"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/11/2025

Legislação (246)


RAP


-- Reg. CSM 1241/2025, de 24/11

Aprova o Regulamento da Aceleração Processual

 

Jurisprudência 2025 (39)


Pedidos condicionais:
inadmissibilidade*


1. O sumário de RL 20/2/2025 (30416/22.5T8LSB.L1-6) é o seguinte

I. O condomínio constitui um centro autónomo de imputação de efeitos jurídicos, razão pela qual o legislador o dotou de organicidade e, embora não lhe tenha atribuído personalidade jurídica (ao contrário do que acontece noutros países), admite que o mesmo possa ser parte em acções judiciais.

II. A concessão de personalidade judiciária ao condomínio não é lata e irrestrita: a medida da mesma coincide com as funções do administrador. Fora deste âmbito (dos poderes do administrador) o condomínio não tem personalidade judiciária, o que determina que - em tudo o que se situe fora daquele âmbito – os condóminos agirão em juízo em nome próprio, com a personalidade judiciária que a personalidade jurídica lhes confere.

III. O artigo 12.º, al. e), do CPC tem necessariamente de ser conjugado com os artigos 1436.º e 1437.º do CC, onde se regula sobre as funções e legitimidade do administrador.

IV. Os actos conservatórios previstos na al. g) do art.º 1436.º do CC, quer sejam de natureza material e/ou judicial, são os que nada resolvem em definitivo, que não comprometem o futuro, visando apenas manter uma coisa ou um direito numa determinada situação, isto é aqueles que são adequados a evitar a degradação ou destruição do conjunto de elementos que integram as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal.

V. Quando a questão se centra na ausência de deliberação, estamos já no âmbito da capacidade judiciária e da falta de deliberação, tal como a mesma vem regulada no art.º 29.º do CPC, e não no campo da falta de personalidade judiciária.

VI. Numa acção judicial, a formulação do pedido é uma necessidade que resulta da consagração do princípio do dispositivo; mas a lei não se basta com a formulação do pedido, antes impondo que o mesmo seja formulado de modo claro e inteligível e que seja preciso e determinado – art.º 186.º do CPC.

VII. Por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, a lei processual não admite, por via de regra, a condenação condicional, isto é, aquela em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto.

VIII. À semelhança das situações de ineptidão da petição inicial, a formulação de pedidos condicionais, vagos e genéricos consubstancia uma excepção dilatória, geradora de absolvição da instância, sendo inquestionável, em face do artigo 577º do CPC (onde consta expressamente a referência a “entre outras”) o carácter exemplificativo das excepções ali tipificadas.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"c) Da excepção dilatória inominada de formulação de pedidos genéricos

O Autor intentou a presente acção formulando os seguintes pedidos:

a) Serem os 1º, 2º e 3º RR. condenados a usar a fracção “C” para fins exclusivamente habitacionais, bem como, na sanção pecuniária compulsória de 100€ por cada dia de atraso no cumprimento ou em situação de incumprimento deste dever.
 
b) Todos os RR. solidariamente condenados a:
i) Custear os estudos que o A. mandará elaborar demonstrativos do impacto que a remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter, na estabilidade e segurança de todo o prédio;
ii) Em função das conclusões técnicas obtidas, custear todas as obras necessárias para reconstruir uma situação idêntica à preexistente relativamente às remoções por si realizadas, com garantia de plena estabilidade do prédio;
iii) Apresentar à Câmara Municipal de Lisboa os projectos necessários, tendo em vista a regularização formal do processo do edifício e reduzir, até onde for possível, o risco de ofensa as suas estruturas;
iv) Garantir por meio de inscrição sobre as fracções B e C, na Conservatória do Registo predial, sem limite de capital e como encargo em espécie, sem prazo determinado os riscos que, mesmo com a execução dos trabalhos que sejam recomendados pelos estudos a efectuar, sempre subsistirão;
v) Reembolsar todas as despesas suportadas, em resultado da sua conduta, em causa nestes autos. Designadamente a título de honorários, encargos e taxas de justiça, custas judiciais e pareceres técnicos que se venham a apurar em sede de execução de sentença.

Apreciando a admissibilidade dos pedidos formulados, consta da fundamentação da decisão recorrida o seguinte:

“É nos articulados, enquanto peças processuais em que as partes expõem os fundamentos da acção e da defesa e formulam os pedidos correspondentes, que as partes definem as suas pretensões jurisdicionais - cfr. art.º 147º do Código de Processo Civil.

Para que o tribunal possa dirimir um concreto litígio submetido à sua apreciação, indispensável se torna que as partes fixem com precisão os termos exactos da controvérsia.

A Petição inicial, como articulado onde o demandante propõe a acção, deduzindo certa pretensão de tutela jurisdicional, com a menção do direito a tutelar e dos fundamentos respectivos, e que é levada ao conhecimento do R. é a base do processo. É aí que se formula o pedido e se invoca a causa de pedir, ou seja, o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido pelo A., isto é, no acto ou facto jurídico em que o A. se baseia para formular o seu pedido (art.º 5º, n.º 1 e 552º, n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil).

Nos termos do art.º 552º, n.º 1 do Código de Processo Civil na P.I. deve o autor:

a) (…)
e) Formular o pedido;(…)

O pedido é, conforme decorre do n.º 3 do art.º 498º do Código de Processo Civil o efeito jurídico que se pretende obter com a acção. É este que delimita o círculo dentro do qual o Tribunal tem de mover-se para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir (cfr. Art.º 615º, n.º 1 al. e) do Código de Processo Civil).

Assim o pedido deve ser claro e inteligível; coerente com a causa de pedir; e legalmente possível.

Para que tal ocorra, o pedido deve ser formulado com toda a precisão, especificando nitidamente tanto o objecto jurídico da acção (o efeito que o A. pretende obter) como o seu objecto material.

A precisão do pedido resulta da necessidade de criar a certeza jurídica que é um atributo da própria essência da decisão sendo também o elemento definidor do caso julgado.

Daí que a lei estatua os casos excepcionais em que é permitido formular pedidos genéricos (cfr. Art.º 556º do CPC) referindo que a mesma só pode ocorrer quando o objecto mediato da acção seja uma universalidade de facto ou de direito; quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito de o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o art.º 569º do Código Civil, ou quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro acto que deva ser praticado pelo Réu.

Atentando nos pedidos formulados nos autos, é manifesto que os mesmos padecem de vícios que determinam a impossibilidade de prosseguimento dos autos.

Efectivamente peticiona o A.

a) Ser os 1º, 2º e 3º RR. condenados a usar a fracção “C” para fins exclusivamente habitacionais, bem como, na sanção pecuniária compulsória de 100€ por cada dia de atraso no cumprimento ou em situação de incumprimento deste dever.
b) Todos os RR. solidariamente condenados a:
i. Custear os estudos que o A. mandará elaborar demonstrativos do impacto que a remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter, na estabilidade e segurança de todo o prédio;
ii. Em função das conclusões técnicas obtidas, custear todas as obras necessárias para reconstruir uma situação idêntica à preexistente relativamente às remoções por si realizadas, com garantia de plena estabilidade do prédio;
iii. Apresentar à Câmara Municipal de Lisboa os projectos necessários, tendo em vista a regularização formal do processo do edifício e reduzir, até onde for possível, o risco de ofensa as suas estruturas;
iv. Garantir por meio de inscrição sobre as fracções B e C, na Conservatória do Registo predial, sem limite de capital e como encargo em espécie, sem prazo determinado os riscos que, mesmo com a execução dos trabalhos que sejam recomendados pelos estudos a efectuar, sempre subsistirão;
v. Reembolsar todas as despesas suportadas, em resultado da sua conduta, em causa nestes autos. Designadamente a título de honorários, encargos e taxas de justiça, custas judiciais e pareceres técnicos que se venham a apurar em sede de execução de sentença.

