"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/11/2025

Jurisprudência 2025 (38)


Advogado; deveres deontológicos;
perda de chance


I. O sumário de RC 18/2/2025 (267/21.0T8GVA.C1) é o seguinte:

1. A responsabilidade civil do advogado pode resultar quer da violação da obrigação principal decorrente do contrato de mandato que celebrou com o seu cliente ou da sua nomeação como patrono, quer da violação de deveres acessórios e até deontológicos, mormente os que lhe são impostos pelo Estatuto da Ordem do Advogados, sendo seus pressupostos a conduta ilícita do réu-advogado – consistente na inexecução ou execução defeituosa do mandato –, a culpa, a existência de danos e o nexo de causalidade adequada entre estes e tal acção/omissão ilícitas.

2. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2022 uniformizou jurisprudência obrigatória no sentido de, no dano da perda de chance processual, para haver lugar a indemnização, caber ao lesado o ónus da prova da consistência e seriedade dessa chance.

3. Para apurar o dano da perda de chance há que realizar, primeiro, o julgamento dentro do julgamento, que consiste num juízo de prognose póstuma através do qual se pretende alcançar a decisão hipotética que o processo judicial teria tido, sem a falta do mandatário/advogado, devendo o tribunal da acção de indemnização adoptar a perspectiva do tribunal que decidiu o processo primitivo, reconstituindo o curso hipotético dos acontecimentos sem o evento/facto lesivo.

4. Se uma advogada, devidamente notificada, não apresentou réplica a uma reconvenção, nem transmitiu à sua cliente o teor dessa reconvenção, não lhe solicitando quaisquer esclarecimentos ou documentação adicional, tendo tomado essas decisões sem o conhecimento e/ou consentimento da cliente, além de lhe ter omitido as consequências e efeitos jurídicos da revelia que, por sua exclusiva culpa, conduziram à condenação de preceito da sua cliente, está inequivocamente demonstrada a prática, pela advogada, de um facto ilícito e culposo.

5. Concluindo-se, após realizar o julgamento dentro do julgamento pela existência de uma perda de chance processual consistente e séria e pela verificação de todos os demais pressupostos da responsabilidade civil da advogada – ocorrência do facto ilícito e culposo e imputação da perda de chance à sua conduta lesiva, segundo as regras da causalidade adequada –, proceder-se-á, num segundo momento, à apreciação do quantum indemnizatório devido, segundo o critério da teoria da diferença, nos termos prescritos no art. 566.º, n.º 2, do Código Civil, lançando-se mão, em última instância, do critério da equidade ao abrigo do n.º 3 deste mesmo artigo.

6. O seguro de responsabilidade civil profissional dos advogados tem natureza obrigatória e no confronto das cláusulas previstas nas condições particulares da apólice desse contrato de seguro com a norma imperativa do art. 101.º, n.º 4, da Lei do Contrato de Seguro, prevalece esta última, pelo que não são oponíveis, aos lesados beneficiários, as excepções de exclusão fundadas no incumprimento pelo segurado dos deveres de participação do sinistro à seguradora.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No processo sob recurso suscita-se, fundamentalmente, a questão da indemnização pelo denominado dano da perda de chance, em face da alegada falta de cumprimento de deveres profissionais por parte de uma advogada/patrona oficiosa, por não ter replicado a um pedido reconvencional deduzido numa acção, tendo o resultado final desse processo, no qual a omissão da patrona foi cometida, acabado por ser desfavorável à sua cliente/patrocinada, aqui autora – que veio a ser condenada, na íntegra, no pedido reconvencional –, não se conseguindo afirmar, com absoluto rigor, qual teria sido o desfecho daquela acção acaso a 1.ª ré tivesse procedido diligentemente, apresentando a réplica.

Concretamente, a 1.ª ré, na qualidade de advogada, foi nomeada patrona da autora, pela Ordem dos Advogados, em Novembro de 2017.

Não obstante na situação de nomeação oficiosa de patrono não existir um contrato base entre o cliente e o advogado, não se pode deixar de conferir ao advogado/patrono o mesmo conjunto de direitos e obrigações profissionais que competem a um advogado/mandatário judicial constituído mediante procuração forense.

Assim, a actividade dos advogados rege-se, por um lado, pelo regime do contrato de mandato civil, previsto nos arts. 1157.º e ss. do Código Civil, e, por outro lado, pelas regras constantes do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09-09-2015, em vigor à data dos factos.

Nos termos do art. 12.º, n.º 3, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto: “No exercício da sua atividade, os advogados devem agir com total independência e autonomia técnica e de forma isenta e responsável, encontrando-se apenas vinculados a critérios de legalidade e às regras deontológicas próprias da profissão”.

