetos".

O legislador pode referir-se a um imóvel como "objeto" afirmando que certo prédio é objeto do direito de propriedade, mas aqui o conceito "objeto" é utilizado num contexto filosófico, onde se alude a uma relação jurídica entre o sujeito dos direitos e o objeto dos direitos.

No caso da penhora tal não ocorre, objeto é algo móvel, não um imóvel e o mesmo vale para o conceito de instrumento.

3 – Se o bem penhorado fosse considerado impenhorável, então seriam impenhoráveis inúmeros estabelecimentos comerciais ou, como diz a recorrente, "imóveis nos quais fosse exercida qualquer atividade profissional, como lojas e escritórios, ou até as habitações nas quais exerçam as suas funções os trabalhadores em teletrabalho."

Julgaria, pois, procedente o recurso.»

[MTS]

19/07/2025

Bibliografia (1213)


-- Umpierrez Blengio, C., Los hechos notorios en el razonamiento probatorio, Qf 9 (2025), 1-25

-- Williamson, T., The Content of Legal Evidence, Qf 9 (2025), 1-19


18/07/2025

Jurisprudência 2024 (212)


Sigilo bancário; dispensa;
competência hierárquica*


I. O sumário de RL 7/11/2024 (1419/22.1T8CSC-A.L1-2) é o seguinte:

1. A decisão do tribunal de 1ª instância de autorizar a dispensa do sigilo de supervisão bancária do Banco de Portugal pode qualificar-se como inexistente, atenta a falta de poder jurisdicional do juiz de 1ª instância para o efeito, por ser questão da competência dos tribunais superiores, devendo aquele limitar-se a avaliar a legitimidade da escusa de tal entidade em prestar as informações solicitadas e nesse caso remeter para o tribunal superior o incidente para o levantamento/quebra do sigilo.

2. É legítima a recusa do Banco de Portugal em identificar os elementos relativos às contas bancárias de uma das partes no processo de inventário, com fundamento no dever de segredo a que está sujeito, nos termos do art.º 80.º do RGICSF, dever de segredo que se estende às bases de dados das contas bancárias que lhe compete organizar e gerir, conforme prevê o art.º 81.º-A daquele diploma.

3. É adequado e proporcional o levantamento do sigilo de supervisão bancária quando estamos no âmbito de um processo de inventário que visa a partilha do património comum do casal após a dissolução do seu casamento por divórcio, quando o cabeça de casal não consegue identificar as contas bancárias da interessada à data da separação do casal e a mesma recusa colaborar para esse efeito, já que não obstante possam estar em causa contas bancárias da sua exclusiva titularidade, o seu saldo à data da separação do casal pode, pela sua origem, assumir a natureza de bem comum.

4. Em face dos vários direitos em presença, o segredo de supervisão bancária invocado pelo Banco de Portugal deve ser levantado, de modo a que possam ser identificadas as contas bancárias de que a interessada era titular à data da separação do casal, o que se torna necessário para o apuramento do património comum do casal, o que vai ao encontro do interesse público na boa administração da justiça."

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na sequência do incidente de levantamento do sigilo requerido pelo cabeça de casal, e após o Sr.º Notário determinar o envio do processo para o tribunal para decisão do incidente, veio o tribunal a quo reconhecer o direito ao sigilo do Banco de Portugal, remetendo o processo para este tribunal, ainda que anteriormente tenha proferido um primeiro despacho a autorizar a quebra do sigilo.

Para autorizar a quebra do sigilo, como veio mais tarde a reconhecer o Exm.º Juiz a quo, o tribunal de 1ª instância carecia de competência, pelo que tem de considerar-se legítima também a segunda recusa do Banco de Portugal em prestar os elementos bancários que lhe foram solicitados.

