"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/04/2025

Jurisprudência 2024 (139)


Sigilo profissional;
pedido de levantamento; requisitos


1. O sumário de RP 3/6/2024 (9746/22.1T8VNG.A.P1) é o seguinte:

I - Em incidente de levantamento do sigilo profissional de solicitador, a apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da factualidade controvertida que se pretende demonstrar com recurso ao depoimento em causa, cujo conhecimento pela testemunha se encontra abrangido pelo sigilo profissional invocado, bem como a relevância de tal depoimento, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios de prova de tal factualidade;

II - Não tendo sido indicada a matéria que se pretende provar com o depoimento em causa, nem a eventual inexistência de outros meios probatórios ou qualquer elemento relativo à relevância do depoimento abrangido pelo sigilo profissional, não poderá a Relação considerar verificados os critérios dos quais faz a lei depender o levantamento do sigilo profissional.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Como supra se referiu a única questão que importa apreciar e decidir consiste em apreciar se no caso concreto que os autos evidenciam deve (ou não) ser determinada a quebra do sigilo profissional da testemunha DD arrolada pelos Autores.

Nos termos do artigo 417.º, nº 1, do CPCivil "Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados"

Nos termos do preceituado no nº 3 do artigo 497.º do CPCivil, "Devem escusar-se a depor os que estejam adstritos ao segredo profissional, ao segredo de funcionários públicos e ao segredo de Estado, relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, aplicando-se neste caso o disposto no nº 4 do artº 417.º."

Neste caso, a testemunha, identificando-se como solicitador/agente de execução chamada a depor, recusou-se a prestar depoimento, invocando para tal a violação do segredo profissional para o que já tinha solicitado a sua dispensa.

Dúvidas não existem de que o estatuto dos solicitadores/agentes de execução salvaguarda de forma inquestionável o segredo profissional dos seus membros, conforme decorre dos arts. 127.º e 141.º e 168.º da Lei 154/2015, de 14/09.

O já citado artigo 417,º n.º 4, remete o levantamento do sigilo profissional para o disposto no processo penal, que no seu artigo 135.º regula regime de quebra estabelecendo o princípio da prevalência do interesse preponderante.

De um modo geral e como refere Fernando Eloy [Da inviolabilidade das correspondências e do sigilo profissional dos funcionários telégrafo-postais", em "O Direito", ano LXXXVI, 1954, pág. 81.], o segredo profissional deverá ser entendido como a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício.

Na verdade, o exercício de certas profissões exige, pela própria natureza das necessidades que visam satisfazer, que as pessoas que a elas tenham de recorrer revelem factos que interessam à sua esfera íntima (quer física, quer jurídica).

Sempre que estejam em causa profissões (como é o caso do exercício da solicitadoria) de fundamental importância colectiva [---], designadamente porque todas as pessoas carecem de as utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu exercício constitui condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades e, nessa medida, reveste-se de um elevado interesse público.

Como assim, a violação da obrigação a que ficam adstritos certos profissionais de não revelarem factos confidenciais conhecidos através da sua actividade é punível não só disciplinarmente, mas também criminalmente.

Ora, a solução nesses casos não pode deixar de passar pela tentativa de realizar a máxima concordância prática entre princípios e valores em conflito, mostrando-se fulcral para o efeito a definição dos respectivos contornos que apenas poderá ser convenientemente levada a cabo pelo tratamento jurídico-criminal dado à violação do segredo, ao qual não pode ser alheio as regras deontológicas da respectiva profissão. [---]

Isto dito, decorre do disposto no citado artigo 135.º do CPP, ao qual cumpre atender por força do n.º 4 no artigo 417.º do CPC, que é de admitir o levantamento do segredo profissional sempre que tal se mostre justificado, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do meio de prova em causa para a descoberta da verdade.

Afirmam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa [In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 492]  o seguinte: "Cabe ao tribunal superior decidir se poderá justificar-se a quebra de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, parametrizado pela imprescindibilidade do depoimento /informação para a descoberta da verdade e pela necessidade de proteção de bens jurídicos".

Explica Luís Filipe Pires de Sousa [In Prova Testemunhal, 2016, reimpressão, Coimbra, Almedina, pág. 246] o seguinte: "A decisão final sobre a justificação da escusa invocada pela testemunha pautar-se-á sempre pelo princípio da proibição do excesso. O segmento da norma do Artigo 135.º, n.º 3, do CPP, que apela à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, constitui, de per si, uma concretização do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo".

Ora, a apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da factualidade controvertida que se pretende demonstrar com recurso ao depoimento em causa, cujo conhecimento pela testemunha se encontra abrangido pelo sigilo profissional invocado, bem como a relevância de tal depoimento, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios de prova de tal factualidade.

No caso presente, desconhece-se a matéria que se pretende provar com o depoimento em causa, considerando que não foi indicada a factualidade previsivelmente do conhecimento da testemunha e abrangida pelo sigilo profissional, nem qualquer elemento relativo à relevância do depoimento em causa [Neste sentido, cf. o acórdão da RE de 09/11/2017 proferido no processo n.º 842/11.1TBVNO-B.E1, consultável em www.dgsi.pt, no qual se entendeu o seguinte: "o dever de segredo deve ceder, por prevalência do interesse do acesso ao direito e da descoberta da verdade material, com vista à realização da justiça, desde que se apure que a pretendida informação é instrumentalmente determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade controvertida"].

Efetivamente, no requerimento do incidente de quebra de sigilo apresentado pelos Autores em 30/10/2023, apenas se alega que a testemunha em causa "foi perentória em audiência de julgamento, referindo que teria algo a narrar aos autos, com relevância e que não constava (...) no auto por si elaborado" (artigo 7º), que a própria testemunha indicou em julgamento "ter algo a dizer" (artigo 16º), que os factos por si apreendidos no âmbito da referida diligência são importantes (artigo 13º) e que as informações a transmitir aos autos por parte do Srº AE são pertinentes para a boa decisão da causa (artigo 14º).

Portanto, não foram invocados quaisquer factos concretos do conhecimento da testemunha em causa, para que, face ao objeto de litígio nos presentes autos, se pudesse percecionar o interesse do seu depoimento que justificasse a quebra do sigilo profissional[Neste sentido, cf. o acórdão da Relação de Coimbra de 04/03/2015 proferido no processo n.º 60/10.6TAMGR-A.C1, consultável em www.dgsi.pt), no qual se concluiu o seguinte: "A imprescindibilidade do depoimento de testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial à densificação do princípio da prevalência do interesse preponderante a atuar pelo tribunal com vista à decisão sobre a quebra do segredo; - No requerimento que deu origem ao presente incidente não foram indicados os factos, eventualmente conhecidos pela testemunha e cobertos pelo segredo profissional de Advogado, suscetíveis de demonstrarem a absoluta necessidade ou imprescindibilidade do seu depoimento; - Por isso, não existe razão objetiva para que, feita a ponderação dos interesses conflituantes com os elementos disponíveis, deva ser quebrado aquele segredo".]

[MTS]