Contrato de abertura de crédito;
título executivo
1. O sumário de RP 10/7/2019 (557/17.7T8OVR-A.P1) é o seguinte:
I - Uma decisão é implícita quando está subentendida noutra que foi expressamente tomada.
II - Ao julgar comprovado que o crédito exequendo existe, com base na documentação apresentada para o cobrar coercivamente, e ao ordenar o prosseguimento da execução para essa cobrança, a decisão assim tomada não só reconhece a existência de tal crédito, como, implicitamente, comporta a resolução de que o título apresentado é suficiente para tal finalidade.
III - Aceitando os outorgantes de um contrato de abertura de crédito que o montante mutuado foi, na altura da celebração desse contrato, colocado à disposição do mutuário, é título executivo suficiente para desencadear a cobrança coerciva desse crédito a escritura pública na qual o mesmo foi convencionado.
IV - A novação implica a simultânea constituição de uma nova obrigação em substituição de um vínculo anterior essencial, mediante expressa vontade de novar.
V - Por sua vez, na dação em cumprimento não há a constituição de qualquer vínculo com efeito liberatório, mas apenas a extinção da obrigação através de uma prestação diferente daquela que era inicialmente devida, mediante acordo das partes, que tem de ser contemporâneo do cumprimento.
VI - Já na dação em função do pagamento (datio pro solvendo), o credor também aceita uma prestação diversa da devida, mas a extinção desta última só ocorre se, quando e na medida em que aquele vir satisfeito o seu crédito.
VII - Aceitando uma instituição de crédito, no âmbito das negociações com o seu devedor, que, para a extinção do seu crédito, aquele, mediante escritura de dação, venha a transferir para o seu domínio de facto e de direito, uma casa de habitação, desde que devidamente concluída e legalizada no prazo de 2 meses, e não tendo sido observados esses pressupostos, não está preenchida nenhuma das referidas figuras.
VIII - Estes pressupostos são apenas critérios de decisão da referida instituição para a aceitação futura do aludido contrato de dação e não declarações de vontade contratual.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"2- Passemos à análise da questão seguinte; ou seja, saber se o título executivo é inexistente ou insuficiente.
Para a resposta afirmativa a esta questão, partem os Apelantes do pressuposto que o crédito exequendo devia ser titulado, na ação executiva, não só pelo contrato de abertura de crédito e documento complementar apresentados pela primitiva exequente, mas também por outros documentos que comprovassem a efetiva disponibilização desse crédito.
E, em relação às prestações futuras convencionadas em documentos autênticos ou autenticados por notário ou por outras entidades equiparadas, nos quais de estabeleçam esse tipo de prestações, efetivamente assim é.
Como decorre do disposto no artigo 707.º do CPC, “[o]s documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes”.
Mas nem sempre nos contratos de abertura de crédito se estabelecem prestações futuras. Podem ser contemporâneas do próprio contrato.
Senão, vejamos:
No seu núcleo essencial, o contrato de abertura de crédito é, tal como o mútuo ou o desconto bancário, um contrato de concessão de crédito; ou seja, um convénio mediante o qual uma entidade, que, por regra, é bancária, coloca à disposição de outra, temporariamente, determinada quantia em dinheiro.
Mas, ao contrário do mútuo, em que a entrega do dinheiro (ou outra coisa fungível) é seu elemento constitutivo (artigo 1142.º do Código Civil)[...], no contrato de abertura de crédito essa entrega, de dinheiro necessariamente, pode, ou não, ocorrer e, ocorrendo, pode ser feita em diferentes modalidades.
Assim, por exemplo, no contrato de abertura de crédito simples, quando bancário, o cliente, embora possa utilizar parcialmente o capital, nunca o reutiliza depois de devolvido ao banco.
Já no contrato de abertura de crédito em conta-corrente passa-se, justamente, o contrário. O cliente, para além de poder fazer utilizações parciais do crédito, pode ainda reutilizar os seus próprios reembolsos, desde que não ultrapasse, em cada momento, a diferença entre o capital em dívida e o limite máximo de crédito concedido, conforme acordado entre as partes[...].
