"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/02/2020

Jurisprudência 2019 (177)


Acompanhamento de maiores;
instrução; aplicação da lei no tempo

I. O sumário de RL 26/9/2019 (735/17.9T8LSB-A.L1.L1) é o seguinte:
 
1. Ainda que formalmente o processo de acompanhamento de maiores não possa ser considerado um processo de jurisdição voluntária, certo é que em termos substanciais passa a sê-lo, razão porque, podendo o Juiz investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, é-lhe igualmente conferida a prerrogativa de apenas admitir as provas que considere necessárias para a boa decisão da causa ( cfr. art.º 986.º, n.º 2, do CPC ).

2 - Por outra banda, em consonância com o referido em 1., o próprio o art.º 897.º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe de “Poderes instrutórios”, passa dispor que “ Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.
.
3 - Em face do referido em 1. e 2., realizada que se mostra nos autos uma perícia médica ao interditando, com conclusões claras/assertivas sobre a capacidade do requerido, pertinente se mostra o indeferimento pelo Exmº Juiz de requerimento - deduzido já na vigência das alterações introduzidas no CPC com a Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto , diploma que aprova o regime jurídico do maior acompanhado - a solicitar a sujeição do “Beneficiário” a um novo exame pericial.
 


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] com relevância para o thema decidendum da apelação, diziam-nos os artºs 896º, 898º e 899º, todos do CPC, com a redacção vigente à data da propositura da acção, que:

Artº 896º
Prova preliminar

Quando se trate de acção de interdição, ou de inabilitação não fundada em mera prodigalidade, procede-se, findos os articulados, à realização do exame pericial ao requerido e, tendo havido contestação, ao seu interrogatório

Artº 898º
Exame pericial
 
1 - Quando se pronuncie pela necessidade da interdição ou da inabilitação, o relatório pericial deve precisar, sempre que possível, a espécie de afecção de que sofre o requerido, a extensão da sua incapacidade, a data provável do começo desta e os meios de tratamento propostos.
 
2 - Não é admitido segundo exame nesta fase do processo, mas quando os peritos não cheguem a uma conclusão segura sobre a capacidade ou incapacidade do requerido, é ouvido o requerente, que pode promover exame numa clínica da especialidade, pelo respectivo director, responsabilizando-se pelas despesas; para este efeito, pode ser autorizado o internamento do requerido pelo tempo indispensável, nunca excedente a um mês.
 
3 - Quando haja lugar a interrogatório, o exame do requerido deve ter lugar de imediato, sempre que possível; podendo formar imediatamente juízo seguro, as conclusões da perícia são ditadas para a ata, fixando-se, no caso contrário, prazo para a entrega do relatório.
 
4 - Dentro do prazo marcado, pode continuar-se o exame no local mais apropriado e proceder-se às diligências que se mostrem necessárias.

Artº 899º
Termos posteriores ao interrogatório e exame

1 - Se o interrogatório, quando a ele haja lugar, e o exame do requerido fornecerem elementos suficientes e a acção não tiver sido contestada, pode o juiz decretar imediatamente a interdição ou inabilitação.

2 - Nos restantes casos, seguem-se os termos do processo comum, posteriores aos articulados; sendo ordenado na fase de instrução novo exame médico do requerido, aplicam-se as disposições relativas ao primeiro exame.

Dos aludidos normativos, verifica-se assim que o regime adjectivo especial da acção de interdição ou inabilitação que se mostra neles espelhado, dividia o processo especial aludido em duas fases distintas, caracterizando-se a primeira, que se mostra prevista, fundamentalmente, nos artigos 891º a 899.º, número 1, por um conjunto de actos e procedimentos próprios e específicos desta forma processual, em pouco ou nada reconduzíveis à normal tramitação da vulgar acção declarativa com processo comum e, a segunda, posterior aos articulados, pela observância da tramitação adjectiva aplicável ao processo comum, sendo que, caso nesta segunda fase e no âmbito da instrução seja ordenado um novo exame médico do requerido, aplicar-se-ão as disposições relativas ao primeiro exame.

