Habilitação-legitimidade; embargos de executado;
prejudicialidade; suspensão da instância
I - A habilitação destina-se a comprovar a aquisição por sucessão ou transmissão, da titularidade de um direito ou de um complexo de direitos, ou de uma situação jurídica, ou de um complexo de situações jurídicas.
II - A habilitação é susceptível de se configurar como requisito de legitimidade se implementada no primeiro articulado da espécie processual em causa – habilitação legitimidade.
III - A habilitação legitimidade deduzida na P.I. da acção, seja declarativa, seja executiva, é julgada e apreciada juntamente com a causa, sendo que, tratando-se de execução, como estabelece o nº 1 do art.º 54.º do CPC, no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão”. Podendo o executado deduzir a oposição à matéria desta Habilitação legitimidade (que tem natureza declarativa), na oposição à execução, mediante embargos.
IV - O apenso de embargos de executado tem natureza declarativa, pelo que se vem admitindo a suspensão da respectiva instância por dependência de causa prejudicial, prevista no art.º 272º, n.º1,1ª parte, do Código de Processo Civil.
V – Entendendo-se que o óbito do titular do crédito exequendo só pode ser provado nestes autos mediante certificado emitido pelo Registo Civil (prova vinculada nos termos do art.º 2º do Código de Registo Civil), sendo insuficiente a sentença criminal que deu como provado o homicídio do pai da exequente e estando pendente acção com vista à justificação judicial desse óbito ou procedimento administrativo com o mesmo objecto, deve ser deferida a suspensão da instância até decisão dessa acção, que se configura como causa prejudicial em relação à requerida habilitação.
VI – Atento o disposto nos artºs 2031º, 2032º e 2050º do Código Civil, a legitimidade da exequente não deixará de ser apreciada e decidida “por reporte ao momento em que a acção executiva foi proposta”, ainda que o meio de prova do óbito seja emitido posteriormente.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Na decisão recorrida entendeu-se, que “embora a lei não distinga no atual artigo 272.° entre a ação declarativa e a ação executiva, e se trate de uma norma geral sobre a suspensão da instância, a redação da primeira parte do n.º1 torna inaplicável esse comando à execução propriamente dita, na medida em que no processo de execução não há que proferir decisão sobre o fundo da causa, visto o direito que se pretende efetivar já está declarado ou consta de título que lhe confere prova de primeira aparência6. Com efeito, a ação executiva não visa a declaração de quaisquer direitos, mas tão só a sua realização coativa, no pressuposto de que existem (o que é presumido pelo título executivo) e de que foram violados. Por esse motivo, não pode a ação executiva ser suspensa com fundamento na pendência de causa prejudicial, pois, não tendo por fim a decisão duma causa, não pode nela verificar-se a relação de dependência exigida pelo citado artigo 272.º, n.º1. (…) Na verdade, como acima já tivemos oportunidade de referir, a questão da suspensão encontra-se interligada com a ilegitimidade da ora embargada para demandar nos autos de execução. Ora, como é consabido, a legitimidade afere-se perante a posição da demandante na relação material legalmente definida no momento em que a ação é proposta (cfr. artigos 259.º e 260.º, do Cód. Proc. Civil). Daí que, independentemente dos reflexos que a questão a decidir na ação declarativa intentada pela ora embargada possa repercutir na legitimidade processual da exequente para a execução principal, a verdade é que esta deve ser apreciada e decidida por reporte ao momento em que a ação executiva foi proposta. Não há, portanto, fundamento legal para suspender a instância executiva nem os presentes embargos de executado.”
A recorrente pugna contra o assim decidido, sustentando que: “Entendendo o tribunal a quo que, não obstante o já decidido no processo crime n.º 881/16.6JAPRT, onde resultou provado o homicídio de J. P., a morte do pai da recorrente não se encontra ainda provada na execução apensa por não se encontrar junto à mesma ou aos presentes autos a respectiva certidão de óbito e tendo em conta que se encontra pendente a aludida acção comum n.º 4966/20.6T8BRG, onde se está a apreciar precisamente o reconhecimento da morte do referido J. P., salvo melhor opinião, entendemos que esta acção é causa prejudicial quanto aos presentes embargos”.
