1. O sumário de STJ 9/7/2024 (2830/18.8T8CSC.L1.S1) é o seguinte:
I - A admissibilidade da revista excepcional depende de uma fundamentação específica, como, por exemplo, a necessidade, pela sua relevância jurídica, para uma melhor aplicação do direito, da apreciação da questão sobre que recai o recurso, ou a particular relevância social dos interesses em causa, fundamentação que o recorrente deve, na sua alegação, sob pena de rejeição da revista, demonstrar.
II - A violação, pelo acórdão da Relação, das normas adjectivas relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, mais precisamente, com o não uso ou o uso incorrecto pela Relação dos seus poderes específicos sobre a decisão da matéria de facto, descaracteriza a dupla conforme, por se tratar de questão que emergiu, ex novo, daquele acórdão, tornando admissível a revista comum ou normal e, consequentemente, inadmissível a revista excepcional.
III - O acórdão da Relação que, ao apreciar a nulidade, por um excesso de pronúncia, da sentença impugnada no recurso de apelação, conclui pela sua não verificação, não se encontra, por sua vez, ferido com o desvalor da nulidade, por aquele fundamento, mas eventualmente, de erro de julgamento, dado que o objecto do recurso de revista é aquele acórdão e não esta sentença.
IV - O Supremo não pode controlar a prudência ou a imprudência da convicção das instâncias sobre a prova produzida, sempre que se trate de provas submetidas ao princípio da liberdade de apreciação, i.e., que assenta na prudente convicção que o tribunal tenha adquirido das provas produzidas.
V - O princípio da interpretação da lei em conformidade com a Constituição -- que é um simples princípio interpretativo e não um parâmetro de controlo da constitucionalidade -- só deve intervir no caso de normas polissémicas ou plurissignificativas, pelo que a interpretação conforme à Constituição só é legítima ou admissível quando existe um espaço de decisão, um espaço aberto a várias propostas interpretativas, umas conformes, a que se deve dar preferência, e outras desconformes com o texto constitucional.
A admissibilidade da revista excepcional depende, realmente, de uma fundamentação específica, como, por exemplo, a necessidade, pela sua relevância jurídica, para uma melhor aplicação do direito, da apreciação da questão sobre que recai o recurso, ou a particular relevância social dos interesses em causa (art.º 672.º, n.º 1, a) e b) do CPC). Nesta hipótese, o recorrente deve indicar, de modo motivado, concludentemente, as razões da necessidade da revista.
A questão tem relevância jurídica quando for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, quando se esteja perante uma questão comprovadamente difícil, cuja resolução reclame uma reflexão ou uma ponderação detida e um estudo aturado -- porque, por exemplo, é doutrinaria e jurisprudencialmente controversa ou é susceptível de, pela sua originalidade ou singularidade, de suscitar opiniões doutrinárias e decisões jurisprudenciais desencontradas -- e que obrigue a uma actividade interpretativa com um grau subido de dificuldade, susceptível de conduzir a decisões contraditórias [---] A questão assume relevância jurídica quando a decisão do Supremo conclua por uma proposição jurídica que, embora sem carácter normativo, seja susceptível de ser generalizada a outros casos, que acrescente algo à ordem jurídica. É necessário, portanto, que a questão seja objectivamente relevante, dado que subjectivamente, i.e., do ponto de vista dos interesses concretos das partes na apreciação do recurso, pela natureza das coisas, é-o sempre. A questão tem particular relevância social quando tem uma dimensão geral ou um carácter abstracto, i.e., que não respeite apenas às partes ou não se restrinja ao caso concreto, o que sucederá, nos casos de ofensa que possa suscitar alarme ou que ponha em causa a eficácia do direito ou a sua credibilidade [---].
Face a este enunciado, é claro que a recorrente não produziu uma alegação que demonstre, concludentemente, a verificação de qualquer destes fundamentos específicos da respectiva excepcional, de que depende, no caso, a sua admissibilidade, limitando-se a uma invocação vaga a e genérica de qualquer daqueles requisitos de que depende essa admissibilidade. [---]
Simplesmente, a revista excepcional nunca seria admissível, mas por uma outra, boa, mas diferente razão: por o ser a revista comum ou normal.
Uma causa de exclusão da recorribilidade dos acórdãos da Relação, de largo espectro, é a chamada dupla conforme, de harmonia com a qual não é admitida revista daqueles acórdãos, sempre que confirmem, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (art.º 671.º, n.º 3, do CPC).
