Suspensão de deliberações sociais;
"dano apreciável"
1. O sumário de RP 10/7/2024 (687/24.9T8AVR-A.P1) é o seguinte:
I - A alegação da possibilidade de se adoptar um procedimento negocial mais favorável a uma das partes, num negócio de aquisição do remanescente do capital social de uma sociedade, bem como de virem a poder ser aplicados critérios de determinação do preço de aquisição com um desconto pré-determinado, em consequência da declaração de verificação de determinada condição, é suficiente para consubstanciar a alegação de dano apreciável, previsto como pressuposto da tutela cautelar de suspensão de uma deliberação social.
II - Nessas circunstâncias, não se justifica o indeferimento liminar do requerimento inicial da providência cautelar, por impossibilidade absoluta de se vir a ter por preenchido esse pressuposto.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"No caso, cabe decidir se foram alegados factos adequados ao preenchimento dos requisitos de priculum in mora e da eventualidade de um dano apreciável para a requerente, imprescindíveis para a tutela cautelar pretendida; em caso de resposta negativa, se cabia ao tribunal convidar o requerente ao aperfeiçoamento do requerimento inicial, incorrendo em nulidade da decisão, por omissão desse convite; se a condição económica da requerida é indiferente para a identificação do eventual dano e se, em caso de tida por necessária, deveria o tribunal ter convidado a requerente a aperfeiçoar a sua alegação, incorrendo em nulidade por não o ter feito; se a requerente não alegou o perigo de uma gestão ruinosa da requerida, como causa para um eventual dano para o requerente.
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Dispõe o art. 380º, nº 1 do CPC: “Se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável.”
É recorrente apontarem-se três requisitos para o deferimento da providência em causa: (1) ser o requerente sócio da sociedade que a tomou; (2) ser essa deliberação contrária à lei ou ao pacto social e (3) resultar da sua execução dano apreciável (ex: ac. do TRC de 6/11/2011, proc. nº 158/10.0T2AVR-A.C2).
Na situação em apreço, o indeferimento liminar do procedimento cautelar foi referido àquele terceiro requisito. Quanto a ele, refere o mesmo acórdão: “A exigência legal de demonstração de que a execução da providência pode causar “dano apreciável” reclama a alegação de factos concretos que permitam aferir da existência dos prejuízos e da correspondente gravidade. O “dano apreciável” não é toda ou qualquer possibilidade de prejuízo que a deliberação ou a execução em si mesmas comportam, mas sim a possibilidade de prejuízos imputáveis à demora da acção de anulação, pois a providência cautelar visa prevenir o “periculum in mora”, ou seja, acautelar a utilidade prática da sentença de anulação da deliberação social contra o risco da duração do respectivo processo. O “dano apreciável” tanto pode referir-se a danos morais, como a danos patrimoniais, sejam eles da sociedade ou dos sócios.”
Em qualquer caso, como se refere noutro acórdão do mesmo TRC, de 09-11-2021 (proc. nº 857/21.1T8ACB.C1, em dgis.pt) “O dano apreciável é aquele que não sendo insignificante, irrisório, também não é grave e dificilmente reparável.”
Na situação sub judice, não está ainda em causa averiguar se a deliberação que destituiu AA do cargo de CEO da B... LDA e revogou o contrato de mandato com ele celebrado é susceptível de gerar um dano apreciável para a requerente A..., SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA (sócio da requerida), caso seja imediatamente executada e se mantenha durante o tempo que possa durar a acção tendente à anulação dessa mesma deliberação. Apenas está em causa descortinar se o requerimento inicial identificou a probabilidade de ocorrência de factos que venham a consubstanciar um tal dano apreciável, ou, pelo menos, se a tal aludiu em termos que justifiquem uma oportunidade de complementação do alegado.
Procura-se, em suma, a razão invocada para se suspender a deliberação que destituiu AA do cargo de CEO da B..., devendo ela ser constituída pela alegação de factos dos quais resulte que o seu afastamento dessas funções de CEO, até que seja decidida a acção de anulação da mesma deliberação, pode causar um dano apreciável à requerente A..., sócia da B..., ou à própria B....
Analisando o teor do requerimento inicial, vejamos o que a esse propósito foi alegado:
Art. 20º: a C... (sócia da B... com 55% do capital, o qual é detido, nos restantes 45%, pela requerente) tem como fim último diminuir o poder negocial da Requerente no processo de aquisição do capital social da B..., ao abrigo das promessas de vendas acordadas e do processo de venda acelerada previsto;Art. 21º: com as deliberações, a C... pretendeu resolver o contrato que permitia a AA determinar o curso dos negócios da B...;Art. 28º: no próprio dia das deliberações – 19/1/2024 - os gerentes nomeados pela C... cortaram o acesso de AA à sua caixa de correio electrónica institucional e poucos dias depois, pretenderam que o mesmo entregasse a viatura da empresa que lhe está destinada.Art 31º: foram substituídas as fechaduras das instalações da Requerida (quer da parte da produção, quer da parte administrativa, com o propósito de que AA não pudesse aceder às mesmas;Arts. 34º a 37º: substituição de AA por BB, para exercer as funções de Directora Geral, com as funções ali descritas;Arts. 50º a 55º: acordo parassocial e seus anexos (alegação documental) de venda à C..., a longo prazo, da totalidade do capital social da B... que ainda detém (45%), nos termos do qual o preço a pagar pela LMVH à Requerente depende do desempenho empresarial que a B... tenha no momento em que as opções de compra e / ou de venda sejam exercidas, em razão do que AA tem interesse em continuar “a controlar e a determinar, nos termos acordados no pacto social e no acordo parassocial, os destinos da Requerida”.Arts. 58º a 67º: a motivação da deliberação consubstancia uma situação de “Má Saída” que, nos termos do Anexo 5.2 do Acordo Parassocial permitirá à C... adquirir as participações da Requerida com um desconto significativo (20%, 25% ou 30%) sobre o “Valor de Mercado da Acção sob Promessa de Venda de Saída”.Arts. 68º a 77º: proposta da LMVH de aquisição dos 45% de capital por 15 milhões de euros, contra a avaliação da requerente, de 48 milhões de euros.Arts. 101ª a 108º: relevância da actividade de AA para o crescimento da B....Art. 109º: o afastamento de AA colocará em risco “esta trajectória” da B....Art. 112º: Se a B... “diminuir o seu desempenho, o valor a pagar à Requerente pelas promessas assumidas nos acordos atrás juntos será menor”.