Ora, relativamente ao primeiro pedido, coloca-se desde logo a questão de saber se o mesmo é idóneo. O A. pretende a condenação dos RR. a usar a fracção “C” para fins exclusivamente habitacionais. O fim a que uma fracção autónoma é destinada constitui uma limitação ao exercício do direito de propriedade de cada condómino sobre a sua fracção, e encontra-se definido no título constitutivo da propriedade horizontal.

Assim, utilizar a fracção para o fim a que se destina é uma decorrência da lei, não cabendo ao Tribunal condenar a cumprir a lei, obrigação que se impõe a todos os cidadãos.

Acresce que, nos termos alegados pelo A., a referida fracção encontra-se ligada, por via das obras efectuadas, à loja sita no R/C do mesmo prédio. Logo, afigura-se que este pedido apenas faria sentido após o pedido de realização de obras de reposição da individualização das fracções, o que, em verdade, não é peticionado.

Relativamente aos pedidos formulados na alínea b), pontos i) e ii) os mesmos encontram-se formulados em termos absolutamente condicionais.

Pretende-se que os RR. sejam condenados a custear os estudos que o A. mandará elaborar demonstrativos do impacto que a remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter, na estabilidade e segurança de todo o prédio.; e, em função das conclusões técnicas obtidas, custear todas as obras necessárias para reconstruir uma situação idêntica à preexistente relativamente às remoções por si realizadas, com garantia de plena estabilidade do prédio.

Nunca o tribunal poderá concluir nos termos peticionados, sob pena de nulidade da decisão. Não pode o tribunal condenar os RR. a custear um estudo que não se sabe quando e se o A. mandará elaborar, a quem e por que valor.

Acresce que, o tribunal não pode também condenar a efectuar obras apenas se o estudo concluir que as mesmas são necessárias.

Já o pedido formulado em b.iv) é, para além de condicional, um pedido indeterminado.

Pretende o A. que os RR. sejam condenados a “Garantir por meio de inscrição sobre as fracções B e C, na Conservatória do Registo predial, sem limite de capital e como encargo em espécie, sem prazo determinado os riscos que, mesmo com a execução dos trabalhos que sejam recomendados pelos estudos a efectuar, sempre subsistirão”. Ora, a procedência deste pedido estaria dependente da realização de um estudo, de esse estudo concluir pela existência de danos e necessidade de execução de trabalhos, de executados esses trabalhos subsistirem riscos de danos. Tudo isto são eventos futuros e incertos, que, logicamente, não podem ser garantidos por uma quantia incerta e por tempo indeterminado!

Conforme se refere no Ac STJ de 07.04.2011 (relator Lopes do rego) in www.dgsi.pt, a lei não admite a figura da condenação condicional. A sentença judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão da causa, não é possível.

Também o Acórdão de 15/10/2020 do TRG (relator António Boavida) que, pela clareza de exposição, seguimos de perto refere “Por um lado, o artigo 610º do CPC permite o julgamento no caso de inexigibilidade da obrigação no momento em que a acção é proposta, mas trata-se de uma possibilidade restrita, não ampla. O artigo versa somente sobre situações em que a obrigação é inexigível (por exemplo, por não se encontrar ainda vencida, não ter decorrido o prazo certo a que está sujeita, o prazo ser incerto e a fixar pelo tribunal) e não sobre casos em que está em causa a própria constituição da obrigação. Admite-se a condenação do réu no cumprimento de uma obrigação ainda não exigível, mas que o réu (v. nº 2 do art.º 610º) ou o tribunal (v. nº 1 do art.º 610º) reconhece existir. Já não é admissível a condenação do réu numa prestação que pode nunca vir a constituir-se ou em que o facto condicionante da sua constituição sempre exigiria ulterior verificação judicial. E é assim por imposição do artigo 610º, que restringe os casos em que é lícita a condenação do réu in futurum (apenas em situações de inexigibilidade da obrigação), e por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais. Isto porque uma condenação condicional compromete a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção, além de a tutela alcançada pelo demandante não ser dotada de efectividade; são decisões boomerang ou de “ida e volta”, que acabam por não solucionar definitivamente o litígio, que em maior ou menor grau subsiste entre as partes, tendendo a necessitar de ser resolvido através de nova acção.”

Donde se impõe concluir que estes pedidos, por condicionais, não são legalmente admissíveis.

No ponto b.iii) do pedido peticiona o A. a condenação dos RR. a apresentar Câmara Municipal de Lisboa os projectos necessários, tendo em vista a regularização formal do processo do edifício e reduzir, até onde for possível, o risco de ofensa as suas estruturas.

Ora o processo camarário é um procedimento administrativo a que os Tribunais civis são alheios, não cabendo a este tribunal apreciar a existência/inexistência/invalidade do processo camarário.

Afigura-se assim que os pedidos formulados não preenchem os requisitos do pedido, sendo vagos, indeterminados e condicionais e, por isso, inadmissíveis.

A lei não determina expressamente qual a consequência para a formulação ilegal de pedidos genéricos e condicionais, sendo diversas as soluções que tem vindo a ser apontadas pela doutrina e pela jurisprudência.

Assim, Castro Mendes considera que deve haver indeferimento liminar da PI por verificação de excepção dilatório atípica (DPC, III, 330), Anselmo de Castro entende que tal vicio determina o indeferimento liminar da petição por ineptidão (DPC, vol. II, p. 250).

A jurisprudência maioritária, com a qual tendemos a concordar, defende a absolvição da instância por verificação de uma excepção dilatória atípica (AC RP de 13/4/1978, CJ, tomo III, pág. 812 e Ac. STJ de 8/2/1994, CJSTJ, tomo I, pág. 95).”

Apreciando:

A noção de pedido encontra-se consagrada no art.º 581.º, n.º 3, do CPC e corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da acção interposta, traduzindo-se, em concreto, na providência que aquele solicita ao Tribunal.

Segundo os ensinamentos de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio da Nora (in Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 245) o pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor, sendo que nos mesmo sentido são os dizeres de Miguel Teixeira de Sousa no seu livro Introdução ao Processo Civil, pág. 23.

Trata-se de um elemento fundamental que emerge da circunstância de se ter colocado nas mãos dos interessados o accionamento dos mecanismos jurisdicionais e a escolha das providências que os invocados direitos garantem. [...]

Dito isto, urge analisar os diversos pedidos formulados pelo Autor:

a) Serem os 1º, 2º e 3º RR. condenados a usar a fracção “C” para fins exclusivamente habitacionais, bem como, na sanção pecuniária compulsória de 100€ por cada dia de atraso no cumprimento ou em situação de incumprimento deste dever.

Concordamos com a decisão recorrida quando refere que “o fim a que uma fração se destina constitui uma limitação ao exercício do direito de propriedade de cada condómino sobre a sua fração, encontrando-se definido no título constitutivo da propriedade horizontal”.

Assim, condenar os Réu a utilizar a fração para fins exclusivamente habitacionais equivale a condená-los a cumprir a lei…. Ora, a lei impõe-se por si, não cabendo ao Tribunal condenar ninguém a cumprir aquilo que resulta da lei.

O Tribunal existe para dar resposta a situações em que a lei é violada. E nessa conformidade o pedido é deduzido e aferida a sua viabilidade.

Num caso como o dos autos, a lógica e a viabilidade, ditariam que o pedido formulado fosse “serem os Réus condenados a absterem-se de usar a fracção C para outros fins que não exclusivamente habitacionais e no pagamento de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento deste dever.”

Só que não foi esse o pedido formulado! E o pedido formulado pelo Autor não tem viabilidade não sendo a sentença o meio idóneo para condenar alguém a dar a uma fracção o uso que resulta da sua própria natureza.

O pedido há-de ser encarado e formulado como destinando-se a repor a legalidade de uma determinada situação concreta (desconforme ou ilícita) - prestação de non facere – e não de condenação ….