Como a conformidade das decisões das instâncias exclui o recurso de revista que, doutro modo, seria admissível, o que importa determinar é se essas decisões são conformes -- duae conformes sententiae -- não se são desconformes, pelo que se aquelas decisões não forem inteiramente coincidentes, o que interessa determinar é se essa não coincidência equivale a uma não-conformidade. As decisões das instâncias podem ser conformes, mesmo que entre elas se registe alguma desconformidade, o que é confirmado pela regra de que as decisões das instâncias são conformes se as respectivas fundamentações, apesar de distintas, não forem essencialmente diferentes (art.º 671.º, n.º 3, do CPC). Para verificar se o acórdão da Relação é conforme ou desconforme perante a decisão da 1.ª instância há que considerar os elementos das duas decisões. E entre os elementos das duas decisões, interessantes para a avaliação ou aferição daquela conformidade releva, desde logo, a fundamentação: se a fundamentação das decisões das instâncias for homótropa ou não for essencialmente diferente, a revista é inadmissível; se, porém, a motivação do acórdão da Relação for essencialmente distinta, aquele recurso ordinário é admissível.
Apesar de alguma flutuação de formulações, por fundamentação essencialmente diversa este Tribunal tem entendido, não aquela que seja divergente no tocante a aspectos marginais, subalternos ou secundários - mas a que assente numa ratio decidendi inteiramente distinta, como sucede quando radica em institutos ou normas jurídicas completamente diferenciadas ou quando, movendo-se embora no âmbito do mesmo instituto ou norma jurídica, os interpreta de modo inteiramente divergente, aplicando ao objecto do processo um enquadramento jurídico marcadamente diferenciado que se repercuta, decisivamente, na solução jurídica da controvérsia [---].
Pode compreender-se que a lei retire de uma dupla sucumbência da parte, a inadmissibilidade do recurso de revista. Mas já não se compreende que a parte seja considerada duplamente vencida quando pretende alegar, pela primeira vez, na revista, um fundamento de recurso que não podia ter invocado na apelação interposta da decisão da 1.ª instância para a Relação -- e que, portanto, não pode considerar-se ter sido atingido pela preclusão -- o que sucederá quando o acórdão da Relação, apesar de confirmar, sem voto de vencido, a decisão da 1.ª instância, fornecer um novo fundamento para a interposição do recurso de revista. O caso paradigmático, e frequente, é o da violação, pelo acórdão da Relação, das normas adjectivas relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, mais precisamente, com o não uso ou o uso incorrecto pela Relação dos seus poderes específicos sobre a matéria de facto, em que uma jurisprudência reiterada do Supremo conclui pela descaracterização da dupla conforme, precisamente com o argumento de que a questão emergiu ex novo do acórdão da Relação [V.g. Acs. do STJ de 26.11.2020 (11/13), 16.12.2020 (4016/13), 08.12.18 (2639/13) e 11.10.2018 (617/14), Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit. págs. 427 e 428, Miguel Teixeira de Sousa, Dupla Conforme e vícios na formação do acórdão da Relação, disponível em blogippc.blogspot.com, entrada de 01/04/2015].
Nem é outro o caso do recurso. Realmente, a recorrente é terminante na afirmação de que a Relação violou os seus poderes específicos sobre a matéria de facto: é o que linearmente decorre, desde logo, desta alegação: não resulta do concreto sentido e fundamentação do Acórdão Recorrido que a Relação se tenha dado ao Trabalho de ouvir (como refere ter ouvido) as gravações das concretas passagens transcritas naquele primeiro recurso. Se o tivesse feito, se de facto tais gravações tivessem sido, efectivamente, ouvidas, na totalidade, com o mínimo de atenção, a Relação estaria vinculada (o mais que não fosse ao abrigo das regras da experiência), a revogar a sentença Recorrida. Alegando-se a violação pela Relação, por não uso, dos seus poderes de correcção da decisão da matéria de facto, não se verifica o obstáculo de admissibilidade da revista comum ou normal representado pela duae conformes sententiae, pelo que aquela revista é admissível. E sendo a revista comum ou normal admissível, a revista excepcional não o é, uma vez que o primeiro pressuposto de admissibilidade da revista excepcional é a inadmissibilidade da revista ordinária ou comum por virtude da chamada dupla decisão conforme (art.º 672.º, n.º 1, do CPC).
Como o âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados nas instâncias, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação, são apenas quatro as questões concretas controversas que importa resolver (art.º 635.º nºs 2, 1ª parte, e 3.º a 5.º, do CPC): as de saber se o acórdão impugnado se encontra ferido com o desvalor da nulidade substancial resultante de um excesso e de uma omissão de pronúncia, se a Relação não actuou -- ou actuou -- incorrectamente os seus poderes de controlo relativamente à decisão da matéria de facto da 1.ª instância, se no tocante à decisão da matéria de facto, impugnada no recurso de apelação, aquele acórdão se encontra ferido com um error in iudicando, por erro em matéria de provas e, por último, se incorreu em violação de lei, i.e., num erro em matéria de direito, por não ter interpretado, tanto normas adjectivas, como substantivas, em conformidade com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da confiança e do acesso ao direito.
[MTS]