Sobre a questão da falta de poder jurisdicional do tribunal de 1ª instância para decidir o incidente da quebra de sigilo, por razões de simplificação e por se concordar com o aí referido em situação idêntica, remete-se para o Acórdão do TRL de 14-09-2021 no proc. 2835/20.9T8CSC.L1-7 in www.dgsi.pt que sobre esta questão se pronuncia nos seguintes termos: “a quebra do segredo, pelo juízo que envolve, é, por opção legislativa, necessariamente da competência de um tribunal superior (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça, conforme os casos). Este último não funciona, pois, como uma instância residual, quando se suscitem dúvidas sobre a legitimidade da escusa, mas sim como instância de decisão do incidente da quebra do segredo, nas situações em que a escusa é legítima.” No mesmo sentido, encontram-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 21-01-2014, relator Rodrigues Pires, processo n.º 664/04.6TJVNF-C.P1 e de 22-05-2017, relatora Ana Paula Amorim, processo n.º 271/13.2TMPRT-A.P1. Ora, nos presentes autos, o tribunal de 1ª instância entendeu ser competente para, reconhecendo a legitimidade da escusa por parte do Banco de Portugal, ordenar a quebra do segredo de supervisão determinando a prestação por aquela entidade das informações visadas pela requerida. Sucede que, embora o notário tenha competência, como se viu, para ordenar a notificação do Banco de Portugal para prestar tais informações, já não a tem para suscitar ou apreciar o incidente de dispensa de sigilo, incidente que foi remetido para o juízo de família e menores, tribunal com competência para apreciar a legitimidade da escusa, pois que o RJPI não atribui tais competências ao notário. No entanto, aferida essa legitimidade, impunha-se à 1ª instância, suscitar perante o Tribunal imediatamente superior a apreciação do incidente de quebra do dever de segredo e não proceder, ela própria, à sua apreciação, sendo certo que, como se referiu, a quebra do segredo é, por opção legislativa, necessariamente da competência de um tribunal superior, o que de modo algum foi afastado ou se pode considerar afastado pelo regime jurídico do processo de inventário – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-03-2016, relator António Beça Pereira, processo n.º 42/16.4T8FAF-A.G1. O Tribunal recorrido ao apreciar e decidir sobre a dispensa do dever de sigilo extravasou o âmbito da sua competência, ou seja, a 1ª instância não tinha competência funcional para se pronunciar quanto a tal matéria, sendo incompetente, em razão da hierarquia, para o efeito – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-09-2011, relatora Ana Paula Amorim, processo n.º 3553/06.6TJVNF-D.P1 – “O tribunal de 1ª instância é incompetente, em razão da hierarquia, para apreciar e proferir decisão no presente incidente (art. 71º/1 CPC). A violação das regras de competência em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do tribunal e tem como consequência a remessa do processo ao Tribunal da Relação do Porto, onde deve ser promovida a tramitação subsequente do incidente de dispensa de segredo bancário (art. 101º, 102º, 107º/1 CPC).”; no sentido de que o tribunal, seja o juiz da 1ª instância sejam os juízes dos tribunais de recurso, não só pode como deve suscitar ex-officio a incompetência absoluta em razão da hierarquia, Francisco Manuel Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume I, 2ª Edição, Reimpressão 2018, pág. 375, nota 759. A decisão proferida pelo tribunal recorrido no âmbito do incidente de dispensa de sigilo, porque proferida por quem não detinha poder jurisdicional para a proferir, padece de vício gerador de inexistência jurídica.”

A decisão do tribunal de 1ª instância, de autorizar a dispensa de sigilo do Banco de Portugal é irrelevante para efeitos da decisão do presente incidente, podendo qualificar-se como inexistente atenta a falta de poder jurisdicional do juiz de 1ª instância para o fazer, já que é questão da competência dos tribunais superiores, pelo que bem fez o Exm.º Juiz a quo em, num segundo momento, remeter para este tribunal o processo para decisão."

*III. [Comentário] Não parece que a sentença de um tribunal de 1.ª instância sobre o levantamento do sigilo bancário seja uma sentença inexistente por falta de poder jurisdicional desse tribunal.

Qualquer tribunal tem poder jurisdicional. O que pode suceder é que não tenha competência para apreciar uma acção, nomeadamente porque o objecto desta não cabe na sua competência material ou hierárquica.

O que se diria se a revisão e confirmação de uma sentença estrangeira fosse decretada por um tribunal de 1.ª instância (em vez de, como se impõe, ser decretada por uma das Relações: art. 55.º, al. e), LOSJ)? Que se trata de uma sentença inexistente ou que se trata de uma sentença proferida por um tribunal absolutamente incompetente por violação das regras de competência hierárquica? A resposta seria certamente esta última (art. 96.º, al. a), CPC).

Aliás, se o pedido de revisão e confirmação for dirigido a um tribunal de 1.ª instância, o que o tribunal dirá é que absolutamente incompetente para apreciar a acção (não que uma eventual decisão sua seria inexistente).

