"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/02/2014

Conflito de competência entre juízos de pequena instância cível e juízos cíveis

 
1. Entre os juízos de pequena instância cível e os juízos cíveis da Comarca de Lisboa surgiu um conflito quanto à competência para a tramitação e julgamento das acções cíveis, instauradas depois de 1/9/2013, com valor não superior a € 5000 e destinadas ao cumprimento de obrigações pecuniárias, à indemnização por dano e à entrega de coisa móvel. Como se sabe, a estas acções correspondia outrora, nos termos do art. 462.º aCPC, a forma de processo sumaríssimo.
O conflito decorre -- segundo se supõe -- das seguintes circunstâncias:
-- O art. 2.º, n.º 1, L 41/2013, de 26/6, estabelece que "as referências, constantes de qualquer diploma, ao processo declarativo ordinário, sumário ou sumaríssimo consideram-se feitas para o processo declarativo comum";
-- O art. 101.º L 3/99, de 13/1 (LOFTJ) dispõe, na parte que agora interessa, que "compete aos juízos de pequena instância cível preparar e julgar as causas cíveis a que corresponda a forma de processo sumaríssimo [...]"; 
-- O art. 130.º L 52/2008, de 28/8 (NLOFTJ) estabelece, também apenas na parte que agora releva, que "compete à pequena instância cível preparar e julgar as causas cíveis a que corresponda a forma de processo sumaríssimo [...]".
Como o art. 2.º, n.º 1, L 41/2013 impõe que as referências feitas ao processo sumaríssimo passem a ser consideradas como realizadas para o processo declarativo comum, pode perguntar-se se isso implica que os juízos de pequena instância cível (ou as pequenas instâncias cíveis) deixam de ser competentes para os processos que, antes de 1/9/2013 eram qualificados como sumaríssimos.
 
2. Em abstracto, a referência ao processo sumaríssimo (ou a qualquer outra forma de processo) constante de uma regra jurídica pode ser considerada como uma qualificação ou como uma remissão:
-- A referência à forma de processo deve ser vista como uma qualificação quando a regra qualifica determinado processo, atendendo ao seu valor e ao seu objecto, como um processo sumaríssimo;
-- A referência a essa forma de processo deve ser entendida como uma remissão quando a regra, em vez de aludir a um processo com determinadas características -- em concreto, a um processo cujo valor não excede a alçada da 1.ª instância e que tem por objecto o cumprimento de obrigações pecuniárias, a indemnização por dano ou a entrega de coisas móveis --, emprega apenas a expressão "processo sumaríssimo".
A distinção entre uma referência qualificatória e uma referência remissiva tem importância no actual contexto, porque o art. 2.º, n.º 1, L 41/2013 se aplica à primeira, mas não à segunda. Dito de outro modo: o art. 2.º, n.º 1, L 41/2013 requalifica os processos que antes eram qualificados como ordinários, sumários e sumaríssimos em processos declarativos comuns, mas não determina que as referências de carácter remissivo que são feitas para estas formas do processo declarativo passem a ser feitas para o processo declarativo comum.
O art. 2.º, n.º 1, L 41/2013 destina-se a acabar com a diferença na tramitação entre diversas formas do processo declarativo comum, mas não pode visar acabar com a aferição da competência em razão da forma do processo, desde logo porque isso retiraria qualquer sentido prático a essa aferição. No limite, se a referência a uma forma de processo ordinária, sumária ou sumaríssima passasse a ser entendida como feita ao processo declarativo comum, isso implicaria, por exemplo, que um tribunal que só tinha competência para o processo ordinário passaria a ser competente para um processo sumaríssimo, e vice-versa. É por isso que a referência a qualquer uma das antigas formas do processo declarativo comum nas leis de organização judiciária vigentes não pode ser abrangida pelo disposto no art. 2.º, n.º 1, L 41/2013.
Esta conclusão já é suficiente para que se deva entender que o art. 2.º, n.º 1, L 41/2013 não abrange nem o art. 101.º L 3/99, nem o art. 130.º L 52/008. Estes preceitos não qualificam um certa forma de processo como sumaríssima; o que eles fazem é delimitar a competência dos juízos ou dos tribunais de pequena instância cível em função de uma determinada forma de processo. Por isso, a remissão daqueles preceitos para o processo sumaríssimo deve ser entendida como uma remissão para um processo com um certo valor e com um determinado objecto.
Acresce, na sequência do acima referido, ainda um outro aspecto. Se se considerasse que a referência ao processo sumaríssimo que consta do art. 101.º L 3/99 e do do art. 130.º L 52/2008 se deveria entender como feita ao processo declarativo comum, então isso implicaria que estes preceitos deixariam de ter qualquer função delimitadora da competência dos juízos ou tribunais de pequena instância civil e atribuiriam competência a estes juízos ou tribunais para qualquer acção que seguisse a forma de processo declarativo comum. Isto é: a seguir-se a orientação que entende que a remissão para o processo sumaríssimo que consta daqueles preceitos deve ser considerada como feita para o processo declarativo comum, isso não teria como consequência retirar nenhuma competência aos juízos e aos tribunais de pequena instância, mas antes atribuir a esses juízos ou tribunais competência para qualquer processo declarativo comum. Se, com fundamento no disposto no art. 2.º, n.º 1, L 41/2013, se entendesse que onde está "processo sumaríssimo" deveria ler-se "processo declarativo comum", então a consequência não seria a de que os juízos e tribunais de pequena instância civil deixariam de ser competentes para a apreciação dos antigos processos sumaríssimos, mas antes a de que passariam a ser competentes para qualquer processo declarativo comum. Nesta óptica, o conflito que se originaria entre os juízos de pequena instância cível e os juízos cíveis não seria um conflito negativo (nenhum dos tribunais é competente para os processos a que corresponda a antiga forma sumaríssima), mas antes um conflito positivo (qualquer desses tribunais seria competente para qualquer acção que seguisse a forma declarativa comum, incluindo qualquer acção a que correspondesse a antiga forma sumaríssima).
 
3. Pelo exposto, há que concluir que a referência ao processo sumaríssimo que consta do art. 101.º L 3/99 e do art. 130.º L 52/2008 tem um sentido puramente remissivo: o legislador, em vez de aludir a um processo com determinadas características, utilizou a expressão "processo sumaríssimo" para descrever um certo tipo de processo quanto ao valor e ao objecto; apesar de o processo sumaríssimo ter desaparecido como forma do processo declarativo comum, não desapareceram os processos que apresentam as características dos antigos processos sumaríssimos quanto ao valor e ao objecto; logo, aqueles preceitos devem ser interpretados como se estabelecessem que "compete aos juízos de pequena instância cível/à pequena instância civil preparar e julgar as causas cíveis  cujo valor não exceda a alçada da 1.ª instância e que tenham por objecto o cumprimento de obrigações pecuniárias, a indemnização por dano e a entrega de coisas móveis". Neste sentido, não se verifica nenhuma alteração na competência dos juízos ou dos tribunais de pequena instância cível: estes continuam a ser competentes para os processos que apresentam as características dos antigos processos sumaríssimos, dado que estes desapareceram enquanto nomen iuris, mas não enquanto processos delimitados em função de certas características.
 
MTS