"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/07/2022

Jurisprudência 2022 (7)


Competência internacional;
Reg. 1215/2012; lugar do "facto danoso"*


1. O sumário de RC 18/1/2022 (2/20.0T8MMV.C1) é o seguinte:

I – O segmento “lugar onde ocorreu o facto danoso”, constante do n.º 2 do artigo 7.º, do Regulamento n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, compreende tanto o lugar onde o dano se produz como o lugar onde ocorre o evento causal.

II - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar uma ação declarativa de condenação em que o Autor, pai de dois filhos, pede a condenação da Ré, mãe desses filhos, a pagar-lhe uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do facto da Ré ter abandonado a residência em Portugal e levado os filhos consigo para Espanha, onde fixou nova residência, infringindo as obrigações decorrentes do regime que regulava o exercício das responsabilidades parentais.

III - O facto “abandono da residência”, reportado ao local da residência fixada à data em que foi estabelecido o regime relativo às responsabilidades parentais é, no caso, para efeitos do n.º 2 do artigo 7.º do referido Regulamento, o facto causal do dano.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Recapitulando e resumindo, existia um acordo entre os pais, homologado pelo tribunal, segundo o qual os menores residiriam com a mãe, como já residiam e continuaram a residir, em Montemor-o-Velho e o pai estava com os menores em fins de semana alternados e às 3.ª feiras à noite. Em 2015 a mãe foi residir para Espanha, sem o acordo do pai, e levou os filhos consigo, atuação esta que implicou, na alegação do Autor, os danos patrimoniais e não patrimoniais que peticiona.

Vejamos então qual o tribunal internacionalmente competente para conhecer da causa, face ao Regulamento n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (reformulação) – doravante designado apenas por «Regulamento».

1 - O n.º 2 do artigo 7.º (Competências especiais) do Regulamento, diz o seguinte:

«As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: (…). 2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso;»

2 - Muito embora não venha questionada a qualificação do caso como sendo de responsabilidade extracontratual, cumpre começar com um breve apontamento sobre os conceitos de «responsabilidade contratual» e «responsabilidade extracontratual» no âmbito a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.

Sobre esta matéria, o Tribunal de Justiça da União Europeia, no acórdão de 24 de novembro de 2020, no processo C-59/2019 (Relator: Marek Safjan), disse o seguinte:

«23. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o conceito de «matéria extracontratual», na aceção do artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, abrange qualquer ação destinada a pôr em causa a responsabilidade de um demandado e que não esteja relacionada com a «matéria contratual», na aceção do artigo 7.º, ponto 1, alínea a), deste regulamento (v., neste sentido, Acórdãos de 27 de setembro de 1988, Kalfelis, 189/87, EU:C:1988:459, n.º 18, e de 12 de setembro de 2018, Löber, C-304/17, EU:C:2018:701, n.° 19), a saber, que não se baseie numa obrigação jurídica livremente assumida por uma pessoa para com outra (Acórdão de 20 de janeiro de 2005, Engler, C-27/02, EU:C:2005:33, n.° 51).»

E mais adiante:

«32. Assim, uma ação está relacionada com matéria contratual, na aceção do artigo 7.º, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.º 1215/2012, se a interpretação do contrato que vincula o demandado ao demandante for indispensável para estabelecer o caráter lícito ou, pelo contrário, ilícito do comportamento censurado ao primeiro pelo segundo (v., neste sentido, Acórdão de 13 de março de 2014, Brogsitter, C-548/12, EU:C:2014:148, n.º 25). É o caso, nomeadamente, de uma ação cujo fundamento assenta nas cláusulas de um contrato ou nas regras de direito aplicáveis em razão desse contrato (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de setembro de 2015, Holterman Ferho Exploitatie e o., C-47/14, EU:C:2015:574, n.º 53, e de 15 de junho de 2017, Kareda, C-249/16, EU:C:2017:472, n.os 30 a 33).