Pelo que partilhamos das mesmas reservas em relação ao pedido formulado sob a al. a) que o Tribunal a quo.

Poder-se-ia argumentar que estaríamos perante um pedido implícito. Mas entendemos que não e que a situação é exactamente a inversa! Implícito à condenação dos Réus a absterem-se de dar à fracção um uso distinto daquele a que está destinado (pedido omitido) é que está a condenação no cumprimento da lei (pedido expresso).

Sem prejuízo da desformalização do processo civil, e da aplicação de eventuais regras da hermenêutica, não poderá o Tribunal converter um pedido formulado na positiva, para um pedido na sua vertente negativa, sob pena de violação do art.º 3.º e 609.º do CPC, sendo certo que o Autor nunca pediu a condenação dos Réus a absterem-se de dar à fracção o uso que, hipoteticamente, estarão a dar e que não é será o definido no título constitutivo da propriedade horizontal.

Conforme se referiu no Ac. do STJ de 22-03-2007 (Relator Sousa Peixoto, proc. 06S3961) “O pedido constitui, pois, uma parte da petição absolutamente distinta da sua parte narrativa e há-de ser formulado em separado e de forma inequívoca. E compreende-se que assim seja, uma vez que a exposição das razões de facto e de direito não podem ser confundidas com o pedido. Com efeito, nada obsta a que o autor na parte narrativa da petição afirme ter direito a determinada importância e depois acabe por formular um pedido de quantia inferior àquela.

O recorrente entende que o pedido formulado na conclusão da petição inicial deve ser integrado com o que havia sido alegado na parte narrativa da petição, mas isso implicaria que o juiz procedesse a uma interpretação da vontade do autor, o que a estrutura formal da petição não consente, uma vez que dessa interpretação poderia resultar um pedido diferente daquele que o autor realmente quis, o que constituiria uma violação do princípio dispositivo (art.º 3.º, n.º 1, do CPC).”

Pelo que entendemos que o elemento literal do pedido formulado não comporta a interpretação com a formulação que, outro sim, o segmento do pedido deveria conter.

b) Serem todos os RR. solidariamente condenados a:
i. Custear os estudos que o A. mandará elaborar demonstrativos do impacto que a remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter, na estabilidade e segurança de todo o prédio;
ii. Em função das conclusões técnicas obtidas, custear todas as obras necessárias para reconstruir uma situação idêntica à preexistente relativamente às remoções por si realizadas, com garantia de plena estabilidade do prédio;
iii. Apresentar à Câmara Municipal de Lisboa os projectos necessários, tendo em vista a regularização formal do processo do edifício e reduzir, até onde for possível, o risco de ofensa as suas estruturas;
iv. Garantir por meio de inscrição sobre as fracções B e C, na Conservatória do Registo predial, sem limite de capital e como encargo em espécie, sem prazo determinado os riscos que, mesmo com a execução dos trabalhos que sejam recomendados pelos estudos a efectuar, sempre subsistirão;
v. Reembolsar todas as despesas suportadas, em resultado da sua conduta, em causa nestes autos. Designadamente a título de honorários, encargos e taxas de justiça, custas judiciais e pareceres técnicos que se venham a apurar em sede de execução de sentença.

Alegou a 4.ª Ré, em sede de contestação, que estaríamos perante a formulação de pedidos genéricos e que tal consubstanciaria uma excepção dilatória inominada, conducente à absolvição da instância.

Não nos diz a lei o que é um pedido genérico.

Limita-se a admitir a sua formulação apenas e tão só nos casos taxativamente referidos nas als. a) a c) do n.º 1 do art.º 556.º do CPC.

Segundo A. Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3.º Coimbra Editora, 1946, p. 170), o pedido diz-se genérico quando é indeterminado no seu quantitativo e como essa indeterminação implica iliquidez, podendo-se considerar expressões equivalentes as de “pedido genérico” e “pedido ilíquido”. E no dizer de Anselmo de Castro (Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil coligidas por Abílio Neto, Livraria Almedina, 1970, Vol. I, p. 274)., o pedido genérico contrapõe-se ao pedido específico e vem a significar o mesmo que pedido ilíquido.

Entendemos por bem separar os diversos pedidos formulados nas várias alíneas.

- Alíneas b.i), b.ii) e b.iii) ( i. Custear os estudos que o A. mandará elaborar demonstrativos do impacto que a remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter, na estabilidade e segurança de todo o prédio;
ii. Em função das conclusões técnicas obtidas, custear todas as obras necessárias para reconstruir uma situação idêntica à preexistente relativamente às remoções por si realizadas, com garantia de plena estabilidade do prédio;
iii. Apresentar à Câmara Municipal de Lisboa os projectos necessários, tendo em vista a regularização formal do processo do edifício e reduzir, até onde for possível, o risco de ofensa as suas estruturas;

Da formulação dos pedidos ressalta à evidencia o carácter condicional dos mesmos (custear os estudos que a Autora MANDARÁ elaborar e em função desse estudo e do seu resultado serem os Réus condenados a custear as obras necessárias a repor a situação anterior). Todos eles (i, ii e iii) estão dependentes da ocorrência de um facto futuro e incerto: um estudo que a Autora mandará efectuar. [...]

Que estudo é esse? Não se sabe.

Que obras são essas? Também não se sabe…

Na medida em que:

(i) a Autora ainda não encomendou o estudo;
(ii) não se sabe se e quando o mandará elaborar;
(iii) a quem e
(iv) qual grandeza de valores inerentes ao custo desse estudo.

Por outro lado, qual o sentido de condenar os Réus a efectuarem as obras que esse hipotético estudo venha a fixar como necessárias, se ainda nem sabemos se esse estudo vai concluir pela necessidade das obras?

Qual o sentido de se condenarem os Réus a apresentar projectos à Câmara Municipal para realização de obras que não se sabem quais são, nem se terão se terão de ser efectuadas?

Nunca poderá por isso o Tribunal condenar os Réus a efectuarem obras, nem a apresentarem os respectivos projectos camarários, sem se saber se as/os mesmas(os) são ou não necessárias(os)!

Por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, a lei processual não admite, por via de regra, a condenação condicional, isto é, aquela em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão, particularmente nos casos em que o facto condicionante requer ulterior verificação judicial.

No caso dos autos, os pedidos formulados assentam no prognóstico de que os estudos a realizar determinarão o reconhecimento da posição assumida pela Autora quanto às intervenções efectuadas pela 1.ª Ré, no sentido de as mesmas afectarem a estrutura do prédioEsse estudo não existe e ainda não foi pedido. Terá existência se e quando a Autora o solicitar.

Essa condicionalidade afeta a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na ação e a efectividade da tutela alcançada pelo demandante ( neste sentido Ac. do S.T.J de 27-09-2012, proc. n.º 663/09.1TVLSB.L1.S1, Lopes do Rego).

Conforme se refere no Ac. da Relação de Coimbra de 22-1-2015 (proc. 1331/12.2TVLSB.L1-8, Catarina Manso - disponível para consulta in www.jurisprudência.pt), o juiz há de dizer o direito de uma forma real e manifesta, isto é, com exatidão e firmeza, de forma a trazer a quietude social preconizada por um Estado de Direito; e a permissividade de uma sentença condicional, tal e qual a entendemos, porque eivada de um estímulo a congeminar um buscado estado de incerteza, não pode obter refúgio numa legislação que se concebe deveras afastada desta desaconselhada peculiaridade. [...]

Segundo Antunes Varela e Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 1984, Coimbra editora, p. 665, nota 1), importa, porém, não confundir a sentença de condenação condicional, em que condicionado é o direito reconhecido na sentença, com as sentenças condicionais, em que a incerteza recai sobre o sentido da própria decisão e que, em princípio não são admitidas no nosso sistema.