Com efeito, além das obrigações gerais do mandatário, enunciadas no art. 1161.º do Código Civil, para cujo cumprimento pontual, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé, segundo se alcança dos arts. 406.º e 762.º do Código Civil, há que atender aos deveres estatutários emergentes do EOA, designadamente o dever de praticar os actos de execução do mandato com zelo e diligência.

No caso, a 1ª ré, por via da sua nomeação para representar a autora, por força da regulamentação própria da actividade profissional dos advogados, ficou sujeita, no cumprimento do seu mandato forense/judiciário, à obrigação de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, tal qual resulta do art. 97.º, n.º 2, do EOA: “O advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas”.

Paralelamente o art. 100.º, n.º 2, alínea b), do EOA concretiza que o advogado, nas relações com o cliente, deve “[e]studar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e atividade”.

A responsabilidade civil do advogado poderá, pois, resultar quer da violação da obrigação principal decorrente do contrato de mandato que celebrou com o seu cliente ou da sua nomeação como patrono, quer da violação de deveres acessórios e até deontológicos, mormente os que lhe são impostos pelo citado Estatuto profissional, sendo seus pressupostos a conduta ilícita do réu-advogado – a qual consistirá, em geral, na inexecução ou execução defeituosa do mandato –, a culpa do mesmo – que se presume nos termos do art. 799.º do Código Civil –, a existência de danos e o nexo de causalidade adequada entre estes e tal acção/omissão ilícitas.

No fundo, trata-se de aplicar os princípios gerais da responsabilidade civil, tal qual prevê o art. 483.º do Código Civil.

As duas responsabilidades – responsabilidade civil e deontológica – não se excluem, podendo coexistir com consequências diversas, motivo pelo qual o advogado que falte culposamente aos deveres resultantes da assunção do mandato/patrocínio pode, em princípio, incorrer em responsabilidade disciplinar e civil.

Nos presentes autos, reitera-se, o que se debate é apurar se ocorre responsabilidade civil da senhora advogada, 1.ª ré, pelo alegado incumprimento dos seus deveres profissionais e deontológicos no âmbito de uma acção judicial, em que patrocinou a autora, e cuja conduta processual motivou, a final, a condenação da sua cliente num pedido reconvencional.

Por outro lado, há que indagar se esse incumprimento poderá fazer incorrer a 1.ª ré na obrigação de indemnizar a autora por via da figura do dano da perda de chance, que vem sendo “construída” pela doutrina e jurisprudência. [...]

[...] Paulo Mota Pinto, Direito Civil – Estudos, Perda de Chance Processual, 2021, p. 806, refere: “Para avaliar se existe ou não nexo de causalidade e qual é a consistência da chance frustrada, o tribunal da ação de indemnização deve realizar uma espécie de “julgamento dentro do julgamento” (…) tentando reconstituir, para efeitos indemnizatórios, qual teria sido o resultado no processo que se frustrou. Nesse “julgamento dentro do julgamento” … o tribunal da ação de indemnização deve, pois, adotar a perspetiva do tribunal do processo frustrado, para apurar como este teria decidido o processo (o que poderá ser particularmente relevante quanto a questões jurídicas sobre as quais existiam opiniões divergentes) no que constituiu uma apreciação de uma questão de facto e não uma questão de direito" [...].

Em face de alguma flutuação jurisprudencial, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2022 [Publicado no Diário da República n.º 18/2022, Série I de 26-01-2022, pp. 20-42.], veio, por sua vez, uniformizar como jurisprudência obrigatória:

“O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade”.

Na fundamentação deste aresto, que acompanhamos, escreve-se: “A responsabilidade civil (…) tem em vista “reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” (cf. art. 562.º do C. Civil), visando, no caso, colocar o lesado/mandante na situação em que ele se encontraria se não fosse o ato lesivo do seu mandatário, razão pela qual, é pacífico, o dano causado pela perda de chance não poderá ser superior ao direito que o seu representado tinha originariamente, ou seja, caso este direito (do representado) não existisse ou não tivesse qualquer consistência, não haverá (não pode haver) qualquer dano pela perda de chance suscetível de ser indemnizado.”

Por outro lado: “Se, como é o caso, em razão do comportamento indevido dum mandatário, o desenrolar e o desfecho normal dum processo não aconteceu e nem alguma vez acontecerá, não pode exigir-se que o dano decorrente de tal comportamento indevido seja objeto de uma certeza absoluta, ou seja, a certeza sobre a realidade hipotética do que não chegou a verificar-se tem sempre que se situar no domínio das probabilidades (das certezas relativas).

