"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/04/2025

Jurisprudência 2024 (146)


Suspensão da instância;
prejudicialidade


1. O sumário de RL 11/7/2024 (75192/22.7YIPRT-A.L1-2) é o seguinte:

I – Para que ocorra suspensão judicial da instância, prevista no nº. 1, do artº. 272º, do Cód. de Processo Civil, por pendência de causa prejudicial, é mister que se comprove uma real e concreta relação de dependência, em que a decisão a proferir na causa prejudicial afecte o julgamento da causa dependente, ou seja, que a apreciação do litígio nesta seja condicionado pelo que venha a decidir-se naquela;

II – Exercitando a Autora, na causa alegadamente dependente, eventual direito de crédito relativamente ao Réu Condomínio, decorrente de um contratualizado acordo de prestação de serviços, no âmbito do qual afirma ter-lhe prestado serviços de administração, jardinagem, limpeza e material de escritório, e tendo o demandado Réu, na acção alegadamente prejudicial, em que figura como Requerente/Autor, reclamado a condenação da ali Requerida/Ré (ora Autora) a entregar-lhe bens e documentos que alegadamente lhe pertencem, aduzindo que, caso venha a ser julgada procedente, “poderá encontrar evidência da quantia ora peticionada ter sido já paga”, a eventual decisão a proferir na aludida causa prejudicial – acção de apresentação de coisas e bens – nunca poderia fazer desaparecer a razão de ser ou o fundamento da presente acção reivindicada como dependente, ou seja, a resolução da controvérsia em litígio naquela causa, alegadamente prejudicial, nunca modificaria, de forma juridicamente relevante, a decisão a prolatar nos presentes autos, pois a pretensão afirmada no objecto daquela não constitui pressuposto da pretensão reivindicada nos presentes autos;

III - Efectivamente, um putativo juízo de procedência daquela aludida causa prejudicial, não determinaria a perda da razão de ser da presente causa aludidamente dependente, pois o ali decidido nenhuns reflexos jurídicos relevantes provocaria na apreciação da questão em controvérsia na presente acção;

IV – Mesmo configurando tal prejudicialidade em termos de potencialidade probatória, como o Apelante Réu o faz, ao aduzir que, sem aquela documentação que reclama na catalogada causa prejudicial, vê-se impossibilitado de exercer o seu direito de defesa na presente acção, reclamada como dependente, nomeadamente no que concerne à impugnação dos créditos reclamados ou mera alegação do seu pagamento, este fundamento ou desiderato não pode ser reconhecível como fundamentação para a requerida suspensão judicial por pendência de causa prejudicial, que não acolhe como fundamento eventual potencialidade probatória a adquirir por via da resolução desta causa.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"- Da suspensão da instância por determinação judicial

Estatuem os nºs. 1 e 2, do artº. 272º, do Cód. de Processo Civil, prevendo acerca da suspensão da instância por determinação do juiz, que “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.

2 – Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens” [...]

Concatenando-se com o disposto na alínea c), do nº. 1, do artº. 269º, do mesmo diploma, num primeiro segmento do normativo, a suspensão pode ser ordenada quando a decisão em causa esteja dependente de outra já proposta.

Ora, afirma-se “que uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira possa fazer desaparecer o fundamento ou a razão de ser da segunda”, conforme se extrai do nº. 2, do artº. 276º, ainda do Cód. de Processo Civil. [...]

Acrescenta Alberto dos Reis - Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, 1946, Coimbra Editora, pág. 268 e 269 - que “segundo o Prof. Andrade, verdadeira prejudicialidade e dependência só existirá quando na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental, como teria de o ser, desde que a segunda causa não é reprodução, pura e simples, da primeira. Mas nada impede que se alargue a noção de prejudicialidade, de maneira a abranger outros casos. Assim pode considerar-se como prejudicial, em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal.

Estamos de acordo.

Há efectivamente casos em que a questão pendente na causa prejudicial não pode discutir-se na causa subordinada; há outros em que pode discutir-se nesta, mas somente a título incidental. Na primeira hipótese o nexo de prejudicialidade é mais forte, na segunda, mais frouxo ; na primeira há uma dependência necessária, na segunda, uma dependência meramente facultativa ou de pura conveniência”. 

Por sua vez, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre – Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª Edição, Almedina, pág. 550 e 551 – referenciam ocorrer legal admissibilidade de suspensão da instância quando penda causa prejudicial, entendendo-se esta como a que tem “por objeto pretensão que constitui pressuposto da formulada” [---].

