"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/02/2020

Jurisprudência 2019 (174)



Acta da assembleia de condóminos:
título executivo*


1. O sumário de RE 12/9/2019 (3751/18.0T8OER-A.E1) é o seguinte: 
 
I. A ata do condomínio prevista no artº 6º/1 do Dec.-Lei 268/94, 25-10, é título executivo quer quando nela constam as contribuições resultantes da quota-parte a pagar pelo condómino, fixadas em assembleia de condóminos, como também quando nela constam a dívida ao condomínio resultante da ata onde se reproduza a deliberação da assembleia de condóminos que procedeu à liquidação dos montantes em dívida por cada condómino, sempre que a dívida seja certa, líquida e exigível e a ata não tenha sido impugnada nos termos do artigo 1433º/2 do CC.

II. Uma interpretação restritiva do preceito viola a teleologia da norma, consubstanciada no objetivo de facilitar “o decorrer das relações entre os condóminos”, não fazendo sentido restringir a força executiva apenas à ata em que se delibera o montante da quota-parte das contribuições que cabe a cada condómino pagar, uma vez que se encontram assegurados os princípios da certeza e segurança jurídicas.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Os títulos executivos estão tipificados no artº 703º/1 do CPC, podendo ser atribuída por lei força executiva a outros documentos (alínea d)).

Nestes se inclui o previsto no Dec. Lei 268/94, de 25-10 – a ata de reunião da assembleia de condóminos constituída por um documento particular (artº 363º do CC).

Nos termos do disposto no artº 6º/1 daquele diploma, “A acta da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.”

A questão controvertida nos autos é a de interpretar o que se deve entender por “montante das contribuições devidas ao com domínio e quaisquer outras despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio”.

A jurisprudência está dividida entre uma interpretação restritiva e uma interpretação extensiva da norma.

Para a visão restritiva são títulos executivos apenas as atas em que estejam exaradas as deliberações da assembleia de condóminos que tiverem procedido à fixação dos montantes das contribuições devidas ao condomínio, fixando-se o prazo de pagamento e a quota-parte de cada condómino.

Para a interpretação extensiva será de atribuir força executiva quer à citada ata quer à ata em que, por um condómino não ter pago as contribuições que lhe respeitam, se delibera sobre o valor da sua dívida e se encarrega o administrador de proceder à sua cobrança judicial.

No sentido restritivo:

- Ac. TRE de 28.01.2010, Fernando Bento, Procº 6924/07.7TBSTB.E1;

- Ac. TRC de 23-01-2018, António Domingos Pires Robalo, Procº 7956/15.7T8CBR-A.C1;

- Ac. TRL de 23-30-2012, Tomé Ramião, Procº 524/06.6TCLRS.L1.6; de 17/2/2009, proc.º n.º 532/05.4TCLRS-7, relatado por Maria do Rosário Morgado; de 22/6/2010, Procº 1155/05.3TCLRS.L1-7, relatado por Maria Amélia Ribeiro; de 11.10.2012, Jorge Leal, Procº 1515/09.0TBSCR.L1-2;

- Ac. TRP de 17-01-2002, Sousa Leite, Procº 0131853; de 29-06-2004, Alberto Sobrinho, Procº 0423806; de 21-04-2005, Ataíde das Neves, Procº 0531258; de 06-09-2010, Ana Paula Amorim, Procº 2621/07.1TJVNF-A.P1.

Numa interpretação extensiva:

- Ac TRE de 28-06-2017, Tomé de Carvalho, Procº 6759/11.2TBSTB-B.E1 e - Ac TRE de 17-02-2011, Maria Alexandra Moura Santos, Procº 4276/07.4TBPTM.E1;

- Ac TRG de 02-03-2017, Jorge Teixeira, Procº 2154/16.5T8VCT-A.G1;

- Ac TRP de 02-06-1998, Emídio Costa, Procº 9820489;

- Ac TRC de 01-03-2016, Fonte Ramos, Procº 129/14.8TJCBR-A.C1, de 20-06-2012, Carlos Gil, Procº 157/10.2TBCVL-A.C1; de 04-06-2013, Arlindo Oliveira, Procº 607/12.3TBFIG-A.C1;

- Ac. TRL de 02-03-2004, André dos Santos, Procº 10468/2003-1, de 29-06-2006, Pereira Rodrigues, Procº 5718/2006-6, de 08-07-2007, Arnaldo Silva, Procº 9276/2007-7, de 18-03-2010, Carlos Valverde, Procº 85181/05.0YYLSB-A.L1-6 e de 07.7.2011, Carla Mendes, Procº 42780/06.9YYLSB.L1-2;

Quid juris?

Na exposição de motivos do Dec. Lei 268/94 consignou-se o seu objetivo: “procurar soluções que tornem mais eficaz o regime da propriedade horizontal, facilitando simultaneamente o decorrer das relações entre os condóminos e terceiros”.

De onde se infere que o occasio legis e a ratio do preceito estão na constatação de que existia na comunidade um foco de conflitualidade nas relações de condomínio que implicava ações declarativas por valores diminutos, pelo que a teleologia da norma se orientaria para a procura de soluções céleres e eficazes para a litigiosidade alargada que geralmente se constitui nas relações entre condóminos, tudo no respeito pelo preceituado no artº 9º do C. Civil (designadamente que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, apesar de nela dever ter um mínimo de correspondência verbal).

