"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/02/2020

Jurisprudência 2019 (184)


Processo de inventário;
erro na forma do processo; revista excepcional*


1. O sumário de STJ 3/10/2019 (1517/13.2TJLSB.L1.S2) é o seguinte: 

I. No regime de comunhão de adquiridos, o imóvel que ambos os cônjuges adquiriram por compra, antes do casamento, está sujeito ao regime da compropriedade, sendo cada um titular de metade, como bem próprio.

II. O divórcio entre cônjuges pode despoletar a invocação do direito de compensação de algum dos cônjuges sobre o outro, nos termos dos arts. 1689º, nº 3, e 1697º, nº 1, do CC, sendo a responsabilidade garantida pela meação do outro cônjuge no património comum ou, não existindo este, pelos bens próprios.

III. Dissolvido o casamento, o inventário pós-divórcio requerido ainda ao abrigo do art. 1404º do CPC de 1961, destina-se a realizar a partilha dos bens comuns do casal, incluindo as dívidas que são comuns.

IV. Numa situação em que não existem bens comuns do casal, o processo de inventário não é adequado a que um dos cônjuges exija do outro um crédito correspondente ao pagamento de metade das prestações emergentes de um contrato de mútuo que ambos celebraram antes do casamento para aquisição do bem em regime de compropriedade.

V. O princípio da legalidade das formas processuais não permite que o processo de inventário instaurado na sequência de divórcio sirva para proceder à divisão de um imóvel relativamente ao qual cada cônjuge é titular exclusivo de uma quota-parte, tal como impede que seja apreciado o pedido de condenação do outro no pagamento de uma dívida própria.

VI. Perante a diversidade da natureza, dos objetivos e da tramitação quer do processo especial de inventário, quer do processo especial de divisão de coisa comum, o princípio da legalidade das formas processuais prevalece sobre os princípios da adequação formal ou da economia processual.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

1. Importa apreciar se no processo de inventário pós-divórcio cabe a divisão de um bem imóvel que por ambos os cônjuges foi adquirido antes do casamento em regime de compropriedade ou se o mesmo está circunscrito à partilha de bens que integram o acervo comum de ambos os cônjuges. 

Por outro lado, cabe apurar se, na falta de bens que integrem o acervo comum do casal, o processo de inventário pode servir para resolver o diferendo entre ambos os cônjuges acerca de um crédito que uma alega sobre o outro. 

2. A primeira questão obtém do ordenamento jurídico uma resposta clara: o processo de inventário destina-se a regular a partilha de bens comuns, incluindo o passivo, não servindo para fazer valer o direito de qualquer dos cônjuges que não encontre reflexo no acervo comum do casal.

Assim acontece com os direitos que são próprios de cada cônjuge, como os que incidem sobre bens que cada um levou para o casamento no regime de comunhão de adquiridos. E é nesta categoria que se inscrevem as quotas na compropriedade relativo a um bem imóvel de que cada um dos cônjuges era titular antes da realização do casamento, ainda que a aquisição desse imóvel tivesse sido perspetivada tendo em conta o futuro casamento.

Na realidade, no regime supletivo de comunhão de adquiridos, constituem bens próprios de cada cônjuge os que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento (art. 1722º, nº 1, al. a), do CC). Não existe qualquer dúvida a este respeito, tanto mais que a situação dos autos não se inscreve em qualquer das previsões especiais dos arts. 1723º e ss.

O facto de a aquisição do bem imóvel ter sido feita no regime de compropriedade antes da realização do casamento não transforma o imóvel num bem que integre o acervo comum de ambos os cônjuges, mantendo cada um deles a exclusiva titularidade sobre a sua quota-parte.

Nestas circunstâncias, não encontra fundamento a pretensão do recorrente no sentido de o processo de inventário prosseguir para um efeito diverso: o de fazer operar a divisão da coisa comum, ou seja, a divisão do imóvel relativamente ao qual cada um dos cônjuges é exclusivo titular de uma quota-parte correspondente a metade.

A compropriedade não se confunde com a contitularidade de direitos que, por exemplo, é visível na herança indivisa e que igualmente se manifesta quando estão em causa bens comuns do casal. Mais concretamente, o acervo comum do casal é integrado por bens que, sem distinção entre eles, pertencem em comum a ambos os cônjuges, não sendo essa a qualificação quando se constata que cada cônjuge é titular de um direito autónomo, ainda que tal direito se traduza para cada um deles na titularidade de uma quota direito de propriedade sobre uma fração autónoma.