Assim, exemplificam que “a ação de nulidade dum contrato é, por exemplo, prejudicial relativamente à ação de cumprimento das obrigações dele emergentes”, sendo que a “suspensão só pode ser ordenada se, no momento do despacho, a ação prejudicial estiver efetivamente proposta”, cessando quando estiver definitivamente julgada a causa prejudicial (cf., o artº. 276º, nº. 1, alín. c), do CPC).

Por fim, consignam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa – Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, pág. 314 e 315 – dever “comprovar-se uma efetiva relação de dependência, de tal modo que a apreciação do litígio esteja efetivamente condicionada pelo que venha a decidir-se na ação prejudicial, a qual constitui, pois, um pressuposto de outra decisão (v.g. ação para cumprimento de um contrato e ação em que se invoque a nulidade desse contrato)”.  

Acrescentam que “o nexo de prejudicialidade define-se assim: estão pendentes duas ações e dá-se o caso de a decisão de uma poder afetar o julgamento a proferir noutra ; a razão de ser da suspensão, por pendência de causa prejudicial é a economia e a coerência de julgamentos (…)”.

Todavia, ressalvam, “ainda que esses dois requisitos se verifiquem, o juiz deve negar a suspensão fundada na prejudicialidade quando se demonstrar que a ação foi intentada precisamente para se obter a suspensão da outra ou, independentemente disso, quando o estado da causa tornar gravemente inconveniente a suspensão. É que não pode ignorar-se que a suspensão obsta a que a instância prossiga naturalmente, o que pode revelar-se gravoso para os interesses que o autor procurou acautelar. Daí que, nessas situações, cumpra apreciar na ação todas as questões que tenham sido suscitadas” [...].

O despacho apelado raciocinou nos seguintes termos:

- o Réu deduz incidente de verificação de uma causa prejudicial, alegando, em síntese, ter proposto contra a Autora duas acções:

Ø Uma, onde reclama a entrega dos documentos e bens, referente ao período em que exerceu funções de administradora de condomínio ;

Ø A segunda, de prestação de contas do respectivo exercício, as quais sendo procedentes, fará antever que os serviços prestados não em dívida ;

- a Autora contesta a pretensão, pugnando pelo indeferimento da suspensão, por considerar que as acções não conflituam com o direito de crédito que pretende fazer valer ;

- apreciando o deduzido incidente, consigna que as acções propostas pelo Réu Condomínio contra a Autora não conflituam com o exercício do direito de crédito que esta pretende fazer valer nesta acção ;

- por outro lado, não obsta ao exercício do direito de defesa do Réu, nem impede que o Tribunal conheça das excepções por si invocadas ;

- acresce que, tendo já sido designada data para a realização da audiência final, e atendendo ao estado adiantado dos autos, atento o disposto no nº. 2, do artº. 272º, do Cód. de Processo Civil, inexistem razões para serem suspensos ;

- o que determina indeferimento do requerido, por falta de fundamento legal, determinando-se o prosseguimento dos autos com designação da data para realização da audiência final. [...]

Apreciemos.

Em primeiro lugar, urge consignar que, apesar de no deduzido incidente de verificação de causa ou questão prejudicial se aludir à existência de causa prejudicial por referência a dois processos judiciais intentados – nº. 29/23.0T8FNC, de apresentação de coisas e bens e nº. 31/23.2T8FNC, de prestação de contas -, no âmbito da presente apelação (e, mais concretamente, nas conclusões recursórias apresentadas) tal alegada prejudicialidade é apenas referenciada relativamente ao primeiro dos processos identificados.

Pelo que, será com esta amplitude ou âmbito que se conhecerá do delimitado objecto recursório.

Ora, o identificado processo de Apresentação de Coisas e Bens – nº. 29/23.0T8FNC, que tramita no Juízo Local Cível do Funchal (Juiz 2) – constitui causa prejudicial prévia relativamente ao objecto do presente litígio ?

Ou seja, a apreciação do litígio na presente acção (acção ou causa dependente) está concretamente condicionado pelo que venha a decidir-se naquela acção (acção ou causa prejudicial) ?

De forma mais incisiva, a decisão que venha a ser prolatada naquele processo de Apresentação de Coisas e Bens pode realmente afectar o julgamento nos presentes autos ?