A interpretação restritiva funda-se no argumento de que a fonte da obrigação pecuniária do condómino deriva da aprovação em assembleia de condóminos, refletida na respetiva ata que aprova e fixa o valor a pagar, correspondente à sua quota-parte para as despesas comuns.

Nada mais pode ser incluído neste título executivo.

Se dali constar a declaração feita pelo administrador em assembleia de condóminos de que o condómino deve determinada quantia, esta declaração extravasa o sentido da última parte do segmento normativo do artº 6º/1, ao referir “constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte”.

Contudo, esta interpretação, com o devido respeito pelas opiniões contrárias, não respeita os elementos de interpretação acima descritos, sendo impeditivo do cumprimento da teleologia da norma, tornar mais célere e eficaz a resolução dos conflitos no seio do condomínio.

Isto porque a esmagadora maioria das dívidas ao condomínio resultam do não pagamento das quotas do condomínio após a aprovação dos valores em assembleia de condóminos; é, v.g., no final do ano que o administrador verifica quais os condóminos que não pagaram as suas quotas-partes durante o ano e comunica tal facto aos restantes condóminos.

A massa de dívidas ao condomínio que existe atualmente na comunidade ficaria arredada da possibilidade de ser imediatamente executada, necessitando de uma ação declarativa prévia para determinar o valor em dívida.

Ou seja, o resultado visado pela norma seria totalmente frustrado.

É certo que a celeridade e a eficácia não são os únicos objetivos de qualquer norma legal, uma vez que os princípios da segurança e certeza no tráfico jurídico são igualmente valores a considerar e que se lhes podem sobrepor.

Mas se esta segurança e certeza se mostrarem asseguradas é a interpretação extensiva que deve prevalecer.

Não pode argumentar-se que estes princípios são arredados se o administrador, no requerimento executivo, expõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo, tal como obriga a alínea e) do nº 1 do artº 724º do CPC.

Factos que poderão ser sempre impugnados pelo executado mediante embargos.

E com o que se fecha o circuito de segurança e certeza jurídicas de todos os visados pela norma: os condóminos que cumprem regularmente as sua obrigações, os relapsos que as não cumprem e se transformam num encargo insuportável para os que cumprem e para os condóminos que injustamente forem apontados pelo administrador como relapsos.

Tudo no pressuposto que a ata não tenha sido impugnada nos termos preconizados pelo artº 1433º/2 do C. Civil.

É também este o sentido do Ac TRE de 17-02-2011, Maria Alexandra Moura Santos, Procº 4276/07.4TBPTM.E1: 

1 - A expressão ínsita no artº 6º, nº 1, do DL 268/94, de 25/10: “contribuições devidas ao condomínio”, abarca tanto as “contribuições em dívida ao condomínio” (contribuições já apuradas) como as “contribuições que vierem a ser devidas ao condomínio” (contribuições futuras), desde que certas, exigíveis e líquidas (artº 802º do CPC) uma vez que estes três requisitos condicionam a admissibilidade da acção executiva, devendo estas características da obrigação exequenda já constar da acta da assembleia geral de condóminos.

2 - Não faz sentido restringir a força executiva apenas à acta em que se delibera o montante da quota-parte das contribuições que cabe a cada condómino pagar e não concedê-la à acta em que, por o condómino não ter pago, conforme o deliberado em assembleia anterior, se delibera sobre o montante da dívida e se encarrega o administrador de proceder à sua cobrança judicial. 

E o Ac TRE de 28-06-2017, Tomé de Carvalho, Procº 6759/11.2TBSTB-B.E1: 

A acta da reunião da assembleia de condóminos é um acto composto que inclui a deliberação da assembleia de condóminos e a prova do cumprimento do ónus de efectuar uma comunicação eficiente. 

Por último, o Ac TRG de 02-03-2017, Jorge Teixeira, Procº 2154/16.5T8VCT-A.G1:

I - A acta da assembleia do condomínio constitui título executivo relativamente ao montante das “contribuições devidas ao condomínio”.
 
II- Esta expressão deve ser entendida em sentido amplo, nela se devendo incluir, além das despesas específicas relativas ao próprio condomínio, e que são de diversa natureza, as penas pecuniárias fixadas nos termos do art.º 1434º do Cód. Civil.


3. [Comentário] Atendendo à posição instrumental do direito processual civil perante o direito substantivo, há uma orientação fundamental quanto à interpretação das regras daquele direito: essas regras devem ser interpretadas no sentido de facilitar a tutela das situações subjectivas concedidas pelo direito substantivo.

O acórdão da RE (aliás, bem documentado) segue, implicitamente, esta orientação, ao fazer uma interpretação declarativa ampla do disposto no art. 6.º, n.º 1, DL 268/94, de 25/10. Por isso não merece nenhuma censura, tanto mais que a interpretação realizada não origina nenhum resultado arbitrário e surpreendente para o condómino. 

MTS