"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/07/2022

Jurisprudência 2021 (231)


Absolvição da instância;
caso julgado formal; efeitos*


1. O sumário de STJ 16/12/2021 (4413/19.6T8VCT.G1.S1é o seguinte:

O caso julgado formal tem eficácia meramente intraprocessual, pelo que, numa nova acção com as mesmas partes e o mesmo objecto de acção anterior que tenha terminado com a absolvição da instância do réu, salvo disposição legal em contrário, pode ser proferida decisão divergente da proferida na primeira acção.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como se viu, o Tribunal a quo absolveu a ré da instância com fundamento na excepção de caso julgado.

Na fundamentação de direito desenvolvida no Acórdão recorrido, começa o Tribunal a quo por recordar que:

a exceção do caso julgado foi suscitada pela ré na contestação e ao autor foi dada oportunidade de se pronunciar sobre a mesma, o que ele fez, em articulado próprio, considerando não ocorrer a dita exceção pelos motivos que aí aduziu, pelo que não se vê necessidade de dar nova oportunidade às partes para se pronunciarem sobre tal exceção”.

Passa depois a apreciar a questão, expondo, no essencial, o seguinte raciocínio:

Em 2017, o autor intentou ação, que seguiu sob o número 3757/17.6…, contra “Portelinha – Transportes, Lda.”, em que formulou exatamente o mesmo pedido que na ação de que agora nos ocupamos (intentada em 26/12/2019), à exceção dos pedidos constantes das alíneas c) e d) desta última, pedidos esses que se prendem apenas e tão-somente com os factos ora acrescentados n.ºs 69, 70 e 71 relativos à retirada de um transformador do prédio alegadamente propriedade do autor. (…)

A petição inicial destes autos é cópia integral da petição inicial introduzida naquele outro processo, à exceção destes artigos 69.º a 71.º e do artigo 36.º, onde se refere que a sociedade ré foi declarada insolvente (o que já se sabia na ação anterior que prosseguiu, apesar da insolvência).

Ora, nesse processo 3757/17.6…, foi proferida sentença, a 04/07/2018, em que se julgou inepta a petição inicial e, consequentemente, se absolveu a ré da instância.

Tal sentença foi confirmada por Acórdão deste Tribunal da Relação, proferido a 15/11/2018, ainda com recurso para o STJ, onde o recurso não foi admitido (…).

Assim, aquela sentença que julgou inepta a petição inicial transitou em julgado.

Posteriormente, o autor intentou ação contra a massa insolvente de “Portelinha – Transportes, Lda.”, exatamente igual à primeira, como já vimos.

É certo que, em caso de absolvição da instância, o autor não está impedido de propor outra ação sobre o mesmo objeto – artigo 279.º, n.º 1 do CPC (sendo que este artigo pretende, sobretudo, evitar que da absolvição da instância decorra o desaproveitamento de efeitos civis que se produzem com o início da instância) – contudo não pode, como veremos, propor outra ação com uma petição inicial exatamente igual à primeira, quando esta já foi julgada inepta. A possibilidade conferida por este artigo de se propor outra ação sobre o mesmo objeto, passa, necessariamente, pelo suprimento da, ou das exceções que conduziram, na primeira ação, à absolvição da instância.

Repare-se, aliás, que as duas sentenças, a proferida no processo 3757/17.6… e a proferida neste processo, são exatamente iguais, sendo a ora recorrida uma transcrição da primeira (proferidas pelo mesmo Sr. Juiz), a que se acrescentou aquela nota de rodapé já acima salientada sobre a repetição das causas de pedir em ambas as ações e um último parágrafo, já após a decisão (“Consequentemente, resulta prejudicado o conhecimento da deduzida ampliação do pedido formulada no articulado nº 36…254, sendo certo que nenhuma alteração pretendeu introduzir quanto aos factos essenciais necessários ao prosseguimento dos presentes autos”). (…)

No caso concreto, como já vimos, a primeira ação foi interposta contra a sociedade Portelinha e, após a sua declaração de insolvência, foi o Tribunal da Relação que considerou que a ação devia prosseguir os seus trâmites, vindo a terminar com a sentença de ineptidão. Ou seja, após a declaração de insolvência e a decisão do Tribunal da Relação, a ré passou a ser a massa insolvente, a mesma ré da ação de que nos ocupamos, sendo óbvio que uma e outra são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica.

O mesmo se passa quanto ao pedido, uma vez que os pedidos acrescentados sob as alíneas c) e d), como bem se salienta na sentença recorrida, são decorrência e consequência dos dois primeiros, derivando diretamente dos factos acrescentados sob os números 69.º a 71.º, relativos à retirada do transformador do prédio que se pretende que seja reconhecido como do autor.

E dúvidas não existem que a pretensão deduzida nas duas ações é exatamente a mesma e procede dos mesmos factos jurídicos, o que, aliás, sempre resultaria de a segunda petição inicial ser cópia da primeira.

Ainda que pudesse considerar-se que a massa insolvente de uma sociedade, após a declaração de insolvência desta, não é o mesmo sujeito que a própria sociedade, então sem dúvida, que operaria, neste caso a autoridade de caso julgado. (…)

Diremos, ainda, em jeito de nota final e, verdadeiramente, como uma decorrência, aliás, do que ficou dito, quanto ao caso julgado, que, tal como no Acórdão deste Tribunal da Relação de 15 de novembro de 2018, que confirmou a primeira sentença de ineptidão da petição inicial (sufragando inteiramente o entendimento da 1.ª instância) e que aqui damos como reproduzido, sempre seria de confirmar a sentença ora recorrida, cópia daquela outra confirmada por este Tribunal no processo 3757/17.6….G2”.