Para tanto apoia-se na jurisprudência dos acórdãos do TRP de 08.10.2007, proc. n.º 0754992 e do TRG de 25.02.2021, proc. n.º 4079/17.8T8VNF-A-G1.
Apreciando
A habilitação é prova da aquisição por sucessão ou transmissão, da titularidade de um direito ou de um complexo de direitos, ou de uma situação jurídica, ou de um complexo de situações jurídicas.
A habilitação é susceptível de se configurar como requisito de legitimidade se implementada no primeiro articulado da espécie processual em causa – habilitação legitimidade – ou como objecto principal de um processo específico – habilitação acção – ou como incidente conexionado com determinada causa lato sensu – habilitação incidente (Os incidentes da instância, Salvador da Costa, 11ª edição, págs. 191 e segs.).
“A habilitação requisito de legitimidade do lado activo é a que tem lugar, por exemplo, na petição inicial de uma acção declarativa ou no requerimento executivo, no caso de o autor ou o exequente terem sucedido na relação jurídica controvertida reportada” (Obra citada.).
A habilitação legitimidade deduzida na P.I. da acção, seja declarativa, seja executiva, é julgada e apreciada juntamente com a causa.
Estabelece o art.º 53º nº 1 do CPC que “a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”.
Como desvio a esta regra geral prevê-se no nº 1 do art.º 54.º, que: – “Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão”.
Nesse sentido a exequente alegou o falecimento de quem no título figurava como credor (o seu pai) e a sua sucessão nesse direito, porquanto era a única filha do falecido, no estado de divorciado, inexistindo quem com ela concorra à herança.
A executada poderia deduzir a oposição à matéria desta Habilitação legitimidade (que tem natureza declarativa), cumulando-a com a oposição à execução, mediante embargos.
No caso, a executada deduziu tal oposição, em sede de embargos, alegando, entre o mais, que o óbito do titular do direito em que a exequente alega ter sucedido não estava comprovado, “pois não foi junta qualquer certidão de óbito e enquanto não for demonstrado o seu óbito não se inicia o fenómeno sucessório, razão pela qual a exequente não é parte legítima, devendo a embargante ser absolvida da instância”. [...]
Assim, considerando que a certidão do processo criminal não fora julgada prova suficiente do óbito e não havia corpo para o assento ser lavrado nos termos do art.º 198º do CRCivil, nem havia sido instaurado procedimento de justificação administrativa do óbito, poderia equacionar-se a questão de suspender a instância, até que, mediante procedimento judicial ou administrativo, se procedesse ao registo do óbito, pois dúvidas não existiam da sua verificação.
Vejamos.
Estabelece o art.º Artigo 272.º do CPC:
1 - O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
2 - Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.3 - Quando a suspensão não tenha por fundamento a pendência de causa prejudicial, fixa-se no despacho o prazo durante o qual estará suspensa a instância.4 - As partes podem acordar na suspensão da instância por períodos que, na sua totalidade, não excedam três meses, desde que dela não resulte o adiamento da audiência final.
Como se refere na decisão recorrida a execução propriamente dita não pode ser suspensa por dependência de causa prejudicial nos termos do n.º1, 1ª parte, do art.º 272º do Código de Processo Civil, por não ser uma causa a decidir mas antes um direito já efectivamente declarado, não havendo, assim, qualquer nexo de prejudicialidade (cfr. Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 4/6/80, in BMJ 298, 232, A.Reis, Comentário, Vol.III, pg.274 ).
Com efeito, é entendimento unânime na jurisprudência e doutrina que a 1ª parte do n.º 1 do art.º 272.º do Código de processo Civil não é aplicável à acção executiva, mantendo-se em vigor a doutrina do Assento de 24/05/60 (publicado no Boletim do Ministério da Justiça n. 97, de Maio de 1960, a págs. 173 e ss.), agora transformado em acórdão uniformizador de jurisprudência (art.17 nº2 do DL nº 329-A/95 de 12/12), ao fixar a seguinte jurisprudência – “A execução propriamente dita não pode ser suspensa pelo primeiro fundamento do art. 284.º do Código de Processo Civil“ – no qual se fundamenta: “onde não houver duas causas a decidir não tem funcionamento a primeira parte do art.º 284.º do Código de Processo Civil; e, porque a execução não procura decidir, não pode ser suspensa de harmonia com essa regra” – cfr. A. Reis, in Comentário ao Código do Processo Civil, vol. III, pág. 274.