Mais se constata que, não sendo por regra admitida a realização de um segundo exame no decurso da primeira fase, excepcionalmente poderia o mesmo ter lugar ainda na primeira fase desde que que, não tendo os peritos chegado a uma conclusão segura sobre a capacidade ou incapacidade do requerido, e, ouvido o requerente, viesse este último a promover um exame numa clínica da especialidade, pelo respectivo director, responsabilizando-se pelas respectivas despesas.

Ou seja, porque in casu o exame médico pela apelante requerido é para ter lugar já no decurso da segunda fase – de instrução - do processo, mostra-se o mesmo sob a alçada do artº 899º, nº2, do CPC, dispositivo este que para todos os efeitos não sujeita [como o faz o nº2, do artº 898º, do CPC] a respectiva admissibilidade à verificação do pressuposto de no exame médico realizado na fase da prova preliminar (exame a que alude o artº 896º, do CPC) não terem os peritos chegado a uma conclusão segura sobre a capacidade ou incapacidade do Requerido.

Destarte, o Exmº Juiz a quo só poderia indeferir o exame médico pela apelante requerido com fundamento no disposto no artº 476º, nº1,do CPC, aplicável ex vi do artº 549º, nº1, do mesmo diploma legal, ou seja, por considerar [com total pertinência e adequação] tratar-se de diligência de prova impertinente e/ou dilatória , que o mesmo é dizer, por incidir vg sobre matéria de facto que, de uma maneira ou de outra, não contenha em si qualquer virtualidade de contribuir para a decisão/resolução da controvérsia do processo, ou , então que seja requerida apenas com o propósito subjacente de obstar a que a justa composição do litigio seja alcançada em prazo razoável. [...]
 
Ora, se atendermos às questões que o próprio tribunal a quo considerou que justificam integrar os TEMAS de PROVA [1 – O Requerido sofre de depressão nervosa e desde quando?; 2 - O Requerido padece de demência senil e desde quando; 3 - A demência senil incapacita o Requerido de governar a sua pessoa e os seus bens.”], logo , devem todas elas ser objecto de instrução ( cfr. artº 410º, do CPC ) e, bem assim, à respectiva natureza e especificidade [as quais exigem que sejam apreciadas com base em juízos técnicos emitidos por peritos que apreciam e apreendem factos relativamente aos quais são exigidos conhecimentos técnico/científicos específicos dos quais o julgador está por rega arredado], prima facie não se descortina como considerar que o meio de prova rejeitado pelo tribunal a quo de diligência de prova se trata que manifestamente não se revela pertinente, sendo também dilatória .

Acresce que, devendo é certo o princípio da relevância da prova operar como um filtro para a admissão das provas no processo, DEVE porém em caso de dúvida sobre a relevância final da prova, atento o direito constitucional à prova e as consequências [acima aludidas ] “gravosas da eventual procedência de recurso sobre o despacho que rejeite o meio de prova, ser adoptado o princípio pró-admissão da prova ou princípio de inclusão, o qual propiciará uma decisão mais fundamentada, mais segura e mais célere“. (Cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, em “AS DECLARAÇÕES DE PARTE. UMA SÍNTESE“, página 19 [...]).

Isto dito, ocorre porém que no decurso dos presentes autos, com a aprovação da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, é criado o regime jurídico do maior acompanhado [ que entrou em vigor no dia 10 de Fevereiro de 2019, cfr. artº 25º], o qual elimina os institutos da interdição e da inabilitação e, procedendo à alteração de vários diplomas, introduz alterações processuais de enorme relevância no Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, modificando a redacção dos seus artigos 16.º, 19.º, 20.º, 27.º, 164.º, 453.º, 495.º, 891.º a 904.º, 948.º a 950.º, 1001.º, 1014.º e 1016.º [além de revogar outrossim o n.º 3 do artigo 20.º, o artigo 905.º, e a alínea d) do artigo 948.º,todos do CPC ].

Porque do Artigo 26.º da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, com a epigrafe de “Aplicação no tempo”, decorre [maxime dos respectivos nºs 1, 2 e 3 ] que “A presente lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor”, que “ O juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes” e que, “ Aos actos dos requeridos aplica-se a lei vigente no momento da sua prática“, importa inevitavelmente aferir do mérito da apelação em razão da aplicação ao thema decidendum do regime jurídico do maior acompanhado.