Estes autores (ibidem, pp. 664/665) consideram admissível a sentença de condenação condicional nos casos em que a obrigação seja incerta nessa data ou em que sendo certa a obrigação, seja ainda incerta ou ilíquida a prestação.

Ora, não é manifestamente esse o caso dos presentes autos.

- Quanto ao pedido formulado em b.iv (iv. Garantir por meio de inscrição sobre as fracções B e C, na Conservatória do Registo predial, sem limite de capital e como encargo em espécie, sem prazo determinado os riscos que, mesmo com a execução dos trabalhos que sejam recomendados pelos estudos a efectuar, sempre subsistirão). [...]

Mais uma vez o pedido está condicionado aos estudos a efectuar, pelo que – nos termos em que é formulado – é não só condicional como ainda é vago e genérico na sua formulação.

Conforme é ensinamento de Oliveira Ascensão (in Direito Civil, Reais, 4ª Ed., p. 149), “Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei;”.

Ora, não indica o Autor na sua petição qual a concreta figura através da qual pretende que se onere a propriedade sobre as fracções B e C, aludindo de forma genérica a “garantia” e “encargo em espécie”.

Pelo que, para além de condicional, o pedido formulado é vago e indeterminado, a menos que pretenda o Autor criar um direito real inominado o que, como se referiu supra, lhe está vedado.

Para além de que qualquer garantia constituída nos termos peticionados pelo Autor caracterizar-se-ia sempre como uma garantia genérica ou omnibus, carecida de elementos que permitissem inferir, com segurança, a origem, o prazo, os possíveis montantes.

Embora nos presentes autos a Autora pretenda uma garantia real, poderíamos sempre, por identidade de argumentos, fazer um paralelismo com a situação decidida no AUJ 4/2011, da nulidade da fiança por indeterminabilidade do objecto.

A pretensão do Autor iria no mesmo sentido, colocando o Tribunal na posição confrontar com a situação de ele próprio condenar os Réus na constituição de uma garantia/encargo indeterminado e indeterminável, no momento da prolação da sentença!

Dito isto, concordamos com a decisão recorrida quando afirma que os pedidos formulados pelo Autor “não preenchem os requisitos do pedido, sendo vagos, indeterminados e condicionais e, por isso, inadmissíveis.”

Com efeito, consubstanciam pretensões procedimentais absolutamente abstractas, que não são susceptíveis de tutela jurisdicional – que se pretende certa, exacta e firme.

Em face de tal conclusão, coloca-se a questão de aferir da sorte de tais pedidos e do acerto da decisão que determinou a absolvição dos Réus da instância.

Impõe-se então concluir que os pedidos não podem ser formulados de forma vaga, imprecisa e indeterminada, e nem de forma ininteligível; antes devem ser formulados de forma clara, determinada, congruente e coerente e certa, ainda que possam ser apresentados de forma alternativa (artigo 553º), subsidiária (artigo 554º), cumulativa (artigo 555º), genérica (artigo 556º) e em prestações vincendas (artigo 557º), nas circunstâncias legalmente previstas.

Nos casos em que tal não ocorre, e à semelhança das situações de ineptidão da petição inicial, expressamente prevista como exceção dilatória, estaremos também perante uma exceção dilatória, ainda que inominada, sendo inquestionável, em face do artigo 577º do Código de Processo Civil (onde consta expressamente a referência a “entre outras”) a existência de exceções dilatórias inominadas. [...]

In casu, analisando os pedidos formulados pela Autora, temos de concordar com o entendimento perfilhado pelo tribunal a quo, concluindo que se apresentam efetivamente formulados com um caráter inconcludente, indeterminado, vago, condicional e genérico.

Se acaso o tribunal julgasse os pedidos em causa procedentes, eles sofreriam de uma indeterminação e imprecisão tal que, qualquer eventual condenação dos Réus seria uma “caixa de pandora” de incertezas e inseguranças sobre o seu efectivo objecto, alcance e latitude da condenação.

Conforme já referimos o pedido deve ser indicado e formulado de forma a que o alcance da pretensão seja perfeitamente compreendido pelo juiz e pelo réu tendo em vista possibilitar verdadeiramente o exercício do contraditório, permita a definição dos contornos do direito no caso concreto e a prolação de uma decisão que seja definidora do conflito de interesses subjacente ao mesmo. A decisão judicial a proferir não poderá, em caso algum, ser imprecisa e/ou indeterminada, antes sendo necessário saber com exactidão o que o tribunal decidiu, para que os autores e os réus, e qualquer pessoa, possam saber sem dúvidas o que foi decidido e o que deve ser cumprido pelos réus no futuro.

Os pedidos em causa, da forma como se apresentam formulados, não permitem uma condenação nesses moldes, nem mesmo são susceptíveis de ser concretizados por liquidação, nos termos em que o art.º 556.º do CPC permite a dedução de pedidos genéricos.

Pelo que, consequentemente, a decisão proferida pelo tribunal a quo, que absolveu os Réus da instância não merece censura, devendo manter-se, improcedendo nesta parte o presente recurso."

*3. [Comentário] a) Na parte respeitante aos pedidos condicionais nada há a objectar ao decido pela RL. Como é claro, não são admissíveis pedidos condicionais, embora haja que distinguir cuidadosamente pedidos de condenação in futurum (admissíveis) de pedidos condicionais (não admissíveis).

b) Apenas algumas observações a latere:

-- Era bom que fosse possível fazer uma "interpretação caridosa" do disposto no art. 1437.º CC, mas a verdade é que um representante que também é parte demandada contraria princípios elementares da dogmática processual; o sentido do preceito é, por isso, incompreensível;

-- Não são admissíveis pedidos condicionais, mas, ao contrário do que por vez se refere, nada impede que sejam proferidas sentenças condicionais; por exemplo: se o réu invocar procedentemente a excepção de não cumprimento do contrato, não tem sentido absolver tout court o réu do pedido, obrigando o autor a instaurar uma outra acção depois de ter oferecido ou cumprido a sua prestação; o que é razoável é condenar o réu a cumprir a sua contraprestação, se o autor entretanto oferecer ou cumprir a sua prestação;

-- Existe, desde há muito, uma orientação que compatibiliza, sem qualquer dificuldade, o disposto no art. 557.º CPC (art. 472.º CPC/61) e no art. 610.º CPC (art. 662.º CPC/61): o art. 557.º refere-se à hipótese da formulação de um pedido de condenação in futurum, ou seja, à hipótese em que o autor apresenta a obrigação como ainda não exigível;  o art. 610.º à hipótese de, no momento da sentença, se verifica que, ao contrário do que o autor afirma na petição inicial, a obrigação ainda não é exigível.

MTS

24/11/2025

Jurisprudência 2025 (38)


Advogado; deveres deontológicos;
perda de chance


I. O sumário de RC 18/2/2025 (267/21.0T8GVA.C1) é o seguinte:

1. A responsabilidade civil do advogado pode resultar quer da violação da obrigação principal decorrente do contrato de mandato que celebrou com o seu cliente ou da sua nomeação como patrono, quer da violação de deveres acessórios e até deontológicos, mormente os que lhe são impostos pelo Estatuto da Ordem do Advogados, sendo seus pressupostos a conduta ilícita do réu-advogado – consistente na inexecução ou execução defeituosa do mandato –, a culpa, a existência de danos e o nexo de causalidade adequada entre estes e tal acção/omissão ilícitas.

2. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2022 uniformizou jurisprudência obrigatória no sentido de, no dano da perda de chance processual, para haver lugar a indemnização, caber ao lesado o ónus da prova da consistência e seriedade dessa chance.

3. Para apurar o dano da perda de chance há que realizar, primeiro, o julgamento dentro do julgamento, que consiste num juízo de prognose póstuma através do qual se pretende alcançar a decisão hipotética que o processo judicial teria tido, sem a falta do mandatário/advogado, devendo o tribunal da acção de indemnização adoptar a perspectiva do tribunal que decidiu o processo primitivo, reconstituindo o curso hipotético dos acontecimentos sem o evento/facto lesivo.

