"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/04/2025

Jurisprudência 2024 (142)


Processo de execução;
coligação passiva


1. O sumário de 4/6/2024 (995/23.6T8SRE-A.C1) é o seguinte:

I – Na execução, verifica-se coligação, quando à pluralidade de partes corresponde uma pluralidade de pedidos executivos subjectivamente diferenciados.

2- Nessa circunstância, estão em causa uma pluralidade de situações jurídicas autónomas, sem contitularidade mas apenas conexas entre si, sendo, por isso, que a coligação exige, ao mesmo tempo, os requisitos da cumulação (objectiva) simples de pedidos e os requisitos próprios de conexão entre causas diversas.

3- O legislador apenas admite a coligação passiva na execução quando todos os devedores demandados se encontrem obrigados no mesmo titulo, como decorre da parte final da al b) do nº 1 do art 56º CPC, o que não sucedendo, exige o despacho de convite a que se reporta o nº 1 do art 38º, referente ao suprimento da coligação ilegal.

4- Numa execução em que a obrigação exequenda é um mútuo bancário, e o respectivo cumprimento se mostra assegurado por aval, penhor genérico de acções, penhor genérico mercantil e hipoteca genérica, e em que não se demandou a mutuária por a mesma se ter apresentado a PER, mas apenas os obrigados em função das referidas e diversas garantias, verifica-se uma coligação passiva de devedores, que, em concreto, se mostra ilegal, porque não se encontram obrigados no mesmo título.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"IV – Como resulta do confronto das conclusões das alegações com o despacho recorrido, constitui objecto do recurso, saber se, face ao teor do requerimento executivo e dos documentos com ele apresentados, se verifica uma cumulação de execuções fundadas em títulos diferentes, contra diferentes executados, em coligação passiva e, por isso, ilegal, como o sustenta o Tribunal a quo, ou uma única execução fundada num único titulo – a livrança – dirigida contra o devedor e ao mesmo tempo contra os terceiros que, de modos e tempos diversos constituíram garantias reais em beneficio do crédito exequendo, como o entende o apelante.

Não se tem dúvida em que assiste razão ao Tribunal recorrido.

Vejamos porquê.

Num entendimento ou noutro, é inegável que se está perante uma acção executiva com legitimidade plural passiva, isto é, dirigida contra vários executados.

A legitimidade plural pode apresentar-se como litisconsórcio - quando existam dois ou mais sujeitos do lado activo e/ou passivo e uma única relação jurídica – ou como coligação - caso em que existindo igualmente dois ou mais sujeitos do lado activo e/ou passivo, se verifica a existência de duas ou mais relações jurídicas.

Como lembra Marco Gonçalves [«Lições de Processo Civil Executivo», 2019, p. 222], «a coligação passiva procura tornar viável a execução simultânea de obrigações formalmente unitárias, apresentando a vantagem de permitir uma só oposição à execução, mas a desvantagem de dificultar e complicar o curso da acção executiva pela sua simultânea incidência em patrimónios distintos e pretendentes a pessoas diversas».

O art 56º prevê a possibilidade de coligação de credores, de devedores e de credores e devedores.

A coligação de devedores, pressupondo, como já se afirmou, a existência de duas ou mais relações jurídica, implica que o exequente peça dos vários executados prestações diferentes, faça “pedidos diferenciados”.

Nas palavras de Rui Pinto [Manual da Ação Executiva e Despejo», Agosto 2013, p. 330] «há coligação quando à pluralidade de partes corresponde uma pluralidade de pedidos executivos subjectivamente diferenciados» . Ou seja, como acrescenta: «Quando ocorre cumulação de pedidos com cumulação de partes, correspondendo a cada parte um pedido». O que sucede, como explica, em função «da presença de uma pluralidade de situações jurídicas autónomas, i e, sem existência de contitularidade, mas conexas entre si. Em suma: o que se poderia apelidar de mera apensação de causas». Sendo por isso que «a coligação exige ao mesmo tempo os requisitos da cumulação (objectiva) simples de pedidos ,…) e os requisitos próprios de conexão entre causas diversas».

O legislador apenas admite a coligação passiva quando os vários devedores coligados se mostrem obrigados no mesmo titulo, como resulta da al b) do art 56º, ao referir, que «quando se não verifiquem as circunstâncias impeditivas previstas no nº 1 do art 709º, é permitido a um ou vários credores litisconsortes, ou a vários credores coligados demandar vários devedores coligados, desde que obrigados no mesmo titulo». [---]

Entendeu a Exma Juiz a quo que os executados demandados - AA, BB, CC e DD - o haviam sido em coligação e em função de títulos executivos diversos implicantes de «causas de pedir díspares» – no caso dos executados AA, BB e CC, com base em contrato de mútuo garantido por penhor de acções, no caso de BB e AA, com fundamento em livrança – excluindo no despacho recorrido o ponto de vista que o exequente expusera na resposta ao despacho de convite (de que, não foram deduzidos dois pedidos executivos diferentes, mas apenas um, com base na livrança exequenda, «a qual se encontra garantida por aval, hipoteca penhor mercantil e penhor de acções»), fazendo-o com fundamento nas características da livrança enquanto titulo de crédito, assim, concluindo, que os únicos obrigados cambiários são a subscritora A... SA e os avalistas AA e BB.

