"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/07/2022

Jurisprudência 2021 (232)


Audiência prévia;
dispensa judicial; gestão processual*


1. O sumário de RP 22/11/2021 (14/20.4T8AGD-A.P1) é o seguinte:

I – No exercício dos poderes de gestão processual previstos nos arts. 6º nº1 e 547º do CPC e que estão atribuídos ao juiz no sentido de adoptar mecanismos de simplificação e agilização do processo e do seu andamento, o tribunal, em vista de conhecer do mérito da causa na fase do despacho saneador, pode dispensar a audiência prévia em hipóteses não contempladas no artigo 593º do Código de Processo Civil precedendo audição das partes com indicação das razões por que se entende dever dispensar a realização de tal acto processual.

II – A livrança é um título de crédito em que rege a regra da incorporação da obrigação no título, sendo a titularidade do título que decide da titularidade do crédito ao ponto de valer neste domínio a regra “posse vale título”; por isso, basta-se por si próprio para demonstrar a titularidade do respectivo crédito e a apresentação do mesmo, devidamente datado e preenchido, preenche só por si a exigência de causa de pedir.

III – Ocorrendo alteração de morada de um dos contraentes, ainda que nada a esse propósito se preveja no contrato em que tal dado é indicado, as regras da boa-fé na execução dos contratos (artigo 762º, nº 2 do C. Civil), tratando-se de contrato de natureza duradoura, impõem que o contraente que muda de residência informe a contraparte dessa mudança.

IV – Tendo a livrança todos os requisitos de validade próprios de tal título de crédito e não estando prescrita a obrigação cartular que dela emerge, não pode a mesma ser considerada como mero quirógrafo, e, com base nela, mercê do aval nela prestado, pode o avalista ser directamente demandado pelo respectivo pagamento.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A recorrente considera ocorrer nulidade processual decorrente da dispensa de realização da audiência prévia, em virtude de tal dispensa não ser legalmente admissível sempre que o despacho saneador se destine ao conhecimento do mérito da causa.

Analisemos.

De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 593º do Código de Processo Civil, “[n]as acções que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no nº 1 do artigo 591º.

Desta previsão legal retira-se que a dispensa de audiência prévia apenas está legalmente prevista para os casos em que, não obstante o que se decida em sede de despacho saneador, a acção deva prosseguir, o que afasta a possibilidade de dispensa de audiência prévia nos casos em que seja por força da procedência de excepções dilatórias ou peremptórias, seja por improcedência total do ou dos pedidos, a acção finde na fase do despacho saneador.

Já nos casos de improcedência total ou parcial de excepções dilatórias ou peremptórias ou de improcedência parcial do ou dos pedidos, nada obstará à dispensa da audiência prévia, pois nessas eventualidades sempre a acção deverá prosseguir.

No caso dos autos, a decisão de dispensa da realização da audiência prévia foi proferida no próprio saneador-sentença sob recurso – depois do relatório de tal peça e antes de nela se entrar na análise do mérito da causa, diz-se ali que “(…) atendendo aos atendendo aos deveres de gestão processual - artigo 6 do Código de Processo Civil e adequação formal – artigo 547 do mesmo diploma legal, considerando que as questões debatidas nos autos já se encontram amplamente discutidas em sede de articulados, com referências doutrinárias e jurisprudências e considerando ainda que a realização da audiência prévia prender-se-ia apenas com a realização da tentativa de conciliação (sendo certo que até à data nenhuma das partes demonstrou qualquer intenção de celebração de acordo e o mesmo poderá sempre ocorrer em qualquer fase do processo de execução a que os presentes autos correm por apenso) e com a produção de alegações de direito, não se justifica nem é razoável, encontrando-se o país em situação de estado de emergência, sem previsão de data final à vista, proceder à sua realização” – e foi precedida do despacho supra referido no relatório deste acórdão, proferido em 5/11/2020, em que se afirmava que o estado dos autos permitia conhecer do mérito da causa e, invocando-se aquele dever de gestão processual e aquele princípio de adequação formal e respectivos preceitos legais que os previam, ordenou a notificação das partes para se pronunciarem quanto à dispensa da audiência prévia e quanto à prolação de saneador-sentença.

Notificadas de tal despacho, veio a embargante, sem aduzir qualquer fundamento (conforme se vê da transcrição do seu requerimento efectuada supra), requerer a realização daquela diligência, ao passo que a embargada veio dizer nada ter a opor à sua dispensa.

Importa assim aferir se a dispensa de realização da audiência prévia, após contraditório das partes, pode fundamentar-se no exercício dos poderes de gestão processual (art. 6º, nº 1 do CPC) e no princípio da adequação formal (art. 547º do CPC).

Nos termos do disposto no nº 1 do art. 6º do CPC, “[c]umpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

Por outro lado, de acordo com o previsto no artigo 547º do CPC, “[o] juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.

Na linha de jurisprudência que cremos dominante, admitimos que no exercício dos poderes de gestão processual que se acabam de referir e que estão atribuídos ao juiz no sentido de adoptar mecanismos de simplificação e agilização do processo e do seu andamento, o tribunal, em vista de conhecer do mérito da causa na fase do despacho saneador, possa dispensar a audiência prévia em hipóteses não contempladas no artigo 593º do Código de Processo Civil precedendo audição das partes com indicação das razões por que se entende dever dispensar a realização de tal acto processual [neste sentido, vide, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 5/5/2015 proferido no proc. nº 1386/13.2TBALQ.L1 (rel. Desembargadora Cristina Coelho), o Acórdão da Relação do Porto de 24/9/2015 proferido no proc. nº128/14.0T8PVZ.P1 (rel. Desembargadora Judite Pires), o Acórdão da Relação de Lisboa de 23/10/2018 proferido no proc. nº 4711/18-6T8LRS-A.L1-2 (rel. Desembargador Rijo Ferreira), o Acórdão da Relação de Lisboa de 22/3/2018 proferido no proc. nº1920/14.0YYLSB-A.L1.6 (rel. Teresa Soares) e o Acórdão da Relação de Coimbra de 3/3/2020 proferido no processo nº1628/18.8T8CBR-A.C1 (rel. Desembargadora Maria Catarina)].

