I. Para se concluir que existe uma oposição frontal de entendimentos jurisprudenciais sobre a mesma questão jurídica, justificadora da admissibilidade de um RUJ, não basta que dois acórdãos apresentem um sentido decisório divergente.II. Para justificar a intervenção orientadora do Pleno do STJ, tem de estar em causa uma óbvia e expressa clivagem jurisprudencial, traduzida num desfiar de argumentos contrapostos sobre o mesmo tema, não sendo suficiente que a divergência decisória seja determinada, essencialmente, pela consideração de concretos aspetos probatórios que relevaram num caso, mas não no outro,
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"1. O recorrente sustenta a sua reclamação para a Conferência, essencialmente, na invocação e no detalhar de factos que não constam da factualidade provada que baseou as decisões das instâncias sobre a questão dos juros, pelo que tal argumentação é, obviamente, inócua para a decisão sobre a presente reclamação.
No que, concretamente, respeita à invocação da oposição de acórdãos, afirma o reclamante, no seu requerimento, que «está em causa uma óbvia e expressa clivagem jurisprudencial traduzida num desfiar de argumentos contrapostos que justificam a intervenção orientadora do Pleno do STJ.»
Porém, um breve confronto entre a fundamentação dos dois acórdãos em análise permite facilmente concluir que assim não é, pois no acórdão fundamento a questão do entendimento interpretativo sobre o regime dos juros não é minimamente teorizada. Não há, portanto, nenhum «desfiar de argumentos contrapostos que justificam a intervenção orientadora do Pleno do STJ.»
2. O teor da decisão proferida nos termos do artigo 692º, n.º 1 do CPC, foi, na essência, o seguinte:
«Encontram-se preenchidos os requisitos formais da admissibilidade de um recurso para uniformização de jurisprudência, pois o requerente tem legitimidade, está em tempo, e juntou acórdão fundamento anterior ao acórdão recorrido.
Cabe apreciar a verificação dos requisitos substanciais exigido pelo artigo 688.º, n.º 1 do CPC, ou seja, a contradição sobre a mesma questão fundamental de direito, na vigência da mesma legislação, com a densificação de conteúdo que tem sido exigida pela jurisprudência reiterada do STJ.
Nos termos do art.º 688.º, do CPC:
«1 - As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.»
Sobre o modo como a divergência relevante para a existência de um problema de oposição de julgados deve ser aferida, a jurisprudência reiterada do STJ tem exigido que se trate de uma divergência essencial, ou seja, um confronto frontal (e não apenas lateral) que, no quadro de factualidades tipologicamente equiparáveis, revele inequivocamente uma diferente problematização de determinada solução legal. Esta exigência tem a ver com razões de segurança jurídica, máxime com a proteção do caso julgado (entretanto formado), cuja destruição não pode assentar em divergências secundárias ou meramente implícitas. Assim, só quando se constate a existência de dois entendimentos explicitamente e frontalmente opostos sobre a interpretação da mesma norma se justificará a preterição do valor da segurança jurídica das soluções com a consequente destruição do caso julgado. [...]
Vejamos se no caso concreto se verifica uma oposição frontal entre o que se decidiu no acórdão recorrido e o que se decidiu no acórdão fundamento.
No acórdão recorrido considerou-se que:
«Segundo a regra geral de repartição do ónus da prova, prevista no art.º 342º, n.º 1 do CC, cabia ao autor lesado demonstrar que a seguradora teve acesso à informação necessária para formular uma proposta de indemnização dos danos corporais, nos termos do artigo 37º do DL n.º 291/2007. Tal não significa que o único meio de prova seja, necessariamente, a apresentação de um requerimento do terceiro lesado dirigido à seguradora. Essa informação poderá constar de um relatório médico que contenha os elementos necessários para a quantificação dos danos e ao qual a seguradora tenha legalmente acesso. Mas tal tem de ser demonstrado pelo terceiro lesado que pretende penalizar a seguradora pelo incumprimento da regularização extrajudicial do sinistro.
A sanção do pagamento do dobro da taxa de juro visa, claramente, penalizar a inércia da seguradora que não pretende solucionar atempadamente o litígio por via extrajudicial e a sua indiferença a que o terceiro lesado tenha de recorrer a tribunal para ver ressarcidos os danos que sofreu.
Ora, no caso concreto não existem elementos para se concluir pela aplicação do dobro da taxa do juro legal.
No caso concreto, a factualidade assente que releva para a solução desta questão encontra-se nos pontos 50 a 53 (dos factos provados), dos quais consta que a seguradora não apresentou uma proposta de indemnização ao lesado, embora tenha assumido a responsabilidade pelo acidente e que tomou conhecimento da consolidação das lesões em 09.11.2015.