Em conclusão: a decisão de levantamento do sigilo bancário proferida por um tribunal de 1.ª instância não é uma decisão inexistente, mas antes uma decisão proferida por um tribunal absolutamente incompetente.

MTS

17/07/2025

Bibliografia (1212)


-- Bove, M., Lineamenti di diritto processuale civile, 8.ª ed. (Giappichelli: Torino 2025)


Jurisprudência 2024 (211)


Processo de insolvência;
prova documental; contraditório


I. O sumário de RL 12/11/2024 (29268/23.2T8LSB-E.L1-1) é, na parte agora relevante, o seguinte:

1 – Não se verificam as nulidades previstas nas alíneas b) e c), do art.º 615º, n.º 1, do Código de Processo Civil quando a decisão proferida especifica os fundamentos de facto e de direito, sendo igualmente clara e precisa nessa fundamentação.

2 – Não constitui facto de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, nos termos do art.º 412º, n.º 2, do CPC, a menção feita na sentença ao constante de uma lista atualizada das execuções, de acesso público, tendo anteriormente um “print” dessa lista já sido junto aos autos.

3 – Não existe violação do princípio do contraditório, relativamente à não audição pelo tribunal da requerida, relativamente a um documento que agora surge na sua versão atualizada, se o mesmo anteriormente já tinha sido junto aos autos e a requerida tem conhecimento dos seus termos.

4 – Não se verifica violação do disposto no art.º 496º, do CPC, quando se procede à audição, como testemunhas, de dois sócios de uma sociedade de advogados que não representam legalmente a mesma.

5 – Não constitui fundamento para alterar ou aditar a matéria de facto a discordância da parte com a mesma.

6 – Não constitui ainda fundamento para alterar a matéria de facto, as declarações de um depoente de parte não sustentadas em qualquer outra prova, e que contrariam a restante prova produzida nos autos, que foi considerada credível, rigorosa e objetiva.

7 – Igualmente não constitui fundamento para o efeito, as declarações de uma testemunha que revela no seu depoimento falta de rigor e conhecimento fundado na prática de factos por terceiro, sendo que este, ouvido anteriormente, depôs em sentido divergente com o referido pela testemunha. [...]


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Refere a recorrente que o tribunal violou o disposto no art.º 412º, n.º 2, do CPC, mencionando o citado normativo legal que: “Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra desses factos deve fazer juntar ao processo documento que os comprove.” Invoca ainda a violação do princípio do contraditório, previsto no art.º 3º, n.º 3, do mesmo diploma legal.

Vejamos o disposto no art.º 11º, do CIRE, na parte que ora nos interessa, com a epígrafe “Princípio do inquisitório”:

“No processo de insolvência (…) a decisão do juiz pode ser fundada em factos não alegados pelas partes.”

O que é que significa a permissão dada por este artigo?

Estão em causa poderes inquisitórios alargados por parte do juiz no processo de insolvência, que extravasam, em muito, os conferidos no processo declarativo comum no Código de Processo Civil, designadamente no que respeita à realização e recolha de provas, o que foi o caso dos autos.

Na espécie, um documento respeitante à consulta à referida lista pública [de execuções] já se encontrava junto aos autos como documento n.º 93.

A questão é a da consulta da mencionada lista atualizada.

Está em discussão um documento cujo acesso é livre, sendo públicos os dados nele contidos, de acordo com o art.º 7º, da Portaria n.º 313/2009, de 30 de março [Portaria que “Regula a criação de uma lista pública de execuções, disponibilizada na Internet, com dados sobre execuções frustradas por inexistência de bens penhoráveis - Artigo 12.º”]

Resulta ainda da mesma Portaria, do seu art.º 3º, n.º 1, que:

“Em simultâneo com a notificação ou citação, previstas nos n.os 1 e 3 do artigo 750.º do Código de Processo Civil, respetivamente, o executado é notificado pelo agente de execução de que, uma vez extinta a execução, dispõe do prazo de 10 dias para pagar a quantia em dívida ou para aderir a um plano de pagamento de dívida elaborado com o auxílio de uma entidade reconhecida pelo Ministério da Justiça, com a cominação de que a não observância de qualquer dos mencionados procedimentos implica a sua inclusão na lista pública de execuções.”