No caso vertente, alega a recorrente que “novos factos e novos documentos foram apresentados com a resposta da recorrida aos embargos da executada” e que com a dispensa da audiência prévia ficou coarctada a possibilidade de ser debatido em tal sede “a forma do reconhecimento de tais documentos, o seu conteúdo, assim como o facto de uma livrança conter uma assinatura enquanto os dizeres no verso da mesma conter duas assinaturas, o que distintamente acontece com a outra livrança” (conclusões 5 a 7).

Mas tal argumentação não procede.

Na verdade, além de a embargante já ter alegado o que bem entendeu na petição inicial de embargos sobre o requerimento executivo, sobre as livranças e sobre a sua vinculação em termos da sua responsabilidade pelo respectivo pagamento, há que referir que a mesma, notificada da contestação e documentos juntos com tal articulado (designadamente, os contratos de locação que estão na base da subscrição das livranças), não tomou qualquer posição sobre tais documentos, os quais, por isso, aceitou.

Além disso, notificada para os termos daquele despacho de 5/11/2020, a embargante, como já se referiu, veio singelamente requerer a realização daquela diligência sem aduzir qualquer fundamento para tal (designadamente, por exemplo, e como bem frisou a recorrida nas suas contra-alegações, não invocou nem identificou qualquer excepção que pudesse ter sido invocada pela embargada relativamente à qual pretendesse responder ou tomar posição no início da audiência prévia nem identificou qualquer questão de facto que no seu entender obstaculizasse o conhecimento imediato do mérito da acção).

Assim, há que, na linha do entendimento do tribunal recorrido supra transcrito, considerar que as questões debatidas nos autos já se encontravam amplamente discutidas em sede de articulados, de facto e de direito (incluindo com variadas referências doutrinárias e jurisprudenciais), e que, nesse conspecto, prendendo-se a audiência prévia apenas com a realização da tentativa de conciliação e com a produção de alegações de direito [alíneas a) e b) do nº1 do art. 591º do CPC], e que, além de tal tentativa de conciliação não ser obrigatória [é o que decorre da remissão da alínea a) do nº1 do art. 591º para os “termos do art. 594º”, pois a previsão deste diz apenas que “pode ter lugar” tal tentativa], a celebração de eventual acordo sempre poderá ocorrer em qualquer fase do processo de execução a que os presentes autos correm por apenso, fazia todo o sentido, ao abrigo daqueles poderes de gestão processual, dispensar tal audiência.

Deste modo, a decisão que dispensou a audiência prévia para conhecimento imediato do mérito da causa na fase do despacho saneador, porque proferida no exercício daqueles poderes e precedida de audição das partes com indicações sucinta das razões por que se justificava tal procedimento, não enferma de qualquer ilegalidade, devendo confirmar-se.
Como tal, improcede tal questão recursória."

3. [Comentário] O tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

Atendendo a que o estado dos autos nos permite conhecer do mérito da causa, nos termos do disposto nos artigos 593/1, 591/1 alínea d). 595/1, alínea b) e 597/1, alínea b) do Código de Processo Civil, e tendo presente o dever de gestão processual e o princípio de adequação formal previstos nos artigos 6/1 e 547 do Código de Processo Civil, ouçam-se as partes em 10 dias, quanto à dispensa da realização de audiência prévia e a prolação de saneador sentença.
Notifique.

A circunstância de se invocar, entre outros preceitos, o disposto no art. 597.º, n.º 1, al. b), CPC pode levar a concluir que os embargos de executado têm um valor não superior a metade do valor da alçada da Relação. Se assim é (mas não se garante que seja), então a decisão da 1.ª instância não merece nenhuma censura e o acórdão da RP deveria ter-se limitado a reconhecer ao tribunal de 1.ª instância o poder discricionário de dispensa da audiência prévia.

Se o valor dos embargos de executado é superior a metade da alçada da Relação (como, efectivamente, parece que é), a dispensa da audiência prévia por iniciativa do juiz é muito discutível. Se, mesmo quando a audiência prévia é dispensada pelo juiz nos termos do art. 593.º, n.º 1, CPC, qualquer das partes pode impor a sua realização (art. 593.º, n.º 3, CPC), então não é fácil admitir que o juiz possa, por sua iniciativa, dispensar essa audiência fora dos casos legalmente admitidos. No mínimo, ter-se-ia de admitir nessa hipótese a mesma possibilidade de realização da audiência prévia por imposição potestativa de qualquer das partes.

Quando muito, pode admitir-se uma dispensa judicial da audiência prévia para além do disposto no art. 593.º, n.º 1, CPC, se ambas as partes estiverem de acordo com a dispensa proposta pelo tribunal, algo que está para além do poder de gestão processual e que configura um verdadeiro acordo de procedimento entre o tribunal e as partes. No entanto, ainda que esta possibilidade praeter legem possa vir a ser explorada pela jurisprudência e pela doutrina (algo que agora se deixa em aberto), a verdade é que a condição da concordância de ambas as partes não estava preenchida no caso concreto.

MTS