Não se demonstrou que o lesado tivesse apresentado um pedido de indemnização, tal como não se sabe se e quando a seguradora teve acesso ao relatório de alta clínica, e também não se sabe em que data os danos seriam totalmente quantificáveis e quando é que a seguradora teria conhecimento deste facto.
Dado que o acidente a que respeitam os presentes autos foi, simultaneamente, um acidente de trabalho, consta dos factos provados n.º 36, 37, 38 e 47 que o autor e a ré alcançaram um acordo, homologado por sentença (em 15.06.2016, já transitado em julgado) nos termos do qual a ré assumiu, no âmbito do processo respeitante ao acidente de trabalho, o pagamento de múltiplas quantias respeitantes a danos sofridos pelo autor. Todavia, nos presentes autos não se encontra demonstrado que, no âmbito desse processo, a seguradora tivesse tido conhecimento (e conhecimento atempado para cumprir os prazos) dos elementos referidos no artigo 37º do DL n.º 291/2007 para formular a proposta de indemnização do dano corporal em direito civil.
Conclui-se, assim, pela improcedência da pretensão do recorrente.»
No acórdão fundamento, sobre a questão do dobro da taxa do juro afirmou-se apenas o que se transcreve:
«Finalmente, cumpre analisar os dois pontos relativos aos juros de mora, que a recorrente incluiu no objecto da revista:
Saber se deve ser aplicado o regime previsto no artigo 38° do Decreto-Lei n° 291/2007, de 21 de Agosto) (Regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) e condenar a ré no pagamento em dobro dos juros de mora devidos;
Saber se os juros de mora devem ser contados desde a citação nesta acção ou desde a sentença da 1ª instância. Com interesse para a primeira questão assumir a responsabilidade - reconhecendo a culpa do seu Segurado na produção do acidente - não apresentou à Autora (CC) qualquer proposta razoável de indemnização", facto que a 1ª instância de considerou suficiente para a condenação em dobro.
A Relação, porém, observou que não há prova de que a autora tenha formulado extrajudicialmente qualquer pedido de indemnização à ré, o que impediria a aplicação da sanção.
A verdade, porém, é que não é condição de dispensa do dever de formular a proposta razoável de indemnização; razão pela qual os juros de mora em que a ré for condenada devem ser calculados aplicando o dobro da taxa legal (n°s 1 e 2 do artigo 38° do Decreto-Lei n° 291/2007). Procede, nesta parte, o recurso principal da autora.»
Nada mais se afirma no acórdão fundamento sobre a questão que a recorrente pretende ver apreciada pelo Pleno do STJ.
O que se concluiu da jurisprudência aí plasmada é que a formulação extrajudicial de um pedido de indemnização pela lesada à Seguradora não é condição de dispensa do dever de formular a proposta razoável de indemnização.
Esta foi, assim, a única questão abordada pelo acórdão fundamento.
Ora, confrontando essa decisão com o que consta do acórdão recorrido, não se pode afirmar que exista uma oposição frontal quanto a esse argumento, pois no acórdão recorrido não se afirma o contrário. Efetivamente, como supra transcrito, o que se afirmou foi «(...) não significa que o único meio de prova seja, necessariamente, a apresentação de um requerimento do terceiro lesado dirigido à seguradora. Essa informação poderá constar de um relatório médico que contenha os elementos necessários para a quantificação dos danos e ao qual a seguradora tenha legalmente acesso.»
O facto de o autor não ter procedido à formulação extrajudicial de um pedido de indemnização à Seguradora não foi considerado, no acórdão recorrido, como elemento essencial para o sentido da decisão. Deste modo, o acórdão recorrido não diverge do acórdão fundamento.
As razões normativas e factuais em que o acórdão recorrido assentou a sua decisão de não condenar a ré no pagamento do dobro da taxa não foram minimamente abordadas no acórdão fundamento, pois o acórdão recorrido baseou-se, essencialmente, na ausência de elementos para concluir que a seguradora tinha conhecimento suficiente para poder formular uma proposta de indemnização. Efetivamente, afirmou- não se sabe se e quando a seguradora teve acesso ao relatório de alta clínica, e também não se sabe em que data os danos seriam totalmente quantificáveis e quando é que a seguradora teria conhecimento deste facto.»
Para se concluir que existe uma oposição frontal de entendimentos jurisprudenciais sobre a mesma questão jurídica não basta que dois acórdãos apresentem um sentido decisório divergente. Tem de estar em causa uma óbvia e expressa clivagem jurisprudencial traduzida num desfiar de argumentos contrapostos para justificar a intervenção orientadora do Pleno do STJ, o que manifestamente não se verifica no caso concreto.
Concluiu-se, assim, que a alegada contradição de decisões que, na tese do recorrente, sustentaria o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência não se verifica, sendo, portanto, este recurso destituído de fundamento."
[MTS]