Entende o Exequente/apelante que a demanda dos vários executados a que procedeu implica o respectivo litisconsórcio voluntário, ao abrigo do disposto no art 54º/2º CPC, ponto de vista que já deixara razoavelmente claro no ponto 3 dos factos constantes do requerimento inicial, quando aí refere que «3. Os titulares das ações dadas de penhor, CC e DD, são responsáveis apenas na medida da garantia prestada, penhor sobre as ações de que são titulares, nos termos do art. 54º n.º 2 do CPC».

Dispõe esta norma – do nº 2 do art 54º - que «A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue directamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor».

E dispõe o nº 3 dessa mesma norma: «Quando a execução tenha sido movida apenas contra o terceiro e se reconheça a insuficiência dos bens onerados com a garantia real, pode o exequente requerer, no mesmo processo, o prosseguimento da acção executiva contra o devedor, que é demandado para completa satisfação do crédito exequendo».

Em anotação a estas normas, assinalam Lebre de Freitas/Isabel Alexandre [«Código de Processo Civil Anotado» Vol I, 3ª ed., Setembro 2014, p. 113]: «A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro face à obrigação exequenda tem de seguir contra este sempre que o exequente pretenda fazer valer a garantia. È consequência da regra, que não comporta excepções, segundo a qual apenas podem ser penhorados bens que pertençam ao executado (art 735º/2). Pressupõe, obviamente, a existência de titulo executivo contra o proprietário do bem. Fica ao critério e à iniciativa do credor/exequente instaurar a execução, desde logo, contra o devedor e o terceiro, verificando-se então uma situação de litisconsórcio voluntário (nº1), ou apenas contra o terceiro (nº 2). Mas, vindo-se a verificar, nesta segunda hipótese, a insuficiência dos bens onerados com a garantia real, poderá o exequente requerer a intervenção principal do devedor nos termos do art 316º/2, passando a execução a correr também contra este».

Explica Rui Pinto que o art 54º/2 «surge como uma norma de legitimação passiva de terceiro» [Obra referida, p.293 e 206]. Com efeito, a possibilidade que o legislador conferiu ao exequente de propor a acção executiva contra alguém que não figura no titulo executivo – como sucede com o terceiro que haja constituído garantia real para garantia da obrigação exequenda - «evitando, desse modo, a necessidade de formação de um novo titulo executivo e subsequente sobrecarga da actividade dos tribunais», implica, em nome do princípio da economia processual, a derrogação do principio da legitimidade formal, que, como se sabe, vigora na acção executiva, «segundo o qual a execução tem de ser promovida pela pessoa que no titulo executivo figure como credor e contra a pessoa que no titulo tenha a posição de devedor ( art 53º/1)».

Como é sabido, na execução por divida provida de garantia real o credor pode adoptar uma de três atitudes: - demandar apenas o devedor, caso em que não pode ser penhorado o bem de terceiro sobre o qual foi constituída a garantia real, «isto porque no processo executivo vigora o principio de que apenas podem ser penhorados bens ou direitos do executado, independentemente da qualidade substantiva desse executado – art 735º-1»; demandar apenas o terceiro, titular do bem onerado em garantia, quando pretenda fazer valer essa garantia, isto é, penhorar o bem sobre o qual foi constituída uma garantia real a seu favor, situação em que, se se vier a reconhecer a insuficiência do bem onerado com a garantia real - «o que só pode acontecer com a distribuição do produto da venda» - pode o exequente requerer no mesmo processo o prosseguimento da acção executiva contra o devedor, para completar a satisfação do crédito exequendo – art 54º/3 – estando aí em causa uma intervenção principal para compor um litisconsórcio – não uma coligação [Obra referida, p 293; Cfr Ac RE 7/5/2009 e Pestana de Vasconcelos, «Direito das Garantias», p 229, no sentido de excluírem nesta situação um litisconsórcio necessário. No mesmo sentido, Marcos Gonçalves, obra referida, p. 213, onde refere: «Constata-se por isso, que entre o terceiro e o devedor existe,, do ponto de vista processual, um litisconsórcio voluntário passivo».] – superveniente, «pois, pese embora a diferente posição dos executados perante a divida, a obrigação exequenda é uma e a mesma, não podendo permanecer extinta em face de um e não extinta em face do outro»; e demandar ab initio, em litisconsórcio voluntário, o terceiro garante e o devedor, conforme a 2ª parte do nº 2 do art 54º .

