"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/07/2022

Jurisprudência 2022 (5)


Parte processual;
identificação; convolação


I. O sumário de RG 13/1/2022 (164/21.0T8GMR-A.G1) é o seguinte:

1 - Só a herança jacente - aquela que já foi aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado - tem personalidade judiciária.

2 - A herança que já foi aceite pelos respetivos herdeiros não dispõe de personalidade judiciária.

3 - Os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, ressalvando-se a ação de petição de herança (que pode ser intentada por qualquer dos herdeiros isoladamente) e ações relativas a “fenómenos periféricos da sucessão” para as quais o cabeça-de-casal terá legitimidade.

4 - Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pelos seus herdeiros, nada obsta a que se considere que quem interpõe a acção, nela figurando como autores, são os herdeiros aí correctamente identificados, pois é evidente que se trata de uma situação de herança indivisa cujos interesses são titulados pelos respetivos herdeiros, não devendo julgar-se a falta de personalidade judiciária da autora mas sim proceder a uma interpretação correctiva que estabeleça a precisa correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte.

5 - Num caso como o dos autos, a falta de personalidade judiciária é apenas aparente, uma vez que todos os herdeiros estão presentes, identificados e outorgaram procuração ao mandatário subscritor da petição, devendo considerar-se que são eles os autores (e não a herança) que, em conjunto, exercem os direitos relativos à herança, conforme decorre do disposto no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil.

6 – Numa ação de preferência, o valor da causa será o do preço praticado no negócio objeto da preferência.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A primeira questão colocada pelos apelantes prende-se com a exceção de falta de personalidade jurídica e judiciária da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de F. M..

Não há dúvida, e o despacho recorrido não o põe em causa, que a herança aceite pelos respetivos herdeiros não dispõe de personalidade jurídica, nem judiciária – artigos 11.º e 12.º, alínea a) do Código de Processo Civil – uma vez que, só a herança jacente tem personalidade judiciária e esta é aquela que já foi aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado, por desconhecimento da existência de herdeiros, por existência de herdeiros legítimos ou testamentários que ainda não aceitaram a herança ou pelo facto de ter sido deixada a favor de nascituro ou de conceturo, assumindo provisoriamente o lugar do de cujus na relação jurídica, mas não se confundindo com os herdeiros que venham a habilitar-se (artigo 2046.º do Código Civil). Toda a herança jacente é indivisa mas nem toda a herança indivisa é jacente, deixando de o ser com a aceitação e/ou repúdio pelos herdeiros – cfr. Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, vol. I, Almedina, pág. 43.

Resulta, então, do disposto no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros”, ressalvando-se a ação de petição de herança (que pode ser intentada por qualquer dos herdeiros isoladamente) e ações relativas a “fenómenos periféricos da sucessão” para as quais o cabeça-de-casal terá legitimidade (artigos 2087.º a 2090.º do CC) – cfr. Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, vol. VI, pág. 152.

Isto mesmo resulta do despacho recorrido e dos inúmeros acórdãos que os apelantes citam nas suas alegações de recurso.

A verdadeira questão que aqui se coloca é a de saber se, tendo sido denominada a parte autora como “Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de F. M., representada pelos seus herdeiros S. M. e marido N. N., M. M., divorciado e J. S., viúva”, tal impõe a absolvição imediata dos réus da instância ou se se impõe um “esforço integrativo”, uma vez que determinados os sucessores e aceita a herança, os interesses passam a estar encabeçados pelos herdeiros, nos termos daquele já referido artigo 2091.º do Código Civil.

Como salienta Abrantes Geraldes, no CPC Anotado já citado e com o qual se concorda em absoluto, este é um caso em que a falta de personalidade judiciária é apenas aparente, traduzida num simples erro de identificação do sujeito processual.

“Para estas situações, em lugar de, numa visão positivista e formal, se optar logo pela absolvição da instância decorrente da falta daquele pressuposto processual, é mais razoável que se observe a possibilidade de retificação da identificação do sujeito processual, nuns casos mediante formulação de um convite à parte, noutros casos por via direta, através de uma simples interpretação correctiva que estabeleça a precisa correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte. Tal pode suceder, designadamente (…) quando a ação é instaurada ou dirigida em nome de “Herança H, representada pelos herdeiros X, Y e Z”, sendo evidente – como é, em geral – que se trata de uma situação de herança indivisa cujos interesses são titulados pelos respetivos herdeiros” – autores e obra citada, pág. 41.