4. Se uma advogada, devidamente notificada, não apresentou réplica a uma reconvenção, nem transmitiu à sua cliente o teor dessa reconvenção, não lhe solicitando quaisquer esclarecimentos ou documentação adicional, tendo tomado essas decisões sem o conhecimento e/ou consentimento da cliente, além de lhe ter omitido as consequências e efeitos jurídicos da revelia que, por sua exclusiva culpa, conduziram à condenação de preceito da sua cliente, está inequivocamente demonstrada a prática, pela advogada, de um facto ilícito e culposo.

5. Concluindo-se, após realizar o julgamento dentro do julgamento pela existência de uma perda de chance processual consistente e séria e pela verificação de todos os demais pressupostos da responsabilidade civil da advogada – ocorrência do facto ilícito e culposo e imputação da perda de chance à sua conduta lesiva, segundo as regras da causalidade adequada –, proceder-se-á, num segundo momento, à apreciação do quantum indemnizatório devido, segundo o critério da teoria da diferença, nos termos prescritos no art. 566.º, n.º 2, do Código Civil, lançando-se mão, em última instância, do critério da equidade ao abrigo do n.º 3 deste mesmo artigo.

6. O seguro de responsabilidade civil profissional dos advogados tem natureza obrigatória e no confronto das cláusulas previstas nas condições particulares da apólice desse contrato de seguro com a norma imperativa do art. 101.º, n.º 4, da Lei do Contrato de Seguro, prevalece esta última, pelo que não são oponíveis, aos lesados beneficiários, as excepções de exclusão fundadas no incumprimento pelo segurado dos deveres de participação do sinistro à seguradora.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No processo sob recurso suscita-se, fundamentalmente, a questão da indemnização pelo denominado dano da perda de chance, em face da alegada falta de cumprimento de deveres profissionais por parte de uma advogada/patrona oficiosa, por não ter replicado a um pedido reconvencional deduzido numa acção, tendo o resultado final desse processo, no qual a omissão da patrona foi cometida, acabado por ser desfavorável à sua cliente/patrocinada, aqui autora – que veio a ser condenada, na íntegra, no pedido reconvencional –, não se conseguindo afirmar, com absoluto rigor, qual teria sido o desfecho daquela acção acaso a 1.ª ré tivesse procedido diligentemente, apresentando a réplica.

Concretamente, a 1.ª ré, na qualidade de advogada, foi nomeada patrona da autora, pela Ordem dos Advogados, em Novembro de 2017.

Não obstante na situação de nomeação oficiosa de patrono não existir um contrato base entre o cliente e o advogado, não se pode deixar de conferir ao advogado/patrono o mesmo conjunto de direitos e obrigações profissionais que competem a um advogado/mandatário judicial constituído mediante procuração forense.

Assim, a actividade dos advogados rege-se, por um lado, pelo regime do contrato de mandato civil, previsto nos arts. 1157.º e ss. do Código Civil, e, por outro lado, pelas regras constantes do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09-09-2015, em vigor à data dos factos.

Nos termos do art. 12.º, n.º 3, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto: “No exercício da sua atividade, os advogados devem agir com total independência e autonomia técnica e de forma isenta e responsável, encontrando-se apenas vinculados a critérios de legalidade e às regras deontológicas próprias da profissão”.

Com efeito, além das obrigações gerais do mandatário, enunciadas no art. 1161.º do Código Civil, para cujo cumprimento pontual, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé, segundo se alcança dos arts. 406.º e 762.º do Código Civil, há que atender aos deveres estatutários emergentes do EOA, designadamente o dever de praticar os actos de execução do mandato com zelo e diligência.

No caso, a 1ª ré, por via da sua nomeação para representar a autora, por força da regulamentação própria da actividade profissional dos advogados, ficou sujeita, no cumprimento do seu mandato forense/judiciário, à obrigação de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, tal qual resulta do art. 97.º, n.º 2, do EOA: “O advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas”.

Paralelamente o art. 100.º, n.º 2, alínea b), do EOA concretiza que o advogado, nas relações com o cliente, deve “[e]studar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e atividade”.

A responsabilidade civil do advogado poderá, pois, resultar quer da violação da obrigação principal decorrente do contrato de mandato que celebrou com o seu cliente ou da sua nomeação como patrono, quer da violação de deveres acessórios e até deontológicos, mormente os que lhe são impostos pelo citado Estatuto profissional, sendo seus pressupostos a conduta ilícita do réu-advogado – a qual consistirá, em geral, na inexecução ou execução defeituosa do mandato –, a culpa do mesmo – que se presume nos termos do art. 799.º do Código Civil –, a existência de danos e o nexo de causalidade adequada entre estes e tal acção/omissão ilícitas.

No fundo, trata-se de aplicar os princípios gerais da responsabilidade civil, tal qual prevê o art. 483.º do Código Civil.

As duas responsabilidades – responsabilidade civil e deontológica – não se excluem, podendo coexistir com consequências diversas, motivo pelo qual o advogado que falte culposamente aos deveres resultantes da assunção do mandato/patrocínio pode, em princípio, incorrer em responsabilidade disciplinar e civil.

Nos presentes autos, reitera-se, o que se debate é apurar se ocorre responsabilidade civil da senhora advogada, 1.ª ré, pelo alegado incumprimento dos seus deveres profissionais e deontológicos no âmbito de uma acção judicial, em que patrocinou a autora, e cuja conduta processual motivou, a final, a condenação da sua cliente num pedido reconvencional.

Por outro lado, há que indagar se esse incumprimento poderá fazer incorrer a 1.ª ré na obrigação de indemnizar a autora por via da figura do dano da perda de chance, que vem sendo “construída” pela doutrina e jurisprudência. [...]

[...] Paulo Mota Pinto, Direito Civil – Estudos, Perda de Chance Processual, 2021, p. 806, refere: “Para avaliar se existe ou não nexo de causalidade e qual é a consistência da chance frustrada, o tribunal da ação de indemnização deve realizar uma espécie de “julgamento dentro do julgamento” (…) tentando reconstituir, para efeitos indemnizatórios, qual teria sido o resultado no processo que se frustrou. Nesse “julgamento dentro do julgamento” … o tribunal da ação de indemnização deve, pois, adotar a perspetiva do tribunal do processo frustrado, para apurar como este teria decidido o processo (o que poderá ser particularmente relevante quanto a questões jurídicas sobre as quais existiam opiniões divergentes) no que constituiu uma apreciação de uma questão de facto e não uma questão de direito" [...].

Em face de alguma flutuação jurisprudencial, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2022 [Publicado no Diário da República n.º 18/2022, Série I de 26-01-2022, pp. 20-42.], veio, por sua vez, uniformizar como jurisprudência obrigatória:

“O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade”.

Na fundamentação deste aresto, que acompanhamos, escreve-se: “A responsabilidade civil (…) tem em vista “reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” (cf. art. 562.º do C. Civil), visando, no caso, colocar o lesado/mandante na situação em que ele se encontraria se não fosse o ato lesivo do seu mandatário, razão pela qual, é pacífico, o dano causado pela perda de chance não poderá ser superior ao direito que o seu representado tinha originariamente, ou seja, caso este direito (do representado) não existisse ou não tivesse qualquer consistência, não haverá (não pode haver) qualquer dano pela perda de chance suscetível de ser indemnizado.”

Por outro lado: “Se, como é o caso, em razão do comportamento indevido dum mandatário, o desenrolar e o desfecho normal dum processo não aconteceu e nem alguma vez acontecerá, não pode exigir-se que o dano decorrente de tal comportamento indevido seja objeto de uma certeza absoluta, ou seja, a certeza sobre a realidade hipotética do que não chegou a verificar-se tem sempre que se situar no domínio das probabilidades (das certezas relativas).