Por sua vez, no contrato de abertura de crédito documentário, o banco abre, a pedido do respectivo cliente, um crédito a favor do fornecedor deste último, assumindo o banco o compromisso de pagar àquele mesmo fornecedor o preço dos bens e/ou serviços fornecidos, contra a entrega dos documentos estipulados no contrato. É uma modalidade muito utilizada no comércio internacional, mas o que lhe é característico é que a entrega do capital mutuado é sempre feita a um terceiro, ou seja, ao fornecedor do cliente do banco, a pedido desse mesmo cliente, servindo o contrato de abertura de crédito também como garantia de pagamento do fornecimento. Até porque “[o] crédito é, em princípio, irrevogável, nos termos do nº 2, do artº 1170º, CC, por se tratar de um contrato em benefício de terceiro, sem prejuízo de as partes convencionarem uma cláusula específica sobre a revogabilidade ou a irrevogabilidade. E é transferível, sempre que o beneficiário fique com o direito de instruir o banco encarregado do pagamento (que tanto pode ser o emitente como um banco intermediário) de tornar o crédito utilizável por terceiro. Na modalidade irrevogável, o crédito documentário é, além disso, autónomo em relação ao negócio subjacente, sendo-lhe indiferentes as excepções que o ordenante-importador e o beneficiário-exportador poderiam opor um ao outro” [Ac. STJ de 03/04/2003, Proc.º 03B910, consultável em www.dgsi.pt].
Numa outra modalidade, o contrato em causa pode ser configurado também como contrato de abertura de crédito garantido; ou seja, um contrato mediante o qual o creditante se assegura, previamente, regra geral, do reembolso do capital mutuado, através de garantias, pessoais e/ou reais, prestadas pelo creditado. O que lhe é característico é que o risco garantido não está associado à abertura de crédito em si mesma, mas aos créditos dela emergentes.
E poderíamos continuar a equacionar outros tipos de contratos de abertura de crédito. Dentro dos limites da lei, as partes podem ordenar e tutelar livremente os seus interesses (artigos 398.º e 405.º, do Código Civil). Podem, assim, celebrar contratos de abertura de crédito escolhendo alguma das modalidades já indicadas, misturar características dessas modalidades ou mesmo estabelecer um clausulado distinto. Mas já não podem, sob pena de desvirtuar o modelo contratual, alterar o objeto do próprio contrato, que é, sem dúvida, uma prestação de disponibilidade de crédito. Como contrato preliminar que é, o contrato de abertura de crédito tem por objeto essa prestação de disponibilidade e não, propriamente, a utilização efetiva do crédito [No sentido de que o contrato de abertura de crédito é um contrato preliminar, pronunciou-se o Ac. STJ de 08/06/1993, CJ, ano I, tomo III, pág.3, Ac. STJ de 10/12/1997, Proc. 97B671, consultável em www.dgsi.pt]. Por isso se diz que não é um contrato real; ou seja, um contrato que exija para a sua formação a entrega efetiva do capital cujo mútuo foi prometido. Além disso, como já vimos também, essa entrega pode, ou não, ter lugar em conta corrente; não é absolutamente necessário que seja feita diretamente ao mutuário; e, por regra, só essa entrega é garantida pelos reforços suplementares em relação ao património do devedor.
Ora, partindo destes pressupostos e analisando o contrato de abertura de crédito dado à execução, verificamos que nele se estipulou o seguinte:
“A B… abre um crédito em conta corrente à PARTE DEVEDORA até ao montante de CENTO E OITENTA MIL EUROS, que desde já se considera colocado à sua disposição e que se destina, segundo declaração da PARTE DEVEDORA, à construção de uma moradia no imóvel hipotecado” (cláusula 1ª, n.º 1).
Ou seja, a disponibilidade do dinheiro, por parte da mutuária, foi contemporânea e não relegada para o futuro.
Neste sentido, não se crê que outro documento fosse necessário para titular o crédito exequendo, uma vez que do dito contrato já resultava a constituição e o reconhecimento desse crédito (artigo 703.º, n.º 1, al. b), do CPC). Isto, naturalmente, sem prejuízo dos embargantes alegarem e provarem, nos embargos de executado, que esse crédito era de menor dimensão (artigo 731.º do CPC).
Mas, mesmo que assim não se entenda, sempre foram juntos aos autos os extratos da conta corrente onde foi disponibilizado semelhante crédito e, portanto, para efeitos executivos, sempre estariam preenchidos os pressupostos para a sua cobrança coerciva.
Em resumo, pois, não se verifica a arguida ausência ou insuficiência do título executivo."
[MTS]