Pareceria, à partida, ter sido este o procedimento do Banco Exequente – a demanda dos executados AA e BB, enquanto devedores, em função do preenchimento da livrança entregue em branco, subscrita pela A... e por aqueles avalizada; e a demanda de CC e DD, como titulares das acções dadas em penhor, na qualidade de garantes, visto o penhor constituir garantia real e o que está em causa ter sido constituído como penhor genérico, visto que constituído para garantia de todas e quaisquer responsabilidades da sociedade comercial A..., S.A. junto do Banco 1... e não apenas do contrato de mútuo, e apenas se pedir a execução da garantia na medida em que foi prestada [Relativamente à hipoteca global, mas podendo-se aplicar igualmente ao penhor global, refere Isabel Mereres Campos, «Da Hipoteca - caracterização, constituição e efeitos», p 103Caracteriza-se por garantir uma dívida que não está determinada ab initio, sendo apenas determinado o montante máximo que assegura. As obrigações garantidas podem ter a mais variada natureza e não é limitado o seu número: pode ser abrangida pela hipoteca toda e qualquer obrigação, desde que integrável num dos critérios de globalização convencionados e desde que caiba na quantia máxima constante do registo e do titulo constitutivo (…) Relativamente a estas hipotecas (globais) é necessário que se preencham certos requisitos minimos para determinação do crédito garantido, designadamente, é preciso identificar, na data da sua constituição, a relação juridica da qual derivará a obrigação a garantir, e só se esta vier a nascer e se tornar autonomamente exigivel é que havera desenvolvimento da garantia hipotecária».]

Sucede que os devedores do contrato cujo incumprimento está em causa – o mútuo de € 1.190.000,00, destinado a restruturar responsabilidades bancárias, e cujo cumprimento é assegurado pelas diferentes garantias de que o aqui Exequente lançou mão, a livrança em branco com aval, a hipoteca voluntária, o penhor mercantil e o penhor de ações – não são, obviamente, os executados AA e BB, mas só e apenas a empresa A... SA.

Sucede, porém, que esta – a devedora -, se apresentou ao PER em 22/3/2023, pelo que, a partir do despacho judicial proferido nos termos do art 17º/C, nº 3 , al a) do CIRE, ficou, nos termos do art 17-E do mesmo Código, impedida de contra ela ver instauradas quaisquer acções para cobrança de dividas.

O que só por si exclui o pressuposto de que o Banco exequente se terá pretendido servir na instauração da presente execução - não estamos numa demanda ab initio, em litisconsórcio voluntário, do terceiro garante e do devedor, conforme a 2ª parte do nº 2 do art 54º. Estamos perante a demanda dos garantes, a titulo diverso, da obrigação exequenda, que é o mútuo.

Emergindo, com toda propriedade, a abstracção, enquanto característica própria dos títulos de crédito (em que se inclui a livrança) - a independência da causa debendi, quer dizer, o titulo e o direito cambiário que encerra é independente da relação jurídica que esteve na sua origem.

Fazendo todo o sentido que se diga como o disse a Exma Juíza a quo : «(…), compulsada a livrança exequenda constatamos que os únicos obrigados cambiários são a subscritora A... SA e os avalistas AA e BB. (…) a hipoteca, o penhor mercantil e o penhor de acções são garantias destinadas a garantir o pagamento de responsabilidades, neste caso a subjacente ao contrato de mútuo, junto como documento n.º 2 ao Requerimento Executivo apresentado, e não a livrança, atentas as características supra aludidas».

Desde o momento em que, como acima se afirmou, estamos perante a demanda dos garantes, a titulo diverso, da obrigação exequenda, estamos perante relações jurídicas diversas, correspondentes, cada qual, a cada uma das garantias utilizadas nesta acção, consequentemente, causas de pedir dispares, utilizando as palavras de Rui Pinto acima transcritas, «pedidos executivos subjectivamente diferenciados em função de uma pluralidade de situações jurídicas autónomas, sem existência de contitularidade, mas conexas entre si. Em suma: o que se poderia apelidar de mera apensação de causas», sendo, por isso, forçoso concluir que os executados não se encontram obrigados no mesmo titulo.

Com o que a coligação passiva dos executados se mostra ilegal, nos termos a contrario da al b) do nº 1 do art 56º CPC, merecendo, em função do não acolhimento do convite que foi dirigido ao Exequente, o suprimento determinado, ao abrigo do nº 1 do art 38º CPC, pelo Tribunal da 1ª instância, com o que há que confirmar o despacho recorrido."

[MTS]