A aferição dum tal dano exigirá sempre a comparação entre uma situação real, atual, e uma situação hipotética, igualmente atual, sendo a prognose sobre a evolução hipotética do processo comprometido que irá permitir determinar a certeza relativa do dano.”

Prossegue-se, depois: “A verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, incluindo a existência do dano e de um nexo causal entre o facto lesivo e o dano, impõem, em linha com o que se referiu, que a “chance”, para poder ser indemnizável, seja “consistente e séria” e que a sua concretização se apresente com um grau de probabilidade suficiente e não com carácter meramente hipotético.

Só assim a “chance” preencherá, num limiar mínimo, a certeza que é condição da indemnizabilidade do dano, só assim este pode ser considerado como objetivamente imputável ao ato lesivo e só assim se respeitará a regra (e a ideia de justiça) de que ao lesante apenas poderá ser imposto que responda pelos danos que causou.

Significa isto que a toda a chance ou oportunidade perdida (a todo o ato lesivo e a todo processo perdido) não se segue, como que automaticamente e sem mais, uma indemnização por dano da perda de chance: a verificação do ilícito não contém já em si o dano a indemnizar.”

“(…) [A] questão da indemnização pelo dano da perda de chance, tal probabilidade – o mesmo é dizer, a consistência concreta da oportunidade ou “chance” processual que foi comprometida – tem sempre que ficar apurada/provada, uma vez que, sem a mesma estar apurada/provada, não se poderá falar em “dano certo” e sem este não pode haver indemnização.

Apuramento este que terá assim que ser feito na apreciação incidental – o já chamado “julgamento dentro do julgamento” – a realizar no processo onde é pedida a indemnização pelo dano de perda de chance, em que se indagará qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometido o ato lesivo (a falta do mandatário), indagação que no fundo irá permitir estabelecer, caso se apure que a ação comprometida tinha uma suficiente probabilidade de sucesso (ou seja, no mínimo, uma probabilidade de sucesso superior à probabilidade de insucesso), que há dano certo (a tal chance “consistente e séria”) e ao mesmo tempo o nexo causal entre o facto ilícito do mandatário e tal dano certo.

Apreciação/decisão hipotética em que, sendo assim, se procurará, num juízo de prognose póstuma, reconstituir, para efeitos da possível indemnização do dano da perda de chance, o desenrolar e a decisão que o processo (onde foi cometida a falta do mandatário) teria tido – na perspetiva do tribunal que o teria que decidir – sem tal falta do mandatário, com o que, concluindo-se que o processo teria tido uma suficiente (no referido limiar mínimo) probabilidade de sucesso, se estará também a concluir ter sido o evento lesivo conditio sine qua non (requisito mínimo da causalidade jurídica) do dano.

Apreciação/decisão hipotética que acabará também por relevar para o quantum indemnizatório, uma vez que a indemnização deve corresponder ao valor da chance perdida e este valor será o reflexo do grau de probabilidade da perda de chance em relação à vantagem que se procurava e se perdeu em definitivo (Mesmo quem reconhece o dano da perda de chance como dano autónomo, acaba a admitir, em sede de cálculo, que o mesmo depende da verificação e extensão do dano final.).

Assim, visando-se com tal apuramento estabelecer o preenchimento de requisitos da responsabilidade civil (dano e nexo causal), estão em causa (no subsequente processo, em que se pede a indemnização pelo dano da perda de chance) elementos/factos constitutivos do direito indemnizatório invocado pelo lesado/mandante, sendo este – face ao encargo que o ónus da prova, quando aos requisitos da responsabilidade civil, lhe coloca (cf. 342.º/1 do C. Civil) – que terá que fornecer os elementos que irão permitir apurar qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometida a falta do advogado (ou seja, os factos que irão permitir apurar que o processo comprometido tinha uma suficiente, no referido limiar mínimo, probabilidade de sucesso ou, dito por outras palavras, que a chance perdida era consistente e séria).

Ou seja, no “julgamento dentro do julgamento”, como juízo de prognose ex post que é, o que se pretende alcançar é a prova da decisão hipotética que o processo teria tido sem a falta do mandatário (procurando reconstruir a situação hipotética que, sem tal falta, existiria), devendo o tribunal da acção de indemnização adoptar a perspectiva do tribunal que teve que decidir o processo primitivo, uma vez que o que está em causa, em termos de configuração jurídica, é a reconstituição do curso hipotético dos acontecimentos sem o evento/facto lesivo. [...]

[MTS]


21/11/2025

Jurisprudência 2025 (37)


Acção de divisão de coisa comum;
transacção; homologação


1. O sumário de RP 20/2/2025 (539/20.1T8PVZ-E.P1) é o seguinte:

I - A ação de divisão de coisa comum visa pôr termo à indivisão, comportando uma fase declarativa – destinada à apreciação das questões atinentes à existência da relação de compropriedade, à posição relativa de cada consorte sobre os bens comuns e à aferição da divisibilidade ou indivisibilidade dos bens – e uma fase executiva – destinada à concretização da divisão mediante o preenchimento dos quinhões de cada um dos consortes.

II - Este preenchimento pode ser feito, em sede de conferência de interessados, e uma vez fixados os quinhões, por adjudicação, a qual, na falta de acordo entre os interessados presentes na conferência, é feita por sorteio (n.º 1 do art.º 929.º, n.º 1 do CPC); em se tratando, contudo, de coisa indivisível, o preenchimento será feito em função do acordo dos interessados na adjudicação a algum ou a alguns deles, preenchendo-se em dinheiro as quotas dos restantes, mas, na falta de acordo, procede-se à venda da coisa, podendo os consortes concorrer à venda (n.º 2 do art.º 929.ºdo CPC).

III - Prosseguindo o processo para a fase executiva, com a venda judicial dos bens em compropriedade, a transação entre ambos os interessados quanto a um desses bens, mediante a qual estes acordam na sua adjudicação a um deles, com a assunção pelo adjudicatário das responsabilidades do crédito hipotecário que o onera e a ressalva da possibilidade de recurso, em caso de incumprimento do acordado, à execução específica prevista no art.º 830.º, n.º 1 do CC, transação essa homologada por sentença, transitada em julgado, pela qual, em face dos termos da transação, se condenou e absolveu nos seus precisos termos e se julgou extinta a instância quanto ao bem, exclui do litígio inerente à divisão da coisa comum o imóvel objeto da transação, não relevando este, por conseguinte, para o cômputo da composição dos quinhões dos interessados na ação de divisão em curso.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

- Da consideração da adjudicação à Apelada do imóvel da verba n.º 4, operada pela transação feita entre esta e o Apelante, na composição dos quinhões de ambos

O quadro com que nos deparamos neste recurso é o seguinte.

Apelante e Apelada eram comproprietários dos quatro imóveis supra referidos em 1.

Por via da presente ação – de divisão de coisa comum – pretenderam fazer cessar a compropriedade.

Não tendo havido, em sede de conferência de interessados, acordo entre Apelante e Apelada quanto à adjudicação dos bens, prosseguiram os autos, por despacho adrede proferido, para venda judicial.

Realizada diligência de abertura de propostas em carta fechada, foram adjudicadas aos proponentes das propostas de maior valor os imóveis constantes das verbas n.ºs 1, 2 e 3, sendo que, quanto ao imóvel da verba n.º 4, prosseguiu a venda por negociação particular.

Sem que tal venda (a do imóvel da verba n.º 4) se tivesse concretizado, Apelante e Apelada apresentaram nos autos, entretanto, em 10-01-2024, uma transação quanto à mesma, acordando, além do mais, adjudicar o imóvel à Apelada, pelo valor de € 350.000,00.

Tal transação foi homologada por sentença judicial adrede proferida, com a consequente condenação de ambas as partes a cumpri-la nos seus precisos termos.