33. Em contrapartida, quando o demandante invoca, na sua petição, as regras da responsabilidade extracontratual, a saber, a violação de uma obrigação imposta por lei, e não se afigura indispensável examinar o conteúdo do contrato celebrado com o demandado para apreciar o caráter lícito ou ilícito do comportamento censurado a este último, uma vez que tal obrigação se impõe ao demandado independentemente desse contrato, o fundamento da ação enquadra-se na matéria extracontratual, na aceção do artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012.» - (in https://curia.europa.eu/jcms/jcms/P_106311/pt/).

Ou seja, a responsabilidade contratual é apenas aquela que implica, para efeitos da sua determinação, a análise e interpretação de contratos.

No caso dos autos, muito embora estejamos perante um acordo entre pais homologado por sentença, um tal acordo não constitui um contrato, desde logo, por se tratar de matéria que está subtraída à livre disponibilidade das partes, situação esta de indisponibilidade que não permite a sua sujeição à autocomposição das partes através do exercício da sua liberdade contratual.

Estamos, por conseguinte, no âmbito da responsabilidade extracontratual.

3 – Como se vem referindo nos autos, em matéria de responsabilidade extracontratual as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro se este último ficar situado «o lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.»

Tal como a Ré refere nas suas alegações, suscitam-se dúvidas de interpretação sobre o que se deve entender por «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.»

No acórdão do Tribunal de Justiça, de 29 de julho de 2019, proferido no processo C‑451/18 (Tibor‑Trans Fuvarozó és Kereskedelmi Kft. contra DAF Trucks NV), este tribunal ponderou que «27. No que respeita à determinação do lugar de materialização desse dano, há que observar que o mesmo depende da questão de saber se se trata de um dano inicial, diretamente decorrente do evento causal, cujo lugar de ocorrência pode justificar a competência à luz do artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, ou se se trata das consequências adversas subsequentes que não podem fundamentar uma atribuição de competência com base nesta disposição (v., neste sentido, Acórdão de 5 de julho de 2018, flyLAL‑Lithuanian Airlines, C‑27/17, EU:C:2018:533, n.o 31).»

Ou seja, no dizer do acórdão, «28. (…) o conceito de “lugar onde ocorreu o facto danoso” não pode ser interpretado de modo extensivo a ponto de englobar qualquer lugar onde se podem fazer sentir as consequências danosas de um facto que causou já um dano efetivamente ocorrido noutro lugar. Por conseguinte, precisou que este conceito não pode ser interpretado como abrangendo o lugar onde a vítima alega ter sofrido um prejuízo patrimonial consecutivo a um dano inicial ocorrido e sofrido por esta noutro Estado (Acórdão de 5 de julho de 2018, flyLAL‑Lithuanian Airlines, C‑27/17, EU:C:2018:533, n.º 32 e jurisprudência referida).»

A este respeito, Luís de Lima Pinheiro refere que «O TCE/TUE também tem procedido a uma interpretação autónoma da expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, entendendo que abrange tanto o lugar onde o dano se produz como o lugar onde ocorre o evento causal. Por isso, caso não haja coincidência entre estes dois lugares, o autor pode escolher entre a jurisdição de cada um deles. O TCE entendeu que ambas as jurisdições têm uma conexão estreita com o litígio, não se justificando a exclusão de qualquer delas» - Direito Internacional Privado, Vol. III, Tomo I (Competência Internacional), 3.ª edição refundida. Lisboa, AAFDL Editora, 2019, pág. 131.

4 – O facto que desencadeia os danos alegados pelo Autor é o incumprimento por parte da mãe dos menores, relativo ao acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais, cujos termos ficaram mencionados supra.

É este incumprimento dá-se com o abandono da residência em Portugal, pelo que é este abandono que surge como facto causal dos danos alegados.

Tal incumprimento ocorre no local onde as obrigações relativas ao acordo parental eram cumpridas.