Sendo igualmente “entendimento pacífico que não obstante a revogação do artigo 2º do Código Civil pelo artigo 4º, nº3, do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro (tendo os assentos deixado de ter força vinculativa genérica), não há motivos para a interpretação acolhida pelo referido assento deixar de ser seguida. Não sendo, assim, possível suspender os termos de uma acção executiva com o fundamento na prejudicialidade de uma outra causa que se encontra pendente, pois uma acção executiva não é propriamente uma causa a decidir, mas antes, contem em si um direito já efectivamente declarado ou reconhecido, não havendo, por isso, e em princípio, qualquer nexo ou razão de prejudicialidade. (Neste sentido, ainda, v. Lopes do Rego, in Comentário ao Código de Processo Civil, anotado, vol.I, notas ao artº 279º; Rui Pinto in Manual da Execução e Despejo, pg.432; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC, anotado, Vol I, 3ª edição, pg. 552, P.Pimenta e A.Geraldes, Luis Filipe Pires de Sousa, in CPC, anotado, notas ao artº 272º, e, na jurisprudência, entre muitos outros, Ac do STJ de 4/6/80, BMJ 298, pág.232, de 14/1/93, C.J. ano I, tomo I, pág.59, de 18/6/96, C.J. ano IV, tomo II, pág.149, Ac. TRC de 7/7/2004, Ac. TRC de 15/03/2011, Ac.TRG de 6/11/2012, Ac.TRG de 25/1/2018, Ac.TRG de 12/4/2018, in www dgsi.pt).” (Acórdão desta Relação de 25-02-2021 (4079/17.8T8VNF-A.G1), em que intervieram como adjuntos a aqui relatora e o aqui 1ª adjunto.)
Contudo, o apenso de embargos de executado tem natureza declarativa, pelo que se vem admitindo a suspensão da respectiva instância por dependência de causa prejudicial, prevista no art.º 272º-n.º1 -1ª parte, do Código de Processo Civil. Assim como podem ter natureza declarativa outras questões suscitadas na execução (v.g. a liquidação – nºs 4 e 5 do art.º 716º do CPC).
A este propósito e no sentido da admissibilidade da suspensão em sede de embargos, ver, entre outros, o Código de Processo Civil Anotado de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, 2018, I volume, pág. 315 (7), Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, II, 1971, pág. 47, Rui Pinto in Manual da Execução e Despejo, pg.432; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC, anotado, Vol I, 3ª edição, pg. 552, Ac. TRL de 26/7/2003, e jurisprudência aí citada, nomeadamente Ac. STJ de 18/6/96, CJSTJ Ano IV, Tomo II, pág. 149; Ac. TRL de 17/9/2013, Ac. TRP de 8/10/2007, Ac. TRP de 19/2/2009; Ac. TRG de 6/11/2012, Ac.TRG de 25/1/2018, in www dgsi.pt.
Sendo que, no caso, estamos perante causa prejudicial dos embargos, uma vez que a decisão a proferir nessa acção seria determinante na decisão a proferir relativamente a um dos fundamentos dos presentes embargos, que é a ilegitimidade da exequente.
Assim, entendendo-se, que, nestes embargos, não pode a exequente comprovar o óbito de quem figura como credor no título, no caso o seu pai, sem que o óbito se mostre registado (prova vinculada nos termos do art.º 2º do Código do Registo Civil), tendo em conta que a exequente intentou acção com vista ao reconhecimento judicial da morte de seu pai, a fim de obter essa declaração e consequente registo, temos de concluir que a decisão desta causa (destes embargos no que tange a um dos seus fundamentos), está dependente da decisão a proferir nessa acção.
Aliás, apesar do acima referido quanto à prova vinculada, note-se que o art.º 91º do CPC estende a competência do Tribunal para todas as questões que na acção se levantem, ainda que a título incidental, pelo que, embora sem força obrigatória fora do processo, afigura-se-nos não ser de excluir a possibilidade de, mesmo em sede dos presentes embargos, a questão relativa ao óbito de quem figurava no título como credor poder ser apreciada, embora com eficácia limitada a este processo."
[MTS]
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