Numa palavra: o Tribunal da Relação de … absolveu a ré da instância com fundamento na excepção de caso julgado.

O que dizer? [...]

A excepção de caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior. Nesta vertente, o caso julgado compreende limites (subjectivos e objectivos): pressupondo o caso julgado uma repetição de causas, a repetição pressupõe, por sua vez, identidade dos sujeitos, identidade do pedido e identidade da causa de pedir (cfr. artigo 581.º do CPC).

Ao lado da excepção de caso julgado assente sobre a decisão de mérito proferida em processo anterior, existe a excepção de caso julgado baseada em decisão anterior proferida sobre a relação processual. À primeira chama-se “caso julgado material” e está regulada no artigo 619.º do CPC e à segunda chama-se “caso julgado formal” e está regulada no artigo 620.º do CPC.

Tanto o caso julgado material como o caso julgado formal pressupõem o trânsito em julgado da decisão. No entanto, enquanto o caso julgado formal tem apenas força obrigatória dentro do processo em que a decisão é proferida, o caso julgado material tem força obrigatória não só dentro do processo como, principalmente, fora dele [Salientando este facto cfr. Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985 (2.ª edição), pp. 308-309.]

Por seu turno, a autoridade de caso julgado tem o efeito de impor uma decisão e por isso constitui a “vertente positiva” do caso julgado. Diversamente da excepção de caso julgado, a autoridade de caso julgado funciona independentemente da verificação daquela tríplice identidade [---] mas nunca pode impedir que se volte a discutir e dirimir aquilo que ela não definiu. Por outras palavras, e como se depreende do disposto nos artigos 91.º e 581.º do CPC, a autoridade do caso julgado abrange a decisão contida na sentença bem como, em certos termos, os seus fundamentos. A eficácia do caso julgado não se limita, de facto – saliente-se – à decisão final. Na realidade, “embora se aceite que a eficácia de caso julgado não se estende aos motivos da decisão, é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado [Cfr. Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, cit., p. 715 [...]].

Depois destes breves esclarecimentos, é possível responder à questão do recurso, que é a de saber se o Tribunal decidiu bem ao absolver a ré da instância com fundamento na excepção de caso julgado formado na anterior acção.

Verifica-se que nesta acção foi decretada a absolvição da instância por ineptidão da petição inicial, o que significa que foi proferida, não uma decisão de mérito, mas sim uma decisão que incide apenas sobre a relação processual.

Ora, como se viu atrás, quando a decisão incide apenas sobre a relação processual, o caso julgado é meramente formal, o que quer dizer que tem força obrigatória apenas dentro do processo (cfr. artigo 620.º do CPC) e não obsta a que, entre as mesmas partes, o pedido deduzido seja novamente formulado, com a mesma causa de pedir, em nova acção, uma vez que este, sendo formal, tem apenas eficácia  intraprocessual.

Assim, sendo proposta uma segunda acção com o mesmo objecto e as mesmas partes, nunca poderia verificar-se a excepção de caso julgado e – já agora também se diz, para rebater a fundamentação subsidiária do Tribunal a quo – nem o juiz desta acção poderia estar vinculado a proferir decisão idêntica à da primeira acção, por respeito à autoridade do caso julgado formal [---]

Bem vistas as coisas, é a solução mais correcta e que se pode fundamentar, parafraseando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.2021 [Acórdão desta 2.ª Secção, proferido em 14.10.2021, no Processo 1040/19.1T8ANS-A.C1.S1, e relatado pelo ora 2.º Adjunto.], nos seguintes termos:

[a]pesar de a possibilidade de serem proferidas decisões contraditórias em processos diferentes, mas com objeto idêntico e com as mesmas partes, poder causar alguma perplexidade, há que ter presente que essas decisões apenas decidem da admissibilidade daquele processo seguir os seus termos com vista à apreciação do mérito da causa, em nada definindo as relações jurídicas entre as partes em litígio, pelo que não existe qualquer solução material cuja definitividade importe salvaguardar.

Se, para a credibilidade do sistema judicial, pode ser importante a coerência e uniformização das suas decisões, mesmo que estas tenham um alcance meramente processual, esse já não é um interesse abrangido pelo princípio da segurança jurídica, enquanto princípio estruturante do Estado de direito democrático, e não tem o peso necessário para impor que, no modelo do processo equitativo, tais decisões, quando recaiam sobre a verificação dos pressupostos processuais, tenham necessariamente efeitos extraprocessuais, impondo-se em processos distintos daqueles onde foram proferidas”.

Tudo visto, pode concluir-se, em síntese, que, tendo a anterior decisão incidido sobre a relação processual e sendo o caso julgado por ela formado meramente formal, deve a decisão de absolvição da instância com fundamento na excepção de caso julgado proferida pelo Tribunal a quo ser revogada.

Mais deve ser ordenado o prosseguimento dos autos para a apreciação da questão suscitada no recurso de apelação e cujo conhecimento ficou prejudicado por aquela decisão – a ineptidão da petição inicial."

*3. [Comentário] É indiscutível que o caso julgado formal nunca pode basear a excepção de caso julgado. Outra coisa completamente diferente é saber se o disposto no art. 279.º, n.º 1, CPC não implica que o vício que conduziu à absolvição da instância na primeira acção tenha de se encontrar sanado na acção posterior. Sobre o problema, MTS, CPC online [2022.06], Art. 279, 3.

MTS