"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/02/2020

Jurisprudência 2019 (178)


Pacto de jurisdição;
competência alternativa; pacto de competência*

I. O sumário de RG 19/9/2019 (1154/18.5T8VRL.G1) é o seguinte:

1. Quando isso não comprometa o interesse público na administração da justiça, há que atender ao interesse das partes na determinação do foro competente para o julgamento da acção.

2. Os pactos atributivos de jurisdição são válidos nos termos do art. 25º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e do art. 94º CPC.

3. Quando ao abrigo de pacto atributivo de jurisdição válido, as partes prevêem dois foros alternativos, o português e o espanhol, pode o autor optar por instaurar a acção em qualquer deles.

4. Quando simultaneamente com o pacto atributivo de jurisdição, as partes igualmente convencionarem qual o Tribunal territorialmente competente, não pode o Tribunal conhecer oficiosamente da questão da incompetência territorial para daí concluir pela incompetência internacional dos tribunais portugueses.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Está em discussão saber em que foro deve ser tramitada a presente acção: se no foro português, se no foro espanhol.

Pensamos poder começar por dizer, acompanhando Lebre de Freitas (CPC anotado, 3ª edição, fls. 122), que “quando isso não comprometa o interesse público na administração da justiça, há que atender ao interesse das partes na determinação do foro competente para o julgamento da acção”.

Como se explicou no Acórdão desta Relação de Guimarães de 9/6/2016 (Relatora: Purificação Carvalho): I. A competência é aferida em relação ao objecto da acção tal como é apresentada pelo autor na petição inicial; II. Na ordem jurídica portuguesa vigoram em simultâneo dois regimes gerais de competência internacional: o regime comunitário e o regime interno. No entanto, quando a acção estiver compreendida no âmbito de aplicação do regime comunitário, é esse regime que prevalece sobre o regime interno por ser de fonte hierarquicamente superior e face ao princípio do primado do direito europeu. III. O regime comunitário aplicável relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial está contido no Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22/12/2000, substituído a partir de 10 de Janeiro de 2015 pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012.

E o art. 25º do citado Regulamento permite que as partes celebrem pactos atributivos de jurisdição, ficando pressuposta, não constando acordo em contrário, a sua natureza como pactos privativos de jurisdição. Concretamente, no nº 1 desse artigo dispõe-se:

“se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário (…)”.

Como se decidiu no Acórdão do STJ de 13 de Novembro de 2018 (Relator- Cabral Tavares), “a jurisprudência do Tribunal de Justiça (TJ) é clara quanto ao entendimento de que a noção de pacto atributivo de jurisdição (art. 23º do Regulamento 44/2001; art. 25º do Regulamento 1215/2012) é autónoma, relativamente ao direito interno de cada Estado-Membro – a validade do pacto de jurisdição deve ser, exclusivamente aferida (preenchida) à luz da própria disposição do Regulamento, ficando excluída a convocação, no caso e designadamente, do art. 94.º CPC e do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (DL 446/85, de 25 de Outubro). Este ponto tem sido reiteradamente assinalado na jurisprudência deste tribunal (ASTJ, de 31.4.2016, 17.3.2016, 4.2.2016, 26.1.2016 e de 11.2.2015, todos publicados, bem como os adiante referidos, em www.dgsi.pt). Isso mesmo, genericamente, «decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição de direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados-Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União Europeia, interpretação essa que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa (v., nomeadamente, acórdão de 27 de Junho de 2013, Malaysia Dairy Industries, C-320/12, nº 25 e jurisprudência referida)» (ATJ, de 5.12.2013, Vapenik v. Thurner, C-508/12, EU:C:2013:790, nº 23).

Sem prejuízo, a nível de direito interno, o regime jurídico nesta matéria começa no art. 59º CPC, que dispõe: “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º”.

O artigo 62º consagra os elementos de conexão que permitem atribuir a competência internacional aos tribunais portugueses, e o art. 63º elenca aqueles que dão aos tribunais portugueses competência exclusiva.

O art. 94º CPC, sob a epígrafe “Pactos privativo e atributivo de jurisdição”, dispõe:

1- As partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica.

2- A designação convencional pode envolver a atribuição de competência exclusiva ou meramente alternativa com a dos tribunais portugueses, quando esta exista, presumindo-se que seja exclusiva em caso de dúvida.

3- A eleição do foro só é válida quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

a) Dizer respeito a um litígio sobre direitos disponíveis;

b) Ser aceite pela lei do tribunal designado;

c) Ser justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra;

d) Não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

e) Resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente.

4- Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se reduzido a escrito o acordo constante de documento assinado pelas partes, ou o emergente de troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de comunicação de que fique prova escrita, quer tais instrumentos contenham directamente o acordo quer deles conste cláusula de remissão para algum documento em que ele esteja contido.