Ora assim sendo, não podemos considerar, em rigor, que o documento em causa foi acessível ao juiz por se encontrar no exercício das suas funções, uma vez que o mesmo é de acesso livre, qualquer pessoa pode aceder àquela lista, independentemente da sua profissão, não se verifica assim a invocada violação do disposto no art.º 412º, nº 2, do CPC., aplicável por via do art.º 17º, do CIRE.

Quanto à violação do princípio do contraditório, previsto no art.º 3º, n.º 3, do CPC, também aplicável por via do art.º 17º, do CIRE, importa atentar no disposto no art.º 3º, n.º 3, do CPC, que determina que: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

Como refere Abrantes Geraldes: “A contraditoriedade ao longo de todo o processo é inerente ao adágio “da discussão nasce a luz”, pois só a audição de ambas as partes interessadas no pleito e a possibilidade que lhes é conferida de controlarem o modo de decisão dos tribunais permitirão que a verdade seja descoberta e que sejam acautelados os interesses dos litigantes.” [António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª edição, Almedina, pág. 75.]

Ora, no caso, está em apreciação um documento que estava anteriormente junto aos autos e sobre o qual a parte teve oportunidade de se pronunciar, um documento público e de que a executada nas ações, ora recorrente, terá conhecimento do seu integral conteúdo, por via do disposto no já citado art.º 3º, n.º 1 da Portaria mencionada. Assim sendo, não podemos dizer que o mencionado documento, neste contexto, constitui uma “surpresa” para a parte, sobre a qual a mesma foi confrontada em sede de sentença e, portanto, que não foi acautelado o interesse da parte.

Podemos assim entender que, face a este enquadramento, não estava vedado ao tribunal consultar nos termos em que o fez a atualização de um documento público, já junto aos autos e que era desnecessária, apenas neste contexto, salienta-se, a nova pronúncia da recorrente sobre o mesmo, sendo os dados constantes daquele, podemos concluir, do seu conhecimento.

Diferente seria se o tribunal sem mais, e sem que o documento estivesse junto aos autos, viesse a servir-se daquele para fundamentar a resposta à matéria de facto, sem consulta das partes. Ora não é claramente o caso, estando a parte prevenida quanto à existência do referido documento nos autos e quanto ao conteúdo do mesmo."

[MTS]


16/07/2025

Jurisprudência 2024 (210)


Valor da causa; fixação;
decisões proferidas em recurso; dever de acatamento


1. O sumário de RP 11/11/2024 (4024/22.9T8VFR-B.P1) é o seguinte:

I - A indiscutível consagração da independência dos magistrados judiciais, no exercício da sua função judicante, é feita com a expressa salvaguarda do seu dever de acatamento das decisões que, em via de recurso, sejam proferidas por Tribunais superiores.

II - A violação desse dever constitui uma nulidade insuprível da decisão que assim venha a ser proferida.

III - Quando a parte se recuse a juntar aos autos documento, depois de devidamente notificada para o efeito, deverá o tribunal recorrido seguir a tramitação adjetiva adequada e, concretamente, a que vem referida nos artigos 417.º, nº 2 e 433.º do CPCivil, aplicáveis ex vi artigo 430.º do mesmo diploma legal, sendo que, quando o citado artigo 417.º, nº 2 se refere aos “meios coercitivos que forem possíveis” quer-se significar os meios admitidos por lei, que se mostrem idóneos a obter o resultado pretendido como seja, por exemplo, a apreensão do documento em questão.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Como se referiu é apenas a questão que cumpre apreciar e decidir:

a)- saber se o despacho recorrido ao fixar o valor da ação cumpriu ou não o que foi determinado no acórdão proferido por esta Relação.

Como se evidencia do relatório a autora na petição inicial atribuiu à causa o valor de €50.000,01 euros, por desconhecer os termos do contrato de compra e venda de participações socias, nomeadamente o preço fixado, cuja anulação pede nesta ação.

O tribunal recorrido por despacho de 14/05/2023, não concordando com o valor atribuído pela autora e não impugnado pelos Réus, decidiu atribuir o valor de € 30.000.000,00.

No recurso do citado despacho interposto pela autora, o tribunal da Relação proferiu acórdão em que, revogando o citado despacho, ordenou que fosse fixado à causa o valor que resultasse do termo de transação e contrato de compra e venda de ações da sociedade A..., SGPS, de 29 de dezembro de 2005, entre BB, como vendedor, e como compradores HH, FF, BB e DD, cuja anulação a apelante peticiona.