Em suma, o processo de inventário destina-se a operar a divisão do acervo comum do casal e não a veicular outra pretensão material autónoma correspondente ao direito de obter a divisão de coisa comum, nos termos do art. 1412º e que deve ser tramitada através do processo especial de divisão de coisa comum regulado nos arts. 925º e ss. do CPC.

A atribuição de bens próprios de que cada cônjuge seja titular é um efeito que emerge diretamente da lei, nos termos do art. 1689º, nº 1, do CC, não carecendo da sua descrição em qualquer processo de inventário que, como se disse, visando a partilha de bens comuns, apenas admite que se relacionem bens comuns com vista à posterior partilha.

Num contexto algo diferenciado, isto mesmo já foi decidido por este mesmo coletivo, com relato do ora relator, no Ac. do STJ 6-4-17, 23567/15, no qual se concluiu, além do mais, que “pretendendo um dos ex-cônjuges o reconhecimento do direito de propriedade exclusivo sobre um imóvel e do direito de exclusividade sobre uma quantia depositada em instituição bancária é adequada a tais pretensões a ação declarativa com processo comum e não o processo de inventário …”. [...] 

4. Neste contexto, tal como também já se decidiu num caso semelhante no Ac. do STJ de 27-3-08, 08B648, em www.dgsi.pt, não vemos como possa operar-se no processo de inventário a divisão de coisa comum, tal como não é adequado a integrar uma pretensão puramente creditícia de um dos cônjuges sobre o outro.

Quanto à divisão de coisa comum, a tramitação que envolve a resolução dessa questão de direito material não tem qualquer semelhança com a tramitação específica de um processo de inventário. Basta reparar nas normas que regulam aquela forma de processo especial (arts. 925º e ss. do CPC) e no facto de se preverem duas fases, uma destinada a apurar e fixar os quinhões de cada comproprietário, assim como a divisibilidade do bem, e outra, posterior, destinada à divisão do bem em substância (quando seja divisível) e à adjudicação, sem exclusão da venda do bem a terceiros, com divisão do produto da venda em função dos quinhões de cada um, tudo nos termos dos arts. 925º a 929º do CPC.

A natureza dos processos também é diversa, sendo o de divisão de coisa comum de natureza intrinsecamente contenciosa, ao passo que o processo de inventário não existem propriamente partes contrapostas, antes interessados em bens comuns, promovendo-se através dele a partilha dos bens que sejam relacionados.

Sob qualquer perspetiva, estamos perante tramitações processuais totalmente divergentes, sendo de assinalar em especial que no processo de divisão de coisa comum existe uma fase de articulados para discussão dos aspetos relevantes, ao passo que no processo de inventário a discussão se processa de forma diversa.

Perante tamanha diversidade da tramitação processual correspondente a cada pretensão material que lhes está subjacente, não existe qualquer possibilidade de aproveitar um processo de inventário pendente (acentue-se para partilha de eventuais bens comuns do casal) para proceder à divisão de coisa comum, mesmo que esta coisa em comum pertença a ambos os cônjuges divorciados.

Não estando em causa a validade do princípio da adequação formal, da gestão processual ou da economia processual, o princípio da legalidade das formas processuais não pode ser absolutamente sacrificado em função de um alegado interesse do recorrente no sentido de obter neste inventário um resultado para o qual não existem instrumentos suficientes, tanto mais que se encontra pendente um processo de divisão de coisa comum.

O mesmo se diga da pretensão no sentido da condenação do outro cônjuge no pagamento de uma quantia, a que, nos termos gerais, corresponde o processo declarativo comum.

Também aqui se verificam tramitações totalmente diferenciadas, sendo assinalar na ação declarativa com processo comum a existência de uma fase dos articulados onde pode ser exercido o contraditório em moldes que a tramitação do processo de inventário não assegura em termos convenientes."

*3. [Comentário] Afirma-se no relatório do acórdão: "Foi interposto recurso de revista que foi admitido como revista excecional, tendo em conta o relevo jurídico da questão de direito".

Talvez se possa estranhar que um problema relativo ao erro na forma de processo seja "uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito" (art. 672.º, n.º 1, al. a), CPC). Estranhar não é, no entanto, criticar, porque a crítica só será justificada se o STJ não seguir, em casos análogos, o mesmo muito amplo critério.

MTS