O nº 2 do normativo citado permite às partes atribuir competência exclusiva ou meramente alternativa com a dos tribunais portugueses, quando esta exista, presumindo-se que seja exclusiva em caso de dúvida. E não vemos que, neste caso concreto, haja divergência entre o regime constante do Regulamento (UE) e o teor deste art. 94º.

Ora, supomos não haver dúvidas que foi o que as partes fizeram.

a) No contrato de compra e venda de acções, estipularam a seguinte cláusula (Quarta): “Para qualquer dúvida, questão ou diferença que surja na interpretação, cumprimento e execução do presente contrato, as partes, com renúncia expressa a qualquer foro que lhes possa corresponder, submetem-se expressa e indistintamente à competência e jurisdição dos julgados e tribunais da cidade de Lérida (Espanha) enquanto sede da entidade compradora, que lhe correspondem em razão da matéria, e à competência e jurisdição dos julgados e tribunais de Portugal (Peso da Régua), sem prejuízo de que se tenha de aplicar normativa comercial portuguesa em determinados aspectos relativos ao contrato, e sem prejuízo dos assuntos em que seja imperativa a competência e jurisdição portuguesa, à qual se deverá submeter se for o caso” (vd. fls. 477verso).

b) No acordo parassocial, convencionaram a seguinte cláusula (Quinta): “Para qualquer dúvida, questão ou diferença que surja na interpretação, cumprimento e execução do presente contrato, as partes, com renúncia expressa a qualquer foro que lhes possa corresponder, submetem-se expressa e indistintamente à competência e jurisdição dos julgados e tribunais da cidade de Lérida (Espanha) enquanto sede da entidade compradora, que lhe correspondem pela razão e matéria, e à competência e jurisdição dos julgados e tribunais de Portugal (Porto), por ser a sociedade portuguesa, sem prejuízo de que se tenha de aplicar normativa comercial portuguesa em determinados aspectos relativos ao contrato, e sem prejuízo dos assuntos em que seja imperativa a competência e jurisdição portuguesa, à qual se terá de submeter se for o caso” (vd. fls. 375 verso).

Da leitura destas estipulações resulta que as partes quiseram atribuir competência alternativa quer ao foro português, quer ao espanhol, o que é inteiramente legítimo, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, em anotação ao art. 94º CPC, permitindo que o autor opte pela instauração em tribunal nacional de acção que em princípio seria da competência de Tribunal de outro estado e vice-versa.

A autora, agindo ao abrigo desse pacto atributivo de jurisdição, e optando entre as duas alternativas que as partes previram, escolheu intentar a acção em tribunal português.

O Tribunal recorrido afastou a vontade legitimamente expressa das partes, considerando o Juízo Central Cível de Vila Real absolutamente incompetente para a apreciação da presente acção, com fundamento em preterição das convencionadas regras de competência territorial, atento o disposto nos artigos 95º e 96º a 99º do CPC.

Ou seja, para afastar o pacto atributivo de jurisdição aos tribunais portugueses, o Tribunal recorrido foi analisar o acordo das partes em matéria de competência em razão do território, regulado no art. 95º CPC.

Nos termos desse artigo, as regras de competência em razão da matéria, da hierarquia e do valor da causa não podem ser afastadas por vontade das partes, mas já podem afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território, salvo nos casos a que se refere o artigo 104º.

E o Tribunal a quo, partindo do princípio de que, tal como alegado na petição inicial, “ambos os contratos (de compra e venda e parassocial) assumiram um carácter indissociável e de interdependência um do outro, sendo que em ambos os contratos existe um vínculo traduzido no facto de a validade e vigência de um contrato depender da validade e vigência do outro, sendo cada um essencial ao outro”, constatou que o princípio estabelecido de indissociabilidade e interdependência choca com a discrepância de clausulados atributivos da competência para a eventualidade de verificação de um litígio.

Explicando melhor, diz o Tribunal a quo que “se num contrato se atribui competência aos tribunais da cidade de Lérida em Espanha e de Peso da Régua em Portugal, já no outro se atribui aos mesmos tribunais espanhóis, mas, concomitantemente, aos tribunais portugueses do Porto”. E assim, continua a decisão, “apreciada a acção na sua globalidade, vistos os pedidos formulados, relativos a ambos os contratos, e dada a sua indissociabilidade, é de concluir que nenhum dos tribunais portugueses a que as partes atribuíram competência (num e outro contrato), podem, só por si, apreciar as vicissitudes ocorridas em ambos os contratos.

Ou seja, a decisão recorrida afastou a aplicabilidade do pacto de jurisdição que permitia ao autor escolher se intentava a acção em tribunal português ou espanhol, com fundamento no pacto de competência interna que apontava para a competência de dois tribunais portugueses diferentes, num caso Peso da Régua, no outro, Porto.