Acórdão esse devidamente transitado em julgado.

Repare-se, porém, que, antecedentemente do citado dispositivo, se havia exarado o seguinte:

“Aqui chegados, importa concluir que o despacho recorrido não pode subsistir, pois, sendo o segundo pedido aquele que corresponde à utilidade económica da pretensão da apelante, o seu valor há de ser determinado nos termos do artigo 301.º, n.º 1, CPC.

Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.

No caso vertente, não se mostra possível determinar qual o valor do ato jurídico por que a apelante declarou desconhecê-lo; o mesmo será apurado logo que o documento que o incorpora seja junto aos autos”[---].

Daqui resulta, sem margem para qualquer dúvida, que para a fixação do valor da ação necessário se tornava que fosse junto aos autos o documento que incorpora o ato jurídico que expressa a utilidade económica do pedido, ou seja, “o termo de transação e contrato de compra e venda de ações da sociedade A..., SGPS, de 29 de dezembro de 2005, entre BB, como vendedor, e como HH, FF, BB e DD”.

Dando cumprimento ao decidido pelo tribunal da Relação, o tribunal a quo determinou que os Réus fossem notificados para, querendo, juntar aos autos o documento em causa, o que estes recusaram.

Ora, salvo o devido respeito, o tribunal recorrido só podia ter exarado o despacho nos termos em que o fez (a junção do documento ficava ao critério e livre arbítrio dos réus) se tivesse elementos nos autos (o que, manifestamente, não tinha face ao despacho objeto de recurso) que lhe permitissem fixar o valor à causa nos termos determinados pela Relação sem a junção do documento em causa, pois que, não sendo esse o caso, devia ter ordenado aos réus, tout court, a sua junção.
*

Acontece que, o tribunal recorrido, perante a recusa dos Réus em juntar o documento em questão, fez tábua do que havia sido decidido pelo tribunal da Relação e fixou à ação o valor de € 50.000,01 (cinquenta mil euros e um cêntimo), ou seja, o valor que a autora tinha atribuído na petição inicial esquecendo que, ele próprio, não havia concordado com esse valor por não cumprir os critérios da lei suscitando o respetivo incidente (cf. despacho exarado em 12/04/2023).
*
Diante do exposto, torna-se evidente que o despacho recorrido não pode subsistir, por valor fixado à ação não refletir os critérios elegidos pelo tribunal superior no acórdão que prolatou para tal desiderato, em clara violação, pois, do que foi decidido superiormente.
*

Importa, reter que se lê no art.º 4.º, n.º 1, da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais), que os “magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores”; e, de forma idêntica, no art.º 4.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) que os “juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores”.

Logo, a indiscutível consagração da independência dos magistrados judiciais, no exercício da sua função judicante, é feita com a expressa salvaguarda do seu dever de acatamento das decisões que, em via de recurso, sejam proferidas por Tribunais superiores.

O exposto é reafirmado, no particular campo do processo civil, no art.º 152.º, n.º 1, do CPC, onde se lê que os “juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes e cumprindo, nos termos da lei, as decisões dos tribunais superiores”.

Compreende-se, por isso, que se leia no art.º 42.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, que os “tribunais judiciais encontram-se hierarquizados para efeito de recurso das suas decisões”.
*
Aliás, a violação de um tal dever de acatamento de prévia decisão proferida por Tribunal superior, proferida em via de recurso e transitada em julgado, constitui uma nulidade insuprível da decisão que assim venha a ser proferida, nomeadamente por o objeto de renovada pronúncia do Tribunal inferior constituir questão de que o mesmo não podia tomar conhecimento [art.ºs 613.º, nº 3 e 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, ambos do CPCivil]. [Cf. neste sentido: Ac. do STJ, de 28.10.1997, Fernando Fabião, Processo n.º 98A233; Ac. da RE, de 31.05.2012, José Lúcio, Processo n.º 855/11.3TBLLE-E1; Ac. da RP, de 11.07.2006, Mário Cruz, Processo n.º 0623350; ou Ac. da RL, de 08.10.2002, Manuel Rodrigues, Processo n.º 95274/18.9YIPRT.L2-6, todos consultáveis em www.dgsi.pt..]
*
Diante do exposto, deverá o tribunal recorrido ordenar que os Réus juntem aos autos o documento em causa [---], decidindo depois em conformidade o incidente do valor da ação nos moldes exarados no acórdão proferido pela Relação em 19/12/2023.
*
Na hipótese de os Réus recusarem a junção do referido documento, deverá o tribunal a quo seguir a tramitação adjetiva adequada e, concretamente, a que vem referida nos artigos 417.º, nº 2 e 433.º do CPCivil, aplicáveis ex vi artigo 430.º do mesmo diploma legal.