Neste sentido, veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 27/05/2008, processo n.º 400/2002.C1, in www.dgsi.pt, onde se pode ler: “No caso, permanecendo a situação de indivisão dos bens que integram a herança, despida ela de personalidade judiciária, como acima se disse, os direitos que lhe são relativos devem ser, conforme se salientou, exercidos pelos herdeiros. Ora, sendo eles conhecidos, estando terminada a situação de jacência, necessário se torna que no lugar da herança intervenham os respectivos titulares em bloco, ou seja, os herdeiros identificados na petição. Estes, na defesa dos interesses da herança por partilhar, intentam a acção apresentando-se como representantes da herança, embora impropriamente falem em “herança por eles representada”. São os herdeiros quem intervém como parte activa, actuando, não em nome próprio, mas em nome do património representado que não dispõe da possibilidade de ser parte em processo judicial, reunindo, assim, no conjunto deles, não só o requisito da personalidade judiciária, mas também o da legitimidade processual activa (art.2091º/1, C.C. e 28º/C.P.C.). Assim, deve entender-se a referência à «herança ilíquida e impartilhada de A...», como mero fundamento de serem as pessoas que se identificam como a viúva e cabeça-de-casal, filhos e neta, os autores, herdeiros e representantes da herança, que no interesse desta intentam a acção no quadro da legitimidade substantiva prevista no art.2091º/C.C.. Concluindo, assiste aos herdeiros determinados da «herança ilíquida e impartilhada de A...», identificados na petição, personalidade judiciária e legitimidade processual para proporem a acção como representantes dela”.

E, no mesmo sentido, podem ver-se os Acórdãos do STJ de 12/09/2013, processo n.º 1300/05.9TBTMR.C1.S1 e da Relação de Lisboa, de 16/04/2015, processo n.º 4933/13.6TCLRS.L1-8 (“O espírito e a filosofia que estão subjacentes ao Código de Processo Civil também apontam para a conveniência de interpretar a petição inicial de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária. A filosofia subjacente ao Código de Processo Civil – concretizada por diversos modos em várias disposições legais – visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, pretendendo que o processo e a respectiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes”), bem como o Acórdão da Relação de Guimarães de 07/12/2016, processo n.º 74/15.0T8CHV-A.G1.

Este tem sido, também, o entendimento sufragado nos recentes Acórdãos da Relação de Coimbra, como se pode ver no Acórdão de 24/09/2019, processo n.º 348/18.8T8FND-A.C1: “Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pela respectiva cabeça-de-casal, nada obsta a que se considere, com base numa leitura e interpretação menos rígida e formalista (e centrada nos direitos e interesses a regular), que quem interpõe a acção, nela figurando como autora - ainda que actuando no interesse de todos os herdeiros - é a cabeça-de-casal. Atendendo à filosofia subjacente ao actual Código de Processo Civil - que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância - não se justificará, em tal situação, a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança indivisa que, formalmente, vem indicada como sendo a autora, restando apenas saber se a cabeça-de-casal tem ou não legitimidade para a propositura da acção e, em caso negativo, providenciar pela sanação da sua eventual ilegitimidade com a intervenção dos demais herdeiros”; no Acórdão de 26/02/2019, processo n.º 1222/16.8T8VIS-C.C1 e no Acórdão de 23/02/2021, processo n.º 1088/19.6T8LRA.C1.

Esta solução é, aliás, a que subjaz à filosofia do atual Código de Processo Civil, que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância, tendo em vista o máximo aproveitamento dos actos processuais, como muito bem se refere no despacho recorrido. Pretende-se evitar uma absolvição da instância por razões puramente formais.

Num caso como o dos autos, a falta de personalidade judiciária é apenas aparente, uma vez que todos os herdeiros estão presentes, identificados e outorgaram procuração ao mandatário subscritor da petição, devendo considerar-se que são eles os autores (e não a herança) que, em conjunto, exercem os direitos relativos à herança, conforme decorre do disposto no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil. O já citado Acórdão da Relação de Guimarães acaba por concluir, mesmo que a herança indivisa nem sequer corresponde a uma realidade diferente do conjunto dos herdeiros, sendo que a falta de personalidade da herança não jacente decorre da circunstância de os seus titulares já estarem determinados, pelo que a herança corresponde, na prática, ao conjunto dos herdeiros." 

[MTS]