Concretizada que estava a venda de todos os bens imóveis objeto do processo, prosseguiram os autos com a liquidação das responsabilidades ‘tributárias’ e ‘emolumentares’ de ambos os interessados e, bem assim, com a composição dos quinhões de ambos.

Nesta composição dos quinhões, pelo agente de execução foi considerado apenas o produto da venda das verbas n.ºs 1, 2 e 3, mas já não o resultado da adjudicação da verba n.º 4, operada a favor da Apelada pela referida transação.

O Apelante, discordando desta solução, reclamou da liquidação, mas tal reclamação foi desatendida pelo despacho recorrido, que manteve a desconsideração, na composição dos quinhões dos interessados, da verba n.º 4.

Por via do presente recurso, o Apelante insurge-se, precisamente, contra esta desconsideração, batendo-se por que a verba n.º 4 entre, de facto, na composição do seu quinhão e do da Apelada.

A questão – singela – que aqui importa apreciar é, como tal, a de saber se tal deve ou não ocorrer.

A este propósito, importa começar por dizer que a presente ação constitui uma ação de divisão de coisa comum, com a qual Apelante e Apelada pretendem, no exercício da faculdade que lhes assiste à luz dos art.ºs 1412.º, n.º 1 e 1413.º, n.º 1 do Código Civil, pôr termo à indivisão da(s) coisa(s) comum(ns).

Os termos a seguir nesta ação são os consignados nos art.ºs 925.º a 929.º do Código do Processo Civil, preceitos estes dos quais decorre que, como salienta o Apelante na sua peça recursória, integram uma fase declarativa e uma fase executiva.

Na fase declarativa, tem lugar a discussão dos aspetos relacionados, em último termo, com a definição dos direitos das partes, mormente, os da existência efetiva de uma relação de compropriedade, da posição relativa de cada consorte sobre os bens comuns e da aferição da divisibilidade ou indivisibilidade dos bens.

A fase executiva, por seu turno, destina-se a que, uma vez determinados, na fase declarativa, os termos do direito à divisão de cada um dos consortes, se concretize essa divisão mediante o preenchimento dos quinhões de cada um.

Este preenchimento pode ser feito, em sede de conferência de interessados, e uma vez fixados os quinhões, por adjudicação, a qual, na falta de acordo entre os interessados presentes na conferência, é feita por sorteio (n.º 1 do art.º 929.º, n.º 1 do CPC); em se tratando, contudo, de coisa indivisível, o preenchimento será feito em função do acordo dos interessados na adjudicação a algum ou a alguns deles, preenchendo-se em dinheiro as quotas dos restantes, mas, na falta de acordo, procede-se à venda da coisa, podendo os consortes concorrer à venda (n.º 2 do art.º 929.ºdo CPC).

In casu, ultrapassada a fase declarativa, prosseguiram os autos para a fase executiva, sendo que, em sede de conferência de interessados, não havendo acordo entre os interessados, determinou-se a venda judicial dos quatro imóveis a dividir.

Da venda resultou a adjudicação a terceiros dos bens imóveis das verbas n.ºs 1, 2 e 3; quanto ao bem imóvel da verba n.º 4, apesar de, num momento inicial, a venda ter sido ordenada, esta acabou por não se realizar, já que, por acordo dos interessados, estes decidiram a sua adjudicação à Apelada.

Ora, em condições normais, no quadro da tramitação prevista para a ação de divisão de coisa comum e dos fins prosseguidos por esta, a adjudicação operada por via do dito acordo dos interessados entraria, conjuntamente com a adjudicação a terceiros dos restantes imóveis, na composição dos quinhões dos consortes.

A adjudicação à Apelada do imóvel da verba n.º 4 resultou, contudo, não dessas condições normais, mas das condições excecionais decorrentes da outorga de uma transação judicial, que, em função dos seus termos, altera radicalmente os pressupostos em que a composição dos quinhões dos interessados deve, no caso, assentar.

Na verdade, Apelante e Apelada acordaram em adjudicar à segunda o imóvel da verba n.º 4 no âmbito de uma transação.

Isto é, o imóvel em causa foi adjudicado à Apelada, não na sequência de um simples acordo de adjudicação ou de composição dos quinhões, à semelhança daquele que poderia ser obtido em sede de conferência de interessados, mas, como é um dado assente nos autos, porque aceite por ambas as partes, no quadro de uma verdadeira transação judicial.

Ora, a transação é, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 1248.º do Código Civil, um contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões, concessões estas que, nos termos do n.º 2, podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direito diversos do direito controvertido.

A transação assume-se, assim, como um negócio jurídico bilateral – é um contrato –, fonte de direitos e de obrigações recíprocas para ambos os outorgantes, com o qual se visa, além do mais, pôr termo a um concreto litígio.

Consequentemente, alcançada a transação, esta, se válida pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas intervenientes, é, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 283.º, n.º 2, 284.º, 289.º a contrario, 290.º, n.ºs 1 e 3 do CPC, homologada por sentença, com a consequente extinção da instância, nos termos do disposto no art.º 277.º, al. d) do CPC.

Enquanto contrato, aplica-se-lhe o regime geral do negócio jurídico, mormente, e com relevo para o presente caso, o atinente às regras da interpretação da declaração negocial.

Ou seja, aferir o sentido e o alcance decisivos das declarações negociais que corporizam o negócio celebrado, o mesmo é dizer aferir o que as partes realmente quiseram com a celebração do negócio, pressupõe o recurso ao critério de interpretação da declaração negocial previsto no art.º 236.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil. [...]

Sendo desconhecida a vontade real das partes, há que recorrer ao critério geral de interpretação da declaração negocial previsto no n.º 1 do citado art.º 236.º do CC.

Segundo este normativo, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

Trata-se aqui do acolhimento da “doutrina da impressão do destinatário”, segundo a qual o que releva é “o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer” (v. Mota Pinto, ibidem, p. 447 e 448).

Dito de outro modo, subjacente ao preceito em apreço temos o acolhimento, como referem Pires de Lima e Antunes Varela, de uma “doutrina objetivista da interpretação”, que dá “prevalência ao sentido objetivo da declaração”, solução esta explicada “pela necessidade de proteger as legítimas expectativas do declaratário e não perturbar a segurança do tráfico” (in Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, 1987, p. 223).

No caso em apreço, Apelante e Apelada celebraram uma transação no que diz respeito ao imóvel que constitui a verba n.º 4, aqui em apreço.

Os termos de tal transação foram, como resulta da factualidade assente supra transcrita, os seguintes:

I.- A verba quatro supra identificada é adjudicada à Requerente BB pelo valor de Eur. 350.000,00, acordando as partes que a mesma fica dispensada do depósito do preço, porquanto os demais valores obtidos pelas vendas das verbas um, dois e três são suficientes para o pagamento integral dos créditos reclamados, das penhoras, dos arrestos e custas judiciais. (…) [...]

IV. O Requerido AA obriga-se a assinar todos os documentos exigidos pela entidade bancária para a exoneração do mesmo no contrato de mútuo hipotecário.
 
V. As partes submetem estas obrigações ao regime da execução específica do art. 830.º n.º 1 do Código Civil.

VI. Com a homologação do presente acordo e verificação das condições, o Requerido não é mais responsável a partir da presente data por qualquer obrigação que resulte do crédito hipotecário assumido pela Requerente BB. (…)”.

Desconhece-se, a respeito de tal transação, qual foi a vontade real do Apelante e da Apelada ao outorgarem a transação, nem este recurso seria a sede adequada para apurá-la, pelo que o sentido e alcance decisivo de tais cláusulas deve ser aferido em função do teor objetivo de tais declarações, em função da doutrina da impressão do destinatário.