É que, não se olvidando que o exame pericial é in casu requerido (em 18/2/2019, ou seja, já na vigência das alterações ao CPC introduzidas pelo regime jurídico do maior acompanhado) pela requerente/autora, e que como se dispõe no art.º 26.º, n.º 3, da Lei nº 49/2018, aos actos do requerido se aplica a lei vigente no momento da sua prática [ Pretendeu-se salvaguardar o requerido - porque normalmente, será o beneficiário – quanto aos actos já praticados e a praticar em processos], certo é que, de acordo com a regra tempus regit actus, há que entender que a aplicação imediata do novo regime vale para qualquer das partes (Cfr. MIGUEL TEIXERA DE SOUSA, in “O NOVO REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO, O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais, em texto correspondente à apresentação realizada no Centro de Estudos Judiciários, em 11 de Dezembro de 2018, no âmbito da acção de formação "O novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado" e acessível em CEJ, Colecção Formação contínua FEV 2019, págs 46/47).

Logo, todos os actos a praticar, depois da entrada em vigor do regime do acompanhamento de maiores, em processos de interdição ou de inabilitação pendentes devem ser realizados de acordo com a lei decorrente do regime jurídico do maior acompanhado. (Cfr. MIGUEL TEIXERA DE SOUSA,ibidem, pág. 48).

Ora, à data do requerimento de prova da apelante, rezava já o Artigo 891.º, nº1, do CPC, sob a epígrafe de “Natureza do processo e medidas cautelares”, que “O processo de acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes.”.
Tal equivale a dizer que, ainda que formalmente [porque não inserido no Título XV do Livro V do Código de Processo Civil e outrossim porque nenhuma disposição legal o qualifique como tal] o processo de acompanhamento de maiores não possa ser considerado um processo de jurisdição voluntária, certo é que em termos substanciais passa a sê-lo, razão porque, podendo o Juiz investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, é-lhe igualmente conferida a prerrogativa de apenas admitir as provas que considere necessárias para a boa decisão da causa ( cfr. art.º 986.º, n.º 2, do CPC ).

Por outra banda, passa a rezar o art.º 897.º, n.º 1, do CPC, sob a epigrafe de “Poderes instrutórios”, que “Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos".

Em última instância, em face do que passa a dispor no n.º 1 , do art.º 899º, do CPC sob a epígrafe de “Relatório pericial” [“Quando determinado pelo juiz, o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afecção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis“], há quem admita inclusive que o juiz não determine a realização de exame pericial. (Cfr. Nuno Luís Lopes Ribeiro, in O MAIOR ACOMPANHADO – LEI Nº 49/2018, DE 14 DE AGOSTO, acessível em CEJ, Colecção Formação contínua FEV 2019, págs 103.)

Por último, rezando o nº2, ainda do artº 899º do CPC, que “Permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do director respectivo, ou ordenar quaisquer outras diligências“, e , atendendo ao carácter urgente do processo, tudo aponta para que tenha o legislador querido introduzir no processo de acompanhamento de maior uma clara simplificação de procedimentos, reduzindo-os inclusive, sendo a regra a realização no mesmo de apenas um exame pericial e ainda assim por determinação do Juiz.

Aqui chegados, e analisando o processado nos autos, a verdade é que, aquando da prolação do despacho recorrido, mostrava-se já realizado um exame pericial ao requerido/beneficiário e, tendo presente as conclusões que do respectivo Relatório constam, não se descortina que seja o mesmo de todo inconclusivo, não respondendo assertivamente ao objecto do processo.

Consequentemente, tendo presente os poderes instrutórios que o “ novo” artº 897º,nº1, do CPC lhe confere, a natureza urgente dos presentes autos e o disposto no nº2, do artº 986º, do CPC [só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias], tudo visto e ponderado, é nossa convicção que o despacho recorrido não é merecedor de censura, máxime não se mostra que tenha o mesmo sido proferido no uso de poderes discricionários ou de arbítrio, logo, infundadamente, bem pelo contrário."


[MTS]