A restante matéria articulada no requerimento inicial respeita à arguição da invalidade das deliberações impugnadas, por nulas ou anuláveis, não respeitando já à concretização do pressuposto do procedimento cautelar de que nos ocupamos.
Atentando na decisão recorrida, nas alegações da apelante e na resposta da apelada, identificam-se três ordens de razões em função das quais a apelante sustentaria a justificação para a suspensão das deliberações em questão:
1ª- A referente à aquisição dos 45% da B... detidos pela requerente;2ª- A referente à relevância dos termos desse negócio para poder redundar numa lesão relevante para a situação económica da requerente, situação esta que não é minimamente ilustrada, pelo que é impossível concluir que aquela relevância seja negativa e apreciável;3ª- A referente ao efeito que a saída de AA da direcção dos destinos da B... pode provocar na trajectória económica, financeira e comercial desta.
No que respeita à 3ª ordem de razões, só pode concordar-se com a decisão recorrida. [...]
Diferentemente, porém, a conclusão quanto à alegação de factos passíveis de resultar num dano apreciável para a requerente, da implementação imediata das deliberações impugnadas.
Com efeito, alegou a requerente que tais deliberações têm duas virtualidades: potenciar, nos termos do contrato, o desenvolvimento do processo de aquisição da parte do capital da B... detido pela A...., em condições mais vantajosas, por permitirem a determinação de um preço a pagar por valor inferior, entre 20% a 30%, àquele que que corresponderia ao “Valor de Mercado da Acção sob Promessa de Venda de Saída”.
Assim, alegou, no art. 20º do requerimento inicial, que a sua saída, nos termos em que resulta das deliberações, permitirá o recurso a uma solução prevista contratualmente, como “processo de venda acelerada”. E que, com a motivação dessa saída do cargo de CEO usada nas deliberações, subsumível à figura prevista no contrato de “Má saída”, permitirá a definição de um preço inferior, como referido, o que já fundou uma proposta de aquisição por valor inferior ao adequado (arts. 50º a 55º, 58º a 67º e 68º a 77º).
Ora, não cabendo aqui apreciar se os factos em causa estão demonstrados nos meios de prova já constituídos, ou sequer se são verosímeis, pois que isso será um juízo sobre o mérito da providência e não sobre a sua admissibilidade, o que cumpre reconhecer desde já é que os factos invocados são susceptíveis de configurar a figura de dano apreciável para a requerente, que é pressuposto da tutela cautelar e que a decisão recorrida declarou não identificar.
Por um lado, a possibilidade de as deliberações descritas poderem suscitar o recurso a um expediente de venda acelerada, e, por outro, a possibilidade de o preço de aquisição dos 45% da B... baixar 20%, 25% ou 30%,- segundo a alegação da requerente, consubstanciam de per si e sem mais – num negócio que já se indicia haverá de ascender, pelo menos, a 15 milões de euros – um dano apreciável para a alienante.
Com efeito, independentemente da condição económica da requerente, a possibilidade de realização de um tal negócio em condições tão menos favoráveis, como as que resultam da aplicação de um desconto nos termos referidos, constitui um óbvia hipótese de incursão num dano considerável.
Saber se, face ao contrato e à continuação de AA como gerente da empresa, mau grado a perda das funções executivas de CEO – como alega a apelada – inviabiliza o recurso ao processo de venda acelerada, bem como saber se as circunstâncias em causa permitem a referida redução de preço, ou que este não possa vir a ser desfavorável como vem alegado, é matéria que já será apreciada em sede de decisão de mérito da providência cautelar. Porém, o que releva no âmbito do presente recurso, é que essa matéria foi alegada e que, segunda a tese da requerente, é adequada a preencher o requisito do dano apreciável que está em análise.
Conclui-se, pois, que inexiste fundamento para o indeferimento liminar decretado, porquanto a matéria alegada, pelo menos no respeitante aos dois pressupostos que acabámos de analisar, é apta a permitir, em momento ulterior e sendo caso disso, o preenchimento do conceito de dano considerável exigido pelo art. 380º, nº 1 do CPC.
De resto, como é recorrente afirmar-se na jurisprudência, o indeferimento liminar de uma petição inicial apenas se mostra previsto para situações particularmente gravosas, nas quais não se mostram alegados de todo os factos essenciais que permitam a procedência do pedido formulado (cfr., entre muitos, o Ac. do TRE de 22/9/2022, proc. nº 956/22.2T8TMR.E1). Ora, como vem de afirmar-se, esse não é o caso dos autos."
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