É que, quando o citado artigo 417.º, nº 2 se refere aos “meios coercitivos que forem possíveis” quer-se significar os meios admitidos por lei, que se mostrem idóneos a obter o resultado pretendido com seja, por exemplo, a apreensão do documento em questão."

[MTS]

15/07/2025

Jurisprudência 2024 (209)


Pedido subsidiário;
conhecimento pela Relação


1. O sumário de STJ 14/11/2024 (3994/20.STSVCT.G1.S1) é o seguinte:

I. Na circunstância em que o Tribunal da Relação julga procedente o pedido subsidiário, impugnado pelos Réus na contestação e objecto de resposta em contra-alegações, não ocorre decisão surpresa que justifique novo exercício do contraditório ao abrigo do disposto no artigo 665º, nº 3, do CPC.

II. A prova plena do documento particular a que alude o artigo 376.º, n.º 1, do CC, reporta ao que foi declarado no documento em causa, ou seja, apenas abrange a prova de que as partes fizeram aquelas declarações, mas não se estende à coincidência dessas declarações com a realidade, podendo a parte fazer prova por testemunhas quanto à falta de coincidência da referida declaração com a realidade.

III. O contrato de intermediação financeira configura um "contrato-quadro", um "negócio de cobertura" ou, um contrato organizatório, que tem a função de previsão das diretrizes gerais do projeto a desenvolver no futuro e das relações negociais.

IV. A nulidade do contrato de intermediação financeira por violação do artigo 9º do RGCC, implica a nulidade dos contratos sucessivos ou de execução, como são os contratos de subscrição dos produtos financeiros.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2.1. Nulidade - omissão de pronúncia

Sustentam os Recorrentes, em primeiro lugar, que o acórdão impugnado não se pronunciou quanto à responsabilidade da Interveniente AIG, para a qual haviam transferido a sua responsabilidade, e mais argumentam que deveria a Relação proceder à exigida notificação para o exercício do contraditório, no pressuposto da alteração do sentido decisório da sentença, que lhes veio a ser desfavorável.

Apreciemos.

As questões que o juiz deve apreciar são todas aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal – artigo 608º, n.º 2, do CPC – e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer – independentemente de alegações e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.

A omissão traduz-se, assim, como resulta da tradução normativa da figura, na falta de tratamento e decisão (pronúncia) quando o tribunal deixa de conhecer de questões que deveria apreciar ou conheça de questões de que não poderia conhecer – art. 615º, n.º 1, al. d), do CPC.

Sabido, também, que a omissão de pronúncia só se verifica quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que foram submetidas pelas partes ou de que deva conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidas pelas partes na defesa das teses em presença, e bem assim, não tem que se pronunciar sobre questões que ficam prejudicadas pela solução que deu a outra questão que apreciou.

Nos autos.

Resulta do relatório que os Autores formularam diversos pedidos, uns a título principal, outros, a título subsidiário (ou secundário de acordo com a P.I.) para o caso de aqueles não procederem.

Em primeira nota, sublinhamos que o Tribunal de 1ª instância julgou improcedentes todos os pedidos formulados, sejam eles principais ou subsidiários, embora sem apreciar alguns dos fundamentos invocados alegados pelos Autores, tal como se retira do dispositivo da sentença - «julgo a acção (…) improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolvo os Réus e a Interveniente principal dos pedidos formulados.»

Por seu turno, o Tribunal da Relação debruçou-se sobre cada um dos pedidos, com excepção, justamente, da pretensão alicerçada na responsabilidade civil, referente à indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 30.000,00, por ter sido excluída pelos Autores nas suas alegações [---].

Sobre todas as questões suscitadas no recurso pelos Autores foi dada aos Réus a oportunidade do exercício de resposta nas contra-alegações na linha da estratégia escolhida na defesa da sua posição na demanda.