A aferição dum tal dano exigirá sempre a comparação entre uma situação real, atual, e uma situação hipotética, igualmente atual, sendo a prognose sobre a evolução hipotética do processo comprometido que irá permitir determinar a certeza relativa do dano.”

Prossegue-se, depois: “A verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, incluindo a existência do dano e de um nexo causal entre o facto lesivo e o dano, impõem, em linha com o que se referiu, que a “chance”, para poder ser indemnizável, seja “consistente e séria” e que a sua concretização se apresente com um grau de probabilidade suficiente e não com carácter meramente hipotético.

Só assim a “chance” preencherá, num limiar mínimo, a certeza que é condição da indemnizabilidade do dano, só assim este pode ser considerado como objetivamente imputável ao ato lesivo e só assim se respeitará a regra (e a ideia de justiça) de que ao lesante apenas poderá ser imposto que responda pelos danos que causou.

Significa isto que a toda a chance ou oportunidade perdida (a todo o ato lesivo e a todo processo perdido) não se segue, como que automaticamente e sem mais, uma indemnização por dano da perda de chance: a verificação do ilícito não contém já em si o dano a indemnizar.”

“(…) [A] questão da indemnização pelo dano da perda de chance, tal probabilidade – o mesmo é dizer, a consistência concreta da oportunidade ou “chance” processual que foi comprometida – tem sempre que ficar apurada/provada, uma vez que, sem a mesma estar apurada/provada, não se poderá falar em “dano certo” e sem este não pode haver indemnização.

Apuramento este que terá assim que ser feito na apreciação incidental – o já chamado “julgamento dentro do julgamento” – a realizar no processo onde é pedida a indemnização pelo dano de perda de chance, em que se indagará qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometido o ato lesivo (a falta do mandatário), indagação que no fundo irá permitir estabelecer, caso se apure que a ação comprometida tinha uma suficiente probabilidade de sucesso (ou seja, no mínimo, uma probabilidade de sucesso superior à probabilidade de insucesso), que há dano certo (a tal chance “consistente e séria”) e ao mesmo tempo o nexo causal entre o facto ilícito do mandatário e tal dano certo.

Apreciação/decisão hipotética em que, sendo assim, se procurará, num juízo de prognose póstuma, reconstituir, para efeitos da possível indemnização do dano da perda de chance, o desenrolar e a decisão que o processo (onde foi cometida a falta do mandatário) teria tido – na perspetiva do tribunal que o teria que decidir – sem tal falta do mandatário, com o que, concluindo-se que o processo teria tido uma suficiente (no referido limiar mínimo) probabilidade de sucesso, se estará também a concluir ter sido o evento lesivo conditio sine qua non (requisito mínimo da causalidade jurídica) do dano.

Apreciação/decisão hipotética que acabará também por relevar para o quantum indemnizatório, uma vez que a indemnização deve corresponder ao valor da chance perdida e este valor será o reflexo do grau de probabilidade da perda de chance em relação à vantagem que se procurava e se perdeu em definitivo (Mesmo quem reconhece o dano da perda de chance como dano autónomo, acaba a admitir, em sede de cálculo, que o mesmo depende da verificação e extensão do dano final.).

Assim, visando-se com tal apuramento estabelecer o preenchimento de requisitos da responsabilidade civil (dano e nexo causal), estão em causa (no subsequente processo, em que se pede a indemnização pelo dano da perda de chance) elementos/factos constitutivos do direito indemnizatório invocado pelo lesado/mandante, sendo este – face ao encargo que o ónus da prova, quando aos requisitos da responsabilidade civil, lhe coloca (cf. 342.º/1 do C. Civil) – que terá que fornecer os elementos que irão permitir apurar qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometida a falta do advogado (ou seja, os factos que irão permitir apurar que o processo comprometido tinha uma suficiente, no referido limiar mínimo, probabilidade de sucesso ou, dito por outras palavras, que a chance perdida era consistente e séria).

Ou seja, no “julgamento dentro do julgamento”, como juízo de prognose ex post que é, o que se pretende alcançar é a prova da decisão hipotética que o processo teria tido sem a falta do mandatário (procurando reconstruir a situação hipotética que, sem tal falta, existiria), devendo o tribunal da acção de indemnização adoptar a perspectiva do tribunal que teve que decidir o processo primitivo, uma vez que o que está em causa, em termos de configuração jurídica, é a reconstituição do curso hipotético dos acontecimentos sem o evento/facto lesivo. [...]

[MTS]