Avançemos, desde já, que não cremos, claramente, que tal nexo de prejudicialidade seja reconhecível.

Nos presentes autos, exercita a Requerente/Autora um alegado direito de crédito relativamente ao Réu, decorrente de um contratualizado acordo de prestação de serviços, no âmbito do qual afirma ter-lhe prestado serviços de administração, jardinagem, limpeza e material de escritório, no valor global de capital de 7.999,36 €.

Por sua vez, naquela acção apontada como prejudicial, o ora Réu Condomínio, que ali figura como Requente/Autor, pretende a condenação da Requerida (ora Autora) a entregar-lhe bens e documentos que alegadamente lhe pertencem, aduzindo que, caso venha a ser julgada procedente, “poderá encontrar evidência da quantia ora peticionada ter sido já paga”.

Decorre, assim, do exposto que a eventual decisão a proferir na aludida causa prejudicial – acção de apresentação de coisas e bens – nunca poderia fazer desaparecer a razão de ser ou o fundamento da presente acção reivindicada como dependente, ou seja, a resolução da controvérsia em litígio naquela causa, alegadamente prejudicial, nunca modificaria, de forma juridicamente relevante, a decisão a prolatar nos presentes autos, pois a pretensão afirmada no objecto daquela não constitui pressuposto da pretensão reivindicada nos presentes autos.

Efectivamente, um putativo juízo de procedência daquela aludida causa prejudicial, não determinaria a perda da razão de ser da presente causa aludidamente dependente, pois o ali decidido nenhuns reflexos jurídicos relevantes provocaria na apreciação da questão em controvérsia na presente acção.

O que, por si só, inviabilizaria a reclamada verificação de causa prejudicial, determinante de suspensão judicial da instância.

Todavia, conforme vimos, o Recorrente Condomínio Réu configura tal prejudicialidade como que em termos de potencialidade probatória, ao aduzir que, sem aquela documentação que reclama na catalogada causa prejudicial, vê-se impossibilitado de exercer o seu direito de defesa na presente acção, reclamada como dependente, nomeadamente no que concerne à impugnação dos créditos reclamados ou mera alegação do seu pagamento.

O que considera, ainda, ser constatável com maior incisividade, atenta a impossibilidade de, na presente forma processual, poder formular requerimentos de prova, nomeadamente de prova documental na posse de terceiros, nos termos do artº. 432º, do Cód. de Processo Civil.

Ora, conforme referenciámos, a suspensão judicial por pendência de causa prejudicial, prevista no nº. 1 do artº. 272º do Cód. de Processo Civil não tem por fundamento eventual potencialidade probatória a adquirir por via da resolução da causa prejudicial. Pelo que, com tal fundamento ou desiderato, nunca seria reconhecível fundamentação para a requerida suspensão.

Todavia, em abstracto, poder-se-ia equacionar se aquela apontada finalidade probatória justificaria a determinação de suspensão da instância pela ocorrência de outro motivo justificado, nos termos da parte final do mesmo normativo.

Ora, também por esta via não consideramos justificar-se decisão judicial de suspensão da instância.

O que, in casu, resulta claro e evidente.

Com efeito, atento o teor da oposição apresentada pelo Requerido/Réu à pretensão acional deduzida pela Autora, não se vislumbra, minimamente, donde decorrerá a aludida impossibilidade do direito de defesa.

Por outro lado, não temos por pacífica ou incontroversa a afirmação de que, na presente forma processual, e apesar do disposto no nº. 4, do artº. 3º, do Regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos – aprovado pelo artº. 1º do DL nº. 269/98, de 01/09 [---] (diploma preambular que aprovou o regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância) -, as partes encontram-se impedidas de recorrer ao mecanismo previsto no artº. 429º, do Cód. de Processo Civil – requerimento para uso de documentos em poder da parte contrária (sendo este efectivamente o mecanismo em equação, e não o indicado pelo Recorrente de apresentação de documentos em poder de terceiro, equacionado no artº. 432º, do mesmo diploma).

Donde, esta argumentação, desde logo pelo seu não reconhecimento, não se enquadra ou tipifica como outro motivo justificado, fundante de pertinente suspensão judicial da instância. [---]

Donde, no reconhecimento da falência dos argumentos recursórios, resta, sem ulteriores delongas, concluir pela total improcedência da apelação, com consequente confirmação da decisão recorrida/apelada".

[MTS]