E o certo é que, interpretadas tais cláusulas em função de tal critério, forçoso é concluir que o que Apelante e Apelada pretenderam com elas foi excluir do litígio e, consequentemente, da composição dos respetivos quinhões, a verba em causa.

Com efeito, Apelante e Apelada acordaram, na 1.ª cláusula, em adjudicar à Apelada o imóvel em causa, por um determinado preço. Isto é, na transação, deram ao imóvel um determinado destino – aquisição integral da sua propriedade pela Apelada – e fixaram o preço devido.

Outrossim, quanto ao preço, acordaram na dispensa de depósito do mesmo (e não, note-se, na sua ‘liberação’, não fazendo sentido a afirmação do Apelante de que “ofereceu” o imóvel à Apelante, tanto mais que, na cláusula III da transação, ressalva-se expressamente que há “preço a pagar…”), pela simples razão de que os valores já obtidos com a venda judicial das restantes verbas eram suficientes para o pagamento integral dos créditos reclamados.

Ou seja, no pressuposto de que a adjudicação do imóvel em causa já não era necessária para assegurar integralmente os fins da ação de divisão de coisa comum, no que aos credores reclamantes dizia respeito, decidiram que não havia que depositar o preço.

Acresce que Apelante e Apelada, no negócio celebrado, não decidiram apenas a questão da divisão do imóvel e do termo da compropriedade, mas, também, questões atinentes ao crédito hipotecário da responsabilidade de ambos e que onerava o imóvel, prevendo, designadamente, a assunção, pela Apelada, da responsabilidade pela sua amortização.

Ou seja, através da transação, Apelante e Apelada não se limitaram a acordar a adjudicação do imóvel, mas, pelo contrário, resolveram todo um complexo de questões atinentes ao mesmo, no pressuposto da sua regulação definitiva.

Finalmente, e decisivamente, Apelante e Apelada, na transação, acordaram expressamente em “submeter estas obrigações [as emergentes da transação] ao regime da execução específica do art.º 830.º, n.º 1 do Código Civil”.

Ou seja, independentemente do relevo que uma tal cláusula possa ter à luz do direito aplicável, através dela ambos os interessados acordaram em estabelecer um regime de execução específica do contrato celebrado em caso de incumprimento de alguma das partes, o que não pode ter outro sentido que não o de que, com ela, pretenderam subtrair do regime próprio da ação de divisão comum o modo de resolução das questões atinentes à transação outorgada, em caso de incumprimento de algum dos outorgantes.

Temos, pois, que: se Apelante e Apelada, no contrato celebrado, deram o destino ao imóvel e fixaram a contrapartida para o efeito; regularam outros aspetos da relação de ambos relativamente ao imóvel que não apenas o da sua adjudicação; e, acima de tudo, fixaram os termos da sua execução em caso de incumprimento, à margem, portanto, da tramitação própria da ação de divisão da coisa comum, não vemos como não concluir, tal como um declaratário normal concluiria se confrontado com tais declarações, que com a transação em apreço pretenderam as partes excluir do litígio tudo o que dissesse respeito ao imóvel da verba n.º 4. [...]

Mesmo que assim não fosse, essa sempre seria a conclusão que se impunha em face, quer da prolação da sentença homologatória da transação, quer dos termos em que, na sentença, a transação foi homologada.

Na verdade, flui da factualidade assente que a transação em causa foi homologada por sentença de 19-02-2024, que, além da homologação, condenou as partes a cumpri-la nos seus precisos termos e, consequentemente, julgou extinta a instância correspondente, nos termos do disposto no art.º 277.º, al. d) do CPC.

Ora, a sentença homologatória de uma transação é, como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “equiparada à sentença que decide sobre a relação material controvertida, por aplicação do direito objetivos aos factos provados” (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, Artigos 1.º a 361.º, 4.ª edição, p. 561).

Constitui, assim, como também referido no Acórdão da Relação de Lisboa de 17-03-2015, “uma sentença de mérito – e por isso condena e absolve nos seus precisos termos – [ainda que], por vontade das partes expressa no negócio jurídico em que se traduz a transação, não [aplique] o direito objetivo aos factos em causa na acção” (proferido no processo n.º 51/15.0YLPRT.L1-2, disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).

Ao ser proferida, e sem prejuízo da possibilidade de declaração de nulidade ou de anulação da transação ou da sua revisão com esse fundamento em ação adrede instaurada, faz, por isso, caso julgado material e, se condenatória, forma título executivo (v. art.ºs 291.º, n.º 2 e 703.º, n.º 1, al. a) e 704.º, n.º 1 do CPC).

A sentença homologatória da transação garante, assim, “tutela judiciária” a “situações jurídicas dela carecidas”, “não porque necessitadas duma definição, mas porque à definição feitas pelas partes falta a força do caso julgado” (v., neste sentido, José Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, Coimbra, 1996, p. 36, apud o referido Acórdão da Relação de Lisboa).

In casu, é exatamente esta a situação com que nos deparamos.

As partes, através da transação em apreço, definiram elas próprias a situação do imóvel da verba n.º 4, bem como todas as questões a ele atinentes; porque, contudo, carecida da chancela do caso julgado, submeteram a apreciação do negócio jurídico celebrado ao tribunal que, com a sentença, o garantiu.

A sentença homologatória da transação assegurou, por conseguinte, ao negócio celebrado, a tutela judiciária definitiva pretendida pelas partes, a ponto de tornar, não só despicienda, como sem sentido, a sua discussão no âmbito da ação de divisão de coisa comum pendente.

De referir, ainda, que dos termos da própria sentença homologatória proferida se infere que foi esse – isto é, o de tornar definitiva, sem necessidade de nova discussão no processo, a resolução do litígio atinente ao imóvel da verba n.º 4 – o sentido da sua prolação.

Com efeito, além de ter “condenado e absolvido” as partes nos precisos termos da transação e de, consequentemente, “julgar extinta a instância”, na sua fundamentação apreciou-se expressamente (em face, nomeadamente, daquela que fora a posição do credor Banco 1..., S.A. a propósito da transação) a questão da sua admissibilidade legal, por ter sido apresentada na fase em que o foi.

Nessa apreciação, foram aduzidos argumentos atinentes aos termos da intervenção dos credores na ação de divisão de coisa comum e à possibilidade de acordo dos interessados quando à adjudicação de bens numa fase ulterior do processo, mesmo depois de ter sido designada a sua venda judicial.

E concluiu-se expressamente que a ação de divisão de coisa comum visa a cessação da indivisão dos bens, sendo que, com a adjudicação de um dos bens a dividir é concretizado o objectivo processual almejado, nada obstando, aliás, a que as partes outorgassem escritura de divisão de coisa comum com a adjudicação do bem que permanece por vender a um deles e desistissem do prosseguimento destes autos, em decorrência de tal negócio extrajudicial.

Temos, pois, que dos próprios fundamentos da sentença homologatória da transação resulta claro que o sentido da decisão proferida foi o de pôr termo à controvérsia das partes relativamente ao imóvel da verba n.º 4, arredando-a da presente ação de divisão de coisa comum.

Por conseguinte, e uma vez que nenhuma das partes, mormente o Apelante, interpôs recurso de tal decisão, produziu a mesma caso julgado material, tendo força obrigatória dentro e fora do processo e inviabilizando nova discussão sobre a questão (v. art.º 619.º do CPC).

Toda e qualquer questão atinente aos direitos do Apelante sobre a Apelada tendo por referência o dito imóvel, deve, pois, e como se disse já, ser dirimida tendo por referência dos termos da transação feita por ambos e, naturalmente, numa sede que não nesta.

Nenhuma censura merece, por conseguinte, ainda que não exatamente pelos mesmos fundamentos, a decisão recorrida, que, como tal, deve ser mantida, com a consequente improcedência da apelação e a desnecessidade, porque prejudicada, da apreciação das demais questões suscitadas pelo Apelante nas suas conclusões."

[MTS]