A recorrente começa por negar que se possa defender o entendimento de que “um conflito existente nos contratos em causa nos autos no que respeita à competência territorial interna possa afectar a competência internacional dos Tribunais portugueses”.

Acrescenta ainda o seguinte argumento: sendo verdade que no contrato de compra e venda de acções as partes fixaram o Tribunal do Peso da Régua como tribunal competente e no acordo parassocial estipularam o Tribunal do Porto, no limite, existirá um conflito positivo de competência interna territorial, nos termos do art. 109º,2 CPC, entre os tribunais portugueses do Peso da Régua e do Porto. E a existência de um conflito interno territorial jamais pode determinar a invalidade de um pacto de jurisdição no que respeita à competência internacional. O que sucede é que, nos termos do artigo 82º,2 CPC, havendo cumulação de pedidos, o autor pode escolher qual o foro competente.

A recorrente apresenta ainda outros argumentos, mas vamos já parar por aqui, porque nos parece evidente que lhe assiste total razão.

O que o Tribunal recorrido fez foi utilizar o pacto determinador da competência territorial interna - que apontava para dois tribunais territorialmente diferentes - que as partes também subscreveram, para daí excluir a competência convencional internacional dos tribunais portugueses.

Porém, lendo com atenção o art. 94º CPC, nele não vislumbramos essa situação como uma das causas de invalidade do pacto de jurisdição. Os requisitos a que a eleição do foro tem de obedecer para ser válida são tão só os previstos nas cinco alíneas do nº 3, e nenhuma delas abarca questões de competência territorial interna [...].

Acresce que, por maioria de razão, o art. 25º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, também não permite invalidar o pacto com o fundamento invocado pelo Tribunal recorrido.

Finalmente, lendo a contestação dos réus, verificamos que estes apenas excepcionaram a incompetência absoluta do Tribunal, dizendo que por força do pacto celebrado, são os tribunais espanhóis os competentes para conhecer desta acção (arts. 1º a 7º daquela peça). Não arguiram a excepção da incompetência territorial do tribunal, a qual, por força do disposto no art. 104º,1,a a contrario CPC, não pode ser conhecida oficiosamente neste caso. Como aliás também a recorrente refere, e bem nas suas conclusões de recurso 24ª e 25ª.

E, afirma ainda a recorrente, e bem, que, “caso ocorresse uma incompetência territorial, então esta sempre teria como consequência o disposto pelo artigo 105º n.º 3, ou seja, sempre haveria lugar à denominada translatio judicii para o Tribunal do Porto”.

Assim, aqui chegados, só nos resta concluir que assiste razão à recorrente, pois o Tribunal recorrido desaplicou o pacto de jurisdição alcançado pelas partes, o que não podia fazer pois o mesmo é válido, e fê-lo conhecendo de questão que não era de conhecimento oficioso. E mesmo que se entendesse que o tribunal podia conhecer ex officio da questão da incompetência territorial, por violação do pacto de competência celebrado, a consequência nunca seria a da incompetência absoluta dos tribunais portugueses, nem a absolvição dos réus da instância, mas sim a remessa dos autos ao Tribunal competente (art. 105º,3 CPC), o Tribunal da área da Comarca do Porto.

Assim, terminamos com a mesma nota com que começámos: “quando isso não comprometa o interesse público na administração da justiça, há que atender ao interesse das partes na determinação do foro competente para o julgamento da acção”.

Daí, a conclusão a que chegamos é a de que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da presente acção, por força do art. 25º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e do art. 94º,2 CPC.

III. [Comentário] O acórdão da RG é correcto quanto à competência internacional, dado que, segundo o art. 25.º Reg. 1215/2012, nada impede que as partes designem vários tribunais alternativos entre si (Rauscher, EuZPR-EuIPR (2015)/Mankowski, Art 25 Brüssel Ia-VO 16). 

O acórdão merece, no entanto, as seguintes observações:

-- O acórdão convoca indevidamente o art. 94.º CPC; o pacto de jurisdição era regulado pelo art. 25.º Reg. 1215/2012, pelo que só o regime constante deste preceito lhe era aplicável; não é metodologicamente correcto misturar o regime europeu (quando este for aplicável) com o regime interno (que, quando o regime europeu for aplicável, é totalmente irrelevante); assim, teria sido de esperar que tivesse havido uma análise mais pormenorizada da validade do pacto de jurisdição segundo o art. 25.º Reg. 1215/2012;

-- As convenções que as partes celebraram eram, ao mesmo tempo, quanto à competência internacional, um pacto de jurisdição (regulado pelo regime europeu) e, quanto à competência territorial, um pacto de competência; assim, o que a RG deveria ter feito era, depois de concluir que o pacto de jurisdição era válido segundo o art. 25.º Reg. 1215/2012, ter apreciado se o pacto de competência era válido segundo o estabelecido no art. 95.º CPC.

MTS