"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/02/2014

Anulação da decisão recorrida, cumulação "oculta" de pedidos e poderes do juiz do tribunal a quo

 
1. O acórdão da RG de 14/11/2013 -- disponível no endereço
decidiu um caso que, no essencial e no que é agora relevante, se caracteriza pelo seguinte:
-- Uma empresa propôs uma acção contra uma companhia de seguros, pedindo a condenação desta no pagamento de uma quantia para ressarcimento dos danos provocados por dois furtos;
-- O tribunal de 1.ª instância proferiu uma decisão condenatória da companhia seguradora pelos danos sofridos pela demandante, em consequência dos dois furtos de que esta última foi vítima;
-- A companhia de seguros demandada (e condenada a indemnizar a demandante pelos dois furtos que esta sofreu) interpôs recurso de apelação;
-- A Relação deu provimento parcial a este recurso, ordenando que a 1.ª instância aditasse um artigo à base instrutória; este artigo respeitava apenas ao segundo dos referidos furtos;
-- Repetido o julgamento para a resposta a este artigo, o juiz de 1.ª instância proferiu uma nova decisão em que considerou a acção parcialmente procedente; nesta nova decisão, o juiz absolveu a demandada quanto à indemnização respeitante aos danos sofridos pela demandante em consequência o primeiro furto, mantendo a condenação quanto ao ressarcimento dos danos decorrentes do segundo furto;
-- Interposto novo recurso (agora -- também -- pela demandante), a RG entendeu (i) que o juiz de 1.ª instância, ao transformar uma decisão totalmente condenatória numa decisão parcialmente condenatória, violou a regra do esgotamento do poder jurisdicional, pois que, com base na mesma matéria de facto relativa ao primeiro furto, proferiu duas decisões distintas, e (ii) substituiu esta decisão parcialmente absolutória por uma decisão condenatória da companhia de seguros numa quantia destinada a ressarcir os danos sofridos pela demandante em ambos os furtos.
 
2. Não está em causa o poder de a RG considerar a acção totalmente procedente depois de a 1.ª instância ter julgado a acção apenas parcialmente procedente. O que pode estar em causa é o fundamento, utilizado pela RG no acórdão em análise, de que, mesmo após a anulação da primeira decisão, o juiz de 1.ª instância só tem poder jurisdicional para voltar pronunciar-se sobre matéria que se relacione com o fundamento da anulação.
Considerado sem mais, este argumento não pode ser  procedente. A anulação pela Relação da decisão recorrida, ainda que com um fundamento circunscrito a um aspecto ou um elemento dessa decisão, não é uma anulação parcial. O fundamento da anulação pode ser parcial, mas a anulação da decisão é total. Sendo assim, depois de a decisão recorrida ter sido anulada in toto, reabre-se, também in toto, o poder jurisdicional do juiz a quo.
O caso concreto comporta, porém, um elemento que não foi considerado nem no primeiro recurso, nem no acórdão em análise, mas que que teria sido muito relevante para a sua decisão. O problema é o seguinte: apesar de -- segundo parece -- a demandante ter formulado um pedido unitário, isto é, ter apresentado um pedido relativo ao ressarcimento conjunto dos danos decorrentes do primeiro e do segundo furto, será que não se verifica realmente uma cumulação de pedidos? A importância da resposta a esta questão é obvia: o que vale para a anulação de uma decisão sobre um único pedido não vale necessariamente para a anulação de uma decisão relativa a um dos pedidos cumulados.
Uma cumulação de pedidos ocorre, não quando a parte a apresenta como tal, mas quando estão preenchidos os requisitos que a caracterizam (dois ou mais pedidos com utilidade económica própria formulados em conjunto numa acção). Não pode deixar de ser assim, dado que a qualificação jurídica é matéria de direito de que as partes não podem dispor. É por isso que um pedido unitário pode "ocultar" uma cumulação de pedidos, mas esta, apesar de "oculta", deve ser tratada como tal pelo tribunal da causa e pelos tribunais superiores.
Há, aliás, um argumento substancial a favor deste entendimento: de outra forma, uma verdadeira cumulação de pedidos seria tratada diferentemente consoante a parte a apresentasse como tal ou a dissolvesse num pedido unitário. Basta pensar, por exemplo, nas consequências quanto à recorribilidade da decisão: a "ocultação" num pedido unitário cujo valor é maior que a alçada do tribunal de um pedido cujo valor não ultrapassa essa alçada não pode justificar a recorribilidade deste último pedido. De outra forma, permitir-se-ia que a parte contornasse a irrecorribilidade da decisão quanto a um pedido que realmente formula, pela circunstância de o "ocultar" num pedido unitário mais vasto.. 
Posto este enquadramento, é possível voltar a analisar o caso sub iudice. Apesar de a demandante -- segundo parece -- ter formulado um pedido unitário, este "esconde" realmente uma cumulação de pedidos. O que a demandante pretende é ser ressarcida dos danos sofridos com o primeiro furto e com o segundo furto; acresce que cada um destes furtos e respectivos prejuízos constitui um causa de pedir autónoma, pelo que a demandante pretende realmente obter a condenação da demandada em dois pedidos distintos fundados em duas causas de pedir igualmente distintas.
Sendo assim, há que concluir que, se, no primeiro recurso interposto, a Relação tivesse detectado a cumulação "oculta" e tivesse confirmado a decisão quanto a um dos pedidos (ou seja, quanto a um dos furtos) e tivesse anulado a decisão quanto ao outro pedido (isto é, quanto ao outro furto), o juiz de 1.ª instância não poderia pronunciar-se, de novo, sobre o que anteriormente decidira quanto ao pedido cuja decisão fora confirmada pela Relação. Quanto a esse pedido esgotara-se o seu poder jurisdicional, dado que a decisão confirmatória da Relação só poderia vir a ser alterada num eventual recurso interposto para o STJ.
Sucede, no entanto, que a Relação que apreciou o primeiro recurso não detectou a cumulação "oculta" e se limitou a anular a decisão da 1.ª instância (então, necessariamente, in toto). Neste condicionalismo, parece difícil entender que o juiz da 1.ª instância não poderia voltar a apreciar a causa igualmente in toto. É esta circunstância que torna duvidosa a orientação da RG no acórdão em análise. 

3. Numa nota final, talvez possa ser reforçada a chamada de atenção para a cumulação "oculta" de pedidos. Os tribunais devem estar atentos a essa cumulação, dado que ela tem de preencher os respectivos pressupostos processuais (cf. art. 553.º a 555.º nCPC) e deve ser tratada como uma verdadeira cumulação, nomeadamente quanto à apreciação autónoma de cada um dos pedidos cumulados tanto pela 1.ª instância, como pelos tribunais de recurso. 

MTS