Acompanhando o sistematizado iter decisório do acórdão em sindicância, evidencia-se que a Relação apreciou, ainda, todos os fundamentos e questões que não foram objeto de apreciação na sentença, em resultado da arguição pelos recorrentes de diversas nulidades e invocação de vários fundamentos.

Vindo o Tribunal da Relação a concluir pela exclusiva procedência do pedido subsidiário que concerne à aplicação do regime legal das cláusulas contratuais gerais (RCCG) aos contratos celebrados entre as partes, e cuja nulidade declarou com a consequente restituição do prestado, como efeito previsto no artigo 289º, nº 1, do CC.

Numa segunda nota, a génese do pedido que procedeu em nada intercepta o regime da responsabilidade civil e, o efeito da nulidade dos contratos em apreço - a obrigação de restituição do prestado - revela-se independente de função compensatória, estando circunscrita à esfera jurídica dos Réus; trata-se, portanto, de obrigação alheia à Interveniente Seguradora, à margem da relação contratual que assumiu perante os Réus através da cobertura de risco [Cfr. a propósito o Acórdão do STJ de 18.02.2020, no proc. nº8963/16, in www.dgsi.pt.].

Donde, não tendo sido julgado procedente qualquer pedido com fundamento em responsabilidade civil, ou resultado a condenação dos Réus a ressarcir danos dos Autores, não cabia ao tribunal a quo pronunciar-se sobre a posição da Interveniente AG.

Improcede a nulidade.

Também nesta parte, não assiste razão aos recorrentes.

2.2.O exercício do contraditório

Noutra vertente da arguição da nulidade do acórdão, alegam os Réus que o Tribunal da Relação, ao conjeturar a procedência do recurso das Autoras, deveria ter ordenado a prévia notificação das partes para o exercício do contraditório sobre as questões não decididas na primeira instância.

Apontam a violação do disposto no artigo 665º, nº 3, do CPC.

In casu, é manifesto que tal não se verifica.

É bom de ver, que a circunstância prevenida no citado normativo – evitar decisão surpresa – não tem qualquer respaldo na situação sub judice.

Sempre se dirá, de todo o modo, que, a sentença, embora afaste a aplicação do regime da nulidade dos contratos à luz do RGCC, como solução do litígio, apreciou este pedido, como espelha o seguinte ponto que se reproduz – « Entendemos que, num primeiro momento e no cruzamento do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro) com os deveres de informação que resultam do CVM, incumbe ao intermediário financeiro alegar e provar que procedeu a uma comunicação adequada e efectiva dos termos do negócio. O não cumprimento desse dever pode conduzir à nulidade do contrato – de todo ele – nos termos do artigo 9º, nº 2, do RJCCG. (…) Pelo que, por esta via (artigo 9º, nº 2, do RJCCG) e em face do exposto, consideramos inexistir a nulidade cuja declaração é peticionada.

Improcede, consequentemente, o pedido de declaração de nulidade dos contratos celebrados e das ordens de subscrição.»

Nesse pressuposto, a Relação não apreciou o pedido em primeira mão.

O acórdão recorrido apreciou e julgou procedente, sem inovação ou surpresa – este pedido formulado na alínea H do petitório/ampliação, que foi objecto do contraditório pelos Réus na contestação e nas contra-alegações da apelação, enfatizando que os Autores, como atrás dito, apenas excluíram da sua pretensão recursiva o pedido de indemnização por danos não patrimoniais.

Os Réus, e ora recorrentes, dispuseram de ampla oportunidade de pronúncia acerca deste concreto pedido de declaração de nulidade dos contratos celebrados entre as partes em aplicação do RGCC, submetido à apreciação da Relação pelos Autores no seu recurso [Cfr. a propósito o Acórdão do STJ de 18.02.2020, no proc. nº8963/16, in www.dgsi.pt.].

Por outras palavras, a Relação usou dos poderes de cognição do pedido subsidiário em causa, como lhe competia, dentro do objecto do recurso e nos limites anteriormente discutidos pelas partes nos articulados e nas peças recursivas.

O acórdão recorrido conheceu do pedido subsidiário e das implicações do mesmo, tendo sido inteiramente cumprido o direito ao contraditório.

Conclui-se pela não verificação da apontada nulidade processual por violação do princípio do contraditório."

[MTS]