Verifica-se que, nos termos do acordo, o Autor ia buscar os filhos à residência da Ré, sita em Montemor-o-Velho, e no final do respetivo período entregava-os nessa mesma residência, pelo que o referido incumprimento ocorreu, nasceu, surgiu factualmente, com o abandono da residência que existia à data em que foi estabelecido o regime relativo às responsabilidades parentais.

Não se pode dizer, como a Ré afirma (Conclusão 15.ª, entre outras), que o facto gerador do dano ocorreu em Espanha, porque foi neste país que a Ré fixou a nova residência.

Não é assim.

A fixação da nova residência é indiferente para a verificação do incumprimento, que se basta com o abandono da residência primitiva, pois sempre existirá incumprimento mesmo que não seja fixada nova residência em lugar algum, como ocorreria, por hipótese, num caso de nomadismo.

Por conseguinte, o facto “abandono da residência”, reportado ao local da residência fixada à data em que foi estabelecido o regime relativo às responsabilidades parentais é, no caso, o facto causal gerador do dano, relevante para efeitos do n.º 2 do artigo 7.º do referido Regulamento.

Tal facto ocorreu na área territorial do tribunal de Montemor-o-Velho, Portugal, e é suficiente para atribuir ao tribunal desta localidade, nos termos do n.º 2, do artigo 7.º do Regulamento, a competência internacional para julgar a ação.

Os tribunais portugueses também seriam competentes internacionalmente seguindo o critério do local onde se produziram os danos.

Com efeito, quanto aos danos não patrimoniais os mesmos produziram-se na própria pessoa do Autor, por conseguinte, no local onde então se encontrava, ou seja, na sua residência, em Viseu.

E quanto aos danos patrimoniais sucedeu o mesmo, pois as despesas que fez traduziram-se numa diminuição do seu património monetário, património este que faz parte do conjunto de todos os direitos e obrigações encabeçados na pessoa do Autor.

Luís de Lima Pinheiro refere que «Quando o prejuízo é constituído exclusivamente por uma perda financeira (dano puramente económico) coloca-se a questão de saber se releva como “lugar onde se produz o dano” aquele em que se localiza o património do lesado, que é geralmente o do seu domicílio. O TUE tem entendido que esta localização só é relevante quando concorra com outros elementos de conexão» - Ob. Cit., pág. 135.

Ora, havendo a necessidade de definir fisicamente um local onde situar este património monetário, este local tem de coincidir com o local onde o Autor tem a sua residência, onde paga os impostos, e não onde o dinheiro fisicamente ao virtualmente se encontram, no respetivo banco onde a conta bancaria se encontra domiciliada.

O dano patrimonial alegado (despesas monetárias) produz-se no património do Autor, pelo que residindo ele em Portugal, é de considerar que os danos patrimoniais ocorreram em Portugal.

Por tal razão, não é pelo facto do Autor ter feito despesas em Espanha, com compra de combustível ou pagamento de estadias em hotéis, como pretende a recorrente (Conclusão 16.ª entre outras) que desloca para Espanha a produção do dano.

Acrescendo ao domicílio do Autor a circunstância do facto casual dos danos ter ocorrido também em Portugal, não se afigura que existam dúvidas no sentido da competência internacional para julgar a ação caiba aos tribunais nacionais, no caso, ao tribunal de Montemor-o-Velho."


3. [Comentário] Aproveita-se para referir que TJ 30/11/1976 (C-21/76) decidiu o seguinte:

"Caso o lugar onde ocorreu o facto susceptível de implicar responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto provocou o dano não coincidam, a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso-contida no artigo 5.°, n.° 3, da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial deve ser entendida no sentido de que se refere simultaneamente ao lugar onde o dano se veriificou e ao lugar onde decorreu o facto causal.
 
Consequentemente, o réu pode ser demandado, consoante opção do autor, perante o tribunal do lugar onde o dano se verificou ou perante o tribunal do lugar onde decorreu o evento causal na origem desse dano."

MTS